quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Esboço da Dissertação de doutoramento para a Faculdade de Filosofia, UCL

 

Dissertação de Doutoramento

 

Dom Deschamps : um neo-espinosista?

A Utopia Metafísica e Social  de Dom Deschamps

 

 

               Léger-Marie Deschamps  nasceu em Rennes, França,  em 10 de Janeiro de 1716, o quinto de nove irmãos. O pai era funcionário do Estado. Em 1720 o incêndio que devastou a cidade, levou-lhes a habitação e a mercearia que aí a sua mãe detinha, infligindo-lhes um pesado golpe numa situação que fora relativamente desafogada. Num colégio de jesuítas fez os seus estudos e entrou para a ordem dos beneditinos em 1733, mas em 1734 abandona a cidade natal, para prosseguir os  estudos, talvez em Touraine e em Anjou, até 1743. De 1743 a 1747 colabora nos trabalhos de historiografia da Touraine. E em 1757 foi nomeado procurador do mosteiro de Montreuil-Bellay, não muito longe de Poitiers e de La Haye (hoje Descartes-La Haye) onde permanecerá até à sua morte em 1774. O pequeno mosteiro situava-se nas proximidades das importantes propriedades dos condes e marqueses de Argenson, dominadas pelo castelo dos Ormes, onde esta ilustre e poderosa família apreciava juntar os melhores espíritos da França. Foi com o  jovem filho do Conde de Argenson, marquês de Voyer, cuja biografia inclui uma honrosa carreira de chefe militar , que Deschamps enceta uma sólida e duradoira amizade. Se admitirmos que o beneditino começa a redacção da sua obra com cerca de 25 anos ( conforme ele o relata) , é conveniente salientar o grande apoio que recebeu por parte do seu ilustre amigo, muito menos versado nas matérias teológicas mas bom leitor, atento às novidades e às obras produzidas pelos homens esclarecidos da época. A correspondência de ambos com os célebres escritores e homens de ciência, como D’Alembert, Voltaire, Rousseau, Diderot, atestam este facto. Assim como os relatos dos intensos colóquios com outros hóspedes assíduos de Ormes, como Jean-Baptiste Robinet ( autor de um sistema : De la Nature ) e o abade Yvon ( colaborador da Encyclopédie), entre outros.

   Dom Deschamps é um importante filósofo do século dezoito francês muito pouco conhecido no nosso país. A nossa tese de mestrado foi a primeira, e constitui a única, investigação, tão exaustiva quanto foi possível, do pensamento desse filósofo. No seu país natal dois ou três acontecimentos culturais marcam a sua crescente divulgação : a obra de Jean Thomas e Franco Venturi, Dom Deschamps, 1716-1774. Le Vrai Système , ou le mot de l’énigme métaphysique et morale, (1) cuja primeira edição é de 1939, e cujo subtítulo corresponde à obra principal do monge, reintroduziu o interesse contemporâneo pelo insólito sistema e constituiu até há bem pouco tempo a única fonte , em edição parcial, para aceder ao seu pensamento; a realização do colóquio de 1972, Dom Deschamps et sa métaphysique. Religion et contestation au XVIIIe siècle- 1º Colóquio europeu sobre Dom Deschamps, em Poitiers, seguido da publicação, em 1974, dos excelentes estudos que aí se apresentaram (2); e o Colóquio de Outubro1997, em Chauvigny, Dom Deschamps & son siècle. Nas últimas décadas numerosos estudos têm vindo a lume, afirmando-se alguns nomes de especialistas da obra do beneditino, cujos manuscritos foram exumados em meados do século passado pelo académico Émile Beaussire, merecendo destaque V. P. Volguin ( 1958), Jean Wahl, Kurt Schnelle e Bronislaw Baczko, todos eles com estudos ainda da década de sessenta, e Boris F. Porchnev, Jacques D’Hondt, André Robinet, Bernard Delhaume, Pierre Méthais, Nicolas Wagner, etc. (3) O nome do monge filósofo ultrapassou as fronteiras da língua francesa e desde há muito que atingiu os países do Leste (4), a Itália e a Alemanha.

  O Verdadeiro Sistema (Le Vrai Système ) de Dom Deschamps é uma obra-prima do século dezoito. Não hesitamos em classificá-la assim, muito embora o seu estilo literário menor não a coloque ao lado das obras dos grandes mestres, como Voltaire, Rousseau ou Diderot. O seu valor reside sobretudo numa ousada e peculiar construção filosófica, que utiliza diversos modelos então em voga mas não copia ninguém.. O seu sistema ( redigido e sucessivamente corrigido durante a década de sessenta) articula conhecimentos e paradigmas das ciências do tempo com conceitos do mais puro recorte filosófico, arrancados alguns deles da tradição ou das mais perenes querelas da teologia, mas surpreendentemente renovados ou utilizados com novos e inesperados sentidos, no contexto das batalhas de ideias que notabilizaram o movimento das lumières. O seu sistema, auto-proclamado de “ateísmo esclarecido”, compreende uma profunda análise das ideias metafísicas de Deus e do Mundo, em conjugação com as  novas ideias sobre a Natureza, assim como uma crítica moderna da religião, das leis e do Estado. É um sistema singular pelo modo como articula metafísica, filosofia da moral, da política, da natureza e utopia, desenvolvendo-se e apresentando-se com uma arquitectura intencionalmente metafísica, convertendo o seu elogio da natureza num materialismo insólito, paradoxal, especulativo, mas rico de intuições e consequências. O seu sistema desagua na descrição claramente utópica de uma sociedade ideal, sem propriedade privada, centrada numa economia agrícola não mercantil.

     A ideia-mestra do sistema de Dom Deschamps revela-se com clareza nesta citação: “Uma filosofia tal como a que reina pode bem ocasionar uma revolução na religião, nos costumes e no governo, mas não consegue mais do que isso com as suas meias-luzes ( demi-lumières) : porque esta revolução, sempre a evitar  por tão perigosa como inútil, não impedirá o estado de leis divinas e humanas de subsistir, e o mal moral, do qual este estado é a causa, de existir com a mesma força, embora sob outros modos” (5).

O movimento das Luzes, como é sabido, foi um movimento cultural que acreditava no progresso  e tinha propósitos reformadores, dirigido particularmente na França contra instituições classificadas como obsoletas e obscurantistas, de uma maneira geral colocava-se contra a monarquia feudal de direito divino apoiado pela igreja católica, e muito do seu programa assentava na defesa do livre-câmbio económico e das liberdades políticas fundamentais. Reconhece-se hoje o carácter heterogéneo das Luzes, cortado por clivagens sociais e diferenças internas. A posição expressa por Dom Deschamps parece, por conseguinte e apesar disso, conservadora e historicamente reaccionária. De facto foi assim recebida pela maior parte dos seus leitores e interlocutores ( com raras excepções quase ninguém leu a sua obra na íntegra), incluindo Diderot que, numa primeira reacção, tomou o monge como um clérigo fanático e algo doido... Rousseau, em correspondência rapidamente interrompida por efeito das consequências públicas da publicação do seu Émile, manifestou-lhe, com cortesia, reservas de monta :” O vosso estilo é muito bom, é um facto, e não duvido que o vosso livro não seja bem escrito: vós possuis uma cabeça pensante, luzes, filosofia. A vossa maneira de anunciar o vosso sistema torna-o interessante, inquietante mesmo, mas apesar disso tudo estou persuadido que é um sonho”.

Certamente que no tempo circulavam abundantemente sistemas metafísicos, especulações de todo o tipo e valor. Onde reside o interesse do sistema de Dom Deschamps? Independentemente da resposta cabal à pergunta: O que nos interessa hoje e como lemos agora os textos do passado?, a sua utilidade para o investigador da história das ideias assenta, sobretudo, na crítica dos philosophes e no confronto do monge beneditino dos meados do século dezoito com a figura gigantesca de Spinoza. Dizendo melhor: Dom Deschamps representa, a nosso ver, um dos mais altos expoentes da renovação do espinosismo que se manifestou nos anos cinquenta e sessenta do século das lumières, para vir a deslocar-se em seguida para os territórios da cultura alemã. Isto por um lado, no que se refere à filosofia. Por outro, propõe uma forte e interessante utopia no quadro das utopias do século dezoito, medindo-se, assim, com Jean Meslier, Morelly e Mably. Assim se explica que, nesta vertente, haja suscitado o interesse de notáveis investigadores sociais da ex-U.R.S.S. e venha inserido na antologia de textos utópicos traduzida na nossa língua com o título:“Utopias e utopistas franceses do séc. XVIII ”,  (6) que devemos ao Professor Vasco de Magalhães -Vilhena.

  Deste modo, esta tese de dissertação, com a qual me candidato ao grau de Doutor em História da Filosofia, pretende, em relação com a nossa tese de mestrado, levar mais longe o paralelo com Bento Spinoza e esclarecer algumas das modalidades do neo-espinosismo setecentista.

 

      A tese principal de Dom Deschamps é a seguinte: a concepção teológica, ou tradicional, de Deus,  não serve, pois que se apoia sobre uma contradição manifesta, ou seja, Deus como puro espírito e, simultaneamente, dotado de predicados antropomórficos ( Deus pessoal e moral) – o plano dualista da transcendência é, portanto, rejeitado, assim como, pelas mesmas razões, a crença deísta dos philosophes; todavia, é rejeitada também a solução defendida por um determinado sector de philosophes (em suma, os materialistas, com d’Holbach à cabeça), na medida em que se mostram incompetentes para distinguir o todo-natureza ( le “grand tout” de d’Holbach) das suas partes componentes ( os seres, as coisas físicas de que nos apercebemos pelos sentidos); ou, se preferirmos, não  admitem o carácter irredutível do Ser-Substância relativamente aos “modos” ou determinações finitas e físicas; a totalidade existe, não é apenas uma simples ideia ou “universal”. Cristalizados nesta posição, que é  radical apenas na aparência, não conseguem decifrar o “enigma” ou solucionar a contradição perpétua de um Todo simultaneamente criador e não-criador, finito e infinito, ou eterno, abandonando o terreno tanto às teologias teístas, como aos deísmos “utilitários” à maneira de Voltaire, ou ao “pirronismo” à maneira de D’Alembert e de Robinet. Enfrentando ousadamente todas estas “estratégias” em voga, Dom Deschamps julga ter descoberto o “ovo de Colombo” : à natureza ( mundo físico e composto de coisas finitas e de relações entre elas, que as ciências desvendam) denomina de O Todo (Le Tout), totalidade determinada que não se confunde com as suas determinações concretas, e ao Infinito (eternidade) designa de Todo (Tout); o primeiro é o Ser  uno, o segundo é o Ser único; na medida em que um é o outro conforme a perspectiva com que se encara a Substância ( pela determinação ou pela negatividade pura), são idênticos, isto é, a sua relação, embora contraditória, exprime uma mesma coisa: a Existência( Existence). Dissemos que Deschamps é um neo-espinosista, e porquê? O monge evita muito cautelosamente publicitar-se como tal, o que seria uma perigosa ousadia naquele tempo – recusa liminarmente que o seu sistema seja conotado com o de Bento Spinoza. Para tanto redige uma “refutação” com a qual pretendia prefaciar a edição do “Verdadeiro Sistema” ( La Vérité, ou le Vrai Système). O texto contra argumentava sobre o “Princípio de Espinosa: Existe somente uma substância, a qual é infinitamente modificada”(7), por conseguinte, trata-se de demonstrar a “inconsequência” (“absurda”) do célebre axioma do Deus sive natura. Segundo o nosso monge as coisas dispõem-se desta maneira: “Há um todo na medida em que há as partes, e este todo é aquilo que nós designamos de universo, a matéria, etc. ; aquilo que se pode chamar a substância modificada”; portanto, não existe outra causa dessas modificações, esse todo é o criador e a criatura, que dependem uma da outra para existirem( são relativas); todavia, são diferentes ( diríamos nós, pela extensão e pela compreensão), a totalidade não é esta ou aquela determinação, “ e é esta diferença somente que faz a diferença metafísica de O Todo (du Tout) e de todas as partes, que faz com que O Todo seja a causa e o efeito” (8). Repare-se : a diferença metafísica: é neste plano que Deschamps defende o valor e o primado da metafísica sobre o plano meramente “físico” (ou “sensual”) com o qual os philosophes se satisfazem. Ora, se a Natureza é uma totalidade relativa, ou unidade primeira  do conjunto ordenado, não existe por si (par soi) ;logo, se é o Uno (l’un), não é o único (l’unique), “ porque quem diz único, diz um ser que nega todo outro ser que não seja ele próprio; enquanto que o ser uno afirma outros seres além de si mesmo, afirma cada uma das suas partes(...) O Todo é a substância modificada, e esta substância não é nem pode ser a substância única, visto que é modificada”; porém “o ser único é o ser simples, o ser sem composição, sem partes, sem modificações; o ser que existe sem relação, que existe por si (par soi) e, consequentemente, não fornece nem recebe a existência, não é criador nem criatura”; assim sendo, o ser uno é absolutamente positivo, enquanto que o ser único é o ser absolutamente negativo, pois que “ ele nega o ser uno e os seres em número”. Se o Infinito é estéril, é nada, é o Nada ( Le Rien)- daí que ele se defina como “riéniste” consequente. Navegamos, portanto, na mais elevada especulação, a tal inútil e descabelada metafísica que se impunha enterrar e esquecer. Não deve assim proceder o investigador da história das ideias, sobretudo para os filósofos que respeitam qualquer confronto inteligente com o Príncipe dos filósofos, Spinoza.

 

   O que se disse antes é bastante para concluir contra Espinosa que há duas substâncias, uma modificada e a outra não modificada; uma que é una e a outra que é única, ou, se preferir, que há o sim e o não metafísicos; sim e não que não podem existir um sem o outro. Porque é de sublinhar que o não metafísico afirma necessariamente o sim, ao mesmo tempo que o nega. É a contradição tal e qual, e é o que deve ser o contrário metafísico negativo”( 9)

 

    Entender-se-á agora melhor o que significa o ataque de Dom Deschamps contido na primeira citação que dele transcrevemos: Spinoza foi o arquitecto do mais moderno sistema, que importa corrigir, mas não destruir.

 

  Spinoza não teria dito da substância que ela era infinitamente modificada, se ele tivesse sabido que o infinito é, como o atributo único, a negação de toda a modificação: mas Spinoza pretendeu fazer um sistema, e teria sido melhor que se prendesse ao facto das duas substâncias, que é o verdadeiro, e que apenas esperava ser explicado. É esta demanda que, mal entendida, deu origem à filosofia destrutiva que sempre reinou e que reina hoje mais do que nunca; a esta filosofia que não estabelece nada nem no plano metafísico nem no plano moral, ou pelo menos algo que satisfaça” (10).

     Tudo isto parece estranho e paradoxal, vindo de um homem que se  declarava, ele próprio, espírito esclarecido, com mais rigor ainda : professando um “ateísmo esclarecido”. Na verdade, o propósito do monge beneditino, cauteloso certamente, e até dissimulado, mas corajoso e radical, era o seguinte, como, aliás, fica claro em toda a sua obra: “ Entendo pelos opostos metafísicos, os dois últimos extremos possíveis, que se afirmam um ao outro e que são O Todo, e entendo pelos contrários os dois pontos de vista da Existência, do qual um afirma o outro negando-o, e que são O Todo e Todo, o finito e o infinito, &c.” (11) Por outras palavras: Dom Deschamps é um materialista ateu, bom conhecedor do espinosismo, que pretende repor o materialismo em bases mais “consequentes”, isto é, dotando-o de uma ontologia; esta outra e mais verdadeira filosofia da natureza, defender-se-ia muito melhor dos antropomorfismos, por um lado, e, por outro, ficava armada com uma ética capaz, que ele não encontrava nos sistemas dos outros. O seu culminava ,assim, num determinismo absoluto, numa ordem  regida implacavelmente pela Lei natural, por esse Todo contraditório, que significa uma única Existência sem outra causa e finalidade que não ela própria, na qual a finitude das nossas vidas, tão breves e relativas, só encontram sentido numa eternidade imóvel e vazia. Esvaziado de transcendência o existir físico recupera o seu significado através do acordo que entrelaça todas as coisas e todos os seres entre si ( “ Le Tout universel, qui, comme on le verra, est le bien, l’ordre, l’harmonie, l’égalité, l’union, la perfection, à tous égards métaphysiques; Qui est l’archétype du moral, comme du physique; “). Este acordo, que é uma transfiguração do famoso contrato social, obriga-nos coerente ou consequentemente, a organizarmos a vida de outro modo, se é de facto a felicidade que perseguimos : abolir a propriedade privada dos recursos económicos, desfazermo-nos da indústria dominada pelo mercado e pelo dinheiro, dos bens inúteis da civilização, que tantos sacrifícios humanos exigem para mera satisfação de minorias. Ao “estado da desunião sem união” deve seguir-se o “estado dos costumes”, a comunidade de trabalhadores agrícolas e artesanais, gozando pela primeira vez os prazeres do trabalho e dos dias. Uma comunidade assim, dispensa a complexa organização dos Estados modernos, de resto vocacionados apenas para impor a propriedade de alguns, a exploração e a repressão, com as suas leis complicadas mas injustas, as suas hierarquias que estabelecem a desigualdade social, as suas religiões e artimanhas culturais que não visam senão justificar as formas de dominação e servir de escape ao medo e à ignorância.

   Esclarece-se finalmente o programa crítico do monge beneditino : o que faltava ao materialismo ateu seria, portanto, um projecto social comunista. Uma sociedade irrepreensivelmente moral, onde a submissão às leis da natureza em vez de rebaixar os homens à condição de brutos, os elevava à  suprema liberdade: a felicidade.

Claro que sobram dúvidas: em rigor, o seu sistema é materialista ou idealista ( o autor refere expressamente a intenção de re-conciliar o materialismo e o imaterialismo)? A sua utopia descreve um projecto comunista ou anarquista? É ela uma rejeição consequente da religião, ou transporta, afinal, um conteúdo especificamente cristão?

Estas interrogações não diminuem o valor das suas ideias, estimulam pelo contrário à sua leitura. Toda a interpretação textual está imersa num contexto ,  do tempo do autor e do tempo de quem o lê. O que se decide ler depende de quem e de como se lê. O monge beneditino Léger-Marie Deschamps esforçou-se por superar, isto é resolver, as inconsequências do materialismo do seu tempo, ainda “mecanicista” segundo alguns, e os postulados contraditórios do “imaterialismo”, ou do idealismo, teológico ( e escolástico) cujas consequências estavam à vista: o conúbio entre a igreja e o Estado feudal-absoluto. A questão de Deus era-lhe importante tanto quanto lhe parecia importante para os homens em geral, impelidos pela necessidade de se conformarem com uma razão natural, ou cósmica. O seu ateísmo não é uma mera negação da existência de Deus ( ou uma atitude de indiferença), nem um simples e primário panteísmo: o seu axioma fundamental, “tout est Tout”, releva da decisão de postular o primado da Natureza, cuja ordem colocava o imperativo categórico do Acordo entre os homens, iguais e livres. Como refere o Professor Bernard Delhaume, na sua excelente introdução às Oeuvres Philosophiques, Dom Deschamps declara expressamente que “ o nome de Deus deve ser suprimido das nossas línguas” por causa, sobretudo, da ideia de moralidade que a esse nome sempre atribuímos, erradamente, “utopicamente” diríamos. Não se pode, além disso, dizer do mesmo nome que ele é infinito e perfeito; portanto, “é preciso necessariamente dois nomes para exprimir a substância, encarada nos seus dois aspectos contrários, na medida em que ela afirma sob um deles aquilo que nega sob o outro”(12)

 

Um ateísmo esclarecido, longe de ser perigoso, é tudo o que os homens podem desejar de mais vantajoso; porque, vencendo a sua ignorância sobre o fundo das  coisas e demonstrando-lhes a verdade moral e a possibilidade de praticá-la, torná-los-á como nunca tão felizes como o foram infelizes. A felicidade, que é a fruição contínua, só pode existir sobre a terra pelo estado de costumes fundado em princípios, e é o ateísmo esclarecido o único que pode conduzir a este estado. Mas então, dir-se-á, é um ateu que combate os ateus? Eu não proferi uma única palavra contra eles que não fosse consequente com o meu ateísmo. E, todavia, bem que este título odioso de ateu se aplica mal aquele que somente destrui do teísmo a sua moral, e que, demonstrando a metafísica do teísmo, deduz daí a verdadeira moral e extingue o mal moral na sua fonte!”(13).

 

       É normal que se procurem precursores para as nossas ideias. Émile Beaussire quis fazer de Dom Deschamps um precursor francês do hegelianismo, por causa do seu sistema dialéctico; Jean Wahl , entusiasmado com o “riénisme” do beneditino, imaginou-o precursor do existencialismo; vários investigadores da ex-URSS, e não só, descobriram nele um precursor das ideias socialistas e comunistas.

    Seja como for, Léger-Marie Deschamps trabalhou com originalidade sobre os grandes paradigmas do século, referimo-nos às ideias de Nature, Bonheur, Tout. A confiança dele na Razão (nas luzes naturais) participa do largo optimismo das elites do seu tempo. Seria indesculpável que não associássemos este optimismo  ao profundo desejo de mudança. O movimento das lumières deve ser traduzido como um admirável projecto de emancipação. Do género humano, como queria o grande Rousseau que muita influência exerceu no pensamento e na obra dos utopistas franceses, particularmente em Morelly e Deschamps.

     As utopias podem revestir a forma de romances, género literário, ou não; é neste segundo caso que cabem as idealizações de Dom Deschamps e de Mably. Por outro lado, escrevem-se utopias de evasão, sonhos idílicos, antecipações delirantes e fantasias científicas. A utopia de Dom Deschamps pertence à categoria das utopias socialistas e até, embora com algumas reservas, revolucionárias. A organização da sua sociedade ideal, o “estado de costumes”, não prevê a complexa maquinaria do Estado e das respectivas leis, é uma utopia socialista sem um Estado que sequer prepare o advento da sociedade comunista. É somente nesse sentido que se pode aproximar das teorias anarquistas. Ao mesmo tempo que se configura como uma utopia tipificada. Devemos lembrar, porém, que, num sentido mais amplo, a sociedade comunista anunciada por Marx e Engels no seu célebre Manifesto do Partido Comunista, constituiria o termo ( relativo) do progressivo desaparecimento do Estado, isto é, das classes sociais e da “política”...

 

 ”...a utopia não prevê todos os detalhes de uma organização superior, mas não é por isso de modo algum um simples devaneio absurdo, mas um quadro de conjunto do qual alguns aspectos são possíveis e que tem por finalidade satisfazer a imaginação das massas, e também incitá-las à acção- V. Dupont (14).

 

       Não resta qualquer dúvida, em nossa opinião, de que o  caroço das complexas questões que ocuparam alguns dos pensadores-escritores dos meados do século dezoito se prendia com o fenómeno que nós designamos de acumulação original do capital. Por outras palavras: o tema do “ estado de natureza”, celebrizado por Rousseau certamente mas nem sequer inventado por ele de modo algum, exprimia o vasto debate e as profundas inquietações a propósito das escolhas que se ofereciam à sociedade francesa ( como em outros países também). O que era possível e o que se julgava necessário, digamos como tendência objectiva do desenvolvimento histórico, constituía um pomo de discórdia e uma orientação decisiva das pesquisas , um elo de união de sectores sociais ou uma barreira de separação. A opinião pública francesa ,podemos dize-lo, mostrou-se fortemente comovida com esse tema em debate. Dessa maneira, também contribuiu para a formação de uma opinião pública moderna. A Grande Revolução viria a ser o zénite dessa paixão.

   Aquilo que converte Dom Deschamps num caso único, no panorama da filosofia francesa e cremos que europeia de setecentos, é a utilização de uma metafísica arrojadamente dialéctica ( mesmo que não hegeliana) para despojar o famoso “estado natural” da mistificação que transportava. Demonstrando-se que a desigualdade , muito embora de raiz social, existia já, e existiria ainda, no estado de natureza, por um lado, e, por outro, que as leis se redigem com o propósito principal de defender e eternizar uma determinada formação social desigualitária de classes sociais, equivale a dizer que alguns mitos revolucionários não poderão jamais cumprir as suas promessas.

    

 

 

 

 

 

 

   A controvérsia entre as correntes metafísicas e aquelas que se reivindicavam do novo espírito científico, atravessou todo o século dezoito francês. Esta controvérsia tinha a sobre-determiná-la uma outra oposição : entre os adeptos da reforma da teologia e, portanto, da separação da igreja e do Estado, e os conservadores do status quo, e da religião revelada. As controvérsias da filosofia viam-se, assim, motivadas, para não dizer, determinadas, pela urgência do calendário político. O Rei-Sol havia sido substituído por um rei cada vez mais impopular e os seguintes não fizeram melhorara situação. A França via-se cada vez mais preterida no lugar de primeira potência, que cedia à Inglaterra. Os camponeses, que melhoravam a sua situação, eram espoliados pelo fisco do Estado Absoluto. O capitalismo mercantil desenvolvia-se, provocando benefícios para uns e prejuízos para outros, particularmente as camadas tradicionais. A Igreja encontrava-se dividida entre o poder enorme dos jesuítas e as dificuldades em manter a rede de mosteiros e abadias.

 É neste contexto que um monge obscuro emerge dos territórios de Poitou. Dom Deschamps, Léger-Marie de seu nome, nascera em Rennes, em 1725 e encontrava-se, vinte anos depois, numa pequena abadia nas vizinhanças das terras dos senhores de Argenson.

  O problema principal que se colocava a este monge beneditino, do qual descrevemos as particularidades na nossa tese de mestrado, consistia n seguinte: professando a metafísica, e tendo abandonado o cartesianismo, como evitar o espinosismo, na medida em que se fez ateu mas não iluminista, e materialista mas não adepto do grupo de d’Holbach? Dom Deschamps sentiu como poucos que a metafísica consequente conduzia necessariamente ao espinosismo. Não sendo teísta nem deísta, que outra solução encontrar que não fosse Spinoza?

 Na segunda metade do século a coisa complicava-se, pois do Spinoza original sabia-se pouco, lia-se pouco. Continuava a perdurar a interpretação de Pierre Bayle, e algumas obras de referência que, pretendendo refutar Spinoza, assimilavam-no. Um naturalismo panteísta impregnava a atmosfera. O alemão C. Wolff irá cunhar, com a perspicácia que o caracterizava, de “acosmismo” determinadas orientação neo-espinosista, que o Hegel irá atribuir a Spinoza. Alguns deístas, mesmo, utilizam argumentos de Spinoza, ou que julgam sê-lo, para forjar a sua noção de um determinismo universal, sob o olho vigilante, mas não interveniente, de um Deus “arquitecto”.

 Ao forte impulso que as correntes empiristas estavam recebendo por essa altura, Deschamps reage negativamente ( e este negativismo vai forjar um conceito de negatividade muito peculiar neste Autor), contrapondo a especulação pura, a razão teórica, a experiência da razão absoluta. O que é interessante, a nosso ver, constatar é que Dom Deschamps não se opõe à experiência dos sentidos, como fonte do conhecimento, em nome de uma pura transcendência do espírito sobre a natureza, mas, pelo contrário, em defesa de uma concepção verdadeira do que seja a “Natur”. A Verdade é simples, segundo ele, e essa simplicidade, ou seja, univocidade, é concomitante com a vocação mais pura e original dos homens : seres naturais, vivendo em acordo com o Todo da natureza.

 Precisamente : Tout e Le Tout, eis os conceitos fundamentais em que se estriba o seu Vrai Système. Todavia, existe algo mais, oculto sob estes dois conceitos, dotado da máxima simplicidade de que a intuição é capaz ( e só ela é capaz) e revelado na linguagem mesma : a categoria e a palavra Existence.

A Existência pode e deve ser apreendida pela Razão (nunca pelos sentidos). Se a apreendermos pelo seu lado positivo, ela é Le Tout, sob o seu aspecto negativo é Tout. Le Tout é o universo, a matéria, a natureza, o finito, o uno. Tout é, pelo contrário, o infinito, o único, o Nada (Rien).. Esta categoria não evacua a existência, e isto é deveras importante, é, antes, negação da finitude, da dependência, das determinações, limitações, do relativo, em suma : negatividade pura; por conseguinte, apresenta-se logicamente como a existência no seu estado de infinitude e de eternidade, enquanto Le Tout é a soma de todas as coisas, particulares e determinadas pois claro. Eis o Absoluto e o Relativo.

 O que é que isto tem a ver com o espinosismo, com o Spinoza sobretudo? Verifica-se ou não a presença do filósofo de ascendência portuguesa?

Foram várias as “refutações” ao pensamento de Spinoza. Dom Deschamps também redigiu uma. Colocando como epígrafe uma citação de Spinoza, “Il n’y a qu’ une substance, laquelle est infiniment modifiée”, o Autor do “Vrai Système” avança desde logo com a argumentação segundo a qual existe uma “substância modificada”, que é a “matéria”, pois que esta é composta de partes que são as suas modificações; e aqui somente pode haver uma causa, que se denomina O Todo das partes, havendo duas seria absurdo; na mais pura lógica, O Todo é a soma, causa e efeito, maior do que as partes. Cada parte entra na relação com O Todo, como lhe parece evidente, o qual não pode, portanto, existir por si apenas, deste modo depende do composto ( daí que seja efeito).  As partes podem apresentar-se como inúmeras aos nossos olhos , mas não são infinitas em número. Sendo um composto finito, Le Tout é, necessariamente, uno; por conseguinte, argumenta o nosso monge, não é único : “car qui dit unique, dit un être qui nie tout autre être que lui-même; tandis que l’être un affirme d’autres êtres que lui, affirme chacune de ses parties. Cet être, pour le dire encore, est toutes ses parties, mais il diffère d’elle par chacune d’elles; ce qui fait qu’il est un, et non pas unique. L’univers et Paris sont deux” (p. 619).

A verdade é que o princípio de Spinoza, a que Deschamps faz referência, citando, não se encontra na Ética, onde seria de esperar encontrá-lo, pelo menos nessa fórmula. A citação não é rigorosa, ou nem o é sequer. Muito provavelmente é extraída do Pierre Bayle, formulação cómoda do pensamento espinosista que circulou largamente. Ou seja, a fórmula pela qual se interpretava o monismo do filósofo de Haia.  Certamente que as sete definições e as primeiras dez ou doze proposições, com as suas demonstrações, corolários e escólios, estabelecem claramente a tese de Spinoza de que “na natureza somente existe uma única substância” e que “ Tudo o que existe, existe em Deus,, e sem Deus nada pode existir nem ser concebido” ( Proposição XV) e que por Deus o filósofo entende “ o ente absolutamente infinito” (definição VI).

A “substância modificada” para Deschamps, é a natureza. Não é causada por outra substância, mas é causa das partes em que se compõe. Como decorre da definição de substância. Sendo composta, é neste caso também efeito, ou seja, a sua existência é relativa às partes. O plano metafísico de Deschamps ( que ele assume, de resto) encontra-se na “diferença” ( curiosa expressão) que reconhece na totalidade, não apenas uma mera noção ou “nome”, mas uma distinção objectiva: O Todo (Le Tout) é ou existe. E é esta atribuição entificadora que assinala o plano metafísico, e faz a diferença de Deschamps com os demias filósofos naturalistas, materialistas, e sensualistas.

Por outro lado, a vertente monista parece aqui marcar o terreno : Le Tout é substância, mas não existe “par soi”, pois que depende das partes. Arreda-se, assim, qualquer interpretação transcendentalista.

As “partes”, que corresponderiam aos “modos” em Spinoza, não são infinitas.

O confronto com Spinoza eclode a propósito de dois termos : o uno e o único. O que é compósito não é único, pois que uma substância única nega tudo o mais, ou afirma-se somente a ela mesma. Unidade é uma coisa, unicidade é outra. O ser único é, só pode sê-lo, um ser simples, sem composição, sem partes ou modos, sem modificações. Le Tout é a unidade do “plus ou moins”, do mais ou menos, do mais pequeno ao maior, do inferior ao superior.

Cheio como é, dele só podemos dizer que é positivo, a positividade, a completitude. Do ser único, desse, pelo contrário, só podemos falar em negatividade, pois nega tudo o mais, todo outro ser, o seres em número, as partes, as coisas.

Não sendo determinado, é indeterminável, “indéfinissable”. Tal ser somente o podemos admitir e compreender confrontando-o com o ser positivo, por meio da contradição. Portanto, se podemos dizer do positivo que ele é a extensão e o tempo, então o negativo não o é.

“Tous les noms collectifs généraux positifs conviennent à l’être un, et tous les noms collectifs généraux négatifs à l’être unique. Le développement de la vérité consistait à attacher des idées, et des idées justes, à ces noms qui, de notre aveu, expriment des êtres métaphysiques. Ajoutons que les noms collectifs généraux négatifs ne sont autre chose que la négation des positifs. L’être unique est la négation de l’être un et, conséquemment, des êtres en nombre. » (Réfutation)

 

Não surpreende que Deschamps afirme que a materialidade seja compósita, determinada, extensão e temporalidade, in actu. Neste sentido é aristotélico e cartesiano. Nem mesmo surpreende que a considere, como tal, uma substância. A tradição cartesiana está aqui estabelecida. E veremos se isto conduz o monge ao materialismo ou não. O que surpreende é que, por antinomia, formule um ser puramente negativo, não determinado, indefinido, vazio. “Um ser que é a negação do sensível em geral e em particular, isto é de O Todo e das partes”, um ser que é, por conseguinte, o Nada (le Rien, le néant). E, num arroubo que tanto se aproxima do puro misticismo, como aflora um certo espinosismo, considera absurdo que não exista tal ser, na medida em que ele é a Existência (l’Existence), em que é “a própria verdade metafísica; é Deus dito simplesmente”.

Com esta argumentação sui generis arremete contra o monismo de Spinoza : há, assim, duas substâncias, a una e a única, uma modificada e a outra não; há o sim (oui) e o não (le non) metafísicos, e nenhum deles pode existir sem o outro.

“le non métaphysique affirme nécessairement le oui, en même temps qu’il le nie. C’est la contradiction même, et c’est ce que doit être le contraire métaphysique négatif ».

Dialéctica surpreendente. Que pretende deschamps ? Negar qualquer natureza física e moral a Deus, como parece querer? Eliminar a crença num Deus “Arquitecto”? Atribuir a fórmula “Deus simplesmente dito” a Deus “considerado abstracção de toda a criação”? A ser este o propósito, ficavam estabelecidas duas substâncias “divinas”, dois conceitos de Deus : a natureza por um lado (a extensão, o tempo, o movimento, a mudança, a matéria, o universo), sem qualquer atributo moral, de Vontade, Plano ou Finalidade “pessoal”. Enfim, Este Deus não é Pessoa. Por outro lado, um Deus negativo, puro vazio; também este, portanto, não é “Pessoa”. No primeiro caso, uma fórmula concreta; no segundo, puramente abstracta. Repetimos : não espanta de modo algum que Deschamps garanta a substancialidade do primeiro nome (o universo, etc.); o que espanta é atribuir “existência” ao segundo filosofema. Foi tal espanto, e alguma repugnância, que acometeu os seus melhores interlocutores, como iremos averiguar.

“O princípio de Spinoza encerra nele a sua negação: porque estabelece duas substâncias na medida em que estabelece uma, pelo modo como o faz; e estas duas substâncias são elas a substância única e a substância modificad; duas substâncias que existem efectivamente (...) Estas duas substâncias são os dois contrários metafísicos”. Julga o monge que esta “verdade” não foi jamais conhecida em filosofia e em teologia; sempre oculta no “fundo do poço”, foi ele que a revelou.

Um dos núcleos fortes da argumentação de Deschamps, se não mesmo o núcleo duro, localiza-se na ideia que faz da noção de “infinito”. “Spinoza não teria dito da substância que ela era infinitamente modificada, se ele soubesse que o infinito é, como o atributo único, a negação de toda modificação”. Não podendo a natureza ser infinita, pois que ela é temporalidade e mudança, completitude e “perfeição”, pensa ele, então impunha-se reservar a categoria a outra substância. Em suma : temos aqui dois atributos distintos e até mesmo contraditórios, ou distintos pelo facto de serem contraditórios : a “substância modificada” e o infinito. Mas Spinoza não o entendeu assim; tendo-se seguido, com ele depois dele, por outros caminhos, errados, originou-se uma “filosofia destrutiva” que, muito embora sempre haja reinado, “reina hoje mais do que nunca”. Que filosofia é essa? Pois, depreende-se que tanto é a teologia teísta, como, e talvez principalmente, a filosofia das Luzes. Veremos que cabe nesta o deísmo à maneira de Voltaire, e o materialismo, insuficiente, do grupo de d’Holbach. É curioso que inculpe o Spinoza de responsabilidade maior nesta “demande mal entendue”. Mesmo que o monge estivesse do lado certo, não é exagero, no mínimo, tal inculpação? Esta atribuição a Spinoza dos males da filosofia “destrutiva que reina”, releva, anosso ver, de dois pressupostos: o primeiro – considerar que no seu tempo ( meados ou finais da década de sessenta) Spinoza granjeava enorme influência; segundo – que ele mesmo, Dom Deschamps, trabalha no quadro do pensar spinozista.

A nós o que nos parece é que, segundo a pesquisa de Deschamps, cada corpo e todos os corpos, é finito “porque sempre podemos conceber outro que lhe seja maior”, como afirma Spinoza na Definição II), porém um corpo não é limitado por um pensamento, nem um pensamento por um corpo, pois que se trata de duas coisas distintas e autónomas. A ordem do ser sensível e físico não é a ordem do pensar. Contudo, enquanto Spinoza construi uma só substância, com dois atributos, entre os infinitos que ela possui, Dom Deschamps conclui que, sendo a infinitude o grau mais elevado da categoria do pensar, é ela mesma uma substância. Será mesmo assim? Ou o nosso autor dissimula a sua vontade de admitir, com Spinoza, que, em boa verdade, são elas os dois máximos atributos que o homem consegue discernir da Substância? Diferentes, contraditórios, segundo argumenta o monge de Poitou. Se dissimula, dissimula bem, porque a cada passo insiste na veracidade de um sistema de duas substâncias e na intenção de destruir o sistema de uma única substância. Qual seja um dos propósitos principais de Dom Deschamps, ele esclarece-o a breve trecho : “Il reste toutes les applications à faire “ do seu sistema, “au physique et surtout au moral”. Isto é, é o seu sistema _ das duas substâncias – que permite uma autêntica e profunda reforma moral ( não o sistema de Spinoza, nem as “meias luzes” dos filósofos das Luzes). “Não se pode alcançar a verdade moral senão por meio da verdade metafísica”. E onde se encontra o sistema desenvolvido destas duas verdades? Numa “obra manuscrita” nem volumosa nem difícil; pois que “esta refutação do espinosismo é feita para anunciar esta obra (...) qui ne sera donné qu’autant qu’il sera désiré sur l’annonce”. Trata-se de “Le Vrai Système”. Que jamais publicaria.

É de sublinhar esta intenção. Obviamente que hoje em dia ninguém faria anteceder uma obra com uma refutação de Spinoza. Melhor seria dizer do espinozismo. Ou seja, no tempo de Dom Deschamps, um pouco por todo o lado, mas em particular em França, corriam versões várias do sistema de Spinoza, na sua maioria esmagadora, simples ataques com base na ignorância do conteúdo original. Os sectores conservadores católicos encabeçavam e acirravam os ódios contra um sistema classificado como “ateu” (carregado do sentido que esses sectores emprestavam à palavra, naturalmente). Os “filósofos” faziam por desprezar, não o Spinoza do qual também só conheciam a versão do Bayle e pouco mais, mas o um espinozismo que tomavam um exemplo daquilo que não necessitavam, isto é, de “sistema”, metafísicos naturalmente.

 

Repare-se no que escreve Deschamps:

“ Si la destruction du mal moral, et conséquemment de presque tout le mal physique, eût été conséquente du système de Spinoza, comme elle l’est nécessairement du Vrai Système, on n’eût pas tiré du système de Spinoza les tristes et odieuses inductions qu’on en a tirées. C’est à quoi je prie de faire une attention particulière. Il ne découle aucune morale du système d’une substance unique ; il n’en découle qu’une fausse du système mal entendu de deux substances. «  Réfutation).

Afirma que o sistema de Spinoza ( que livro ? a Ética?) não propõe moral alguma. O que, em certo sentido, não deixa de ser verdade. Visto que Bayle já isto mesmo havia interpretado do sistema ( ou das obras que lera) de Spinoza, tal conclusão não demonstra, só por si, que Deschamps haja lido Spinoza. O que é relevante é que Deschamps não enfileira naqueles muitos que extraiam ( pior : acrescentavam) da Ética de Spinoza uma anti-moral, melhor dito, uma i-moral, permitindo-se deste modo denominá-lo de “cão”, “judeu”, “porco”, etc.; faziam por misturá-lo com os “libertinos”, em suma, com os inimigos da Fé, da boa moral, e por aí fora. Tudo que cheirasse a liberal e democrático caía sob esta alçada para determinados sectores. Estes epítetos passarão a alcançar também os “materialistas”, quer se incluíssem entre os “naturalistas”, quer nos discípulos do La Mettrie, do Helvetius, ou na “seita” do barão d’Holbach.

 Por outro lado, Deschamps quer mesmo e de facto uma moral, precisamente por isso censura Spinoza. Na medida em que um sistema monista não permite moral alguma, julga ele e na esteira do Bayle, corrige o sistema de Spinoza ( a Ética), fornecendo-lhe duas substâncias. Veremos que na realidade não parece que o sejam, mas, antes, uma só encarada de duas maneiras diferenciadas e opostas. São estas razões que nos levam a admitir que Deschamps trabalhou no interior do sistema de Spinoza, melhor dizendo, do espinosismo, não para o destruir, mas para o melhorar. Por esse motivo confronta-se com os “philosophes”. Não porque seja um filósofo católico conservador, não porque seja da retaguarda que combatia e perseguia os iluministas, de modo nenhum, mas porque queria uma nova moral. No Vrai Système explica qual seja. Por enquanto, nesta Refutação, somente a aponta nesta nota de rodapé : a moral falsa, a moral que é preciso revolucionar, pôr termo, “é aquela de todos os homens que vivem sob o império das leis, e particularmente as nações “policées”. É por causa dela, a qual tem a sua causa na ignorância do fundo das coisas, que existe o mal moral”. O “fundo das coisas”, cabe à metafísica revelá-lo, trazê-lo ao de cima. É a raiz. Os primeiros princípios e as finalidades últimas. Missão antiga e sempre retomada da metafísica. Daí que ele acuse os “philosophes” de “demi-lumières”.

 

O enigma das duas substâncias

 

Em um pequeno texto, intitulado “Mot de l’enigme de ces réflexions”, Dom Deschamps insiste, como faz em toda a sua obra manuscrita de algumas centenas de páginas, na ideia de que não há somente um “grand tout”, como dirá d’Holbach nos inícios da década de setenta, ou simplesmente um “todo” como dizem muitos no seu tempo. Aquilo que diferencia Deschamps de Spinoza, ou do espinosismo corrente,  é precisamente esta ideia. Colocara-se na boca de Spinoza o conceito, sobretudo a expressão, “tout”, com o qual se identificava, por conseguinte, o seu “monismo” substancial. Una odiavam-no, outros admiravam o sistema e a noção. Versões algo simplificadas, se não mesmo grosseiras, da argumentação cerrada e consistente de Spinoza. Seja como for, o que atraía ou retraía era o monismo, o problema da substância una e/ou única, o outro nome da Natureza, ou de Deus. Aos deístas, como Voltaire, não repugnava este “todo natural”, pois que haviam construído para um Deus-Arquitecto um papel, criador sim, mas não interventivo. Ou seja, despojado de atributos morais. Ao grupo de d’Holbach, o “grand tout” era-o a “Natur”, o universo, a matéria. Podemos atribuir ao século dezoito vários paradigmas, mas este que acabámos de traçar, foi-o seguramente. Raros eram aqueles que escapavam a esta atracção “cósmica”, “cosmogónica”, na filosofia. Resultava ela tanto dos avanços da astronomia ( a teoria newtoniana), como do fascínio que a natureza exercia; mas também como fruto maduro, e polémico, dos debates sobre a religião. Em suma, se a natureza servia pouco a pouco de teste principal, a existência ou não de um Deus pessoal e moral, erguia-se como o palco das controvérsias. Que possuíam, tanto a montante, como a jusante, propósitos políticos.

 No texto que citámos, Dom Deschamps reserva os termos “Deus criador e suas criaturas” exclusivamente para “Le Tout” e as suas partes. Visto que este “Le Tout” corresponde à “Natur”, logo O que ele faz é atribuir à natureza um poder tradicionalmente atribuído a um Deus criador transcendente e de outra natureza. Neste caso, não se distingue, Deschamps, de muitos naturalistas em geral, e dos materialistas em particular. Comparando com o “Deus sive natura”, de Spinoza, não vemos qual a diferença. Pelo menos os homens daquele tempo não a viram. Daí o “panteísmo” com que a fórmula de Spinoza foi designada, e segundo a versão de Bayle.

 Contudo, Dom Deschamps não se satisfaz e estabelece desde logo a diferença com os seus pares. Concebe um outro “Tout”, sem o artigo determinativo, e tece toda uma argumentação no sentido de fazer-nos concluir que esta noção somente pode atribuir-se a “Deus não-criador”. Di-lo : “le Tout du Tout”. Pura contradição, como, de resto, ele próprio assume e adianta. Ora, para espíritos poucos dados a admitirem as virtualidades da contradição, em lógica pelo menos, esta especulação fazia arrepios. Quanto ao “Le Tout”, pois havemos de admitir tal noção útil e necessária, congruente com o estilo de pensar-se a generalidade das coisas; a totalidade delas. Como soma, reunião, etc., tudo bem; o problema instala-se quando atribuímos a esta totalidade lógica ou aritemética, uma qualquer finalidade, ou, pelo menos, uma forma de existência própria ( para além de mera e útil noção). Veremos que Deschamps não escapa à atracção de atribuir-lhe uma finalidade cósmica, existencial, na peugada de muitos outros, antes, durante e depois dele. O próprio d’Holbach não escapou, apesar de tudo. E Helvétius. Todavia, em Deschamps, a intenção moralista é muito mais forte e incontornavel.

  Pensemos, pois, seguindo o raciocínio do monge, nas coisas como um todo, e encontramos um todo, melhor dizendo, O Todo. Em seguida, segundo um encadeamento peculiar do pensamento de Dom Deschamps, pensemos na generalidade das coisas, agora, porém, fazendo abstracção de alguma coisa em particular, fazendo abstracção da “causa e do efeito”, do “movimento e do repouso”, “do “bem e do mal”, esses extremos que compõem a totalidade das coisas, e chegaremos à ideia de Todo (Tout). Este salto epistemológico é assaz difícil de admitir; difícil, sobretudo, de admitir que este “Todo” seja um ser, e não apenas uma pura noção. Todavia, é isto de que D. Deschamps pretende convencer-nos.

É de notar que o Autor utiliza a classificação de pensar “metafísico” com este sentido que é perfeitamente tradicional : “não se pode raciocinar metafisicamente sobre a verdadeira relação de seja o que for de particular senão considerando-a relativamente” à generalidade das coisas, ou seja, “ao seu todo primitivo, que é a sua perfeição”. Qualquer coisa “é o todo das outras”, pois que cada uma é referida ao todo e este é referido a cada coisa. Este raciocínio por relação, ou relativo, constitui a fronteira do nosso “Entendimento” (sic).

Este é o primeiro ponto de vista. O segundo ponto de vista, pelo qual entendemos a generalidade, conduz-nos ao “nada” (le néant, Rien). Essencial para o desenvolvimento da verdade, isto é, do conhecimento absoluto da existência. “A mais forte das antíteses” é esta : “il est tout et n’est rien”. Estamos chegados, portanto, ao termo do raciocinar metafísico. À antítese. Neste ponto, não parece que encontremos o espinosismo “tout court” e, menos ainda, Spinoza.

il est tout et n’est rien”, eis o que são todas as coisas, com efeito, e cada uma delas. Na medida em que ela se considera em ligação com toda e qualquer outra e, contudo, sem relação (?), isto é, na medida em que a consideremos unicamente, que se veja o todo nela sózinha :” c’est le monde entier, c’est l’univers, c’est tout pour moi, c’est tout moi-même”. Estranho, não é?

 Eis a última e a mais profunda das verdades, garante o Autor. Todas as coisas (e cada coisa ) são, no fundo, Tudo e Nada, simultaneamente. les choses, considérées dans ce qu’elles ont toutes d’absolument commun, et, conséquemment, qu’elles sont toutes la même ». Eis a mais pura e elevada metafísica. De que mais ninguém foi capaz, excepto o nosso Autor.

Qual foi o erro que se cometeu até então? Pois foi converter estes dois seres contraditórios num só, ao qual chamámos Deus. Ora, não se pode ser “criador” e “não criador” ao mesmo tempo, infinito e finito, o nada e tudo, confundido numa só Pessoa, ou ente. Há que distingui-los. Perguntar-nos-ão : neste caso existem à parte um do outro, separados, sem qualquer ligação? Eis de novo o erro contumaz do nosso raciocínio. “ Si on donnait à l’être unique, à Tout, un seul attribut qui ne fût pas négatif, qui ne fût pas la négation de tout attribut positif, alors ce ne serait plus Tout, ce serait Le Tout ; ce ne serait plus l’être sans rapport, l’être par soi, ce serait l’être par rapport, par autre chose. Mais quoi !, me dira-t-on, n’existe-il pas positivement ? Non, il existe, mais il n’existe et ne peut exister, que négativement, parce qu’il n’affirme et ne peut affirmer, contradictoirement au Tout, d’autre existence que la sienne. ». Não há dúvida que é difícil admitir uma conclusão destas.

E no entanto porque razão nos é dificultoso, se, afinal, a nossa linguagem admite e trabalha perfeitamente com as duas noções contraditórias? Para quê inventar uma outra e nova língua (langue) se a(s) nossa(s) já as utilizam, e desde há muito? O nosso Autor arremete, pelos vistos, contra o legado de Parménides, de Platão, de Plotino, contra toda a corrente que repugna a coincidência do Todo e do nada, do Ser e do Não-Ser.

A afirmação desta coincidência é fortemente peculiar em Dom Deschamps, embora não tivesse sido ele o primeiro, nem o último, a admiti-la. O que é interessante, é o facto dele utilizar as especulações teológicas sobre Deus, a natureza trinitária de Deus, etc. Na realidade, se bem o seguimos, Deus (ou aquilo a que ainda podemos chamar Deus) é “três” : Tout, Le Tout e “cada parte de Le Tout”, ou seja, “tout est Tout”. Qual foi o erro de Spinoza? Foi concluir que há “substância única” (substance unique). Ideia que não está longe da Verdade, certamente, mas que não é a Verdade. Adiantemo-nos sobre algumas pistas que somente noutro lugar iremos perseguir : o máximo a que a filosofia chegou foi aqui, à formulação de uma substância única. Ou seja, a Spinoza. Garante o Autor, noutras páginas, contudo nós continuamos a corrigir : não, muito provavelmente, ao Spinoza genuíno, original, mas ao espinosismo que chegou às mãos de Dom Deschamps.

 Era preciso dar o salto. Não como o fez Mirabaud (é assim que Deschamps refere d’Holbach), mas pelo modo como o monge o realizou. Estamos, por conseguinte, num plano precioso. Dom Deschamps opera sobre Spinoza (o espinosismo) e a sua missão era a de ultrapassá-lo, ou corrigi-lo. Segundo ele, outros mais do século, limitaram-se a copiá-lo, pior ainda, a cavar mais fundo o erro. Spinoza ainda foi, pelo menos, metafísico, eles nem sequer o são. Adiantemo-nos : o século das luzes, os “filósofos”, deitaram fora o melhor de Spinoza e conservavam o menos verdadeiro. Sem lance e arrojo metafísico não iam longe. Ficavam a meio. Por consequência, mostravam-se impotentes para solucionar o “enigma” da filosofia de todos os tempos. E de triunfar definitivamente sobre a velha teologia da “Santíssima Trindade”, do Deus Pessoa-moral.

 

 

RÉFLEXIONS

Sur les idées que nous avons foncièrement de Dieu

 

      Este texto de Dom Deschamps foi editado pela primeira vez por Bernard Delhaume, 1993. O O título, que engloba estas “Reflexões” em duas partes, é “La Vérité tirée du fond du puits”. Ignora-se quando foi redigida. A Réfutation (nas suas duas versões) calculamos que a elaborou depois do texto principal : La Vérité, ou Le Vrai Système ( as Observations métaphysiques e as Observations morales), redigido muito provavelmente pelos fins da década de cinquenta ( Deschamps considera, em 1761, que a sua obra está terminada). O manuscrito intitulado La Vérité tirée du fond du puits. Quid est veritas ?, foi descoberto em 1971 por uma proprietária do castelo “des Ormes”, descendente dos Argenson e homónima, e não possuía data. O texto que vimos anteriormente, Mot de l’énigme de ces réflexions, pertence ao conjunto do manuscrito. Provavelmente o manuscrito foi elaborado como resumo ou como introdução ao corpo principal da obra, terminada em 1761. Como escreveu B. Delhaume “ Il se pourrait que La Vérité tirée du fond du puits représentât la forme sous laquelle Deschamps transmettait sa doctrine pour sonder les réactions de ses contemporains, dans le but de préparer la voie à la publication du Vrai Système ». A se assim, entende-se a troca de correspondência verificada entre o Autor e Jean-Jacques Rousseau, pela qual ficamos a saber que este recebeu e leu várias peças do corpo principal da obra. No máximo que podemos chegar, quanto a datas, é que o texto que ora referimos terá sido redigi por volta de 1772.

 

      Havíamos terminado o capítulo precedente com a expressão de uma certeza de Dom Deschamps. A segura convicção de que sem metafísica não há boa filosofia; mais ainda: não há emancipação possível do género humano. Crítica que ele tornará aplicável aos philosophes que não a praticam. La Vérité... inicia-se precisamente com este propósito de terçar armas pela metafísica. “de todas as ciências a mais simples, assim como a mais verdadeira (...) sem a qual, tratada como é preciso, acordo entre os homens nunca mais”.

 A construção metafísica de Dom Deschamps, conforme ele no-lo diz, não é nenhum sistema metafísico conhecido, “é todos estes sistemas rectificados e reduzidos ao Verdadeiro Sistema”.

Evidentemente que não foi o primeiro, nem o último, a desejar para si este triunfo. Contudo, apresenta-o de um modo tão moderno que nos obriga a evocar o filósofo Hegel. Veremos este assunto noutro lugar.

Neste ponto, porém, Deschamps é um pensador da ética igual a muitos mais, de todos os tempos. Mais utopista do que outros, certamente, mas convencido, como eles, de que a ética se há-de apoiar na Verdade primeira e essencial. Uma axiologia que radica numa gnosiologia e, ambas, se desenvolvem, ou estão ao serviço, de uma ontologia. A tal “filosofia primeira” de Aristóteles.

Tem-se dito de Deus duas coisas absolutamente contraditórias : que não teve começo nem tem fim, e que foi o começo e é o fim. Um ponto de vista nega o outro. Ora, Deus antes da criação, Deus simplesmente dito, só pode ter atributos negativos. O infinito por exemplo. Não existindo nada, é nada, e por nada pode determinar-se. Diremos então que é o ser único, na medida em que nega a existência seja do que for. O ser negativo é, portanto, único. Indeterminado e indeterminável, é indefinível. Deschamps esgrime a este favor com o Antigo Testamento. Portanto se é negativo e inclassificável, não pode ser perfeito, pois que a perfeição resulta de comparações. Nesta ideia do mais ao menos, do melhor ao pior, etc., há muito de Aristóteles e de filosofia posterior.

Deus simplesmente dito é, se perseguirmos o raciocínio, eterno, visto que está abstraído de um começo e de um fim, com nada é comparável. Somente o Deus “positivo”, determinado, relativo, tem, ou é, o nosso começo e o nosso fim. A eternidade é puramente negativa. Assim como o infinito.

Foram os homens que definiram deus, e têm-no feito por meio dos limites da sua linguagem. Duas conclusões se tiram desde já: que o pressuposto universal e comum de toda a linguagem, obriga-nos a admitir que existiu um Deus antes dos seres e que existem seres depois de Deus; e que o infinito é qualquer coisa de real. Duas enormes conquistas da filosofia e da linguagem.

E, no entanto, resulta mais um dado, uma conquista da reflexão ocidental: a compreensão de que o infinito é um algo negativo. É aqui, precisamente, que D. Deschamps intervém, ou julga intervir, com a suprema originalidade, com a convicção, mil vezes repetida, de que foi ele o primeiro, o único, a fazer valer este avanço. O infinito é qualquer coisa de puramente negativo. Que significa este termo? Significa que é lugar de referência extremo, que não está ali porque dependa de alguma coisa, não se estabelece por meio de – por meio de uma relação, ou de comparação, não é o mais em suma. É aquilo – ó estranheza!- que nega tudo, inclusivé o próprio Deus (criador).

O infinito é, portanto, “un être par soi”. O nada, a indeterminação pura, é “un être par soi”. “L’attribut infini est de tous nos attributs négatifs le plus décidément négatif dans nos langues, et, conséquemment, le plus en usage, comme il l’est en effet » (p. 567 das « Œuvres Philosophiques »).

Ora bem, se nas ciências a categoria do infinito não entrara ainda, pelo menos na astronomia, com excepção das matemáticas (o infinitamente divisível), se o universo newtonniano não o comportava, com Dom Deschamps entra, mas para ser paradoxalmente negado. O universo não é infinito. O infinito não é o movimento, a direcção para que tende o devir. Não é um sempre mais. Não é o ímpeto de um espírito criador, progressivo. Deschamps está muito mais próximo de Spinoza do que de Hegel. A historicidade ainda não chegou, como paradigma, como atmosfera do tempo, o universo estático da astronomia limita os voos.

“La négation, considérée comme l’opposé de l’affirmation, façon dont nous la considérons communément sans y penser, n’est point la négation en rigueur, mais le moins possible d’affirmation. La négation en rigueur est uniquement Dieu considéré avant toute création ; et l’existence de Dieu, considéré ainsi, est l’objet de l’affirmation en rigueur, de même que l’existence de Dieu considéré comme créateur » (p. 570)

Nesta forma de pensar é notória a presença da “teologia negativa”, com a nuance, talvez capital, de que este Deus é vazio, é o próprio vazio. Mas é notória, sobretudo, a descolagem de Deschamps relativamente a Spinoza. Este Nada, este Infinito, não é espinosano.

 Este Deus não produz, nem é produto, nem causa, nem efeito, não é aristotélico nem tomista.

Este nada é um nada vazio de acontecimentos, mas rico de consequências. É um nada de possibilidades, na medida em que dele nenhuma coisa material pode extrair-se. Mas talvez seja rico de outras possibilidades, lógicas e morais. Talvez intervenha na história dos homens.

 Uma simples palavra que está e sempre esteve na boca dos homens. Que demonstra a veracidade da crença segundo a qual os seres “sont tirées du néant”. E fortalece a certeza, ou, pelo menos, a vontade, de que a verdadeira metafísica reúne não apenas os sistemas contrários, mas até mesmo os contraditórios. A verdade metafísica é, evidentemente, a do próprio Autor. Esta vontade de sistema, de congregar todos os sistemas num só sistema, eis o que caracteriza o monge de Poitiers. Contudo, o que parece puro ecletismo, não o é de modo algum.

  Deus, considerado antes de toda criatura, é a negação de tudo o que ele não é. Estratégia para “salvar” Deus? A pureza, a distanciação, o não compromisso da divindade para com tudo o que sucede de natural e de social? O Deus “ignotus” de Pascal, levado ao extremo? Como poderia Pascal amar um Deus assim, tão vazio? Aparentemente mais inútil que o Deus “Arquitecto” que logo abandonou a sua obra? Este Deus “negativo” de Dom Deschamps não é “religioso”, embora seja resultado de uma insólita teologia. Nem criador, nem juiz, nem mero observador. Não é nada e ele pretende que seja tudo. Será Ele, então, operacional no sistema?

 

“a minha lógica, que por si só constitui a minha metafísica” (p.573)

 

    Deus não criador e deus criador constituem a contradição. A única. Na natureza e no mundo dos homens não existem contradições, somente contrários, termos colectivos gerais opostos, começo e fim, causa e efeito, bem e mal. “Il n’y a de contradiction qu’entre l’être sans rapport et les êtres par rapport. Tout ce qu’on nomme d’ailleurs contradiction n’est que contrariété seule, souffre plus ou moins, depuis un contraire absolu jusqu’à son contraire absolu, deux extrêmes qui ne sont jamais, sous quelque aspect qu’ils se présentent que le plus et le moins absolus ; plus et moins qui ne sont qu’un, comme on le verra, et qui n’étant qu’un, font qu’il est égal de dire en général des choses qu’ils renferment qu’elles sont plus ou moins les mêmes ou plus ou moins contraires, sous quelque aspect qu’on les envisage. Mais ce qu’il est égal de dire en général de ces choses ne l’est plus en particulier, parce que cela dépend alors du plus ou moins de rapport, de ressemblance, d’égalité, qui paraît entre elles. » (p.575, n.a)

 

O particular não pode contradizer outro particular, as partes de uma totalidade não se contradizem entre si; chocam-se, opõem-se, mas interligam-se. A forma de movimento mais geral, isto é, a forma mais metafísica de conceber o movimento, é encará-lo como uno, alfa e oméga, mais ou menos. Somente a totalidade é perfeita. Que “apetite” é este que conduz as coisas do menos ao mais? Tendência natural, tendência moral? Desejo de igualdade?

Não alvitravam alguns escolásticos que entre Deus e o Mundo não existe oposição, simples diferença, mas contradição? Naturezas absolutamente contraditórias.

Não se tem dito, não é costume dizer-se, que o mundo é a soma de contrários, da beleza e da disformidade, da ordem e da desordem, da união e da desunião? “ que “longe de se negarem, se afirmam reciprocamente, pois que eles [esses resultados] só podem existir uns pelos outros”?

 

O Mundo é composto de extremos absolutamente contrários. Os dois extremos absolutos que são “o mais” e o “menos”, que se tocam “ao ponto de penetrarem um no outro e de não serem senão um”. A unidade do mundo, a Matéria é una.

Do homem mais sábio só pode dizer-se que é o menos louco. Da morte que é o menos da vida, não a sua negação, mas ela própria reduzida ao mínimo, ou a outra forma. A luz e as trevas só a vê ou não vê, quem tiver olhos. Relativa também é a inteligência, que se observa nos animais e nos humanos, e mais nestes do que naqueles; mas jamais se pode atribuir, como se tem feito, ao Mundo, ao Deus criador, à natureza inteira, Atributos humanos que os humanos atribuíram erradamente a Deus e aos anjos que eles mesmos fizeram à sua imagem. O mesmo que fizeram com a liberdade, previsão, providência, sabedoria, bondade, justiça, misericórdia.

As coisas apresentam-se mais ou menos finitas por comparação com outras coisas.

De modo que Deus criador ( a natureza) é um termo colectivo que exprime todos os fins, e melhor seria que o nomeássemos, em vez de mais absoluto, o “meio” absoluto. Pura lógica que não desdenha a de Aristóteles. A Natureza não é um dos extremos, mas ambos, é o meio absoluto entre os dois extremos. A unidade. A igualdade. Summus, medius et ultimus.

«  Ce milieu est notre commun centre, notre véritable Archétype, et la tendance que nous avons vers lui, et la relation que nous avons à lui, tendance et relation qui ne sont autre chose que nous, sont le fondement métaphysique de toute religion. »(p. 182)

 

   É imperioso observar em tudo um justo meio. Deschamps adopta Aristóteles e a escolástica. Elogio da “mediocridade”. O meio mais seguro para se ser feliz.

 

Toda aventura intelectual de Dom Deschamps pode-se concentrar nisto : recusa de qualquer tentação antropomorfista; crítica do materialismo inconsequente, em defesa de uma metafísica, sem a qual não há triunfo sobre os adversários(“pensar em grande”, como ele escreve); crítica de Spinoza, segundo a versão corrente protagonizada por P. Bayle, classificada como “panteísmo”. Dom Deschamps enfrenta ousadamente as dificuldades do sistema de Spinoza. Como se deduz a existência dos seres concretos da Substância única? Ou seja, como articular os modos com os atributos; e como interpretar os dois atributos, captáveis pelo homem, natura naturans e natura naturata? A questão do “infinito” e do “eterno” em ligação com a “duração” e a “extensão”, pertence ao mesmo quadro.

Spinoza não satisfazia. Mas o “grande todo” de Mirabeau (d’Holbach) ainda menos. Este materialista deitara fora a metafísica, ou utilizava-a de modo inconsciente, como todo o mundo fazia. Se os “philosophes” perseguiam a herança de Spinoza, especialmente os materialistas, adoptando caminhos errados que só pareciam fortalecer os adversários (pensava nas “derrotas” de La Mettrie e de Helvétius), tratava-se então de “regressar” a Spinoza. Ultrapassando-o. Corrigindo-o . Vencendo o dilema que Bayle havia formulado. Abandonando o panteísmo, reformulando o imanentismo. O problema do “Tout” era crucial, na época, e Deschamps assim o entendeu. Isto é, era crucial, na batalha das ideias, esclarecer a categoria de substância. A noção de “Deus” apresentava-se como correlativa. Um “ateísmo esclarecido”, como ele escreve. Defender-se da acusação de “spinoziste”, de que foi alvo pela generalidade dos interlocutores, não se apresentava apenas como uma questão de sobrevivência, mas de algo mais sincero e filosófico : tratava-se de corrigir Spinoza. Daí o teor e a intenção da “Réfutation”. Seguindo a leitura de Bayle, Dom Deschamps interpela Spinoza no lado mais “frágil”: uma substância única não pode dar conta das “modificações”, isto é, da existência das coisas e dos seres; tal substância não pode ser única e simultaneamente “modificada”. Intemporal e simultaneamente finita, durável, extensa. Este é que é o problema crucial. E é-o para Deschamps, como o foi para Spinoza, como o foi para toda filosofia de antes e depois. Era-o para o materialismo do século, como o foi mais tarde. É a essa questão que Hegel irá tentar dar resposta. Desse nó eclodem as categorias polares de Contradição e Identidade, do Ser determinado e do Nada. Encontramos o beneditino de Saumur no eixo da mais alta e excelente filosofia. Evidentemente que não foi o único no seu tempo, nem, provavelmente, o melhor. Evidentemente que estiveram também imersos nos mesmos problemas axiais Denis Diderot, D’Alembert, Robinet, d’Holbach, e tantos mais. Contudo, de todos estes, parece-nos ter sido Dom Deschamps aquele que mais esforçada e intencionalmente desejou perseguir na peugada de Spinoza (insistimos: daquilo que ele interpretava do pensamento de Spinoza). E se enfrentou hostilidades ou simplesmente incompreensões amigáveis, tal facto deve-se a diversas razões: não haver publicado o seu sistema; lutar contra a corrente; não possuir a envergadura do Mestre; extrair do seu sistema, como dedução lógico-especulativa, uma verdade universal, eterna e absoluta, consubstanciada numa utopia social radical. Foram estas razões que nos alertaram, que despertaram o nosso interesse. Admiradores como somos, nós que escrevemos estas linhas, do pensamento, dos textos e da vida de Spinoza, fomos conduzidos ao estudo de Dom Deschamps. O seu sistema não teve sorte alguma, não deixou discípulos, nem influenciou os destinos da filosofia ocidental. Não podemos impô-lo como um filósofo maior, nem julgamos que o haja sido. E, no entanto, desejamos traze-lo para a história da filosofia moderna. Contribuir apenas, à escala modesta do nosso país, porque os nossos colegas franceses e russos já o fizeram, desde Émile Beaussire que o desenterrou do pó e do esquecimento, pssando Jean Thomas e Franco Venturi, a emérita investigadora russa Elena D. Zajceva, e muitos mais que se lhes seguiram.

 

Em capítulos posteriores, iremos confrontar Dom Deschamps com vários filósofos do seu tempo, Jean-Baptiste Robinet, Diderot, d’Holbach, por exemplo. Tentaremos não elidir a presença de Spinoza. Alguns destes foram interlocutores de Deschamps que ele escolheu e privilegiou.

 

 

“Spinosiste, s. M. (Gram.), sectateur de la philosophie de Spinosa. Il ne faut pas confondre les spinosistes anciens avec les spinosistes modernes. Le principe général de ceux-ci, c’est que la matière est sensible, ce qu’ils démontrent par le développement de l’œuf, corps inerte, qui, par le seul instrument de la chaleur graduée, passe à l’état d’être sentant et vivant, et par l’accroissement de tout animal qui, dans son principe, n’est qu’un point, et qui, par l’assimilation nutritive des plantes, en un mot, de toutes les substances qui servent à la nutrition, devient un grands corps sentant et vivant dans un grand espace. De là ils concluent qu’il n’y a que la matière, et qu’elle suffit pour tout expliquer ; du reste, ils suivent l’ancien spinosisme dans toutes ses conséquences. », Encyclopédie.

 

Este artigo, da pena de Diderot, é exemplar a todos os títulos e, por isso, tem sido glosado de muitos modos. Foi, a nosso ver, fonte de muitos equívocos, e talvez ainda o seja. Devemos a Paul Vernière, sobretudo a ele, a clarificação dos contornos mais verdadeiros da presença de Spinoza no século dezoito francês. Muita água correu debaixo das pontes, após o seu monumental estudo pioneiro da década de cinquenta do século vinte. Hoje possuímos algumas certezas e, ao mesmo tempo, muitas dúvidas ou lapsos por preencher.

Do artigo de Diderot podemos extrair as seguintes conclusões: Primeira – que ele se declara explicitamente espinosista e estende a classificação a toda a melhor filosofia : materialista e científica. Segunda – distingue os antigos dos modernos espinosistas conforme abraçam as novas ideias sobre a Vida, ou seja, sobre a matéria viva. Em meados do século esta afirmação é absolutamente relevante, tanto mais porque é feita pelo organizador e animador da Enciclopédia, conhecedor do acervo e do debate das ideias do seu tempo.

 Claro que não é apenas a concepção de que a matéria é sensível, que distingue o pensamento de Diderot das teses de outros materialistas. Censura, por exemplo, as teses de Helvétius acerca da moral, da primeira obra deste; e as teses “fatalistas” de d’Holbach. Não há, em rigor, um materialismo, mas vários. Diderot percebeu muito bem que Dom Deschamps também o era; não logo de início, mas, sobretudo, quando conversaram longamente em 1769. Deixou-se entusiasmar pela sua utopia ousada. A verdade é que, todavia, nos textos de Diderot, posteriores a esta conversa, não se detecta influência directa de Deschamps. E isto é interessante, independentemente do valor maior ou menor do beneditino. Revela, a nosso ver, que o plano metafísico no qual Deschamps se move, não é o mesmo em que se movimenta Diderot. E isto significa que o quadro categorial e argumentativo do próprio Spinoza ( da Ética, por exemplo), não interessa mais a Diderot? A substância única, os atributos e os modos? Tal conclusão seria precipitada e excessiva. O método não é já o mesmo, a categoria de “matéria” é “modernizada”, mas o monismo imanentista está lá. O essencial permanece. Certamente aquilo que Diderot não acompanha são as teses de Deschamps sobre os dois modos de encarar o Todo, Le Tout e Rien (que equivale ao Tout). Seja como for, Diderot não voltará a reunir-se a Dom Deschamps, que, entretanto, no mesmo ano em que discutira tête-à-tête com Diderot, faz publicar as suas Lettres sur l’esprit du siècle, nas quais se lê um ataque duro, e até aparentemente dilatório, aos enciclopedistas.

O espinosismo do beneditino não parece ter escapado ao fino e atento leitor de quase tudo que se escrevia então, e que foi Diderot. De resto, a poucos escapou, como se depreende do documento assinado pelo real censor e pelo conteúdo das cartas trocadas com vários filósofos, assim como dos diálogos passados a escrito com os mesmos ou outros. Aquilo que parecia incomodar, senão mesmo repugnar, a muitos, seria o recorte escolástico da construção sistemática do monge de Saumur. Algo que se prendia sobretudo com o estilo, e menos com o espinosismo latente. A somar a isto, a noção de Rien apresentava-se claramente inaceitável. Ou seja, aquilo que mais atraía a atenção parecia ser o espinosismo, e aquilo que mais provocava manifestas dúvidas, sorrisos com pouca ou nenhuma complacência, havia de ser as teses originais de Dom Deschamps.

“Le système que vous y énoncez est si inconcevable et promet tant de choses que je ne sais qu’en penser. Si j’avais à rendre l’idée confuse que j’en conçois par quelque chose de connu, je le rapporterais à celui de Spinoza ; mais s’il découlait quelque morale de celui-ci, elle était purement spéculative, alors qu’il paraît que le vôtre a des lois de politique, ce qui suppose à ces lois quelque sanction. », escreve-lhe Rousseau ; assunto que iremos desenvolver em capítulo próprio.

D’Alembert, que se coloca quase nos antípodas das opiniões de Jean-Jacques, escreve a Voltaire, em 1769, o seguinte, opinando sobre o beneditino: “ Il me semble que sa manière de philosopher tend à ramener les idées des scotistes sur la distinction formelle, l’univers a parte rei et autres opinions semblables que la saine philosophie a proscrites. « 

Dom Deschamps segue na peugada de Spinoza quando afirma a existência de um ser metafísico, le Tout, ser colectivo, o geral das generalidades, summa lógica das coisas físicas. É o Deus sive natura de Spinoza. Universo que “on ne peut que la concevoir et non pas le voir” ( Précis en quatre thèses, 2ª tese). Aos empiristas, como d’Alembert, não poderia ser simpática e defensável a tese que garante a existência de um conceito genérico, um universal. Então porque se esforça Deschamps, e isso é visível na redundância e na insistência que utiliza nos seus escritos, em fazer distinguir esse “Deus positivo” relativamente às coisas físicas, ou seja, relativamente aos “modos” de Spinoza? Porque conhecia perfeitamente a crítica de Bayle, respeitada por muitos, e a classificação subsequente de “panteísta” atribuída. Le Tout é “um ser metafísico”, mas existe, repete incansavelmente Dom Deschamps.

 O nosso Autor lança ininterruptamente aos seus adversários, denotando uma convicção a toda a prova, não somente “um” Todo – le Tout – mas um “outro” : o Todo imaterial, o “não” que nega o “sim”. E porquê? Certamente para evitar as críticas a que foi sujeito Spinoza, e o espinosismo em geral. Para evitar o panteísmo e o “ateísmo” que colava à herança de Spinoza. Daí a “Refutação” que começámos por interpretar.

 Se Dom Deschamps é um neo-espinosista, questão que tentaremos deslindar, sê-lo-á não como um mero eco redundante, mas como um inteligente corrector. Melhorou o próprio Spinoza? Provavelmente que não, contudo tal conclusão levantaria questões de valor que em filosofia são muito delicadas. O que importa, por agora, é que Dom Deschamps manifesta uma clara intenção de adaptar ao seu tempo o “núcleo duro” do sistema de Spinoza. Ou aquilo que ele tomava como tal. A correcção a realizar, sobre o Deus sive natura de Spinoza, aplicou-a ele na fórmula dos dois atributos: natura naturans e natura naturata. Segundo Dom Deschamps, o Ser composto (cheio, material, positivo), o universo, a natureza, deve converter-se, per mentem, num Ser abstracto, imaterial portanto, que não se reduza às matérias, não se confunda com as coisas temporais, “liberto” de qualquer panteísmo ou materialismo grosseiro e ingénuo, o qual se identifica, por isso mesmo, com “Nada” (vazio, estéril, negativo). É este o esforço do beneditino, materialista, ateu. Em resposta às acusações de panteísmo e de ateísmo sem uma moral, de que Spinoza fora e era ainda vítima. Dom Deschamps é um monista integral, visto que “Tout ou Rien” nada cria, e esse “Rien” não significa outra coisa senão essa reiterada e intencional vontade de afirmar que nada mais existe de produtivo ou criador para além da natureza. Outra coisa será saber-se se este “materialismo” que postula um ser “en soi et par soi”, imaterial, é ou não um puro idealismo. Veremos isso, tendo em conta que materialismo algum era imune a qualquer forma de idealismo – e deixamos, por ora, tais classificações – assim como não poucos idealismos procuraram harmonizar-se com uma ou outra forma de materialismo.

 De resto, o texto da Refutação, nas suas duas versões, foi, como tudo indica, escrito a pedido, directo, do marquês de Voyer, fosse por incómodo fosse por preocupação para com o seu amigo, com a finalidade de separar as águas, Dom Deschamps/Spinoza (cf. Beaussire, carta de D. Deschamps de 1 de Abril de 1766 dirigida ao marquês). “ Le Dieu de l’Éthique est l’indéterminé par excellence; il exclut toute détermination et par conséquent toute expression positive, comme tendant à limiter sa substance infinie et cependant il se trouve doué d’une infinité d’attributs infiniment modifiés…Cette infinité d’attributs se réduit à deux attributs distincts et parfaitement déterminés : la pensée et l’étendue. Quant à ces modes qui leur sont prêtés, ils ne présentent qu’une alliance de mots inacceptable…Ce sont d’ailleurs des intermédiaires inutiles entre la substance infinie et les choses finies dont il faut toujours en définitive expliquer l’existence. », escreveu Beaussire na introdução que prepara a primeira edição dos textos ( parte) de Dom Deschamps. Pierre Bayle revisitado. Cremos, aliás, que esta é, sempre terá sido e será ainda, a crítica mais costumeira, porque contundente a seu modo, a toda a forma de materialismo filosófico integral. O que importa aqui ressalvar é a resposta de Deschamps. Não é a substância infinita (e única, por isso) que cria ou se desdobra nos modos, admitindo sem reservas a crítica de Bayle. Não pode ser, garante o beneditino. Eis a razão do subtítulo da Réfutation. Eis o calcanhar-de-Aquiles, segundo o costume, do sistema de Spinoza. Aquilo a que Hegel atribuirá a célebre acusação de ausência absoluta de “Subjectividade”, no sistema de Spinoza. Cinquenta anos antes deste, Dom Deschamps procura corrigir Spinoza, corrigi-lo nesse laço falhado, como se considerava, entre a Substância e a vida empírica. E tentará corrigi-lo não pela senda que anteciparia as teses de Hegel, mas acentuando o pendor “abstracto” do sistema, multiplicando o um por três. Profundamente marcado pela tese escolástica da natureza trinitária de Deus, refuta esta tese conservando, porém, a sua estrutura contraditória. Defendo, no entanto, que a Substância formulada por Dom Deschamps não é realmente composta de duas. De resto, tanto a definição de Substãncia com não comporta tal coisa, nem Deschamps a admite em boa verdade. Ùnica, absoluta, infinita, somente Tout; o universo é relativo. Pois então o que é este? É ou não um Ser? É, sem dúvida, e ele afirma-o insistentemente. Que ligação tem, pois, com Tout? Ligação lógica, puramente dedutiva. A noção primeira admite ainda uma outra, mais geral. Nesta senda, que fazemos? Abstraímos “tudo”, esvaziamos o Todo, deixamo-lo “apenas” com o intemporal infinito. A equivalência : eternidade-infinito. Que significam estes lances? Significam que Dom Deschamps, e Beaussire entendeu perfeitamente, trabalhou no interior dos atributos de Spinoza. A natura naturata traduz-se por universo, matéria, le Tout (não os modos, as coisas físicas particulares); a natura naturans traduz-se por Tout (ou Rien). Spinoza não pretendeu nunca que a natura naturans “criasse” a natura naturata, menos ainda, que um “Espírito” produzisse a “Matéria”. Uma única substância é dotada e capaz de produzir continuamente, por imanência, os dois actos, o pensamento e a extensão. Infinitos atributos, deles somente dois são inteligíveis para o homem. Que diz Dom Deschamps ? “ Mais quelle vérité plus vérité que celle de l’existence de l’être nommé l’univers ? » ( Précis en quatre Thèses, Œuvres Philosophiques,p.122). « Le Tout universel, qui est l’être un, deviendra l’être unique, sous un autre point de vue » (p.125). « Le métaphysique est ce qui est général de toute généralité, ce qui est d’une autre nature (…) c’est l’être relatif appelé l’univers, le monde, la nature, la matière » (p.129). « Le Tout universel, seul être, seul principe, seule vérité métaphysique(…) », p. 131. « Tout et Le Tout sont les deux mots de l’énigme de l’Existence, mots que le cri de la vérité a distingués en les mettant dans notre langage » (p.133) « Les êtres sont dans l’être, dans le fini, dans le temps, dans le présent ; l’être, ou Le Tout, le fini, le temps, le présent, est dans l’infini, dans l’éternité. » (p.134). A proposta de Dom Deschamps é seguramente esta : coloquemo-nos na perspectiva, na linha de visão, das coisas particulares, do aparecimento e desaparecimento, do movimento aparentemente desordenado das coisas que impressionam a nossa sensibilidade, e havemos de admitir que existe necessariamente um agregado, uma totalidade ordenada, um sentido: é Le Tout. Situemo-nos mais alto, numa espécie de suprametafísica, e descobriremos que aquilo que verdadeiramente permanece, em si e para si, é a Existência, contendo tudo, a temporalidade e a eternidade, a vida nos seus dois aspectos contraditórios: é tudo e não é nada. Que vale mil anos para a eternidade? Que valem mil coisas extensas comparadas com o infinito? Que vale a glória ou qualquer outra paixão? Muito pouco, ou coisíssima nenhuma. Não existe um Deus paternal, que guarde e aguarde pelas nossas almas. Não existe sequer “alma”. Deste modo, a verdade mais verdadeira, suprema e absoluta, é a Existência; podemos encará-la sob dois pontos de vista : como a natureza e como o Nada. A Existência apresenta-se através de dois pontos de vista, inseparáveis, apetece dizer : “paralelos” : Le Tout e Tout.  Se a encararmos sob o ponto de vista de Le Tout, é o universo material; sob o segundo ponto de vista, é o nada. O infinito, a eternidade, só podem equivaler ao Nada. Se fossem esta ou aquela coisa, sofriam a mesma sorte de qualquer coisa determinada. O Todo não pode ser isto ou aquilo, esta ou aquela determinação concreta. Dom Deschamps começa por encher a totalidade para, em seguida, esvaziá-la. Em boa verdade tudo existe, tanto o que a sensibilidade nos oferece, como a totalidade alcançada pelo Entendimento. Mas as coisas são, ou existem, mais ou menos. A totalidade existe mais do que uma simples árvore da minha rua. É uma questão de qualidade, de sentido. De universalidade. Somente o universal é verdadeiro. Atribuir sentido à nossa existência comum.

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

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