quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

O destino do espinosismo no Iluminismo Materialista francês

 

Crítica da Razão Consensual (Parte VI)

 

Bento Espinosa e o destino do espinosismo

 

Este ensaio é uma continuação da crítica da ideologia – o neo-liberalismo – que, ambicionando a hegemonia de todo o pensar, apresenta-se, não apenas como uma Economia Política, mas como uma visão geral do mundo imperialista e totalitária. Desde centros académicos de renome até aos media, desde os discursos de governantes até aos comentadores de serviço, desde os Tratados internacionais para os mercados “livres” até aos decretos que realmente orientam a atual União do Euro, há mais de três dezenas de anos que o mundo ocidental imperialista vem difundindo e impondo um consenso com tantos e tais poderosos meios que parece conseguirem desacreditar uma oposta visão do mundo e da vida mais racional, mais justa e mais humanista. Contudo, não conseguiram nem conseguirão, apesar da enorme desproporção de meios e de forças. É a própria via, isto é, a própria realidade, que vai minando a hegemonia absoluta e demonstrando a irracionalidade que esse pretenso consenso universal transporta. De facto, do que se trata é de uma ideologia, bem mais que uma doutrina académica, que revela e veicula com clareza bastante os interesses de domínio de uma classe social. O que tem de ser feito e o que há suceder mais tarde ou mais cedo é a derrota deste consenso imposto pela força, pela chantagem e pela mentira. Não para substitui-lo por outro pensamento único, mas para converter a igualdade e a liberdade -efetivas- na condição humana do viver, condição adequada e racional do Todo se exprimir nos seus modos múltiplos e diferentes.

É nestes termos inabituais para algumas correntes filosóficas contemporâneas que traduzo subjetivamente as ideias de Bento Espinosa. O seu método, a sua ontologia, a sua ética, a sua teoria do conhecimento, a sua filosofia política e a sua análise pioneira da bíblia, oferecem-nos um racionalismo, porventura mais atual e útil que o racionalismo cartesiano. As grandes filosofias não se eliminam umas às outras numa pseudo história de progresso linear. Espinosa não está ausente, de um modo ou outro, das teses de David Hume ou de Kant; está seguramente presente em F.-W. Hegel. O espinosismo é uma autêntica propedêutica a todo o filosofar e um contributo fundamental para uma reflecção sobre os materialismos.

 

 

O espinosismo na filosofia materialista das Luzes

 

 Passo a expor alguns traços fortes que demonstram a influência do espinosismo. Sirvo-me somente de alguns dos exemplos que desenvolvo largamente na minha dissertação pró-doutoramento.

A atualidade do pensamento de Espinosa, filho de portugueses e que falava a nossa língua, só não é flagrante para o tal pensamento único imperialista. A sua influência foi incontestavelmente profunda e duradoira. Percorreu toda a variegada filosofia das Luzes, emergiu na filosofia alemã (alvo da admiração de Goethe e de Schiller) com destaque para F.-W. Hegel - K. Marx, com pena nossa, não nos legou um escrito, que seria poderoso como todos que escreveu, onde refletisse o seu respeito por Espinosa- renovou-se no século passado com importantes estudos de G. Deleuze, entre muitos outros autores.

 

A influência de Bento Espinosa fez-se sentir em vários filósofos materialistas do século XVIII. Um deles foi um monge beneditino, Dom Deschamps, ateu e comunista utópico.

 

 

Dom Deschamps : o filósofo e a sua sombra

 

 

«Não é senão porque eu sou no fundo a verdade que ei-la desenvolvida, e não é senão porque os meus semelhantes são-no tanto como eu, que aqueles, entre eles, capazes de me ler e de me entender dirão depois de me haverem lido, e compreendido, é ela, a coisa é evidente

 

    Léger-Marie Deschamps (1716-1774) foi um filósofo de origem francesa que interveio no movimento cultural das Luzes com excecional originalidade. Era membro da ordem dos beneditinos. Viveu metade da sua vida numa minúscula e esquecida abadia da região de Poitiers, não muito distante do lugar onde nasceu René Descartes. Não alcançou glórias dada a modéstia das funções que exerceu em plena província e o facto do seu sistema filosófico nunca ter sido publicado. Provavelmente ficaria de qualquer maneira marginalizado pela singularidade extraordinariamente ousada do seu projeto utópico e revolucionário. O estilo de redação de Dom Deschamps é bastante duro, aquém da modernidade de Rousseau ou Diderot. Apesar disso, lê-se hoje com menos dificuldade do que se lê o discurso do então célebre barão d’Holbach e do que a generalidade dos escritos panfletários que abundantemente se publicavam na altura. A seguir à sua morte ficou rapidamente remetido ao esquecimento. Contudo, não foi uma figura ignorada no seu tempo: teve um amigo e confidente em Denis Diderot, dava-se com Jean-Jacques Rousseau e o barão d`Holbach, entre outras figuras notáveis da época. O século vinte fê-lo reaparecer. A nossa tese de mestrado é um estudo detalhado deste abade ateu e “comunista”.

  Tendo procurado as Luzes, permaneceu na sombra. No entanto, outros mais fizeram as sombras desse século e desse movimento reformador que uma interpretação unilateral classificou como utilitarista e anti-metafísico; mas foi certamente um movimento que se julgou a si mesmo iluminado por uma Razão transparente que anunciava uma Era de progressos ilimitados. Vanguarda iluminada de uma época de conflitos e contrastes, de intensas batalhas ideológicas que exprimiam também contraditórios interesses económicos e políticos que iriam confrontar-se violentamente na última década do século. Sucediam-se os debates semiclandestinos em salões privados, nem cafés mundanos, as campanhas persecutórias, proliferavam espiões e esbirros, delatores e funcionários corruptos, encarcerava-se sem julgamento e deportavam-se inocentes. A calúnia era uma arma preferida.

A expressão «sombras» que utilizamos é aqui largamente polissémica. Em primeiro lugar exprime a escassa divulgação e popularidade da obra de dom Deschamps (apenas publicou dois opúsculos que obtiveram um muito fraco acolhimento); em segundo lugar, exprime a posição ambivalente de Deschamps relativamente ao Movimento das Luzes (alguns contemporâneos tomaram-no simplesmente por um conservador); em terceiro lugar, exprime a presença disfarçada de Espinosa no seu Sistema.

  Demonstrámos na nossa dissertação que um beneditino, cuja obra foi descoberta somente um século depois, que criou uma seita de iluminados que pretendia rivalizar com os mações, teve uma intuição brilhante nos anos cinquenta do século XVIII. Munido dessa intuição atreveu-se a substituir, integrando e superando, todos os sistemas e todas as correntes de pensamento do seu tempo e, por meio de um projeto utópico surpreendente, atreveu-se a solucionar todos os problemas sociais e políticos de vez. Isto é, o sistema de Dom Deschamps ambiciona resolver e completar os destinos da Filosofia e da História.

   Pretendeu, em primeiro lugar, fornecer ao conceito de Todo ou Totalidade, que é uma noção nuclear das filosofias, uma nova formulação, denunciando e resolvendo contradições em que outros filósofos, segundo ele, se enredavam. O termo tout, ou grand tout, era usual nos filósofos das Luzes.

Com a chave de uma dialéctica insólita mas que poderia vir a ser inovadora, Dom Deschamps desafiava os seus contemporâneos a admitir, por via rigorosamente lógica e até gramatical, uma ideia não antropomórfica de Deus, uma conceção naturalista que harmonizasse o homem com a natureza, em que a morte não fosse uma tragédia, sim uma necessidade da ordem natural das coisas, de uma ordem que ignora todo o bem e todo o mal. Alcançada a Verdade, abria-se a possibilidade de uma existência individual e colectiva permanentemente feliz. Ou seja: se desejarmos optar por uma forma de existência radicalmente diferente – mais autêntica- necessitamos primeiramente de modificar a perspectiva pela qual encaramos o mundo e a vida; dessa nova perspectiva resulta uma outra atitude existencial. Este é conteúdo do seu sistema. Por isso o designou de A Verdade, ou o Verdadeiro Sistema. É um sistema eminentemente ético.

Em segundo lugar, atribuía, por conseguinte, a tudo que existe uma ordem, um acordo interno e imanente entre todos os seres, desde o homem a tudo mais, sem graus fixos de valor e de hierarquia. O homem é um modo de ser da natureza, uma parte do todo universal. A morte, por exemplo, não equivale ao nada absoluto ou ao grau zero da existência, mas àquilo que ele chama “o menos da vida”.

 Todas as coisas existem, entre o “mais” e o “menos”, como modificações internas de um Ser constituído por uma profunda contradição: é simultaneamente o todo material actual, positivo, perfeito e pleno de realidade física, movendo-se na duração temporal e no espaço, ou seja o universo ou natureza, e é o infinito, a eternidade, o indeterminado, o nada prenhe de virtualidades.

Um ser, substância ou todo, contraditório. Este é o núcleo duro do seu sistema. E porque o início explica o fim, o Autor move-se em círculos concêntricos. Os muitos cadernos insistem, repetem, regressam ao ponto de partida. Não se tratava de uma patológica obsessão, mas de esclarecimentos incansavelmente retomados em relação à matriz do sistema, a qual, a bem dizer, não sofreria modificações de relevo desde os anos iniciais em que foi elaborado. O Verdadeiro Sistema, assim denominado, foi a matriz, tudo o mais são registos de diálogos, correspondência, textos que pretendia publicar para preparar a edição principal, explicações a eruditos hóspedes do Marquês de Voyer, um político desencantado, culto e provavelmente maçónico. As dificuldades de receção que encontrava nos seus interlocutores, obrigavam-no a repetir-se. Ele próprio queixa-se disso, e manifesta alguma arrogância intelectual. O que é evidente para ele, deveria sê-lo para todos os outros. A exposição, repetitiva, identifica-se, porém, com uma exposição didática, no sentido do mestre que ensina e ilumina, embora por vezes denuncie pouca paciência. Para nós, que expusemos todo o seu sistema, foi muito difícil evitarmos a repetição.

  Que sistema filosófico é esse? É um sistema aparentemente niilista, relativista nos valores e manifestamente aberto à Contradição, que impressionou os seus interlocutores, construído sobre a fórmula contraditória de um Deus simultaneamente positivo e negativo. No entanto, esse Deus é apenas o outro nome com que ele designa a Natureza. Neste esforço julgava haver transcendido os conflitos das filosofias e das ideologias políticas, mostrando como ora se afastavam, ora se aproximavam mais daqueles princípios que solucionavam o enigma da Existência. Julgava ele estar na posse da única filosofia genuinamente metafísica, pois que a teologia cristã não a possuía, nem os deísmos e ateísmos. Um sistema de todos os sistemas, um dispositivo inclassificável de um meta-discurso que termina com a afirmação espantosa de que todo o discurso é inútil.

Num século onde as metafísicas eram alvo de ataques, do desprezo ou do silêncio de determinadas elites, também ele as censurou, criando, porém, um sistema dos mais metafísicos que se conhece, sobre o ser e o não-ser, que parece propor um regresso às origens da filosofia ocidental. Mas não é: Não afirma o Ser contra o Nada. Crítico das correntes que abandonaram a ontologia, crítico do sensualismo e do empirismo, e até inclusivamente dos mais notórias filosofias materialistas, inventou uma solução inovadora: integrou a metafísica como um momento do seu Sistema. Encarar metafisicamente os seres era entendê-los na reunião de um Todo material; porém, o pensamento não se encerra aí.

Tentou superar as filosofias da natureza que desempenharam um decisivo papel no seu tempo. Fique claro que o termo «natureza» exprime aquilo que se quiser, ou aquilo que se descreve conforme um determinado ponto de vista. Não lidavam então, nem ainda lidamos nós, com um referente unívoco, objetivo, exterior, cuja realidade se reflete no pensamento. Encontrava-se em pleno desenvolvimento uma atitude e uma conceção que se caracterizava pela separação entre Objeto e Pensamento, tratando a Natureza como a «Coisa» externa que se podia conhecer e manipular por meio da técnica, subordinando-a aos fins humanos. De modo muito claro Dom Deschamps opunha-se a esta fratura e a esta dominação, colocando os homens mais ao serviço da natureza do que o seu contrário. Ou seja, a natureza humana coincidia com a Natureza, e tudo que desta nos apartasse significa infelicidade. A civilização, por conseguinte, era um mal necessário – uma etapa - que se deveria abolir radicalmente, pois que era ela a raiz de todos os erros e sofrimentos. Uma espécie de ecologia  holista radical avant la lettre.

  Distinguiu na especulação filosófica dois andamentos: por um lado, a formulação do conceito de O Todo (Le Tout), soma de tudo que é realidade sensível e finita, e, por outro, a formulação de um conceito que se apresenta contrário: Tudo (Tout), que equivale ao Infinito. Este desdobramento do pensar especulativo em dois momentos – tese/antítese- propõe-se como uma supra-metafísica aparentemente original e ousada. Completamente estranha ao pensamento das Luzes. “Selvagem”. Na verdade é uma ontologia que se propôs superar as contradições da metafísica teológica (da transcendência) e cartesiana (dualista) por meio de uma solução monista.

Crítico tanto das religiões reveladas como das doutrinas deístas, integrou-as como momentos ou etapas do seu Sistema e superou-as pela revelação de uma moral sem normas, de um Deus-Existência que equivale ao Nada, de uma Lei natural sem leis, de uma felicidade gerada pela mais completa igualdade. A Contradição do Ser único conduzia ao resultado utópico da mais cerrada Identidade (Comunidade).

  Um dos eixos da minha dissertação fora precisamente demonstrar que Dom Deschamps se deixou influenciar profundamente pela filosofia monista de Espinosa. Não foram Malebranche, Leibniz, ou o materialismo de d’Holbach, que lhe proporcionaram a intuição fundante. É certo que recusava publicamente o espinosimo, dizendo melhor: aquele espinosismo que circulava rebaixado, mas foi da fórmula natura naturans/natura naturata, que ele se aproximou. Daí a razão do título que demos a esta dissertação: Dom Deschamps, o filósofo e a sua sombra. Quisemos sugerir, desde logo, a presença denegada, e, por isso, bem mais visível, do genial autor da ÉTICA, filho de judeus portugueses. Negou-o? Recusou-o? Sim, certamente, redigindo até uma interessante “ Refutação”. O “filho” teve de “matar o Pai”. E isto não apenas por causa dos perigos que resultavam necessariamente de um parentesco com Espinosa, porque, se assim fosse, não se compreenderia o corajoso projeto revolucionário de Deschamps. A sua utopia social era bem mais ousada que o projeto político liberal de Espinosa. A acusação de que foi alvo - “espinosista” - incomodava-o sobretudo por ser acusado de discípulo de um filósofo que ele considerava inconsequente, e ser remetido ao estatuto de mero “seguidor”. Não o satisfazia a falta de uma moral, ou de uma justa moral, em Espinosa. Chama Espinosa de “ateu”, como, de resto, repudia com suspeita veemência o “ateísmo” do barão d’Holbach e seus círculos (os materialistas ateus). Porém, apresentou a sua própria teoria como o melhor e mais perfeito “ateísmo esclarecido”…

  Nesse tempo abundava uma literatura clandestina sobre Espinosa, circulavam panfletos e opúsculos contra o espinosismo, um hábil disfarce para posições bem próximas de Espinosa. Na verdade, não só aqueles que atacavam Benedito, mas também bastantes daqueles que disfarçadamente o defendiam, conheceram realmente os textos do “Príncipe dos filósofos”. O próprio Deschamps não o demonstra. Talvez por isso, e porque Deschamps constrói uma dialéctica, é que André Robinet descura a influência de Espinosa no pensador beneditino de Poitou, como se pode verificar no seu livro Dom Deschamps, le maître des maîtres du soupçon.  paralelamente aos dois Colóquios que desde 1974 se realizaram, em um dos quais nós mesmos participámos (Léger-Marie Deschamps, un philosophe entre lumières et l’oubli”, Paris, L’Harmattan, 2001). Dessa comunicação, mantemos a tese, tal qual a defendemos nessa altura. O grande sistema pelo qual Deschamps se confrontou com as filosofias do seu tempo, o grande sistema contra o qual se confrontou, foi o sistema de Espinosa, ou melhor: aquilo que, em boa verdade, ele tomou como todo o sistema de Espinosa.

 

Pretendemos com esta dissertação não apenas trazer ao conhecimento um filósofo da envergadura de dom Deschamps, como, e principalmente, demonstrar que foi um dos mais importantes neo-espinosistas do século dezoito francês, senão o mais congruente e radical. Uma época crucial da civilização europeia, que o Movimento das Luzes marcou indelevelmente e que se exportou para o mundo todo.

 

Esta dissertação é composta por duas partes: na primeira, expoe-se o sistema filosófico de dom Deschamps, estabelecendo paralelos com o sistema de Bento Espinosa, sobretudo, privilegiando a ÉTICA, e com aspectos que julgamos oportunos do pensamento de algumas figuras marcantes do Movimento das Luzes; na segunda parte, procede-se à análise do projecto utópico de dom Deschamps, inserindo-se este projecto em uma reflexão sobre as utopias. O autor desta dissertação está convicto de que as produções utópicas surgem ligadas a crenças mais ou menos poderosas, fluxos ideológicos, motivações profundas e mobilizadoras de elites ou de classes e outros grupos sociais. No contexto histórico do século XVIII e do Movimento das Luzes, a relevância com que se manifestam as produções utópicas (e falamos particularmente da sociedade francesa) surgem como expressão própria da crença no Progresso. O Progresso não se limitava a uma mera esperança, realmente os coevos observavam em muitos lados e de muitas formas manifestações palpáveis de progressos nas técnicas, nas ciências, nos bens de consumo. Sendo possível viver-se melhor, julgavam compreensivelmente que as ideias novas e os novos meios ao dispor dos homens permitiriam reconstruir o mundo e a vida. Os romances de viagens eram lidos com muito agrado; era deles que, em muitos casos, se alimentavam as utopias. Novelas do coração, dramas de família, diários de viagem, narrativas de lugares exóticos, projectos de reforma social, crítica de costumes, de toda esta larga variedade de géneros, se despertavam sentimentos e ideias. Grandes foram nessas áreas Montesquieu, Voltaire, Rousseau, Diderot, Morelly, Mably...

O reconhecimento público do sistema de dom Deschamps e o estudo crítico das suas ideias, contribuem, e já contribuiram, para olharmos para o século das Luzes com outros olhos. Foi, na verdade, um tempo de luzes e sombras, de contrastes e oposições, de dissidências e hostilidades inernas a um movimento que, afinal, nunca foi homogéneo. Já se conhecia bem a atitude “herética” de Rousseau, que se afastou dos Philosophes e de colaborador da Enciclopédia, e por razões bem distintas de outros que dela se afastaram por cautelas e temores. Há poucas décadas atrás surgiu-nos a “emergência intempestiva de dom Deschamps”que vem tornar mais difícil ainda “a determinação de um curso das coisas e de uma história das ideias”. Como compaginar um sistema tão absolutamente especulativo e metafísico com a atitude empirista que parecia triunfar, com o elogio da experimentação, com a grande física newtoniana, com uma ética liberal que vinha anunciar uma era de revoluções? Na verdade, o abade Condillac e o matemático D’Alembert não foram os únicos que entusiasmaram os espíritos progressistas, também o conseguiram Rousseau, o pré-romântico, Diderot, o barão d’Holbach. Quem precisamente terá mais marcado o Movimento terão sido os materialistas, que se esforçavam por construir uma nova ontologia, bem longe dos projectos de D’Alembert. Enfim, o século das Luzes foi também uma das épocas mais fecundas em utopias sociais, projectos revolucionários, liberais uns, anti-liberais outros. O chefe do “Movimento dos Iguais”, G. Babeuf, confessou-se discípulo de Diderot, julgando-o o verdadeiro autor do Code de la nature, de Morelly.

A revelação da obra de dom Deschamps contribuiu, e muito, para modificar o rosto do século dezoito, através de uma “mensagem única da filosofia francesa”.

Deste modo já não não surpreende agora descobrirmos um abade completamente descrente, que advogava um “ateísmo esclarecido”, um moralista generoso absolutamente convicto do seu ideário comunista, para quem a Cultura e a civilização haviam chegado ao seu termo, para cederem o lugar a uma sociedade onde a cultura, o Estado ea antiga moral, eram perfeitamente dispensáveis.

Tout e le Tout desigam o par de opostos que constituem o fundo da existência. Munido desta fórmula dom Deschamps construiu um sistema notável e singular. A bem dizer aquilo que o abade ambicionou, foi fortalecer o materialismo com uma nova ontologia, ou seja, com aqueles “princípios” sem os quais não se poderia deduzir e sustentar uma moral adequada à condição simultaneamente natural e social do homem.

Toda a filosofia de Deschamps explicita e desenvolve uma determinada intuição da existência pura, intuição a partir da qual forja a ideia do negativo e do positivo, que apresenta como sendo as nossas únicas ideias inatas. Bastaria este investimento numa determinada forma de inatismo, para sermos confrontados com um enorme desafio. A evidência primordial, o centro nuclear do sistema, é a intuição da unicidade fundamental da realidade, que ele designa, com os dispositivos retóricos do seu tempo, de “fin fond”.

Pois bem, o desafio que dedidimos enfrentar foi, não apenas apresentar este autor, mas também demonstrar nele a presença tutelar de um outro. A “sombra” a que fazemos referência no título, é realmente o espinosismo.

Denis Diderot, que não ignorava o espinosismo de modo algum, disse de dom Deschamps o seguinte, com aquele grande estilo que lhe era peculiar:

«Um monge chamado Dom Deschmps deu-me a ler uma das obras mais violentas e mais originais que eu conheço.»

 

Não ignoramos que as metafísicas de sistema sofreram profunda erosão desde o século XVIII, perdendo credibilidade e prestígio na comparação com o progresso científico, mais útil, mais técnico, mais irrefutável (aparentemente). O sistema de dom Deschamps não escaparia à Crítica kantiana, e David Hume não o teria poupado. Contudo, o sistema espinosano não apenas escapou e já beneficiou de várias ressurreições, como marcou de muitos modos o desenvolvimento das filosofias materialistas (ou naturalistas); e não apenas estas, porque sabemos a fortíssima presença de Espinosa no pensamento de G. W. F. Hegel. Dom Deschamps está longe de possuir a envergadura de Espinosa, mas demonstra, por um lado, a influência viva do espinosismo no interior das filosofias materialistas, bem diversas de resto, e, por outro, uma solução para o problema do Ser assaz interessante; tão interessante que ainda hoje é lícito discutir-se se Deschamps foi, ou não, um precursor de uma nova, e mais moderna portanto, dialéctica do Ser.

  Vários outros aspectos do pensamento de dom Deschamps poderiam aqui ser relevados, mas iremos fazê-lo no decurso desta dissertação. Refiram-se rapidamente apenas mais dois tópicos: a intuição deveras promissora do que seja a Ideologia (não somente a sua aparência de erro e ilusão, mas, e é isto que é essencial, de efeito necessário de relações sociais de desigualdade e dominação que, deste modo, permanecem ocultas), e a intuição de que a filosofia é também linguagem, ou um puro trabalho sobre a linguagem que exprime adequadamente a existência, derivando daí que a verdade do mundo e da vida se encontre por meio de uma gramática. A fórmula do mundo aloja-se já nas mais básicas locuções do senso-comum: o sim e o não.

 

Biografia de Deschamps

 

Considerando que Dom Deschamps é um autor ignorado pelas academias portuguesas, achamos adequado inserir alguns dados biográficos.

Lèger-Marie Deschamps nasceu em 10 de janeiro de 1716, em Rennes, o quinto de nove irmãos, oriundo de uma família relativamente modesta, que viu a sua situação de algum desafogo ser atingida gravemente por um terrível incêndio. Ingressa muito novo na ordem dos beneditinos, abadia de Saint-Melaine, de Rennes, em 8 de Setembro de 1733, cidade que abandona em 1734. Ignora-se ao certo onde terá recebido formação teológica, provavelmente nos mosteiros de Touraine e de Anjou, até 1743. Em 1745 o seu nome surge incluído no pessoal da abadia de Saint-Julien ; antes, transitara pelo vale do Loire onde se concentravam importantes mosteiros da ordem. Em Tours, colaborou na elaboração de uma história da região de Touraine. A partir de 1762 é destacado para o priorado de Montreuil-Bellay, perto de Saumur, na região de Poitou, nomeado seu procurador. Morre, provavelmente de cirrose, em 19 de abril de 1774.

Declara o próprio que começou a elaborar o seu sistema filosófico a partir dos seus 25 anos, tendo-lhe dedicado os dez anos seguintes. Todavia, tomando como testemunho fidedigno o relato de dom Patert, seu companheiro de abadia e amigo sincero, O Verdadeiro Sistema foi resuluado de um trabalho meditado durante mais de trinta anos, sucessivamente revisto e carescentado com novas explicações. No entanto, conforme declarações do próprio, o escopo principal – as Observations métaphysiques e as Observations morales - estaria terminado no início da década de cinquenta, tendo a obra sofrido posteriormente alterações de pouca monta. O Verdadeiro Sistema é composto de duas partes: As Observações metafísicas, e as Observações morais, todos os demais textos foram redigidos nas duas décadas que levou ainda de vida.

  Poucos anos de idade o separavam de Rousseau, Diderot, Helvétius, d’Holbach. Todos alcançaram em vida uma notoriedade que ele jamais alcançou. Apesar disso, dom Deschamps não foi em vida um ilustre desconhecido: correspondeu-se com Helvétius, encontrou-se com Diderot, troucou algumas missivas com Rousseau, Voltaire, d’Alembert.

Orirundo do povo, o monge que nunca conquistou cargos importantes, viveu metade da sua vida no pequeno mosteiro de Montreuil-Bellay, lado a lado com a iséria aflitiva dos camponeses da região. Fisicamente era um dindivíduo corpulento, de temperamento impulsivo. A amaizade que nasceu entre ele e o marquês de Voyer mudou de algum modo o percurso e as ambições. O priemiro encontro verificou-se por volta de 1759. A sua abadia confinava com as vastas terras dos Argenson. O marquês era filho de um ministro da guerra de Luís XV e, por altura do primeiro encontro com Deshamps, já havia feito uma brilhante carreira militar (ilustrou-se na batalha de Fontenoy em 1745, e ascendera aos elevados cargos de governador real de Vincennes, governador militar de Poitou, e outros. O marquês, homem culto e amigo de Philosophes, serviu de intermediário entre Deschamps e alguns dos mais célebres iluministas. O seu temperamento melancólico, que parecia sofrer daquele “aborrecimento” existencial de que se queixaram tantos intelectuais e nobres dessa época, terá seguramente inspirado algumas das páginas mais visionárias do projecto utópico do seu amigo dom Deschamps, que extinguiria de vez as condições da infelicidade. Por outro lado, a fama de libertino não parece haver molestado qualquer escrúpulo moral do monge, o qual, de resto, parece ter apreciado as mulheres e a bebida.

Dom Deschamps fala com compaixão sincera em cartas trocadas com o seu amigo marquês, da brual miséria dos camponesescujas filhas se prostituiam para matar a fome, e que o procuravam constantemente para lhe solicitar auxílio, pedidos que ele remete frequentemente para o marquês. A sua utopia social teve eco na personalidade generosa, e algo atormentada, do grande aristocrata. Um dos seus descendentes haveria de lançar fogo ao próprio castelo no dealbar da Revolução de 1789, e protegeria um dos foragidos do decapitado Movimento dos iguais, o carbonário F. Buonarotti...

Isolado na província, numa minúscula abadia (com apenas dois abades), Deschamps estaria condenado a uma vida completamente provinciana e obscura. Não foi o caso, muito embora se possam atribuir-lhe, por via disso, alguns traços da sua obra e do seu pensamento. Tem sido motivo de perplexidade que Deschamps haja enveredado pela metafísica, com vocação de sistema. Não é de excluir a influência do seu modus vivendi. Em nossa opinião é de relevar tais factos, não apenas pelas dificuldades que encontrou, ou pela independência de que gozou, mas porque devem ser tidos em devida conta para a compreensão de uma forte personalidade que ambicionou afirmar-me num meio relativamente hostil, fora e contra os grandes centros de cultura e de civilização, crítico da Cidade, dos novos costumes, tendendo a considerar frívolos os debates de ideias, e inútil tudo aquilo que respeitamos como Cultura. É legítimo interrogarmo-nos se dom Deschamps não transfigurou o isolamento e as particularidades provincianas da sua vida numa disciplina e orientação de pensamento, austero, ascético, moralizante, numa espécie de ideal de sábio com vocação profética e evangelizadora. Psicologicamente a sua teimada convicção de haver descoberto a Verdade única e universal, prender-se-á de algum modo tanto com a sua formação teológica e as suas meditações solitárias monásticas, como com a imagem que foi forjando de si mesmo nas frequentes estadias no hospitaleiro castelo dos Ormes, propriedade de notabilíssimos condes e marqueses de França, que o escutavam com amizade e admiração. Os seus escritos e os seus comportamentos levam-nos a conceber um indivíduo que, consciente e decididamente se conduziu como um filósofo que transportava o significado último da existência, ao arrepio do filósofo mundano que se populariza então, e que Diderot tão bem soube exprimir. Até neste ponto a influência de Espinosa, que irei demonstrar, ter-se-á manifestado. Espinosa legou para a posteridade essa imagem de sábio desprendido dos bens mundanos. Temos que nos interrogar se nas similitudes com o grande pensador de Haia, filho de judeus portugueses, não se encontraria a presença viva de uma forte, mas bem dissimulada admiração.

Os beneditinos da Congregação de Saint-Maur não eram muito inclinados para metafísicas modernas, na sua formação pesavam sobretudo Platão e Aristóteles, Descartes estava ainda penetrando ao tempo da adolescência de Dom Deschamps, na forma redutora conveniente da escolástica. Espinosa havia sido silenciado pela reforma da ordem encetada por Dom Lami. O afastamento de Espinosa ter-se-á devido com certeza ao opúsculo crítico de Dom Lami, de 1696, intitulado Le nouvel athéisme renversé ou Réfutation du système de Spinoza. É de reter, porque iremos debruçar-nos sobre um texto de Deschamps de refutação do sistema de Espinosa.

Dom Deschamps foi marcado profundamente pela sua amizade com o marquês de Voyer d’Argenson. O castelo deste grande proprietário e grande senhor da corte de Luís XV, situado nas proximidades da abadia de Montreuil-Bellay, constituía um notável centro da vida literária da província. Servira de refúgio ao conde de Argenson, antigo secretário de Estado da Guerra, caído em desgraça em 1757, e amigo dos Philosophes. Diderot e d’Alembert dedicaram-lhe a Enciclopédia. A biblioteca do castelo era famosa. A mansão da ilustre família de admirados intelectuais, era apelidada como Academia dos Ormes.

Não foi com o velho conde que Deschamps estabeleceu amizade, foi com o filho dele, Marc-René, marquês de Voyer d’Argenson, distinto oficial militar de carreira que, até 1762, se havia ilustrado em diversas campanhas militares; tendo alcançado o comando militar da Alta-Alsácia e o cargo de governador de Vincennes é citado com elogios nas Memórias de Frederico da Prússia. Homem de grande cultura, como, de resto, era tradição na família: seu pai e seu tio haviam legado aos contemporâneos escritos de fina inteligência, inclusivamente sobre Portugal. René, ferido numa campanha militar, possuía uma personalidade inquieta e angustiada que dir-se-ia neurótica, e que reflectia bem as perturbações da grande nobreza da sua época, tocado profundamente pela desgraça política de seu pai, pela atmosfera de revolta e ressentimento em que fora educado. É legítimo admitir que o projecto deschampsiano utópico de uma sociedade feliz procurava solucionar também os conflitos da personalidade do controverso marquês, alvo de maldizeres e calúnias lançadas contra ela a partir de Paris, com origem nas invejas de uma nobreza decadente e corrupta.

A correspondência de Deschamps para o marquês inicia-se em 1763 e por ela vemos a sincera amizade que ligava os dois homens. E isto é grandemente significativo, pois que a imagem que fazemos do beneditino, homem grande e obeso, é a de um indivíduo tenaz, ousado, corajoso, capaz de ímpetos apaixonados, inclinado a comportamentos que roçavam a violência, implacável com os seus inimigos.

Montreuil-Bellay situava-se na periferia de uma região na qual o mercado se expandia, e onde surgiam as primeiras manufacturas. Os contrastes geográficos e económicos acentuavam-se rapidamente. Os camponeses de Montreuil-Bellay encontravam-se extremamente empobrecidos, a correspondência de Dom Deschamps relata casos de grande miséria. Uma ambiência social que influencia enormemente a consciência do beneditino. De um lado o vale do Loire, rico em belas vinhas, do outro as matas de Mauges, com uma agricultura de subsistência. Por fim Montreuil que entra em decadência, perdendo predominância com relação a Mauges, lentamente despovoada, desprovida de qualquer núcleo burguês, onde vai morrendo a anterior actividade industrial ligeira (curtumes, entre outras) a jusante do artesanato rural.  O próprio comércio de vinhos e aguardentes que percorria o rio que a atravessava, troca Montreuil por Saumur. A população rural perde a única escola para os seus filhos, e não possui meios para pagar os impostos, os rapazes emigram, as raparigas prostituem-se ou demandam os conventos. Bandos de vagabundos pilham as redondezas. São estas misérias que chocam profundamente o coração e o espírito de Dom Deschamps. Não se verifica aqui uma ascensão do capitalismo, com o cortejo das suas misérias, mas, antes, é a burguesia nascente que abandona Montreuil. Estes factos e uma leitura atenta da utopia de Dom Deschamps proíbem-nos interpretações redutoras, do género de que o Autor se opunha ao desenvolvimento do capitalismo, a favor de um desenvolvimento sustentado nas estruturas senhoriais ou feudais. A utopia de Deschamps é uma utopia camponesa, que se compreende melhor à luz desta geografia social, afligida por irresolúveis contradições.

 

Bibliografia

 

A explanação e análise das obras de Dom Deschamps justificam-se, não só pelo facto do pouco conhecimento e estudo de que ele goza entre nós, como pela razão de que o acervo completo das suas obras somente foi publicado em França há poucos anos atrás. As obras de Dom Deschamps vêm identificadas nas notas reunidas no termo da dissertação, com as seguintes siglas:

 

O .Ph. : œuvres Philosophiques, introduction, édition critique et annotation par Bernard Delhaume, Avant-Propos de André Robinet, 2 tomos, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin,1993. Constitui a primeira edição completa das suas obras.

 

La Voix : La Voix de la Raison contre la raison du temps, et particulièrement contre celle de l’auteur du Système de la Nature, Par Demandes et Par Réponses. Bruxelas, Georges Frick, 1770.

 

Em 1863 um académico de nome Émile Beaussire, professor da Faculdade de Letras de Poitiers, descobriu e exumou Le Vrai Système, obra composta por diversos cadernos, cuja autoria se atribuía até então a dom Hugues Mazet, conservador da biblioteca municipal, em 1792, quando, na verdade, este fora somente o copista, que salvou a obra do mestre e mentor de uma minúscula seita da qual ele, dom Mazet, era membro. Esta copia é composta de três tomos, sob o título de La Vérité, ou le Vrai Système, datada de 1775, sem nome do autor. O tomo I, primeiro caderno, é composto pelos textos intitulados « Le Mot de l’énigme métaphysique et morale », e, no segundo caderno, « Précis en quatre thèses du mot de l’énigme métaphysique et morale », e as « Additions »; o tomo II, ou 3º caderno, contem « Le Mot de l’énigme métaphysique et morale, appliqué à la théologie et à la philosophie du temps, par demandes et par réponses ». Os dois volumes identificados por Beaussire constituíam na realidade apenas uma parte da obra; a maior parte do que faltava foi descoberta por uma jovem investigadora russa, quarenta e três anos mais tarde, Elena D. Zajceva (faleceu em Moscovo em 1967. A sua tradução do Vrai Système, revista e anotada por L.S.Gordon, foi somente publicada em 1973, em Moscovo, por Boguslavski, Gordon e Porchenev) – vários cadernos contendo as Observations métaphysiques, Observations Morales, Le Mot de l’énigme métaphysique et morale, Préface, Refléxions métaphysiques préliminaires, Chaîne des vérités dévelopées, Précis en quatre thèses du mot de l’énigme métaphysique et morale.

 

Le Vrai Système compõe-se de seis cadernos.

De acordo com as pesquisas do Professor B. Delhaume, podemos ficar certos de que Deschamps teria já constituído Le Vrai Système aos 45 anos de idade. Depois disso contactou com várias personalidades de relevo, como já fizémos referência, por intermédio do marquês de Voyer, com a intenção de tactear as possibilidades de publicação, sem sucesso porém.

 

O Prefácio de O Verdadeiro Sistema, foi corrigido depois de 1770, pois regista uma crítica ao Système de la Nature, de d’Holbach, publicado em 1770, sob o nome de Mirabaud.

Em 1771 uma descendente dos Argenson, descobriu no castelo dos Ormes, uma obra intitulada La vérité tirée du fond du puits, que veio a confirmar-se rapidamente ser de dom Deschamps, que se encontra publicada nas Obras Filosóficas. B. Delhaume mostra-se convencido de que este texto representa a forma prospectiva pela qual Deschamps desejava sondar os seus eventuais leitores, para, em seguida, transmitir a doutrina de O Verdadeiro Sistema.

Por conseguinte, dom Deschamps pôde publicar apenas dois opúsculos, mas jamais O Verdadeiro Sistema, o qual chegou ao conhecimento de um público muito restrito somente em plena segunda metade do século XIX. Esta edição, a edição de E. Beaussire, é fiel aos manuscritos, mas a introdução que deles faz é extremamente crítica. E. Beaussire era um académico profundamente anti-hegeliano, e viu no sistema de dom Deschamps um “antecedente” francês do hegelianismo, um precursor da dialéctica do filósofo de Berlim, assunto a que iremos voltar com mais demora. Foi, portanto, o hegelianismo que encontra e que o incomoda, e não Espinosa ou o espinosismo.

Dom Deschamps redigiu um texto com o qual pretendeu afastar as suspeições sobre um eventual compromisso com o espinosismo; na verdade fez quatro versões dessa Réfutation courte et simple du système de Spinoza, que enviou ao seu amigo marquês entre Março e Julho de 1766:«Songez que c’est à vous que je dois l’idée de cette Réfutation, et que cette idée est la lus exquise qui pût m’être suggérée pour faire tomber les armes des mains de tout croyant, et pour donner aux mécréants ce qui leur manquait, la vraie raison de l’être, ou, plutôt, pour les préparer à cette raison.»

Rousseau, d’Alembert e outros mais haviam encontrado o espinosismo nas peças do Système que Deschamps lhes havia mostrado. A carta parece indicar que o próprio marquês necessitava dessa refutação para aderir com mais confiança às ideias do monge. Refutar Espinosa, ou sjea, o espinosismo, constituía para Deschamps, a partir de certa altura (anos 66?) uma atitude indispensável e urgente para seduzir de todo o seu amigo, os ilustres convivas que se hospedavam regularmente no castelo dos Ormes, e desbravar caminho para a publicação da obra de uma vida.

 

 

Advertência

 

Optámos por dividir a nossa dissertação em duas partes. Na Parte I expomos a ontologia do sistema, na Parte II procedemos à análise do seu projeto de uma utopia social. Na medida em que o sistema é fechado, circular e consequente, não pudemos evitar realizar algumas incursões nas ideias expostas na Parte II. Um dos eixos desta dissertação – a presença tutelar do espinosismo- é explicitada principalmente na Parte I. O mesmo sucede com a segunda intenção que foi colocar à reflexão o problema do(s) materialismo(s) no século XVIII, século das Luzes, a partir das teses materialistas de dom Deschamps. Na medida em que os mais importantes materialistas da época não ignoraram de modo algum o monismo espinosista, que até teriam feito infletir o espinosismo em direção a um materialismo (os “espinosistas modernos”, na famosa qualificação de Diderot) conforme o julgam alguns intérpretes, julgamos que se justifica a relativamente extensa análise da heterogeneidade de tal corrente filosófica, sem subtrairmos a hipótese de existir um denominador comum. Neste ensaio para a revista VÉRTICE selecionámos somente alguns fragmentos.

 

 

A Existência pura

 

    Numa época em que a vanguarda do pensamento e da cultura se orientava para a experiência, para a observação dos fenómenos naturais, para as ciências particulares, a linguagem e o corpo das ideias de dom Deschamps apresenta-se como um acontecimento aparentemente retrógrado. Que novidade poderia oferecer um sistema declaradamente fechado e definitivo, pelo qual tudo ficava dito e depois do qual nada mais haveria para investigar?

  No entanto, iremos verificar que o seu sistema não fora o último nem o único na década de sessenta do século XVIII, embora haja sido o mais singular e ousado.

  É entre os Philosophes que Deschamps encontrará resistências incontornáveis. O seu conceito de natureza, por exemplo, apresenta-se  demasiado abstracto, generalista, quase a contra-corrente, aos olhos dos seus contemporâneos, que já davam passos na análise empírica e experimental. As especulações de Deschamps não suscitam interesse num d’Alembert por exemplo, e Voltaire manifesta uma recepção algo irónica e desprendida.

Dom Deschamps foi um metafísico de sistema. Buscou um princípio, ou fundamento, e dele deduziu uma série lógica de consequências.

  O corpo principal das suas teses constitui o que ele intitulou La Vérité, ou Le Vrai Système. O O programa anuncia-se desde logo no título do primeiro caderno: a revelação de Le Mot de l’Énigme Métaphysique et Morale.

Devemos, por conseguinte, iniciar a nossa exposição pela definição primeira, pelo axioma fundamental na organização do sistema.

  Os termos designam-se por O Todo (Le Tout) e Tudo (Tout).

Tout e Le Tout são os princípios do Ser e do pensar. Par de opostos, compõem o plano metafísico da noção nuclear de Existência ( Existence). Le Tout é o Uno, a Unidade, ser universal que une os entes e as coisas; é composto por “partes”, isto é, particularidades finitas que ele classifica como nuances ou modificações do todo. É o domínio da pura relatividade do devir. É o reino da relação entre partes. Pelo contrário, Tout é a negação das relações e, portanto, do devir. É assim que ele o classifica de Existência “em si”. Sem a negação não haveria a firmação de Le Tout, que é a Natureza.

 

   Para Deschamps existe apenas uma e somente uma substância: a Existência. Pode ser apreendida sob o seu aspecto positivo. que é Le Tout, ou sob a seu aspecto negativo, a que ele chama Tout. Muito embora ele fale em dois seres, noutras fala num só. Porque então critica Espinosa, como iremos verificar?

Escreve Espinosa: « Entendo por substância o que existe em si e é concebido por si, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa pelo qual deva ser formado.»

  Numa primeira abordagem, esta definição não é respeitada por dom Deschamps: «Tout, que de modo nenhum fala de partes, existe e é inseparável de Le Tout universal, que fala de partes, e do qual ele é a afirmação e a negação simultaneamente. Tout e Le Tout são os dois nomes do enigma da Existência, nomes que o grito da verdade distinguiu colocando-as na nossa linguagem.»

Há que optar: ou a substância, em rigor, apenas se aplica à Existência, ou ele admite duas.

  «entendo por Tout, a existência em si, a existência por ela mesma, isto é a existência considerada como fazendo um só e mesmo ser que não se distingue mais então dos seres, como sendo o ser único, e, consequentemente, sem relação, ou, como já o disse, sem existência por meio de outra coisa senão por ela mesma. »

   A definição de Tout corresponde, nestes termos, à definição clássica e rigorosa de substância, ou causa sui: aquilo que é em-si, sem necessitar de outra coisa (ou substância) para existir. Neste sentido, equivale à definição filosófica e teológica de Deus. Contudo, o problema situa-se entre Descartes e Espinosa: o primeiro, como se sabe, recorre à ambiguidade, isto é, à concepção “operatória” de duas, se não mesmo de três, substâncias: res cogitans, res extensa, e a substância divina, dotada esta de atributos especiais. Espinosa, garantidamente contra Descartes, afirma a unicidade da substância. Uma única substância, porém, dotada de dois atributos essenciais, entre outros: Pensamento e Extensão.

   Parece, por conseguinte, que a única substância, para Deschamps, é a Existência, que ele designa também por Tout : “Tout, ou o ser único

   Entretanto, Le Tout é o “princípio », como ele escreve : “De Le Tout, que é o princípio”

   Impõe-se, portanto, uma definição adequada e uma interpretação que sobreleve outras. Dom Deschamps mostra conhecer muito bem a problemática que envolve a definição de Substância. Malebranche era bem conhecido na ordem dos beneditinos, o cartesianismo seguramente, Espinosa, em segunda mão pelo menos, ou seja, já refutado. À sua maneira, com originalidade, encontra uma nova solução: a tese dos “dois contrários”, dos “dois últimos extremos possíveis”. A tese dos “dois pontos de vista”. O que seria para Espinosa a natura naturata, é para ele Le Tout. Sendo contrários entre si, Le Tout e Tout, tal solução “escapa” às “dificuldades” de Espinosa. Julgava ele.

Que entende Espinosa por substância?

    «Entendo por substância o que existe em si e é concebido por si, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa pelo qual deva ser formado.»

E por atributo?

«Entendo por atributo o que o entendimento percebe da substância como constituindo a essência dela.»

   Não existe qualquer ambiguidade na exposição e na argumentação de Espinosa: Não há duas substâncias com o mesmo atributo; não há duas ou mais substâncias com atributos diferentes; um ser absolutamente infinito deve ser necessariamente definido como um ser que é constituído por uma infinidade de atributos, cada um dos quais exprime determinada essência eterna e infinita.

 

    A nosso ver, a inspiração mais fecunda vem do espinosismo. Apesar da fórmula dos contrários, assumida como eixo fundamental do sistema.

    Exposta assim resumidamente a questão essencial, isto é, o problema da substância, erguem-se numerosas interrogações. Deschamps atacou-as de frente, fosse por meio de interlocutores, fosse por um notável esforço de exposição argumentativa. O Verdadeiro Sistema contém as teses e os seus desenvolvimentos e explicações, mas outros longos textos mais tardios apontam para a mesma direcção, sem quebras e sem revisões de fundo: definir o conceito de totalidade e deduzir as consequências. Às vezes com muita repetição, quase em círculo, pois que, de certo modo, um sistema assim é comparável a um círculo.

No Prefácio, Deschamps alerta, desde logo, para que não o confundam com as “nossas semi-luzes filosóficas, tão justamente encaradas como perigosas, (porque) destroem sem estabelecer”, enquanto que a verdade do seu sistema “estabelece incontestavelmente”.

Não basta a crítica destrutiva, pois esta é o que faz a “filosofia reinante”, isto é, a filosofia das luzes na sua vertente mais violentamente anticlerical, que ameaça conduzir-nos para uma “revolução”, sempre a evitar como tão perigosa como inútil, pois “não impedirá o estado de leis divinas e humanas de subsistir, e o mal moral, do qual este estado é a causa, de existir com a mesma força, embora sob outros disfarces”

O ateismo só tem de comum com O Verdadeiro Sistema, o facto de rejeitarem ambos a religião, porém existe uma extrema diferença:” é que O Verdadeiro Sistema ao negar a moral do teísmo afirma a metafísica, donde extrai uma moral, enquanto que o ateísmo, porque não conhece princípio algum, nega um e outra, e deixa-nos com uma moral arbitrária”.

Porque a metafísica tem por objecto considerar os seres “em grande, em geral, em total; considerá-los naquilo que eles possuem todos de rigorosamente comum”.

Por conseguinte, Deschamps é rigorosamente um metafísico de sistema, e procede em conformidade: buscou e encontrou um fundamento, ou de acordo com as suas palavras: o fin fond da existência.

Na medida em que Deschamps organizou o seu sistema numa intensa atmosfera espinosista, achamos adequado descrever essa atmosfera. Afinal de contas, aquilo que pretendemos demonstrar é precisamente a presença do espinosismo em dom Deschamps, muito embora não exclusivamente.

 

 

 

O espinosismo no Século XVIII

 

 

   Ninguém escapa incólume a mais de cinquenta anos de censuras, torções, perseguição dos seus escritos, aleivosias sobre a sua vida e personalidade. Nada adiantaríamos de novo se disséssemos que Espinosa sofreu de tudo em vida e depois de morto. Muito poucos ombreiam com ele nessas histórias negras de que é feita a história das ideias.

   Quando dom Deschamps declara haver terminado o seu sistema, à entrada da década de sessenta, já o próprio cartesianismo claudicava como fonte inspiradora dos seus contemporâneos. Sem esta crise das metafísicas, é mais difícil interpretar as ideias de dom Deschamps.

 

Os mais célebres Philosophes, Voltaire, d’Alembert, Diderot, d’Holbach, haviam lido Espinosa. Todos eles reagiram, de uma maneira ou doutra, ao ousado sistema do filho de portugueses.

O espinosismo, mal lido e compreendido o mais das vezes, é instrumentalizado na luta contra o pensamento mais conservador, e banido por este. Manuscritos clandestinos, bibliotecas discretas, reuniões conspirativas contra a Igreja instalada no poder, tudo serve, e o espinosismo é útil para o mais cerrado combate ao clericalismo.

«Espinosista, s.m. (Gram.), partidário da filosofia de Espinosa. Convém não confundir os espinosistas antigos com os espinosistas modernos. O princípio geral destes, é que a matéria é sensível, o que eles demonstram pelo desenvolvimento do ovo, corpo inerte, que, unicamente devido ao calor graduado, passa ao estado de ser sensível e vivo, e pelo crescimento de tudo que é animal que, no seu princípio, é apenas um ponto, e que, pela assimilação nutritiva das plantas, numa palavra, de todas as substâncias que servem à nutrição, torna-se um grande corpo sensível e vivo em um grande espaço. Desse facto concluem que somente existe a matéria,e que ela basta para tudo explicar; no resto, seguem o antigo espinosismo em todas as suas concequências.»

Diderot, autor desta citação, por um lado aceita sem reservas a ÉTICA, nas suas consequências, que são de monta, e inseparáveis dos postulados, axiomas e definições, por outro, satiriza um certo espinosismo no Jacques, le Fataliste. Terá lido na íntegra a ÉTICA, e no original? Os especialistas duvidam profundamente. Julgamos nós que Diderot satiriza, ou aponta-lhe os excessos, o fatalismo de d’Holbach, isto é, o modo como este utiliza a herança espinosista. Mas esta sátira parece claudicar, nas últimas palavras sentidas e elogiosas proferidas por Jacques relativamente ao seu capitão fatalista...O melhor seria, segundo Diderot, actualizar Espinosa com um novo vitalismo. O exemplo do “ovo”, que exprime o problema científico capital, é elucidativo : trata-se da questão essencial, isto é, da criação, do aparecimento da vida, da emergência do novo, qualitativamente novo, da capacidade criadoramente fecunda da natureza. E isto remete-nos para as apregoadas “dificuldades” do sistema de Espinosa, aparentes ou reais. Escutam-se aqui os ecos da famosa crítica de Pierre Bayle, enviesada, ao sistema de Espinosa: depois de haver caracterizado Espinosa como “um ateu de sistema”, considera que não é nessária uma longa e complicada disputa com ele, porque basta “refutar a proposição que está na base do seu sistema...:saber que Deus é a única substância que existe no universo, e que todas as outras são modificações desta substância»,« uma suposição tão estranha, que ela desloca a maior parte das noções comuns que servem de regra nas discussões filosóficas;...é a mais monstruosa hipótese que se possa imaginar, a mais absurda e a mais diametralmente oposta às noções mais evidentes do nosso espírito».

 Não é um dado adquirido que Bayle haja lido Espinosa na totalidade, e sobram dúvidas sobre a interpretação de algumas das suas teses. Retomaremos o célebre artigo de P. Bayle em altura que nos parece mais oportuna.

A ideia, por exemplo, de que a filosofia de Espinosa se assemelhava ao pensamento oriental, ou do extremo oriente, seguira o seu caminho sem ninguém que se opusesse, o que é verdadeiramente surpreendente e coloca a um historiador da filosofia graves suspeitas sobre os modos como se fabricam os legados e os putativos herdeiros.

 Desde Bayle e Malebranche, a Fénelon e ao Padre Tournemine, mestre de Voltaire. Descobrir coincidências genéricas é uma coisa, afirmar filiações é outra bem diversa.

À mistura com o pensamento científico que tenta abrir caminho, sopram os ventos a favor de modas, de mistérios, de superstições eruditas, de hilozoísmos antigos, de Giordano Bruno e Campanella restaurados, de filosofias orientais, de Cabala. Na profusão dos escritos mais medíocres ou mais ilustrados, Espinosa transforma-se numa espécie de prêt-à-porter, que, quanto mais se utiliza, mais se degrada. E sempre Bayle: a classificação da filosofia de Espinosa como puro panteísmo. Ate hoje, porque ainda agora lemos e escutamos tal identificação, ou para denegrir, ou para emprestar autoridade a novas utopias, ou simplesmente porque a tendência para reduzir e “compactar” um pensamento complexo e um sistema em uma fórmula cómoda, embora inútil e vazia, é recorrente.

Separar as águas, distinguir os panteísmos renascentistas e orientais, do materialismo e, neste pé, recuperar Espinosa, foi trabalho duro, mas minoritário, de alguns espinosistas do século dezoito. Trabalho nem sempre isento de assimilações apressadas que torciam convenientemente o pensamento espinosano. É justo, no entanto, reconhecer que os mais importantes corifeus quer do materialismo, quer do naturalismo, realizaram esforços notáveis para conservarem uma relação honesta com o espinosismo, ou com aquilo que tomaram como sendo as verdadeiras teses de Espinosa, rompendo com algumas delas sempre que as considerassem desadequadas aos novos contextos. O materialismo (que é, aliás, bem diverso) do século dezoito francês não é um puro espinosismo. O materialismo construiu os seus próprios caminhos.

Introduzir o movimento na matéria, por exemplo, eis a tarefa a que se dedicaram Diderot, d’Holbach, Robinet, naturalistas vários, deístas, panteístas, ateus. Eram os passos hesitantes das ciências da vida, lentamente sacudindo o lastro dos naturalismos e dos panteísmos.

 O alvo dos ataques de boa parte dos textos publicados nesses anos, em edições anónimas ou com falsos nomes, é o antropomorfismo, indo-se buscar apoio na crítica da concepção antropomórfica de Deus, a Espinosa. No entanto, de Espinosa há pouco, e o que se faz tomar como espinsosismo é contrário à atitude espinosana : este respeitava a Bíblia, aqueles escritos não. São usuais as caricaturas de um Deus « ciumento » e « colérico », insiste-se na convicção de que a natureza não é imperfeita, pois que tudo decorre da Necessidade interna que ela contém, que Deus é Natureza, e esta é a soma, ou o conjunto, de todos os seres, de todas as propriedades e de todas as energias.

Certamente que Espinosa jamais escreveu em parte alguma que Deus equivalia à pura materialidade, e determinadas teses adulteravam gravemente o seu pensamento, revelando uma falta de cuidado, que se explica menos pela displicência e superficialidade, e mais pela intenção de forçar o caminho às ideias materialistas, mesmo que inconsistentes e contaminadas por panteísmos. Também nos parece evidente que o propósito principal, se não mesmo o único, destes escritos, era atacar a religião oficial e a Igreja. É o anti-clericalismo que está em marcha. O espinosismo, ou melhor, uma versão fraca e popular do espinosismo, foi utilizada como uma eficaz ferramenta ideológica e política pelos mais diferentes quadrantes ideológicos.

Queremos insistir neste ponto: as entorses que o sistema de Espinosa sofreu, e as críticas de que foi alvo, não se resumem àqueles, e foram muitos, que o recusaram e combateram, mas igualmente procederam assim aqueles que, em certos aspectos, até por ele se deixaram influenciar. Neste vasto grupo havemos de incluir o próprio Malebranche, que foi um dos maître-à-penser, e Pierre Bayle evidentemente. A tese Deus sive natura, propiciava as mais diversas interpretações. Para Malebranche, por exemplo, e isto foi muito significativo e carregado de consequências, a perfeição divina mostrava-se inconciliável com a expressão de Espinosa: Deus havia de ser um ente diferente e superior ao mundo por ele criado. Todas estas interrogações que temos vindo aqui a mencionar, estão presentes nos textos de Dom Deschamps. Ele mostra conhecê-las perfeitamente.

Pierre Bayle escreveu no Dicionário ( art. “Spinoza”): « Assim, no sistema de Espinosa, todos aqueles que dizem : Os Alemães mataram dez mil Turcos, falam mal e falsamente, a menos que eles queiram dizer que Deus modificado em Alemães tenha morto Deus modificado em dez mil Turcos ;  e é assim que todas as frases pelas quais se exprime o que fazem os homens uns contra os outros só podem ter este sentido verdadeiro : Deus odeia-se a si mesmo, pede graças a si mesmo, e a si mesmo se recusa ; persegue-se, mata-se, come-se, calunia-se, levanta-se sobre o cadafalso»”

Esta incompreensão de Deus sive natura, gravou-se indelevelmente nos vindouros. Espinosa foi convertido e reconvertido num panteísta. E num ateu puro e duro. Porém, quando falamos de Bayle não devemos esquecer o seu método expositivo e o seu estilo irónico, ou seja, não é inusitado admitir que ele, nesta frase, transmitia adequadamente o pensamento de Espinosa, através de uma hábil caricatura e dissimulação: a crítica espinosana do antropomorfismo não é veiculada?

A incompreensão revelada por Fénelon, por exemplo, que apenas conseguiu ver em Espinosa uma identificação de Deus com a totalidade das criaturas, é tanto mais curiosa quanto ele próprio acaba por argumentar no terreno construído pelo próprio Espinosa: Deus ou o Ser absoluto, infinito, não poderia ser composto de partes; o infinito de que fala, ou o “infinito infinitamente infinito” de Malebranche, corresponde, afinal, à substância em Espinosa e à anterioridade da substância relativamente às suas afeções...

A questão da eternidade dos modos, por um lado, e, por outro, da sua existência temporal, é outra face de uma controvérsia que gerou muitas confusões. A confusão entre Deus e as coisas não está presente de modo algum nas teses da ÉTICA, e todo o génio filosófico de Espinosa foi precisamente no sentido de evitá-la. De outro modo não faria qualquer sentido a figuração negativa que Espinosa construiu do indivíduo alienado e esquecido. Ou seja, Deus é a totalidade infinita, a ordem necessária e imanente, e não é, de modo algum, este ou aquele indivíduo, impelido pelo seu conatus a perseverar na existência particular, muitas vzes de modo egocêntrico, iludido pelo seu valor real, iludido pelo seu verdadeiro papel na ordem do mundo, ou submetido, inerme, resignado e infeliz.

Aquilo que a teologia adversária não queria, não poderia, aceitar, era a tese espinosana da necessidade. A todo o custo, impunha-se para ela a inclusão do livre-arbítrio do Criador e, por tabela, a distinção das criaturas relativamente ao Criador. É aqui que reside, em nosso ver, o carácter irredutível das posições. Ora, neste ponto, não há dúvidas : Espinosa orientou grande parte do seu esforço de argumentação contra as crenças no livre-arbítrio. O que surpreende e choca muitos é precisamente a arquitectura determinista, como usualmente se diz, do seu sistema. Uma natureza autoprodutiva, autoregulada, alheia aos valores, que dispensa sacerdotes para a descoberta da verdade, embora se tolerem para as questões de fé.

Foi também por estes caminhos de receio e de ortodoxia, de recusa ou incompreensão, que se estabeleceu e consolidou a fama de um Espinosa ateu, que realmente não o foi no rigor da terminologia. Esta má fama perturbou o próprio Dom Deschamps, que considera Espinosa como tal, e se esforça por livrar-se da mesma acusação. Em boa verdade, fica-se com a convicção de que, dos dois, era Deschamps realmente o ateu.

Pierre Bayle caracterizou, desde logo, Espinosa como « um ateu de sistema ». Situou a crítica na proposição da substância única, que se encontra na base do seu sistema, e passou em seguida a refutá-la. Todos os contornos desta atitude perduraram quase intactos até aos textos de refutação que Dom Deschamps irá redigir décadas mais tarde. É uma autêntica tradição, uma herança. Não é a obra genuína e íntegra do seu autor, não é o tratamento analítico e progressivo dos seus textos, mesmo que em tradução fiável, é uma interpretação, que hoje não recomendaríamos a ninguém, que perdura como uma instituição, uma verdade. Não é Espinosa que circula, é uma outra versão.

 P. Bayle expõe deste modo o pensamento de Espinosa : «saber que Deus é a única substância que existe no universo, e que todos os outros seres são modificações desta substância.» Corresponde quase literalmente àquilo que Deschamps irá transcrever. E Bayle conclui: «uma suposição tão estranha, que subverte a maior parte das noções comuns que servem de regra nas discussões filosóficas; é a mais monstruosa hipótese que se possa imaginar, a mais absurda e a mais diametralmente oposta às noções mais evidentes do nosso espírito.»

O que está escrito, ficou escrito, a sua crítica e fez-se verdade de escola. Contudo, iríamos mal, se acreditássemos nas aparências do estilo. Pierre Bayle aperfeiçoou um estilo tão hábil que iria ser retomado vezes sem conta pelos bons espíritos do século XVIII. Se o século dezoito tem alguma particularidade em atitudes de interpretação, ela é, seguramente, este estilo fino, penetrante e irónico que Voltaire e Diderot souberam aperfeiçoar a um nível insuperável. Quem ler apressadamente toma a crítica como uma refutação cerrada sem margem para compromissos, quando o que se passa na verdade, é uma hábil estratégia de dissimulação. Os contemporâneos haveriam de saber ler entre linhas, interpretar o elogio sob o disfarce da ironia aparentemente implacável, a verdade sob o manto da retórica. Os tempos iam difíceis, e foram-se agravando adentro do século. Cada um fazia o seu serviço: os chefes da Igreja, os autores de panfletos anónimos, os espiões, os esbirros. Notar-se-á esse estilo, feito de cuidados e alçapões, nos artigos da Enciclopédia, particularmente nesse mestre que foi Diderot. O importante era sacudir a eventual acusação de ateísmo. São as palavras de Bayle, as sucessivas repetições das suas palavras, que atormentam dom Deschamps. Não é que ele receie, pelo menos nas páginas que nunca publicou, defender o ateísmo, mas não deseja na sua consciência “dar o flanco” às críticas consolidadas. Ele próprio admite a consistência destas. Ele próprio se esforçou por “corrigir” o sistema de Espinosa. São estas razões da razão pública e privada, que julgamos dever merecer a nossa atenção. Tentaremos estabelecer, até ao termo desta dissertação, que dom Deschamps se apresenta tal qual ele se confessa: um profeta iluminado por um “ateísmo esclarecido”, e que o seu sistema somente se compreende completamente à luz do espinosismo. Isto é, a metafísica de dom Deschamps, em pleno século, não se confronta com mais nenhuma outra metafísica, se não com a sombra de Espinosa. Forjaram-se outras e novas metafísicas, envolvidas por um naturalismo deísta, como a de Jean-Baptiste Robinet por exemplo (onde, aliás, se perfilam sinais da presença de espinosismo), mas aquela que poderia ser, do mesmo modo, classificada como a “mais monstruosa hipótese” e a mais absurda, seria a de dom Deschamps, se tivesse sido publicada na íntegra. Ele tinha consciência disso, e verificou-o nos encontros que teve com os mais diversos interlocutores. No entanto, não são de somenos importância as suas diferenças com as  ideias expostas pelo próprio Espinosa.

Aquilo que o célebre P. Bayle ensinou a quem o quis entender, foi um método de raciocinar sobre ideias próprias e ideias de outros. O seu mérito não reside apenas nas informações que prestou aos iniciados, mas, sobretudo, na atitude pedagógica exigente de acreditarmos somente naquilo que a razão demonstra e esclarece. Se houvesse que escolher um pioneiro das Luzes francesas, escolhê-lo-íamos. Foi este o legado que Deschamps recolheu, e não os insultos, os gracejos, alguma ironia fácil, em que outros, bem mais do que Bayle, se comprazeram. Pensar no interior do sistema a refutar, não de fora, detetar-lhe as fragilidades, ambiguidades, contradições, eis o essencial. E importa considerar que Deschamps não foi seguidor, de modo algum do nominalismo de P. Bayle. Talvez por isso, pôde assimilar melhor a ontologia de Espinosa. Uma determinada forma de Bayle ser materialista, à maneira de Gassendi, restringia-lhe a ideia de extensão à realidade divisível, bem diferente da extensão abstrata e indivisível de que fala Espinosa, que categoriza esta como um atributo da substância infinita. Iremos verificar que efeitos produzirão esta leitura redutora sobre as soluções de Deschamps, originais mas não tanto como ele julga. Para Bayle, o sistema de Espinosa encerra um problema da unicidade da substância; daí deriva a sua objeção segundo a qual Espinosa tenta evitar a ideia refutável de um ser composto, substituindo a palavra “parte” pela palavra “modificação”. Estas aparentes fugas e contradições de Espinosa, serão encaradas por Deschamps como reais, o qual utiliza ambos os termos: partes e modificações, mas aplicáveis apenas ao todo físico e material, destacando, por isso mesmo, um outro todo “absolutamente absoluto”: o infinito. Ao julgar que refuta Espinosa e, ao mesmo tempo, descobre a solução melhor, atravessa para a outra margem através da ponte que o próprio Espinosa construiu. A solução está longe de ser a mesma, mas a diferenciação dos atributos encontra-se lá. O TUDO (Tout) é toda a Existência. Não equivale liminarmente à soma das modificações, mas, pelo contrário, à outra perspetiva com que se deve encarar a totalidade ordenada dos seres.

 

Condillac refere Espinosa no seu Traité des systèmes. O abade Condillac exerceu uma enorme influência nos rumos novos do pensamento, em particular nos philosophes, num novo exercício do pensar, que valoriza a experiência sensível e apouca as metafísicas de sistema. É todo um nominalismo que está em marcha. Nesta nova atitude, o sistema de Espinosa é um alvo especial da crítica das noções abstratas, sem fundamento na experiência, produtos da imaginação. De uma banda, os teólogos, de outra, os sensualistas, a perseguir os passos do empirismo inglês. Contudo, o ponto de vista dos últimos é mais ajustado, independentemente de ser ou não mais verdadeiro, queremos dizer que é uma crítica legítima vinda de quem leu seguramente o próprio autor. Condillac traduziu a primeira parte da ÉTICA. Aqui o trazemos para fornecer um elemento mais ao cenário ou ao meio no qual se movimenta o nosso beneditino.

Este panorama dá-nos a sensação de que Espinosa constitui um dos mais fascinantes enigmas da história das ideias no ocidente, que nos abala certezas cómodas que tivéssemos sobre uma pretensa autonomia integral das ideias relativamente aos outros fenómenos da vida colectiva. Um filósofo que todos julgam conhecer, e pouco ou nada conhecem em grande parte dos casos, cujas teses circulam o mais das vezes clandestinamente, que, em rigor, não são dele, que parece estar presente nas, ou sob, as novas concepções de naturalistas e materialistas, mas que quase nenhum assume. Surpreendente.

   A influência do espinosismo conservou-se por essa Europa fora, mesmo que truncado e reduzido a uma caricatura, para se assistir, por fim, ao seu renascimento no termo já do século dezoito na Alemanha de Jacobi. É um longo e largo percurso que não podemos resumir neste capítulo. O que importa é adiantar para o nosso projecto este dado que é talvez mais uma interrogação : se admitirmos, como nós admitimos, que uma determinada corrente do materialismo francês do Século XVIII, encabeçada sobretudo por d’Holbach, levou a cabo uma separação relativamente ao espinosismo, sendo que esse corte lhe permitiu apoiar o ateísmo em bases materialistas, não abandonando a tese de uma substância única com diversos atributos ou propriedades gerais, não teria este acto propiciado uma leitura de um Espinosa não ateu? Não é esta leitura que iremos encontrar na filosofia alemã? E, enfim seria esta interpretação mais conforme ao rigor do Texto espinosano, ou assistimos, ao invés, a novas deturpações?

Seja como for, o que nos compete, neste trabalho, é demonstrar que dom Deschamps não tentou recuperar o “teísmo” de Espinosa; bem pelo contrário, tendo-o tomado definitivamente como um ateu, tratou de construir um “ateísmo esclarecido”. Entre o seu propósito e o de d’Holbach, ou de Diderot, não existem aqui divergências de fundo. As divergências são outras.

 

As ideias de Bento Espinosa

 

Utilizo a grafia Espinosa, em vez de Espinoza, embora ele haja assinado com o nome de Espinoza, porque era filho de portugueses (Vidigueira) fugidos da Inquisição, e falava o português. E se tal não é motivo de orgulho patriótico pois que a Inquisição que tão ferozmente reprimiu a nossa cultura, o pensamento moderno e científico, era também portuguesa, não deixa de ser extraordinário: o maior filósofo de todos os tempos era filho de portugueses e falava a nossa língua, conviveu e pertenceu à comunidade de judeus oriundos de Portugal! Muitos deles haviam sido cristãos-novos, isto é, forçados a aderir ao cristianismo sob pena de ser presos, torturados, espoliados dos seus bens e provavelmente queimados em fogueiras nas praças públicas de Lisboa. E é mais extraordinário ainda que um pensador de tamanha envergadura mundial tenha sido desprezado, silenciado, caluniado, e ainda o é hoje! Basta consultar diversas bibliotecas públicas e privadas para constatarmos que a sua obra toda não se encontra lá, por vezes até nenhum dos seus livros.

Não é, portanto, por acaso, nem exceção, que os manuais de Filosofia escolares façam apenas uma menção rápida e superficial da biografia e obra de Espinosa e, pior ainda, o falsifiquem alguns, reduzindo o seu profundo e diversificado pensamento à fórmula determinismo versus liberdade. Em contrapartida dedica-se um capítulo (definitivo para efeitos de avaliação interna e externa, e é isso que conta) ao tema racionalismo versus empirismo, sem que se perceba as motivações científicas e políticas que se encontram na base da sempre renovada controvérsia entre apriorismos e experiencia, entre materialismos e idealismos. Ora, Bento Espinosa é de uma indiscutível utilidade para contatarmos com outra modalidade de racionalismo que não o estritamente cartesiano.

 Certamente que há vários modos de aprender e ensinar a Filosofia, inclusivamente expô-la do presente para o passado, ou por temas e escolas, pelas controvérsias entre grandes mestres, etc. Algumas boas Histórias da Filosofia conseguem fazer confluir diversas abordagens, com um estilo límpido, conciso e historicamente fundamentado. São essas que nos deliciam independentemente da idade que tenhamos nessa altura. O que importa é que as teses e os respetivos argumentos, ou os princípios donde se parte e os resultados a que se chega, se tornem claros para o leitor, um pouco à semelhança das histórias maravilhosas de Conan Doyle. Abrir a história com o desenho do quadro – o contexto, a situação – é o “truque” do artista.

 De modo nenhum me oponho à leitura desse belo livrinho que é “O Discurso do Método”, de René Descartes (desejaria que muitos o houvessem lido efetivamente). Apenas afirmo que um seu contemporâneo (embora mais novo), Espinosa de seu nome, leu-o, apreciou deveras o seu estilo “geométrico”, subscreveu a tese cartesiana de que a verdade tem de exprimir-se em ideias claras e evidentes por si mesmas, meditou longamente sobre o célebre “argumento ontológico” com o qual Descartes deduzia a necessária existência de Deus, porém deve menos ao genial matemático do que se julgaria, criando um sistema absolutamente singular. O espinosismo veio a ser muito mais influente na filosofia posterior, até aos nossos dias, ainda que, naturalmente, comentado e interpretado conforme as épocas.

 

 Não nos dispensemos de conhecer a biografia daqueles homens e mulheres que nos despertaram admiração ou curiosidade nas artes, nas ciências, na filosofia. Eleva-se a um patamar terreno a nossa admiração pelas suas criações, relativiza-se a sua condição que é, afinal de contas, humana. Tão pernicioso é um preconceito como o é a mistificação de um fenómeno natural, ou meramente social, e o endeusamento acrítico de quem quer que seja. Na realidade, somos todos humanos, com defeitos e fraquezas. Porém, diferentes: há vidas que nos causam mais admiração do que outras. A vida de Espinosa é muitíssimo mais admirável do que a Descartes, a de K. Marx muitíssimo mais admirável do que a Schopenhauer. No entanto, foi precisamente a personalidade de Descartes que nos ajuda a compreender o seu célebre sonho e, consequentemente, o seu revolucionário cogito ergo sum; a personalidade misógina e ressentida de Schopenhauer ajuda a compreender o seu criticismo pessimista que na nossa época regressa à ribalta. Tal e qual se passou e passa com Bento Espinosa, alvo dos ataques mais soezes que algum outro filósofo foi vítima.  

 

Baruch era o seu nome em hebraico, Bento (Abençoado) em português. Teve vários irmãos, alguns dos quais faleceram ainda novos. Família de comerciantes relativamente abastados. Quando o pai morreu, Bento recusou a herança paterna para que sua irmã, Rebeca, pudesse com esse dote vir a casar com dignidade. Geriu a loja que transacionava produtos vindos de Portugal, durante algum tempo, mas sem grande convicção: preferia dedicar o seu tempo ao estudo. Aprendeu com brilho o francês, inglês, o hebraico e o latim; os seus estudos do Talmude e da Tora, textos sacralizados pelo povo hebreu, começaram muito cedo, motivo de agradável espanto dos seus mestres que viam nele um futuro e ilustrado Rabi. Desiludiu-os depressa: a sua interpretação dos textos ortodoxos provocaram a cólera da comunidade judaica e acabou julgado e condenado publicamente à expulsão (Cherem), expulsão que se manteve até hoje, apesar de Israel ter atribuído o seu nome a uma rua. Em 1670 é publicado anonimamente o seu Tratado Teológico-Político - imediatamente proibido - investigação minuciosa do Antigo Testamento, obra pioneira, sem paralelo, que escandalizou as ortodoxias e dogmatismos, pela qual se demonstra que o Sagrado é invenção humana e o Verbo divino uma inspiração política.

 Enquanto redigia o T. T-P corrigia o seu escrito Tratado da Reforma do Entendimento, fornecendo a ambas as obras o fôlego filosófico que viria a ser alcançado com a sua obra-prima: a Ética, publicada postumamente.

A Holanda era então um país com uma numerosa e enriquecida burguesia, dotada de uma frota marítima que rapidamente substituiu Portugal nos mares e continentes que os portugueses exploraram. Incomparavelmente mais tolerante no plano religioso do que os reinos católicos, sempre cobiçada pela coroa espanhola. Para aí afluíam foragidos e emigrantes em busca de liberdade e de oportunidades de riqueza. Confrontos e intercâmbio de mercadorias, culturas e ideias, geraram crenças messiânicas às quais o nosso admirado Padre António Vieira não foi imune. A liberdade era relativa e instável, os apetites dinásticos e estrangeiros faziam-se sentir e as disputas religiosas podiam incendiar as multidões a qualquer momento. De modo que todos procuravam conservar entre os diversos partidos e confissões religiosas um equilíbrio dificílimo mas suficiente para não prejudicar os negócios. É neste contexto que os judeus ortodoxos condenam Baruch Espinosa, proibindo qualquer contacto com ele. Espinosa não se vergou, transformou a condenação aos infernos numa oportunidade para viver e trabalhar tranquilamente.

Evitava os falsos amigos, falar demasiado de si próprio, escolheu como regra o princípio latino: “Caute” (Cautela). Polia lentes para telescópios e microscópios, em que se revelou um exímio artesão elogiado pelos grandes cientistas do seu tempo que lhos encomendavam. Amigo dos seus amigos, correspondendo-se com alguns dos melhores sábios, contudo não viajava e recusou mesmo uma cátedra em uma prestigiosa universidade europeia. De compleição frágil e cada vez mais doente (sofria de tuberculose que se agravou com o pó inalado dos vidros que polia) não cedeu nunca a sua liberdade e o seu tempo a nada mais que não fosse ler, meditar, limar até ao limite os seus axiomas e postulados insólitos e inigualáveis.

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A vida de Espinosa é ela mesma um exemplo da sua teoria: a afirmação potente e positiva de amor à vida e à liberdade, de respeito pela natureza. Demonstrou que a filosofia é, ou deve ser, uma crítica implacável das atitudes, das crenças, que se alimentam do ódio e do medo, que se rodeiam de cultos da morte, das sociedades de súbditos envergonhados, culpados, invejosos, que sufocam a liberdade e a vida com leis, propriedades, deveres, impérios, às quais Espinosa chama “traições” à vida, ao universo. O que há de pior no homem? A glorificação da passividade e da submissão, a invenção da morte interior, essa alma triste que o exercício da obediência instila.

 

Esforçar-se por conhecer é, portanto, uma paixão alegre, positiva. Unir-se ao todo, perceber o encadeamento de todas as coisas, das causas e dos efeitos, totalidade na qual tudo tem uma razão, um nexo, uma necessidade imanente. Assim sendo, é rejeitada a existência efetiva de qualquer entidade transcendente criadora e justiceira, remetem-se estas fantasmagorias para o império do desejo e da imaginação, da mecânica psicológica do medo e da servidão. Unicidade da substância, univocidade dos atributos, imanência absoluta, interconexão entre o corpo e o pensamento (dois atributos distintos mas paralelos da mesma substância). Compreende-se porque é filósofos do século dezoito concluíssem que tudo que existe é natureza ou matéria, sendo o pensamento uma dimensão ou faculdade, gozando de autonomia muito embora, da mesma, única e infinita natureza, excluindo a existência de uma alma imortal e de um Deus transcendente mas pessoal, isto é, antropomórfico. Compreende-se a influência ministerial de Espinosa sobre os materialismos.

Não nos é possível mais do que transmitir brevíssimas referências ao conteúdo dos seus livros.

Tratado sobre a reforma do entendimento – Tradução, prefácio e notas de António Borges Coelho, Livros Horizonte, 1971. “ É nele (no Tratado) que é necessário procurar a chave de todo o sistema (o sistema filosófico de Espinosa): é como um prefácio da ÉTICA e por certo não existe no mundo outro modelo tão perfeito de análise filosófica», Alain, Spinoza, cit. por A.B.C.

ÉTICA - O que Espinosa expõe na 1ª Parte da ÉTICA é a definição de substância de tal modo que impossibilita a existência de outra substância da mesma natureza, isto é, que tivesse o mesmo atributo. Daí se segue que não podem existir um ser ou Deus sobrenatural, e, por conseguinte, fica estabelecida a impossibilidade lógica de uma criação extranatural, o dualismo, a transcendência. Como chegar, porém, a ser consciente de si mesmo, de Deus e das coisas, quando a nossa consciência parece inseparável das ilusões e das paixões?

Como conseguir formar ideias adequadas, promotoras de sentimentos ativos, positivos, quando parecemos condenados, pela nossa limitada natureza, a não ter senão ideias inadequadas? Ora, na realidade, não estamos condenados. O estilo “geométrico”, o encadeamento lógico dos raciocínios, as definições “claras e evidentes”, da ÈTICA, o demonstra (de resto, foi para tal que Espinosa redigiu o Tratado sobre a reforma do entendimento). O conhecimento que é necessário ao homem é o que se adequa plenamente à ideia do objeto e tem por isso em si a garantia necessária da sua verdade. As afeções estão sujeitas às mesmas leis (ordem) da natureza. O seu conhecimento permitir-nos-á escolher quais os objetos que melhor se adequem ao nosso corpo.

Absoluta é só a substância una e única, Deus exprime a potência absoluta de existir e de agir, a potência absoluta de pensar e de compreender.

 

A aceção do conceito de Razão, em Espinosa, tem ocupado muitos comentadores. De entre muitos, preferimos seguir a análise desenvolvida por Maria Luísa Ribeiro Ferreira.  A “razão abrangente”, a “razão constitutiva” ( citamos a autora) “sobreleva a representacional pois a categoria da representação é desvalorizada em detrimento da identificação, da sintonia com o Todo” A Razão, para Espinosa, possui uma dimensão ontológica, é fundamento e causa.

A Razão é um modo da ação dos homens. “Mas, a verdadeira capacidade de agir do homem, ou seja, a sua virtude é a própria Razão (pela proposição 3 da Parte III), que o homem contempla clara e distintamente”

 Distinção espinosana entre razão e entendimento: no livro IV da ÈTICA, o entendimento é identificado com a razão “Por conseguinte é sumamente útil aperfeiçoar o entendimento ou a razão tanto quanto pudermos”.  Todavia, no livro II, diz o seguinte: “De tudo o que acima foi dito, resulta claramente que nós temos muitas perceções e formamos noções universais: 1º Das coisas singulares que os sentidos representam mutiladas, confusas e sem ordem à inteligência; por esta razão, tomei o hábito de chamar a essas perceções conhecimento pela experiência vaga.

2º Dos sinais, por exemplo, do facto de termos ouvido ou lido certas palavras, nos recordamos das coisas e delas formamos ideias semelhantes àquelas pelas quais imaginamos as coisas. Para o futuro, chamarei a essas duas maneiras de considerar as coisas: conhecimento do primeiro género, opinião ou imaginação.

3º Finalmente, do facto de termos noções comuns e ideias adequadas das propriedades das coisas. A este género, darei o nome de Razão e conhecimento do segundo género.

Além destes dois géneros de conhecimento, há ainda um terceiro como o mostrarei a seguir, a que chamaremos ciência intuitiva. Este género de conhecimento procede da ideia adequada da essência formal de certos atributos de Deus para o conhecimento adequado da essência das coisas”.

O que é essencial à natureza humana é por conseguinte idêntico em todos. Daí que quanto mais cada homem procura a sua conveniência, tanto mais os homens são semelhantes entre si e podem ser úteis uns aos outros.

 

Em seguida, ensaiamos um breve resumo daquelas teses de Espinosa que mais úteis nos sejam para compreender as teses de dom Deschamps. A intenção é, agora, não um espinosismo de segunda ou terceira mão, mas tentar expor com o rigor que nos é possível as ideias principais contidas na ÉTICA.

Baruch era o seu nome em hebraico, Bento (Abençoado) em português. Teve vários irmãos, alguns dos quais faleceram ainda novos. Família de comerciantes relativamente abastados. Quando o pai morreu, Bento recusou a herança paterna para que sua irmã, Rebeca, pudesse com esse dote vir a casar com dignidade. Geriu a loja que transacionava produtos vindos de Portugal, durante algum tempo, mas sem grande convicção: preferia dedicar o seu tempo ao estudo. Aprendeu com brilho o francês, inglês, o hebraico e o latim; os seus estudos do Talmude e da Tora, textos sacralizados pelo povo hebreu, começaram muito cedo, motivo de agradável espanto dos seus mestres que viam nele um futuro e ilustrado Rabi. Desiludiu-os depressa: a sua interpretação dos textos ortodoxos provocaram a cólera da comunidade judaica e acabou julgado e condenado publicamente à expulsão (Cherem), expulsão que se manteve até hoje, apesar de Israel ter atribuído o seu nome a uma rua. Em 1670 é publicado anonimamente o seu Tratado Teológico-Político - imediatamente proibido - investigação minuciosa do Antigo Testamento, obra pioneira, sem paralelo, que escandalizou as ortodoxias e dogmatismos, pela qual se demonstra que o Sagrado é invenção humana e o Verbo divino uma inspiração política.

 Enquanto redigia o T. T-P corrigia o seu escrito Tratado da Reforma do Entendimento, fornecendo a ambas as obras o fôlego filosófico que viria a ser alcançado com a sua obra-prima: a Ética, publicada postumamente.

A Holanda era então um país com uma numerosa e enriquecida burguesia, dotada de uma frota marítima que rapidamente substituiu Portugal nos mares e continentes que os portugueses exploraram. Incomparavelmente mais tolerante no plano religioso do que os reinos católicos, sempre cobiçada pela coroa espanhola. Para aí afluíam foragidos e emigrantes em busca de liberdade e de oportunidades de riqueza. Confrontos e intercâmbio de mercadorias, culturas e ideias, geraram crenças messiânicas às quais o nosso admirado Padre António Vieira não foi imune. A liberdade era relativa e instável, os apetites dinásticos e estrangeiros faziam-se sentir e as disputas religiosas podiam incendiar as multidões a qualquer momento. De modo que todos procuravam conservar entre os diversos partidos e confissões religiosas um equilíbrio dificílimo mas suficiente para não prejudicar os negócios. É neste contexto que os judeus ortodoxos condenam Baruch Espinosa, proibindo qualquer contacto com ele. Espinosa não se vergou, transformou a condenação aos infernos numa oportunidade para viver e trabalhar tranquilamente.

Evitava os falsos amigos, falar demasiado de si próprio, escolheu como regra o princípio latino: “Caute” (Cautela). Polia lentes para telescópios e microscópios, em que se revelou um exímio artesão elogiado pelos grandes cientistas do seu tempo que lhos encomendavam. Amigo dos seus amigos, correspondendo-se com alguns dos melhores sábios, contudo não viajava e recusou mesmo uma cátedra em uma prestigiosa universidade europeia. De compleição frágil e cada vez mais doente (sofria de tuberculose que se agravou com o pó inalado dos vidros que polia) não cedeu nunca a sua liberdade e o seu tempo a nada mais que não fosse ler, meditar, limar até ao limite os seus axiomas e postulados insólitos e inigualáveis.

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A vida de Espinosa é ela mesma um exemplo da sua teoria: a afirmação potente e positiva de amor à vida, isto é, da alegria. Realizou, portanto, uma crítica implacável das atitudes, das crenças, que nutrem ódio à vida, que se rodeiam de cultos da morte, do homem envergonhado, culpado, arrependido, invejoso, ressentido, que sufoca a vida com leis, propriedades, deveres, impérios, às quais Espinosa chama “traições” à vida, ao universo. O que há de pior no homem? A glorificação da passividade e da submissão, a invenção da morte interior, essa alma masoquista que o exercício da obediência instila.

 

 

Tem como objetivo esta exposição resumida da filosofia de Bento Espinosa clarificar aquelas teses e aqueles conceitos que mais se adequam ao nosso propósito de estabelecermos um paralelismo com O Verdadeiro Sistema, de Dom Deschamps, de modo a que as semelhanças, e também naturalmente as diferenças, ganhem relevo demonstrativo. Evidentemente que qualquer exposição denuncia o ponto de vista de quem expõe, ainda que se baseie nos textos e na correspondência do Autor, tanto mais quando se trata de um Autor, como Espinosa, tão despojado de retórica auto-referente. Expomos, portanto, a nossa interpretação não tanto daquilo que Espinosa tinha em mente, mas segundo aquilo que efetivamente escreveu. Assim se evidenciarão, porventura, os acertos e desacertos da Refutação que dom Deschamps lhe dirige, ora porque pressupõe o conhecimento direto da obra, ora porque falha na medida em que simplesmente refuta um Espinosa deturpado.

O seu autor foi alguém que quis fazer da sua vida um projeto de máxima liberdade, sabendo que nunca a alcançaria nas condições que os outros a determinam, e desejou partilhar esse projeto connosco, sem impor, argumentando, definindo, analisando, desmontando muito daquilo que em nós julgamos mais sólido. Lutou por uma sociedade democrática, onde se pode pensar e dizer o mais livremente que ele julgava possível, mas percebeu perfeitamente que esta sociedade só é melhor porque se permite um pensamento mais liberto do simples obedecer – obedecer ao Estado, às regras consensuais-, muito embora viver em sociedade significa, quer queiramos quer não, obedecer a regras convencionais. As noções de mal e bem, de mérito e demérito, etc., exprimem isso mesmo : simples ou complexas regras, respeito, piedade, obediência, pois que todas estas noções adequam-se melhor ou pior à natureza humana e aos fins sociais historicamente determinados.

A vida de Espinosa é uma imagem positiva de afirmação e de amor à vida, que identifica com a alegria. Realizou uma crítica implacável das atitudes que nutrem ódio à vida, que se rodeiam de cultos da morte, do homem envergonhado, culpado, arrependido, invejoso, ressentido, que sufoca a vida com leis, propriedades, deveres, impérios, às quais Espinosa chama “traições” à vida, ao universo. O que há de pior no homem? A invenção da morte interior, esse universo sado-masoquista do escravo-tirano. Quanto de semelhante encontramos em dom Deschamps!

 

Qual é a tese teórica central do espinosismo? Acreditamos ser esta: há uma só substância que possui uma infinidade de atributos, sendo todos os seres apenas modos destes atributos ou modificações desta substância. Deus sive (ou) natura, é uma fórmula que exprime bem a ontologia espinosana, embora não a encontremos nos seus livros. Embora os atributos sejam infinitos, a inteligência limitada do homem só pode alcançar dois: a extensão e o pensamento. E mesmo aqui, não conhece tudo, e é pouco até o que conhece. Esforçar-se por conhecer é, portanto, uma paixão alegre, positiva. Unir-se ao todo, perceber o encadeamento de todas as coisas, das causas e dos efeitos, totalidade na qual tudo tem uma razão, um nexo, uma necessidade imanente. Assim sendo, é rejeitada a existência efectiva de qualquer entidade transcendente criadora e justiceira, remetem-se estas fantasmagorias para o império do desejo e da imaginação, da mecânica psicológica do medo e da servidão. Unicidade da substância, univocidade dos atributos, imanência absoluta, identidade entre o material e o pensamento (dois atributos distintos e paralelos da mesma substância). Como não ver aqui a tese de que tudo que existe é natureza, sendo o pensamento uma dimensão, gozando de autonomia, da mesma e única natureza? Espinosa passa páginas e páginas a recusar qualquer verdade objectiva a um Deus antropomórfico, à criação extra-natura, ao finalismo moral, ao dualismo, à transcendência. Como chegar, porém, a ser consciente de si mesmo, de Deus e das coisas, quando a nossa consciência parece inseparável das ilusões?

Como conseguir formar ideias adequadas, promotoras de sentimentos activos, positivos, quando parecemos condenados, pela nossa limitada natureza, a não ter senão ideias inadequadas?

Absoluta é só a substância una e única, infinitos, mas não absolutos, são os seus atributos (infinitos no seu género); Deus exprime a potência absoluta de existir e de agir, a potência absoluta de pensar e de compreender – duas potências do absoluto que são iguais e não se confundem com os atributos que conhecemos.

 

A acepção do conceito de Razão, em Espinosa, tem ocupado muitos comentadores. De entre muitos, preferimos seguir a análise desenvolvida por Maria Luísa Ribeiro Ferreira.  A “razão abrangente”, a “razão constitutiva”, e citamos a autora, “sobreleva a representacional pois a categoria da representação é desvalorizada em detrimento da identificação, da sintonia com o Todo” A razão, para Espinosa, possui uma dimensão ontológica, é fundamento e causa.

Além destas acepções espinosanas da razão, esta é ainda um modo da acção dos homens. “Mas, a verdadeira capacidade de agir do homem, ou seja, a sua virtude é a própria Razão (pela proposição 3 da Parte III), que o homem contempla clara e distintamente”

Em Dom Deschamps o termo “Razão” é utilizado como equivalente a “Entendimento”, que é superior à mera “inteligência” comum. Tal faculdade, do Entendimento, é plenamente potente, como se evidencia no título do sistema do beneditino : “O Verdadeiro Sistema”, ou seja, “A Verdade”. A Razão, que exprime a unidade do todo, exprime a outra dimensão do todo : o Tudo que é a Existência. Não existem sinais em Dom Deschamps de que utilize a distinção espinosana entre razão e entendimento : no livro IV da ÈTICA, o entendimento é identificado com a razão “Por conseguinte é sumamente útil aperfeiçoar o entendimento ou a razão tanto quanto pudermos”;  porém, no livro II, diz o seguinte : “De tudo o que acima foi dito, resulta claramente que nós temos muitas percepções e formamos noções universais : 1º Das coisas singulares que os sentidos representam mutiladas, confusas e sem ordem à inteligência ; por esta razão, tomei o hábito de chamar a essas percepções conhecimento pela experiência vaga.

2º Dos sinais, por exemplo, do facto de termos ouvido ou lido certas palavras, nos redordamos das coisas e delas formamos ideias semelhantes àquelas pelas quais imagibnamos as coisas. Para o futuro, chamarei a essas duas maneiras de considerar as coisas : conhecimento do primeiro género, opinião ou imaginação.

3º Finalmente, do facto de termos noções comuns e ideias adequadas das propriedades das coisas. A este género, darei o nome de Razão e conhecimento do segundo género.

Além destes dois géneros de conhecimento, há ainda um terceiro como o mostrarei a seguir, a que chamaremos ciência intuitiva. Este género de conhecimento procede da ideia adequada da essência formal de certos atributos de Deus para o conhecimento adequado da essência das coisas”.

Muito embora dom Deschamps não persiga linearmente as formulações de Espinosa, ele forjou um par de categorias com um papel decisivo no seu sistema: Tudo (Tout) e O Todo (Le Tout), ou, por equivalência, o Nada (Le Rien) e o universo; porém, a realidade última e verdadeira, o absolutamente absoluto como ele escreve por vezes, é a Existência; ora, a Existência é única. No primeiro caso, no par de contrários, temos um primeiro momento do desenvolvimento da verdade; mas esta distinção tem que ser superada, isto é, a negação envolve a identidade. A Existência é, ao mesmo tempo, uma coisa e o seu contrário.  Este é um dos eixos principais da nossa dissertação. Esta posição filosófica é monista; apenas numa leitura superficial pode sugerir um dualismo. A Existência possui dois atributos ao alcance da nossa compreensão humana: ora como natureza-mundo, ora como nadificação absoluta. È a fórmula de Espinosa? Claro que não, de modo algum. E, no entanto, é um monismo sem sombra de dúvidas, como se irá demonstrar nas muitas páginas desta dissertação. Fala-se de uma realidade única, que pode ser encarada de duas maneiras. No contexto filosófico e cultural em que se move dom Deschamps, isto que fica dito, evoca necessariamente o espectro do espinosismo.

 

Que é o atributo, para Espinosa? É aquilo que o entendimento percebe da substância como constituindo a sua essência; não é uma maneira de ver entre outras possíveis, uma perspectiva, mas aquilo que é. Nem é, tão pouco, uma “emanação” da substância, pois que esta não é superior aos seus atributos. Cada atributo exprime uma determinada “essência”. Nem sequer o atributo reside no entendimento (não pertence ao reino dos produtos sociais da consciência); o atributo exprime-se e isto implica necessariamente um entendimento que o perceba ( tudo é natureza, tudo é, em essência, o mesmo)..

  Nós apenas conhecemos dois atributos, e entretanto sabemos que existe uma infinidade. E porque sabemos? Sabemo-lo porque resulta necessariamente da definição de infinito, da definição de uma substância autoprodutiva. Apenas conhecemos dois porque só podemos conceber como infinitas as qualidades que envolvem a nossa essência: o pensamento e a extensão, enquanto somos espírito e corpo.

   Sabemos que há uma infinidade de atributos, porque Deus é ele mesmo uma potência absolutamente infinita de existir, que não se deixa esgotar nem pelo pensamento nem pela extensão.

A natureza é “natura naturans” e “natura naturata”. Como natureza “naturans ”, é substância, ou Deus. É eterna, e infinita, causa e efeito, essência e existência. Nesta “essência” há, ou julgamos ver, um feixe (infinito?) de possibilidades, algo que nos obriga a evocar o conceito de “potencialidade”, em Aristóteles, conceito tão rico que hoje abre caminho de novo entre as ciências. Não transparece uma imagem fechada do mundo e da vida, mas perfila-se um largo horizonte de possíveis e de mudanças.

E há uma diferença entre essência e existência: nas coisas separadas, passageiras e finitas, a essência não coincide com a sua existência, mas na substância única, eterna e infinita, desprende-se necessariamente da sua essência a sua existência.

Por isso a existência de Deus (ou da substância) pode ser demonstrada, isto é, deduzida do conceito de essência de Deus (a natureza).

O ser da substância é, ao mesmo tempo, necessário e livre, já que não existe causa alguma que mova a substância à acção que não seja da sua própria essência. A imagem de uma racionalidade livre e socialmente ética revela-nos a imagem de um Deus livre, e não um Deus determinado a agir por fatalidade: um tal comportamento corresponde melhor a máquinas e a servos.

A coisa individual não se desprende da substância como de sua causa próxima. Só pode derivar de outra coisa finita. Por isso, não possui liberdade absoluta.

 

Os modos constituem o conjunto das coisas finitas; modo é aquilo que não existe por si mesmo, mas sim em outro, ou por outro. A substância é única, a sua essência exclui toda a pluralidade. Pelo contrário, os modos são infinitos. Pontos de uma recta. A natureza, como substância, existe em si mesma, por si mesma, com todas as suas propriedades, com independência e à margem da mente. A mente infinita poderia captar a substância – em todos os seus tipos e aspectos- como infinita. A nossa mente, porém, não é infinita. Por essa razão percebe a essência da substância como infinita somente em dois sentidos : primeiro, como extensão, e, segundo, como pensamento.

O homem, como objecto do conhecimento, não constitui excepção alguma na estrutura geral do mundo. Tudo que é humano, pode submeter-se à análise tal como qualquer outro fenómeno da natureza.

Daqui, Espinosa arranca para a ética. Ciência que deduz as suas normas das leis objectivas dos actos humanos, e não de valorações subjectivas. Naturaliza a ética, ao mesmo tempo que a “socializa”.

 Foi, Bento Espinosa, um pioneiro entre os pioneiros, porque tratou a psicologia dos actos humanos como um físico estuda os fenómenos, buscando leis, ou seja, regularidades, reduções ao mais simples e fundamental, à “mecânica” (não no sentido pejorativo, mas antes naquele sentido de “mecanismos” de que falou S. Freud) das paixões ou afectos. Sublinhava com ênfase dois tipos : alegria e tristeza. Qual a sua causa? A tendência de todas as coisas a conservar a sua existência. Não nos guiamos sobretudo pela atracção do bem, nem pela rejeição do mal, mas sim pela tendência à autoconservação e ao benefício próprio. A virtude é exclusivamente potência humana, e esta é determinada somente pelo esforço com que o homem deseja conservar a sua existência. Nega a independência da vontade relativamente aos seus motivos, a nossa natureza é necessariamente dependente das paixões e dos afectos.

 A coisa que existe necessariamente (ou é determinada) pode, ao mesmo tempo, ser livre se existe por necessidade somente da sua própria natureza. Neste sentido, é livre, em primeiro lugar, a substância Natureza, pois que a sua existência deve-se apenas à sua própria essência. Em segundo lugar, neste sentido também é livre o homem, podendo emancipar-se da escravidão, sob determinadas condições. Qualquer afecto pode deixar de ser um estado passivo, quando fazemos uma ideia clara e precisa dele, desde que o conheçamos. A liberdade é, portanto, o conhecimento da necessidade. 

Conhecer não significa abandonar todos os afectos, permitir-se não sofrê-los. Tal como um mau hábito se cura adquirindo um outro hábito mais forte, assim o conhecimento se torna um afecto (afecção). O que é o afecto do amor? A alegria acompanhada pela ideia da sua causa exterior. E um tipo particular de amor, é o amor pelo conhecimento. Estes afectos podem, assim, lutar contra outros e vencê-los. A humanidade do homem é uma conquista, e o homem um campo de batalhas. A nossa exposição faz pressupor em Espinosa uma compreensão dialéctica de cada indivíduo na relação com os outros e consigo mesmo.

A alegria (proporcionada pelo conhecimento, por exemplo) pode, deste modo, conduzir-nos para uma máxima liberdade (rodeando-nos sempre de cautelas, ou de sistemas de alarme) – nem a inocência, nem a ingenuidade, cabem aqui, excepto nas crianças (que, por isso, precisam de protecção e educação). Nesta batalha dos afectos, usamos um espécie de linguagem bélica: repressão, astúcia, cautela, desconfiança. O homem é um ser activo e a vida uma série de actos de dominação/libertação, dependência/autonomia, criação/conservação.

Certamente que podemos considerar o tipo ideal de vida, em Espinosa, demasiado redutor, ou seja, se for lido deste modo: será livre somente o sábio que renunciou à vida material... Contudo, é admirável a coerência da sua vida com o seu pensamento, numa época em que os prazeres materiais eram já abundantes (sobretudo na Holanda progressiva e burguesa), e nada na sua biografia demonstra que ele houvesse aspirado aos negócios pelo seu lado lucrativo e aos rendimentos, contentando-se com uma situação digna mas frugal É irreprimível uma aproximação com o “cauteloso” Descartes, seu contemporâneo, que sempre foi um profundo individualista cioso do seu isolamento e conforto (era frágil de saúde também), pouco dado a cargos e honrarias, a amizades mundanas (que achava que eram perda de tempo e um insulto à inteligência),

A imaginação desempenha um importante papel na conduta humana, no entanto ocupa o último lugar, ou grau, na escala do conhecimento. “Não somos nós quem afirma ou nega algo de uma coisa, mas é ela própria que em nós afirma ou nega algo de si mesma”. “Ela” quem? A alma...Ou seja, a ideia, quando o é (verdadeira), auto afirma-se, pois que a verdade é necessidade, não é por simples vontade ou capricho que escolhemos esta ou aquela como verdadeira, ela é evidente; ou ainda, entendimento e vontade identificam-se no acto de conhecer; é absurdo que alguém diga : essa ideia é verdadeira, mas eu quero que ela seja falsa!. Podemos fugir da luz do dia, mas não eliminá-la. Não temos nós esta experiência de uma verdade que nos persegue porque nos magoa? Quando se sublinha o carácter necessário das coisas (e das causas), perdemos em liberdade?

A descoberta das ideias (ou são elas que nos descobrem a nós?) e a sua expressão, não acontece, no entanto, de fora para dentro, porque elas não são entes, mas actos do entendimento e da vontade; envolvem-se de consciência e de afectos.

São três os géneros de conhecimento, e, a cada um deles, corresponde determinada forma de consciência e determinados afectos. A equivocidade reina no primeiro género, o mais inferior. Aqui, das coisas, temos apenas sinais, ou signos, frágeis indicações, mais atmosféricas que os sinais de trânsito. Na Psicologia contemporânea dizemos ícones, esquemas, estereótipos. Ideias inadequadas e afectos-paixões correspondentes.

O segundo género é composto de noções comuns – ideias gerais. Ainda não são definições, porque estas cabem apenas no terceiro género; nem são princípios, pela mesma razão. O termo “cavalo” não explica, nem expõe a essência do animal ; os termos “amor”, “esperança”, etc. Mas produzem, por associação e analogia, afectos De simpatia ou antipatia. O primeiro género permite a sobrevivência; o segundo a integração e a convivência (obedecer, desejar, conhecer por meio da ciência). Com os dois géneros conseguimos alcançar certezas somente por mediações ; no terceiro,  as ideias impõem-se pela evidência e precisão, por intuição. O método é conhecer pelas causas. A causa adequada é o critério do conhecimento verdadeiro. O conhecimento humano está sempre dependente do conhecimento das causas que produzem os efeitos; só uma mente divina poderia escapar a isto e “ver” o todo de uma só vez...Estamos condenados ao “encadeamento”. Por definição conhecer o efeito é conhecer a causa. A mente é suficientemente potente para vir a compreender que tudo é necessário, isto é, que o que existe foi determinado a existir e a produzir efeitos por meio de uma ligação infinita de causas. Apresenta-nos aqui uma atitude genética : a descrição de um fenómeno passa pela sua explicação.

Os conceitos obedecem, por conseguinte, a uma ordem genética de construção. Ambicionar captar a ordem lógica das coisas, é ambicionar a construção de sínteses; quando são adequadas, constituem o supremo acto da inteligência, e verifica-se nos produtos mais conseguidos dos grandes espíritos. As melhores definições são as que explicam a geração de uma coisa ( disse Hobbes, e Espinosa retoma). Que é um círculo? A rotação de uma recta. Não existem critérios a priori, extrínsecos à verdade e que permitiriam reconhecê-la ; é na medida que conhecemos que os critérios se estabelecem, durante e não antes. Se para forjar o ferro, os homens precisam de um martelo, este só se produz no acto de forjar, e no processo se vai aperfeiçoando. O papel da prática assume assim, em Espinosa, toda a sua importância. Atenção à génese, atenção ao processo, atenção à prática – eis exemplos de teses admiráveis e percursoras. Construir, progredir em acto, exprimir – tudo anúncios carregados de modernidade. Adoptamos esta leitura do pensamento de Espinosa, contra outras. Vemos Espinosa como um artesão, um operário, que foi, usando exemplos extraídos da sua actividade, e não apenas buscados à geometria. Um espantoso espírito, um príncipe dos filósofos, que, todavia (ou por isso mesmo), foi operário-artesão...Manuseando coisas delicadas, polindo, construindo, percebeu que aquilo que melhor define o homem é a produção, e, sem os produtores, não existiria mundo humano. A dignidade do trabalho criador ( mesmo que rotineiro e reprodutivo), a dignidade do trabalhador. Na organização de uma sociedade pacífica, os homens actuam desencadeando paixões positivas que fomentam a unidade do corpo social.

Há afectos que repugnam à razão – como a esperança e o medo, a sobrestima e o despeito, a comiseração, a indignação, a humildade, a tristeza, o arrependimento, o orgulho máximo. Mas há outras, como por exemplo o favor, o contentamento de si, a glória, que a favorecem e cujo exercício robustece as capacidades racionais. Devemos recorrer à imaginação para aumentarmos a potência da mente. A mente é também o poder, e a necessidade, de imaginar aquilo que aumenta a potência de agir do corpo. Ou seja, manipulemos as nossas paixões, e as dos outros, de modo a que as condutas não repugnem demasiado à razão. Valorizemos o conhecimento, mas saibamos que nenhum conhecimento modifica a fragilidade da condição humana, essas naturezas apaixonadas que vêm o melhor mas praticam o mal. Uma paixão só se combate com uma paixão mais forte. A razão não deve criar ilusões excessivas (apaixonadas...) sobre o seu poder de eliminar os afectos; ela própria deve, para melhor combater os piores, transformar-se em paixão, em afecto.

O conhecimento só por si não leva à acção. Espinosa (na ÉTICA) persegue um objectivo muito concreto: a procura da felicidade. Valorização de tudo que nos contenta, daí o valor supremo da alegria, é o desejo de ser feliz que comanda o processo ético. O mal não reside na Natureza, mas na nossa imaginação e nos nossos afectos tristes. O ser, a essência da Natureza é o bem; o ser e o dever ser coincidem.

O desejo diz respeito ao homem, mas está presente em todas as coisas sob a designação de “conatus”. É um esforço universal de perseverança e de resistência, e de apropriação, e é uma determinação da Substância, visto que esta é eminentemente activa. “Potentia” e “conatus” são equivalentes (“potentia sive conatus”). Conservação  e manutenção do ser próprio, eis a essência de cada coisa. Em todo o real circula um desejo e uma afirmação de ser.

Que nos ensina a filosofia? Que a realidade última é infinita, que essa realidade tem de conter necessariamente em si mesma todo o ser. Deus não pode estar fora do mundo.

Relativamente ao método, como iremos verificar também em Deschamps, o que é mais importante não são os dispositivos técnicos da geometria, mas a dedução lógica de proposições extraídas de definições que expressam ideias claras e distintas e de axiomas evidentes por si mesmos. Entre os sistemas do século XVIII francês, naturalmente aqueles que conhecemos, o que mais se aproxima da exposição tipicamente espinosana, é o de dom Deschamps, ainda que ele não use a terminologia das “definições e axiomas”. É verdade que esta diferença, que não é tão acessória como isso, basta para estabelecer diferenças entre os métodos de ambos, contudo nem o método expositivo-demonstrativo, ou dedutivo, de Deschamps é escolástico (como já temos visto referir), nem a diferença mexe com o rigor lógico. De resto, dom Deschamps afirma amiúde a necessidade de se estabelecer um bom “princípio”, e quando critica os outros, o próprio Espinosa incluído, é o “princípio” deles, ou a sua ausência.

Relativamente à substância divina, em Espinosa, ela deve ser considerada como anterior tanto na ordem ontológica como na ordem das ideias. Em Deschamps assiste-se à anterioridade da categoria Tout. A Existência determina o nosso pensar, a nossa existência natural, a nossa linguagem, mesmo a mais comum. Quando dizemos sim e não, já intuimos o carácter contraditório da Existência. Pensamos nela porque existimos. Somos infelizes porque não a compreendemos.

A substância, para Espinosa, é “causa de si mesma”: explica-se por si mesma e não por meio de uma causa externa; a definição de substância implica, portanto, que a esta é completamente dependente de si mesma, não dependendo de nenhuma causa externa, nem para a sua existência nem para a dos seus atributos e modificações. Dizer tal coisa é dizer que a sua essência compreende a sua existência.

“Por ‘atributo’ entendo aquilo que o entendimento percebe como constituindo a essência de uma substância.” Por conseguinte, segue-se que, se duas substâncias possuíssem os mesmos atributos, possuiriam a mesma essência ; nesse caso não haveria razão para falar delas como “duas”, porque não poderíamos distingui-las. Porém, se não pode haver duas ou mais substâncias que possuam o mesmo atributo, a substância não pode ser limitada ou finita. Tem, pois, que ser infinita. Situamo-nos no âmago da Refutação do princípio de Espinosa, redigida por Deschamps, e que iremos abordar com minúcia.

A substância infinita tem que possuir infinitos atributos. “Quanta mais realidade ou ser possui uma coisa, tantos mais atributos terá.”  Cada atributo expressa uma essência eterna e infinita.

Em Espinosa, Deus não se distingue da natureza; se se distinguisse, se existem outras substâncias que não fossem Deus, Deus não seria infinito.

Em Deschamps, aquilo que ele denomina Deus-não criador (Tout) distingue-se de Deus-criador (Le Tout)? É por isso que ele fala em “dois seres”, refutando Espinosa? Ou, de facto, Deus-criador e Deus-não criador não são mais do que as duas perspectivas com que podemos falar da Existência? Esta é a questão.

 

Os conceitos e as questões que mais aproximam dom Deschamps de Espinosa, parecem-nos ser o lugar determinante do conceito de natureza, de uma natureza dotada de uma ordem racional e necessária; uma concepção da totalidade contendo simultaneamente uma dimensão ontológica e gnosiológica; a adequação, ou não - ou o acordo- do corpo e da mente e de cada corpo com os demais, com esse todo; os dois atributos do todo: o infinito-eternidade e o finito-duração; os três géneros de conhecimento e, evidentemente, a possibilidade de transportar o conhecimento da substância única para uma radical reorientação da nossa existência.

Pelo contrário, a crítica radical da civilização e a consequente utopia da vida campesina, o mais absoluto igualitarismo que dissolve a individualidade, em Deschamps, parecem-nos distantes do pensamento espinosano; um projecto marcado pela especificidade histórica de uma sociedade e de uma época e, naturalmente, pela biografia concreta do monge filósofo.

Torna-se muito difícil aceitar que Deschamps fosse de todo insensível à personalidade e ao modo de vida de Espinosa: como é possível que não tenha visto nele um homem bom e sábio, cujas virtudes e modo de existência tanto se aproximam das virtudes que ele próprio, dom Deschamps, aconselha antes do estabelecimento da sociedade ideal - o estado de costumes -, e que serão, afinal, traços fortes e colectivos da moralidade que vingará nessa sociedade do porvir? Como não admitir que a salvação e a beatitude de que fala Espinosa não ecoam estridentemente no sistema de vida salvífico de Dom Deschamps?

Além disso, Espinosa foi um perseguido pelos poderes dominantes, pelo dogmatismo e até fanatismo religiosos, foi um excluído em vida e depois da morte. Espinosa teve de usar de cautela e os seus discípulos recorreram ao disfarce para transmitir as suas ideias, parecendo que as censuravam. É verdadeiramente improvável que tudo isto não tivesse aproximado Deschamps da vida e da herança do filósofo de Haia.

 

 

 

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