quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

A Ideia de Liberdade

 

   Uma certa ideia de Liberdade

 

      Somos todos devedores do pensamento de G. W-F. Hegel. Refiro-me particularmente à Europa. Os britânicos, talvez porque não tiveram uma 'Revolução Francesa' nem um Iluminismo concordante com a Ilustração francesa, não receberam o impacto da Teoria hegeliana da História; ainda assim, o filósofo germânico chegou até eles. A poderosa construção mental de Hegel, a mais poderosa depois de Bento Espinosa (seu Mestre) e indiscutivelmente mais influente que a do seu precursor I. Kant, é, aparentemente, a mais fácil de refutar e, porém, a mais difícil. Parece fácil por se apresentar coesa em Sistema, a mais difícil precisamente por esse facto.

 Trago este evento à memória por causa das comemorações das chamadas «Invasões Francesas». Hegel foi o espírito que melhor interpretou as convulsões da sua época e que melhor pressentiu a nova época cujos sintomas diagnosticou. Se colocarmos o seu pensamento especulativo em paralelo com os factos, relatados por exemplo pelo historiador português, nosso contemporâneo, José Tengarrinha, sentimos ao mesmo tempo (dizendo melhor: em dois tempos) o ritmo veloz dos acontecimentos que se sucederam à Revolução Francesa, isto é, a contra-revolução, a dominação napoleónica, a política de alianças, os planos geoestratégicos, o confronto mortal entre os impérios francês e britânico, e o ritmo mais lento, de longa duração, da análise hegeliana, a Consciência a conhecer-se a si mesma recuando para trás, exclamando: «Aqui cheguei após uma longa caminhada pela Liberdade». A Razão da História alcançava a mente humana, incarnada nos conceitos de um Indivíduo: Hegel. Os povos movem a História, indivíduos providenciais conduzem-nos, a Consciência utiliza-os para cumprir o mais elevado Interesse: a Liberdade.

 No entanto, quem ganhou a partida (esses jogos astuciosos da História) foram os ingleses, por quem Hegel não tinha especial admiração; quem acabou derrotado foi o «Espírito do Mundo» (Napoleão), o qual já havia defraudado as expectativas daqueles muitos que viram nele o exterminador dos feudalismos e das monarquias absolutas. Quem mais e melhor conduziu a «Guerra Santa» em Portugal contra os «jacobinos» foi a Igreja e os «senhorios», realizando os altos interesses imperialistas da Grã-Bretanha, aquela que mais ganhou afinal.

  No entanto, a «toupeira da História» escavava silenciosa o solo (tudo que parece sólido se desvanece no ar): as ideias liberais (isto é, de Liberdade) estavam semeadas, Napoleões já não eram indispensáveis. Virá 1820, a Revolução, em cuja vanguarda uma esquerda liberal não se revia nas reformas centralizadoras napoleónicas, mas, antes, nos ideais – a repor- da Revolução Francesa, conjugados na tradição portuguesa das autonomias municipais. É claro que não foi vitória definitiva, contra-revoluções suceder-se-iam e uma sangrenta guerra civil. É surpreendente a nossa ignorância ou esquecimento daquela primeira metade do século dezanove, da sucessão de revoluções (algumas bem radicais) e contra-revoluções, da enormidade de vítimas tanto durante as chamadas «Invasões francesas» como no decurso dos acontecimentos posteriores, com destaque para a sangrenta guerra civil (poucos povos europeus sofreram no seu solo nos últimos dois séculos guerras civis tão violentas!).

  Voltemos ao filósofo Hegel, ou à Filosofia. Para concluir que o podemos ler de duas maneiras antagónicas: tudo (quase) que ele observou e anteviu, se cumpriu: eliminámos o feudalismo, introduzimos boa parte do Código Civil napoleónico (talvez o melhor resultado da missão história de Bonaparte, segundo Hegel) e, mais tarde, um Estado centralizador – em suma: uma certa ideia de Liberdade realizou-se (na subjectividade – que tanta importância assumia para o filósofo- e no mundo objectivo). Ou, pelo contrário, as contra-revoluções desfiguraram os ideais, os «povos» não o eram em rigor, mas «classes sociais», as dominantes apropriaram-se das propriedades materiais e simbólicas, a monarquia somente faleceu a bem dizer em 1910, a República faliu na infância, e durante quase cinco décadas reinou um «indivíduo providencial» incarnado na figura mais sinistra da nossa longa História...

As voltas que o mundo dá. Acontecimentos singulares, imprevistos, acasos? Ou o «destino histórico» de que falava, afinal, o próprio Hegel?

NOZES PIRES

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