Crítica da razão consensual (2ª parte)
Com a 1ª Parte do ensaio, com este título, que a VÉRTICE (nº110, 2003) teve a amabilidade de publicar, procurei atingir a noção ideológica de consenso através de um repertório de julgamentos que se prendem com a nossa época, tal como ela se apresenta segundo a minha perspectiva. Evidentemente que não recuso validade aos consensos, e julgo ser mesmo esse o propósito mais nobre do diálogo, embora sejam raros os diálogos sem relação de forças e de poder.
Coloco é muitas reservas ao pseudo-diálogo, isto é aquele que parece apresentar-se como entre iguais, quando, em boa verdade, na maioria dos casos, os interlocutores não são efectivamente iguais. Bastaria dar o exemplo do diálogo entre o operário e o capitalista, e de como ele decorre hoje em Portugal...Todavia, dar este exemplo pode apenas beneficiar aqueles que querem fazer crer que, apesar disto, existem formas de comunicação entre iguais. Nas dissimuladas, difusas e sinuosas formas de poder hoje instaladas, duvido profundamente desses consensos e dessas pretensas igualdades. De resto, penso até que, no limite, o direito, se falarmos em direito, devia ser desigual, visto que a chamada equidade apenas tem favorecido uma ideologia da qual o capitalismo retira toda a sua força. Com tretas e bolos se enganam os tolos.
Nesta 2ªParte é, sobretudo, o conceito de alienação que está na berlinda, conceito que alguns teóricos marxianos quiseram enviar para o lixo e, muitos mais que nem sequer querem parecê-lo, passam ao lado dele como vinha vindimada. E isto é bem curioso, pois que, dizendo-se eles tão devedores de M. Foucault e, este, de F. Nietzsche, é precisamente em ambos que eu encontro das mais inteligentes considerações sobre o fenómeno da alienação, especialmente no primeiro. Certamente que não é obrigatório ler Marx para toparmos com ele (a história da noção de alienação com significados que iam para além da expressão jurídica consagrada pelo direito romano, começa a sério na modernidade, a bem dizer, com Espinosa), tal como não foi preciso à Terra mover-se à volta do Sol até que viesse Galileu dizer-nos que era assim que sucedia. A verdade é que sucede, por via da ciência, um facto deveras curioso e singular : anteriormente a Nicolau Copérnico e a Galileu Galilei a humanidade ignorava em rigor que andava à volta do sol...O que incomoda alguns intelectuais de serviço, não é uma determinada noção de alienação em Heidegger (a tal existência inautêntica), para falar em um filósofo consensual, mas a raiz dela, e, principalmente, o que fazer com essa raiz. E é com isto que a racionalidade científica se prende: com a definição, por um lado, e a negação da negação, por outro.
Adagio sostenuto
Alienação – cessão de bens; mentis alienatio – ser atacado de alienação mental, dementia; alienado – passado a outrem, alienatus, insanus; alienar – transferir bens, emancipare. Juridicamente: cedência de um bem a outra pessoa.
Transferência para outro da autoridade soberana do homem sobre si mesmo (H. Grotius).
Socialização má (Rousseau), l’homme naturel/l’homme social, vontade geral/vontade particular, ideia central do Contrato Social.
Infelicidade da consciência separada de si (Hegel), Positivität, ideia central da Fenomenologia do Espírito.
Produtor separado do seu produto, trabalho como padecimento (Marx), fonte de relações sociais alienadas. Atitude de estranheza perante os resultados da sua própria actividade ou mesmo da própria actividade, em relação à natureza, a outros seres humanos; auto-alienação – em relação ao seu próprio ser. Seja na medida em que o homem é um ser natural, seja na medida em que é um ser eminentemente social, o homem vive alienado de si (Espinosa→Hegel→Feuerbach→Marx), mas enquanto ser histórico é capaz de autoconhecimento como ser eminentemente social. De uma maneira geral sempre que produz, aquilo que é produzido separa-se do seu autor, contudo é no capitalismo que a alienação se converte numa relação essencial, entre o operário que mais nada possui além da sua força de trabalho e o conjunto do modo de produção (instrumentos, controlo, produto, distribuição). Deste modo, o trabalho aliena o indivíduo, objectiva e subjectivamente convertido em mercadoria, de todas as suas capacidades, aliena-o da sua substância social e da comunidade, do seu corpo, da sua vida mental, da sua vida humana, ou seja: desumanização, fragmentação dos agrupamentos sociais e atomização do indivíduo, competição entre os próprios produtores que se tornam estranhos uns aos outros, concorrência pelo próprio trabalho em si (e não apenas por esta ou aquela actividade particular). A alienação exprime-se na relação que ele estabelece com os outros homens. Modo inautêntico de ser do homem (Heidegger). Os efeitos da apropriação privada : exploração, dominação, divisão do trabalho, não substituem o conceito de alienação. Finalmente, estamos condenados à auto-alienação quando a actividade não é auto mas atribuída a outrem, a autocriação, a autoprodução ; quando a história não é conhecida como praxis humana; quando trabalhamos num mundo espesso e irremediável e não atuamos de maneira crítica e prática.
Categoria fundamental (filosófica, sociológica, psicológica), a alienação não é um estado meramente objectivo mas também subjectivo, que expressa a corrupção da actividade humana numa força independente, sujeito tornado passivo do processo social. Sendo um agente na realidade, converte-se, contudo, num paciente que sofre sem saber porquê e por quem. É agente porque é ele que de facto produz os bens, é paciente porque não controla nem o processo de produção e distribuição dos bens, nem produz e controla as ideias dominantes que legitimam o modo de produção e as suas finalidades. Justificam-nas, mas não as explicam. Ora, independentemente daqueles que possuem condições especializadas para lhe explicar a génese, é ele que tem nas mãos a chave da sua própria explicação. No acto de auto-explicação, inicia-se o contraprocesso da sua desalienação. Ao descobrir que não está só, que o “seu mal” não é nem natural nem exclusivamente pessoal, descobre a classe, primeiro como possibilidade objectiva/subjectiva, depois como realidade efectiva, ou seja, prática.
O operário sai do processo tal como nele entrou: sem mais nada, senão a sua força de trabalho; na realidade, nem a sua própria força de trabalho é já sua, mas do capitalista que a comprou; quando é excluído do processo de produção, pelo desemprego, a sua força de trabalho não lhe serve para coisa nenhuma, a menos que a venda por um preço abaixo do valor anterior; a excepção absoluta é quando engrossa o corpo alienado dos excluídos absolutamente. “Uma vez que, antes da sua entrada no processo, o seu trabalho próprio foi dele mesmo alienado, apropriado pelo capitalista e incorporado ao capital, ele objectiva-se durante o processo, constantemente, em produto estranho.[...]O próprio operário produz, portanto, constantemente, a riqueza objectiva como capital, um poder que lhe é alheio, que o domina e explora; e o capitalista produz também constantemente a força de trabalho como fonte subjectiva de riqueza, separada dos seus próprios meios de objectivação e de realização, abstracta existente na mera corporeidade do operário, em suma, o operário como assalariado.”. A alienação reproduz-se enquanto a reprodução ou perpetuação do operário “ é o sine qua non da produção capitalista”.
«Com o crescimento do capital cresce a diferença entre capital aplicado e capital consumido. Por outras palavras: cresce a massa de valor e a massa material dos meios de produção – como edifícios, tubos de drenagem, animais de trabalho, aparelhos de toda a espécie – que, durante períodos mais longos ou mais curtos, em processos de produção constantemente repetidos, funcionam[...]sem acrescentar valor ao produto», somente «prestam[...]o mesmo serviço grátis que as forças da natureza, água, vapor, ar, electricidade, etc. »; ora, «uma vez que o trabalho passado se mascara sempre de capital», «o peso sempre crescente do trabalho passado que coopera no processo vivo de trabalho sob a forma de meios de produção é atribuído à sua figura - alienada do próprio operário, cujo trabalho passado e não pago ela é -, à sua figura de capital» É no interior do sistema capitalista que «se consumam todos os métodos para a elevação da força produtiva social do trabalho à custa do operário individual; que todos os meios para o desenvolvimento da produção se convertem em meios de dominação e de exploração do produtor, estropiam o operário [tornando-o] um homem parcelar, desdignificam-no a um apêndice da máquina, aniquilam com o tormento do seu trabalho o conteúdo deste, alienam-lhe as potências espirituais do processo de trabalho na mesma medida em que a este último é incorporada a ciência como potência autónoma; deformam as condições no interior das quais ele trabalha, sujeitam-no durante o processo de trabalho ao despotismo mais mesquinhamente odioso, transformam o seu tempo de vida em tempo de trabalho, lançam-lhe mulher e filhos para debaixo da roda de Juggernaut do capital. Mas todos os métodos para a produção da mais-valia são simultaneamente métodos da acumulação e cada extensão da acumulação torna-se, inversamente, meio para o desenvolvimento daqueles métodos. Segue-se, portanto, que na medida em que o capital se acumula, a situação do operário- seja qual for a sua paga, alta ou baixa – tem de piorar.»
Pois bem: para que o processo de reprodução do capital, que é simultaneamente reprodução da proletarização (perpetuação e alargamento) e da alienação, não se interrompa nem diminua, e para enfrentar a lei do abaixamento relativo da taxa de lucro, o capitalismo foi descobrindo algumas soluções :
1. serviços sociais do Estado, pagos pelos impostos directos que recaem sobre os próprios trabalhadores (subtracção do salário), que assegurem a reprodução da força de trabalho, na saúde e na formação, e controlem os seus tempos livres (nos quais o operário reproduz a sua alienação). Esta tópica é de fundamental importância, dado que é um avanço civilizacional conquistado em muitos casos através de duras e poderosas lutas das organizações dos trabalhadores e que os reformistas apresentavam como sua bandeira. A compreensão da formação histórica dos Estados Providência, permite extrair um critério decisivo para se distinguir um projecto reformista de um projecto anticapitalista revolucionário. Abunda muita ignorância sobre os modos como se constituíram os regimes chamados “nórdicos”.
2. Dispositivos técnico-científicos cada vez mais sofisticados de mentalização, de obediência resignada ou agradecida, de escape. Intervém a Ideologia : se antes era a religião que con-sagrava os preceitos, depois passa ser o Direito. É o triunfo da Filosofia. O Estado-de-Direito impõe-se como figura consensual : fora dele não existe alternativa. Porém, neste modelo sagrado reina a maior das diversidades entre os Estados capitalistas, contradições internas e revisões sucessivas. Aquele que é crítico de determinados Estados de Direito, logo é classificado como adepto da Ditadura. Ora, é uma alternativa perfeitamente vazia de sentido, exemplarmente ideológica, isto é, autojustificativa e discriminatória. A crítica do Estado (e) do direito, por Marx, subverte os pseudo-axiomas e instaura, pela Economia Política científica, uma outra filosofia.
3. Estudos de mercado, publicidade, para transformar o produtor, directo ou indirecto, num “consciente” e “livre” comprador dos seus próprios produtos (pois que são os operários que os produzem), produz (recebe um salário), consome os produtos necessários à sua subsistência mais aqueles que as necessidades e os valores concomitantes da vida moderna, ou seja, capitalista, o obriga. Lava-lhe o cérebro, injecta-lhe os desejos, as intenções, o “livre arbítrio”. O capital reproduz-se alegremente. Descobre negócios : do entretenimento, da saúde e da juventude eternas, das férias. Quem paga é sempre o mesmo. Quem faz reproduzir o capital é sempre o mesmo. Acrescentando-se uma cada vez mais ampla variedade de profissões e de estratos sociais (publicitários, agentes de viagens, etc.). Para os pobres dos pobres, as diversas religiões opiáceas, que permitem um arremedo de sociabilidade e de catarse. Para os mais refinados, a cultura (toda ela já mercadoria, o artista, o produto, as redes).
4. Para a velhice, isto é para a força de trabalho esgotada e sem préstimo, reservam-se uns lares mais ou menos miseráveis (tudo pago pelos reprodutores do capital no decurso de uma vida de trabalho).
5. Ainda assim não é tudo: o sistema, tanto agora na sua fase ultra-liberal como sempre o foi, exclui em vida e na plenitude das forças massas crescentes de trabalhadores. Embora se fale hoje bastante de exclusão, e ela exprime de facto um horror económico contemporâneo (pela grandeza planetária, pelas mutações tecnológicas introduzidas, pela desumanidade, pelo desprezo cínico dos economistas), é sabido que no século dezanove o desemprego era crónico, tornando-se avassalador nas crises cíclicas de sobre-produção. No século dezasseis, na Inglaterra de Tomás More, enforcavam-se os vagabundos...camponeses espoliados e expulsos.
As mulheres entraram no circuito produção-consumo-reprodução. À força, pela penúria ou pela fome. Vieram com os antigo campesinato espoliado, forçado a viver em choldras nos bairros insalubres desde há cinco séculos, criadas, prostitutas, mendigas, operárias. Forçadas ou convencidas durante as duas guerras mundiais, ou seja, as guerras inter-imperialistas, enquanto os homens serviam de carne para canhão elas fabricavam estes. Com o taylorismo e o fordismo, com a publicidade, e com alguns novos valores que pareciam desligados do processo, converteram-se simultaneamente em consumidoras. A transformação do capitalismo em sistema completo de produção-consumo-reprodução, capturou-as na engrenagem. Finalmente livres : para vender tudo, excepto o que não se vende, que é hoje nada. Libérrimas de nome para comprar e consumir. Um novo milagre, uma nova dádiva dos céus para o capitalista : o endividamento do trabalhador-consumidor! Dinheiro vivo, circulação do capital. Livres para votar “segundo a sua consciência”, ou seja, a consciência modelada, dizemos hoje: formatada. O indivíduo alienado encarregou-se de fazer o frete ao capitalista: em lugar da repressão externa, aplicou à mulher a repressão interna: sobrecarregada de tarefas domésticas, não lhe sobra tempo para o sindicato. A ideologia dominante demorou a integrar estes novos valores, mas acabou por incluí-los no seu repertório, sobretudo a igreja. Quando o capitalista começou a precisar de mais consumo, isto é, de escoamento para evitar as crises e as falências, quando os nichos do mercado pareciam todos ocupados, descobriu novos negócios dirigidos especificamente para as mulheres; vai daí passa a fechar os olhos matreiros às exigências de novos valores domésticos e femininos, senão mesmo a aplaudi-los (pela mão dos seus ideólogos de serviço): a mulher tem direito à sua “realização pessoal, “existencial”, e outras tretas segundo os mais cínicos, mais tempo para ela, ou seja, mais consumo. O capitalismo libertou os escravos quando já não precisou deles, a mulher quando precisa delas. Porém, as escravaturas permanecem. Mas seria outra forma de cinismo esquecer o quão difícil foi para as mulheres conquistarem determinados direitos! Em Portugal foi necessário esperar pela revolução de Abril. Direitos sempre desprezados, sonegados, manipulados. Aquilo que pretendemos mostrar (lembrar, aliás, e muito modestamente) não é seguramente que o capitalismo ofereceu de mão beijada direitos e progressos civilizacionais de enorme alcance, mas compreender porque e como ele os integra e deles se aproveita, e em que condições concretas ele é obrigado a ceder perante a correlação de forças. Quereríamos mostrar que algumas transformações sociais verificadas sob a dominação capitalista, para além daquelas que se inserem nas revoluções liberais e no curso da luta de classes, são inegáveis momentos de emancipação. Desprezar o carácter revolucionante, relativamente, do capitalismo, é sinal de uma grave miopia. Por outro lado, decapitar as mudanças das suas causalidades e dos efeitos, não compreender que determinadas “libertações” vêm, a seu devido tempo, ao encontro de interesses do capitalismo, é uma miopia mais aguda ainda.
Mas eis que a proletarização aumenta, aumentam os ritmos, a competição, as trocas internacionais (isto é, os esbulhos), os investimentos em capital fixo (tecnologias, now-how) ; eis que a divisão do trabalho se complexifica, a publicidade, o marketing ; eis que os operários investem nos seus filhos para verem se eles saem da cêpa-torta :novos negócios à vista, novas necessidades do Capital, novos valores “democráticos”: atenção redobrada à formação dos novos e futuros trabalhadores... Democratização do ensino. Estado Providência a dedicar fatias (suficientes/ insuficientes) do seu (nosso) orçamento ao ensino. A sacrossanta produtividade em jogo. Nem mais. O resto é retórica (a deles). O desprezo pelo trabalho manual e pela lavoura é insidioso e o operário alienado cinde-se na angústia do filho não o copiar e a esperança de que não venha a ser como ele sempre foi. Na realidade, aquilo que os separa é a desigual relação entre a agricultura e a indústria-serviços, é a descapitalização da agricultura pelo grande capital ( o seu endividamento crónico à banca), é a espoliação dos resíduos resistentes da pequena agricultura, é a PAC e os monopólios agrícolas mundiais, é a OMC, é a apetência de salários mais elevados (ou simplesmente de dinheiro que o camponês familiar nem sequer tinha) dirigidos pela máquina de produzir consumidores até ao limite máximo. Este limite máximo é ajustado pelas crises, pela contradição excesso/procura. Não é a competição feroz entre os capitalistas, as suas contradições, que origina, no fundamental, a crise: é o alvo cobiçado pelo capitalista, isto é os próprios trabalhadores que lhes fornecem a principal fatia dos consumidores. O desejo do trabalhador, não alienado, é que o capitalista desapareça da face da terra; pelo contrário, o capitalista não sonha a utopia do desaparecimento dos trabalhadores...nem pelas máquinas!
Formatar as crianças desde a infância: actividades lúdicas para aprenderem profissões, aprenderem a consumir, logo no jardim-de-infância. Formatá-las, enquanto são a tal tábua-rasa de que falava Locke ( mal sabia o que dizia) através da televisão, as lendas tradicionais substituídas abruptamente por novos heróis consumidores, desejos infinitos de brinquedos intermináveis, porque interminável é a produção-reprodução do capital. Maquinismos, maquinações, imagens irresistíveis, crianças que exigem e amuam, pais que amoucam e amocham.
O ensino democrático permite tudo, menos o que não convém. Os manuais falam de tudo, menos do que realmente interessa. Os professores sabem tudo, menos aquilo que não sabem e deviam saber. A produtividade comanda os destinos, os critérios, os rankings. O insucesso é uma chatice, mas apenas relativa, porque vai abrindo caminho a justificação para um ensino desigualitário e elitista: uns para escolas de formação profissional acelerada, outros para destinações mais elevadas, de controlo dos primeiros. A meritocracia no seu esplendor, no esplendor da sua mentira. Pois não são os melhores que ocupam os melhores cargos? Tudo está conforme a vontade do Senhor, ou da genética. Taylorismo e fordismo nas escolas, somente quando é possível; quando não, outros estratagemas mais subtis e sedutores. Aqui, como em todo o lado, funciona o preceito ideológico, puramente retórico, de que todos somos iguais. Portanto, um ensino democrático é um ensino conforme uma abstracção: a igualdade. Pela lei, em teoria, realmente tudo se equivale. Também o dinheiro é um equivalente universal e , contudo, existe o capital... Vale a pena lutar pela reivindicação “burguesa” de um ensino democrático ? Claro que vale. Principalmente se não for burguesa. Hoje, mais do que nunca, mas para o defender dos projectos da direita reaccionária. O que significa que há de ser relativamente desigual : mais para os desfavorecidos socialmente. A “igualdade”, em termos abstractos, é uma noção que ludibria tanto como o Deus paternal, que é bem severo para os pobres.
Adagio un poco mosso
É tudo mau? De mal a pior? De modo algum: operários transformam-se em micro-empresários, constróem as suas moradias nas aldeias, conduzem automóveis, quando antes eles, ou os seus pais, andavam descalços com uma lancheira de caldo a caminho da fábrica, ou a cheirar à bosta dos bois. Os filhos frequentam a escolaridade obrigatória pública, fica o grosso pelo caminho, mas muitos acotovelam-se à entrada das universidades. E há sempre lojas de conveniência, e bens de consumo com fartura, às vezes saldos. A história, ou o que quer que seja, avança, e só não vê quem arrancou os olhos para ver melhor. Os valores mudam, e já não é com vinagre que se apanham as moscas.
Entretanto, o deus Janus tem duas faces, o frenesim consumista retrai-se, os salários congelam-se ou recuam, as dívidas disparam, as lojas fecham. O ciclo de reprodução do capital apanha uma valente gripe. Paciência: o sistema precisa de uma mortandade geral, mas controlada, uma espécie de sarampo, para crescer de novo, com mais centralização, mais monopolismo, mais desvalorização relativa do preço da força de trabalho, mais medo e obediência, mais Estado a auxiliar os aflitos oligopólios. Quando a crise aperta o capital dá coices. Nessas alturas toda a vigilância é pouca.
O Estado Providência ameaça bancarrota. Uma formidável solução para o justo preceito, de resto sempre velho e sempre novo, de “quem quer o bom, paga-o”. Saúde, ensino, lazeres, habitação, tudo. Na realidade, a bancarrota é mais um pretexto que outra coisa. O problema é sério mas foi o capitalista que o provocou. Tem aliados objectivos, muito moderados e progressistas, que lhe estendem a mão para corrigir os excessos dos gastos sociais.
O Estado Providência foi um excelente instrumento de regulação do capital, de investimento em grandes obras que os pobres capitalistas não podiam, ou não queriam, custear. A revolução bolchevique andava a incomodar fortemente, os operários agitavam-se e preparavam-se para arrombar as portas por todo o lado, “queremos trabalho, pão, saúde, ensino, habitação!”, os partidos comunistas tomavam o ferro nos dentes, e vai daí irrompem dois terríveis acontecimentos : a fúria terrorista e demagógica do nazi-fascismo para aniquilá-los de vez e permitir a centralização rápida do grande capital, e um Estado interveniente e regulador (daí serem anti-liberais), uma competição intercapitalista, entre estados pela posse dos mercados coloniais e dos mercados europeus; forçar a produtividade e a acumulação do capital, conter as crises de sobreprodução, a crise financeira e bolsista; na outra banda, uns Estados Unidos em quase colapso. A receita milagrosa de Keynes vem salvar o barco do naufrágio. Os trabalhadores desempregados e mortos de fome, agradecem, enquanto a banca lhes come as melhores terras e o petróleo começa a jorrar. Mas o que realmente acaba por vir mesmo a calhar, é a Segunda Guerra : derrota das principais potências capitalistas competidoras, impérios contra impérios, planos generosos norte-americanos, empréstimos, dívidas, encomendas, investimentos, um mar de rosas. O imperialismo liquida o imperialismo, como a crisálida metamorfoseia-se em linda borboleta. Não fosse a URSS e outros regimes semelhantes, e tudo seria manteiga em focinho de cão. Porém, não há volta que não se dê: permitiu a construção da fortaleza protectora dos novos senhores feudais, além Atlântico, uma formidável lavagem anticomunista ao cérebro universal, encomendas ao vasto complexo militar-industrial privado. Enfim, um novo surto de expansão que se prolongará várias décadas.
Em boa verdade, nem tudo foi perverso no Estado Providência: na Europa foi em grande parte arrancado a ferros pelos partidos de base operária, pelos sindicatos e constituiu um enorme progresso. A poderosa propriedade social que saiu da Segunda Guerra, os recuos dos partidos da direita reaccionária. Contudo, como em muitos casos os partidos comunistas se dividiram e enfraqueceram, quem geriu o Estado Providência foram sobretudo as sociais-democracias, ficando à mercê das oscilações da maior ou menor força operária destes partidos. A nova União Europeia rege-se pelo princípio de quanto menos social melhor. Fabrica-se uma panóplia de argumentos contra o Estado, para que este fique ainda mais sob o controlo, abençoando a privatização absoluta.
Após os primeiros abalos causados pelos movimentos independentistas, que foram mais ou menos prolongados e difíceis consoante a vontade autonomista destes e os perigos alarmantes de sovietização, o capital, de derrotado passa à ofensiva, organiza, financia, abate governos a tiro, corrompe, empresta, promete. Um a um, os nacionalistas da segunda ou terceira via, eclipsam-se, ou vendem-se ou cedem o lugar a outros que, entretanto, os decapitam. À euforia do fim do colonialismo, segue-se o início de um novo. Sempre para pior. A penetração rápida das relações capitalistas, a espoliação desenfreada, a proletarização forçada, a coca-cola trazendo à trela toda a caterva de bens de consumo. O índio da Amazónia, esfomeado, doente e triste, a lamber os beiços com a imagem de um hamburguer na loja; o africano a trucidar os irmãos por causa de uma mina de diamantes que nem sequer é dele ( dele é a metralhadora americana que lhe puseram nas mãos quando tinha quinze anos) ; pastores em África a produzirem rosas para exportação, delapidando o ambiente; um tuaregue a ver um reality-show pela televisão a pilhas no deserto; as crianças prostituídas do heróico Vietnam; os plantadores de coca em vez de arroz.
“Quais fossem as circunstâncias, um armamento suficiente deverá ser instalado afim de servir as funções de polícia internacional ; (...) uma nação desejosa ao mesmo tempo de assegurar o respeito por ela mesma e de fazer o bem às outras deve possuir uma força adequada para esta tarefa que ela sente ter-lhe sido destinada enquanto parte do dever mundial geral.(...) Um grande povo livre deve a si próprio e deve à humanidade inteira não deixar-se mergulhar na impotência diante das forças do Mal(...). Todo o país cujo povo se conduz bem pode contar com a nossa amizade calorosa. Se uma nação mostra que ela sabe como agir com eficácia e razoável decência nos negócios sociais e políticos, se ela mantêm a ordem e se paga as suas dívidas, ela não deve ter medo de uma intervenção dos Estados Unidos. Uma má conduta persistente, ou uma incapacidade que conduziria a um relaxamento geral dos laços da sociedade civilizada, pode, na América como em qualquer lugar, requerer em definitivo a intervenção de qualquer nação civilizada”. Quem disse isto foi o Sr. Theodore Roosevelt, em 1904, ao Congresso dos EUA. Sempre actuais estes chefes do mundo civilizado. Não é nas suas belas escolas que aprendem estas doutrinas?
O desmoronamento da União Soviética deixou-lhes o campo livre. Imparável fortalecimento das suas forças armadas, cada vez mais científicas, fruto da última revolução científico-técnica. Ultra-liberalismo espetado como uma lança triunfal no coração da URSS defunta, hegemonia financeira e tutela económica, assobiando para o lado a ver as máfias passar, abertura brutal dos seus mercados, fartai vilanagem! Sob o pretexto da “guerra contra o terrorismo”, os Estados Unidos caiem como abutres sobre a Ásia central, chegam à Geórgia. As três repúblicas do Báltico passam-se para a NATO, abocanham-se os países da Europa central da antiga hegemonia soviética, prepara-se, financia-se e provoca-se a guerra nos Balcãs. Sob uma bela cortina de palavras, e de lágrimas de crocodilo, que fizeram estremecer os corações delicados das grandes almas de muitos intelectuais.
Ao contrário do que afirmam os autores do livro “Império”, Hardt e Negri, os Estados-nação, os Estados-potências, não se vão esvaindo no céu pouco estrelado do novo espírito mundial hegeliano: a “mundialização depende ela também da potência militar-territorial de um poder coercitivo”, da “ capacidade estado-unidense de projectar a força militar à escala mundial” (R. Cox, 1992). Mais razão perderam os autores desse livro famoso, quando adveio o 11 de Setembro e a invasão do Iraque. E razão continua a tê-la V.I. Lénine, que redigiu o seu livrinho « para demonstrar toda a falsidade das concepções sociais-pacifistas e das suas esperanças numa “democracia mundial”». Não se esqueceu ele de que uma boa teoria do imperialismo deve ter em conta a localização do fenómeno no contexto da divisão do mundo em “países”... Resumindo-o:1. a exportação do capital lado a lado com a exportação de mercadorias ; 2. a produção e a distribuição passam a ser centralizadas por grandes trustes e cartéis; 3. os capitais bancário e industrial fundem-se; 4. as potências capitalistas dividem o mundo em esferas de influência; 5. divisão concluída, abre-se de novo a possibilidade de futuras confrontações intercapitalistas para redividir o mundo.
Presto agitato
Longe vão os protagonistas, tão perto estão as potências. E os Estados-Nação. A “globalização” é, às vezes, um manto diáfano com que se cobre a realidade efectiva. O “espírito mundial”, que continua a ser o Capital mundial, encarna-se no império norte-americano. Na verdade, não são as nações e as potências que conduzem a história, esta história, elas é que são conduzidas. Ontem a Inglaterra que Marx dissecou em O Capital, hoje os EUA
Entretanto, a Segunda Guerra mundial correu-lhes de feição (apesar da vitória dos soviéticos): encheram o planeta de bases militares. Ora as foram reduzindo, ora as foram aumentando: contam-se hoje aí por 44 países, no mínimo, para não contar com outras formas de presença. Alargam-se pela América Latina, a pretexto do plano Colômbia, fortificam-se no Afeganistão, Paquistão, Iraque, Ásia central, países árabes, Balcãs. As bases servem tanto objectivos militares como políticos e económicos, era o que faltava se assim não fosse! Abatidos os talibã, prepara-se a exploração de 6% das reservas petrolíferas e quase 40% das reservas de gás mundiais, do Afeganistão (sem esquecer as plantações de ópio). A cartografia da esfera imperial apresenta o domínio dos Estados Unidos e das potências aliadas. A expansão mundial da potência militar do Estado hegemónico do capitalismo mundial é uma parte integrante da mundialização económica do capitalismo. A História confere-lhes hoje esse papel, como conferiu à Inglaterra o papel pioneiro.
Marcha fúnebre : Adagio assai
Ruiu sem pavor um regime, uma potência mundial, e logo outros regimes idênticos se lhe seguiram. Vimos milhares de pessoas, muitos jovens, derrubarem um muro, apagarem numa hora uma fronteira de dezenas de anos. Antes de nos perguntarmos porque ruiu num dia, seria melhor perguntarmo-nos porque andava a ruir há tanto tempo.
Tentar entender as razões da queda constitui um dos maiores desafios à nova racionalidade que vem aí. Andávamos a interrogar-nos há muito tempo, mas ninguém pressentiu o dia nem o como.
“O Partido Comunista da União Soviética será a força guia e dirigente da sociedade soviética, o núcleo do seu sistema político e de todas as organizações estatais e sociais...O Partido Comunista determinará a perspectiva geral do desenvolvimento da sociedade e as linhas de política interna e externa da URSS, dirigirá a actividade criadora do povo soviético e dará um carácter planejado e científico à luta deste pela vitória do comunismo.”, rezava assim o artigo 6º da Constituição de 1977. Seguimos a citação, e pistas valiosas, adiantada no livro de Luís Fernandes, O Enigma do Socialismo Real.
O ano de 1977 foi ontem.
O Soviete Supremo reunia, reunia, e aclamava, numa espécie de teatro virtual.
Quem governava de facto era o Partido, que não era sujeito a qualquer controlo democrático. Alguns, mais crédulos, conservaram-se firmes na crença da superioridade da democracia soviética (ou qualquer outra que lhes parecesse não-capitalista). Outros, lamentavam os “desvios” do caminho traçado (nunca se soube muito bem a que caminho se referiam), e tanto classificaram Gorbachov de “traidor”, como poderiam tê-lo feito com Estáline. Enfim, o problema era moral, para eles, ou até do foro psiquiátrico. Depois disso já não surpreende que os mais cépticos (talvez outrora os mais crentes), lamentem a corrupção que o poder exerce, todo ele, e, portanto, há de concluir-se por força que é bem melhor permanecer na oposição...
Passando, de momento, por cima dos condicionalismos da revolução bolchevique (condição semi-periférica da Rússia), resumamos abreviadamente um conjunto de razões prováveis para o colapso :
1. Consequências dessa condição: aquilo que lhe permitiu uma revolução, trouxe-lhe, em contrapartida, profundos constrangimentos, que não estavam previstos na teoria de Marx.
2. O antagonismo do mundo capitalista: primeiro destruir o novo regime, depois miná-lo, contê-lo, fechá-lo. Estratégias concertadas proibitivas no comércio, nos empréstimos, nos investimentos. Escalada armamentista, de modo a obrigá-lo a gastar sempre mais e mais, a distorcer prioridades, a empolar despesas improdutivas.
3. Quanto mais cercado e ameaçado, mais o regime se fechava, numa lógica incontrolada. Quanto mais Partido e menos democracia real, mais o regime perdia legitimidade externa, mais trunfos oferecia à propaganda inimiga. Para não lembrar outra vez os crimes sem conta do período da ditadura de Estáline. Entretanto, nos Estados Unidos por exemplo, a repressão abatia-se implacável sobre as organizações sindicais e políticas dos operários, castigando a solidariedade com o novo regime. O medo, as mentiras, os ideólogos de serviço, semeavam a confusão no ocidente. O movimento comunista internacional foi falindo, o divórcio entre o ocidente e o Leste foi-se cavando. Regimes socialistas agridem-se militarmente, e bastaria isso para lançar a mais completa das confusões.
4. Enfraquecimento do poder real dos sovietes, ao mesmo tempo que enfraqueceu, num período crucial, o número da classe operária, provocando a necessidade de uma maior intervenção do Partido ; por consequência, fusão do Partido-Estado.
5. Culto da personalidade, manutenção de um estilo de liderança centrada nos secretários-gerais, propaganda idólatra de catecismo (que se articulava com a tipologia dos “heróis da produção”). Reconstrução da memória e da história, simplista, dogmática, retórica-triunfalista, falsificadora até à caricatura.
6. Apelo centrado nas motivações ideológicas (espirituais e não materiais), provocando em consequência suspeitas sobre o vizinho e sobre o camarada, deixando medrar em tal clima o dogmatismo, o carreirismo, a lisonja, a delação. Não poucas aldrabices sobre as contabilidades públicas e os resultados dos planos quinquenais.
7. Entre uma via na qual o trabalho cooperativo e autogestionário deveria assumir importância crescente (conforme os preceitos do socialismo a caminho do comunismo), e uma via de industrialização acelerada para competir com o exterior, a URSS optou pela segunda. O socialismo que deve começar no trabalho, no controlo democrático, na motivação que daí decorre, foi sendo substituído por uma qualquer coisa inclassificável. Entre a enorme massa camponesa e o proletariado industrial, o Estado ( e os planos quinquenais), oscilou, pendendo para um lado e para o outro, preferindo por fim pender mais para o lado do Partido. Enquanto a industrialização e os índices de produtividade aumentavam, aumentava a classe operária, mas não as formas do poder democrático desta.
8. O problema que se coloca é se o socialismo tem viabilidade económica. Aquele teve-a suficientemente para se aguentar quase um século, e nas piores condições. Porém, aquele socialismo não tinha, a prazo, viabilidade económica. Eles entenderam perfeitamente as dificuldades e os impasses (primeiro, porque não eram estúpidos; segundo, porque a literatura que produziam prova que procuravam soluções), mas o modelo possuía a sua própria lógica: ao corrigi-lo, temiam uma catástrofe. Basta referir as contradições seguintes (algumas das quais não são exclusivas daquele modelo, mas extensivas ao socialismo em geral) : entre a propriedade social e um mercado interno suficientemente livre para ser dinâmico e provocativo; entre a acumulação necessária e as expectativas da população; entre a produtividade e a distribuição dos rendimentos; entre o pleno emprego e a dissimulação e incúria; entre a plena eficácia dos serviços sociais do Estado e os níveis do PIB; nas trocas ( balança comercial e balança de pagamentos); no acesso ao mercado internacional de capitais; na integração nos mercados bolsistas; entre o progressivo nivelamento dos salários e uma desigualdade necessária, etc.
9. O socialismo pressupõe a permanência da mentalidade herdada das sociedades anteriores (o particularismo, o individualismo egoísta, o desprezo pelo que é público, a subserviência espertalhona em relação ao Estado, o desleixo se o ordenado estiver garantido). «O proletariado, assim, parece acometido de uma singular esquizofrenia no projecto socialista marxiano, dilacerado entre uma “personalidade” cooperativa, revolucionária e universal e outra egoísta, alienada e estreita.».
10. Por fim, em vez de um progressivo desaparecimento do Estado, substituído por instrumentos e hábitos cooperativos, autónomos e responsáveis ( leia-se O Estado e a Revolução, de Lénine), fortaleceu-se aquele, alienando-se, portanto, o cidadão (a tal alienação de que falava Marx na Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel). Como conciliar, porém, a democracia directa com a complexidade actual dos organismos do Estado? Aquela não provocaria ainda mais a “fragmentação de interesses individuais, locais e sectoriais”? O Estado não constituirá, ainda por muito tempo, a melhor mediação dos interesses, sendo que nessa mediação desenvolve-se o “interesse universal”?
11. O argumento de J. Elster segundo o qual «a antecipação racional dos custos da ruptura revolucionária levaria os trabalhadores a preferir uma estratégia reformista nos marcos do capitalismo» pertence àquelas teorias do óbvio, nas quais o que quer que seja “escolha racional” apriorística é mais uma consequência de factos à posteriori; de resto a dita “racionalidade” é em muito fabricada pela luta ideológica... São mais significativos os indicadores de opinião, atitude e decisão de voto, naquilo que evidenciam sobre as chamadas “camadas intermédias”, sobre os níveis de iliteracia e de isolamento, as expectativas em relação ao poder, etc. Agora, o que é necessário, quando determinados modelos de referência faliram, ou seja, quando a prova prática é mais que duvidosa, é demonstrar os benefícios do socialismo-comunismo, sem que nos acusem de que tal não passa de uma utopia. Muito embora o socialismo apenas se inicie realmente por meio de um poder efectivo (sem Poder político nãos se realizam políticas), não são de desprezar tanto os passos que dele nos aproximam, como aqueles que dele nos afastam.
Finale – Alegro ma no tropo
A ruína de regimes de “socialismo real” prende-se necessariamente com a grossa e sempre pendente questão do se saber o que se entende por sociedade comunista e, portanto, com as suas etapas de aproximação. Em boa verdade, até que nem se trata de “aproximação”, mas de construção, pois que a outra pressupõe uma meta, um ideal ; ora, todos os ideais, por definição, são inatingíveis.
Escreveu Marx a propósito do inclassificável Programa do Partido Operário Alemão (Programa de Gotha) :« Aquilo com que temos aqui a ver é com uma sociedade comunista, não como ela se desenvolveu a partir da sua própria base, mas, inversamente, tal como precisamente ela sai da sociedade capitalista;[uma sociedade comunista ], portanto, que, sob todos os aspectos – económicos, de costumes, espirituais -, ainda está carregada das marcas da velha sociedade, de cujo seio proveio.» E, mais à frente:« O direito nunca pode ser superior à configuração económica – e ao desenvolvimento da cultura por ela condicionado – da sociedade.
Numa fase superior da sociedade comunista, depois de ter desaparecido a servil subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, também a oposição entre trabalho espiritual e corporal ; depois de o trabalho se ter tornado, não só meio de vida, mas, ele próprio, a primeira necessidade vital; depois de, com o desenvolvimento omnilateral dos indivíduos, as suas forças produtivas terem também crescido e todas as fontes manantes da riqueza co-operativa jorrarem com abundância – só então o horizonte estreito do direito burguês poderá ser totalmente ultrapassado e a sociedade poderá inscrever na sua bandeira: De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades!»
Com tal perspectiva podemos alcançar uma racionalidade, uma inteligência reconfortante do mundo, que não é mais contemplativa desde logo mas desencadeia pelo contrário um conjunto de directivas para a acção, como disse Ernst Bloch ( O Princípio Esperança).
O sinal, a essência da realidade a construir, da sociedade comunista, não é tanto a farta e ininterrupta abundância, porque esta há de ser sempre relativa por força da evolução das necessidades e da escassez relativa de uma qualquer invenção, mas o desaparecimento das classes – usque ad finem. A alienação, como fenómeno objectivo/subjectivo, termina depois de um provavelmente longo processo de agonia.
Desaparecendo o Estado e o Direito correlativo, não apenas este que conhecemos agora, dominado pelo capitalismo, mas qualquer outro ainda que incomparavelmente menos mau, isto é, socialista, esvanece-se um poderoso e universal efeito da alienação, cuja fonte se encontra, porém e como vimos, noutro lado. É então que o direito há de ser desigual : discriminação positiva – a cada um conforme as suas necessidades.
O Estado, tal como tem sido até hoje nas sociedades de classes, é também um espaço da luta de classes, ou se se preferir, de aguda luta política. Luta interna, o mais das vezes, entre sectores diferentes da classe dos capitalistas. O Estado-Árbitro (do liberalismo do laisser faire, laissez passer, transita depressa para o fascismo) é uma farsa: quando o é, é no interesse dos poderosos que entre eles se esgadanham. Aquilo que certos teóricos da esquerda reformada (ou renovada?), desde a Itália a outros lugares, pretendem demonstrar é que o Estado de Direito actual, democrático e etc., transcendeu miraculosamente a “guerra civil entre classes”, provavelmente converteu-se num corpo espiritual, sem bexiga e sem fígado, planando como um balão na estratosfera. Com estas deambulações teóricas o que fazem é alimentar a alienação entre a “sociedade civil” e o Estado, que já o jovem Marx se encarregou de estigmatizar. Aquilo que um partido operário tem de fazer, e já o fez diversas vezes pela história adiante, é, senão tomar de uma vez todos os instrumentos com os quais o inimigo principal os domina, ir tomando-os peça a peça. Não para as preservar como coisa neutra, mas transformando-as de alto a baixo. Os cargos políticos, sejam eles quais forem, não servem exclusivamente para produzir obras materiais (ainda que essas obras possam ser diferentes das executadas por outra força política), mas também, e não sei se deva dizer sobretudo, esses homens e mulheres «lutam para alcançar os fins imediatos da classe operária, mas no movimento presente representam simultaneamente o futuro do movimento» ; «Numa palavra, por toda a parte os comunistas apoiam todo o movimento revolucionário contra as situações sociais e políticas existentes. Em todos estes movimentos, põem em relevo a questão da propriedade, seja qual for a forma mais ou menos desenvolvida que ela possa ter assumido, como a questão fundamental do movimento.» (Manifesto do Partido Comunista). A questão da propriedade (origem da apropriação, modos de posse e de controlo, de reprodução e de acumulação) é o núcleo central de qualquer actividade política, seja ela conservadora ou revolucionária. É a origem e a base ainda do Direito, seja ele qual for. A propriedade deriva sempre de uma qualquer forma de expropriação : também os revolucionários expropriam os expropriadores. Os efeitos da apropriação, quer a privada quer a social, repercutem-se necessariamente sobre a constituição das ideologias. Desenham o tipo de estrutura das relações sociais, e estas, embora resultem de um determinado modo de produção, interagem com ele. A imperativa defesa, nestes dias ameaçadores que correm, dos contratos colectivos contra os contratos individuais, pode ser uma luta nos marcos do direito burguês, mas prova lapidarmente que as classes existem e que se confrontam. Se os trabalhadores cederem nestes e noutros aspectos cruciais, é muito mais difícil convencê-los de que o socialismo-comunista é a alternativa que lhes convém. Caso contrário é a sobre-exploração e a alienação correspondente.
Conclusões:
Iniciámos este ensaio com o conceito de alienação. Tergiversámos certamente. A razão é que atribuo ao conceito uma ampla latitude. É um conceito rico, que atravessa ciências diversas e, seria bom que assim fosse, permitiria uni-las como uma ponte. Poder-se-ia até, na Filosofia, traçar uma linha condutora que remonta a Heráclito, mas, sobretudo, aos mais primevos materialistas.
O conceito, apesar da sua ascendência, tem origem na filosofia de Hegel e exprime o processo de objectivação-actualização do espírito num objecto, durante o qual o sujeito projecta a substância para fora dele próprio, convertendo o que é seu, seu produto, numa coisa estranha: “estranhização”, exteriorização. “Materializado” nesta forma coisificada, o espírito deixa de se reconhecer nela: é a alienação.
A interpretação de Marx contém uma polaridade de sentidos : a alienação caracteriza a situação concreta em que o trabalhador se converte em inimigo de si próprio. É negatividade pura, mas, na medida em que tem de ser suprimida, ela foi necessária no processo de libertação. De Feuerbach, Marx recebe a inspiração decisiva de inverter a análise, da Consciência para a situação concreta do indivíduo concreto. É nos Manuscritos de 1844 que Marx estuda a alienação na sua fonte : a do operário no sistema capitalista. Aqui a produção não visa a satisfação das necessidades sociais, mas o aumento do capital. Quanto mais produz, menos possui e mais é dominado pelo seu produto, que é, afinal, o próprio capital. No capitalismo desenvolvido, cada vez mais o produtor é excluído do controlo do trabalho. Tanto este é despersonalizado, mecânico, como tudo lhe escapa das mãos: o processo todo de produção e as teias infinitas do mercado. O operário converte-se numa mercadoria entre tudo o mais que em mercadorias se converte, embora a mercadoria-operário seja dotada de atributos especiais, que o capitalista não dispensa. Quanto mais se valorizam as coisas, menos se valoriza o ser humano. Mercadoria que necessita de outras mercadorias, de dinheiro portanto, o trabalhador mergulha ainda mais, até ao fundo, na dependência dos donos do dinheiro.
Da alienação económica nutrem-se outras variadas formas de alienação: do “cidadão” em relação ao Estado, do “crente” em relação à divindade, praticamente nada escapa, incluindo a família. No actual stress, de que tanto se fala, a alienação espreita.
Iniciando a análise da alienação ainda na juventude, Marx nunca abandonou o conceito, e já fizemos referência à sua presença em O Capital. Não abandona mas concretiza-o no quadro de um materialismo histórico e dialéctico mais maduro.
Importava, por fim, interpretar o conceito e o fenómeno que ele exprime, como esquecimento, pois que, na verdade, nesta estranheza degradante, funciona uma espécie de amnésia em relação à origem real das coisas e das ideias, da génese e dos verdadeiros actores. Alheados ou esquecidos, os indivíduos não se reconhecem nem a si mesmos nem à comunidade em que se inserem. Num cenário limite, deambulam sonâmbulos, a quem é dada a única liberdade de venerarem ídolos e feitiços. Na célebre Alegoria de Platão, os prisioneiros acreditam em sombras e simulacros; aqui, os “cidadãos” veneram meros reflexos fantásticos dos produtos do seu próprio trabalho, sem saberem que o são. Veneram, ou temem, obedecem ou respeitam, meras ficções. Sobre os famosos “direitos humanos”, por exemplo. Meras marionetas que os capitalistas manobram sob as luzes do palco que improvisam. E é tudo muito “racional”, muito “consensual”. Ora pois, não parece consensual que a Europa se converta numa fortaleza contra as ameaças do “choque das civilizações”?
No entanto, esta razão, que o é sem aspas, que não é uma mera aparência ou simulacro do “mundo inteligível”, é uma mistificação, uma descrição real de um mundo imaginário, que não é por isso que estimula menos o desejo, e o fatalismo. De um lado temos indivíduos isolados, cindidos em si e dos outros, e, do outro lado, ideias gerais, abstractas. De um lado, temos a divisão do trabalho e a sujeição, do outro, temos a alucinação, a esquizofrenia. No primeiro caso temos a teoria do feiticismo que exprime a produção subordinada à reprodução infinita do valor de troca. No segundo caso, encontramos a função da Ideologia, que é a constituição do poder e sua reprodução ad vitam aeternam.
É à ideologia que o esquecimento pertence : denegação das condições materiais da produção; toda a exploração é negada, sublimada; a produção convertida em “decisão livre” inter pares. Criada a necessidade de trabalho desde logo pelo imperativo de autoconservação, estimulada a apetência pelo dinheiro que dá acesso ao mundo maravilhoso das mercadorias, complexificada a divisão do trabalho, a dominação ideológica de classe reproduz-se, legitima-se, perpetua-se. Faz sentido a alegoria da caverna : subtraindo-se a sua orientação idealista, ela é, no entanto, a expressão metafórica de um esquecimento padecido por uma humanidade acorrentada a fetiches. Como é possível o capitalismo existir sem recorrer sempre à força coerciva da expropriação, à necessidade do trabalho, às armas?
Julgo que expus os mecanismos principais para fornecer uma resposta. Dispositivos tão eficazes que até os dominados podem pensar a sua condição no interior mesmo da ideologia dos dominadores, como “cidadãos”, “livres e iguais”, dotados todos naturalmente dos mesmos direitos...
É tarefa da história estabelecer a verdade deste mundo; é a tarefa da filosofia desmascarar a autoalienação nas suas formas des-sacralizadas. Marx, da juventude à velhice, jamais abandonou o conceito, ainda que nos inícios ela estivesse ligado sobretudo à crítica da religião (na Introdução, de 1844, e na Questão Judaica). Nem a chamada viragem de 1845-46 trouxe o seu abandono, ainda que na Ideologia Alemã coloque o termo alienação (Entfremdung) no jargão meramente filosófico. Neste ensaio afirmamos a tese de que os Manuscritos de 1844 expõem a primeira teoria marxista da alienação, e que esta base consolida-se cientificamente, ou seja económico-politicamente, nos textos de O Capital.
A alienação, antes de ser um fenómeno da consciência, é um facto económico, e este facto: quanto mais o operário produz mais pobre fica, exprime o seguinte : o objecto que o trabalho produz, o seu produto, depara-se-lhe como um ser estranho, como uma força independente que ele não conhece nem controla. Que o domina.
Seguir o percurso da ideia marxista de alienação, é acompanhar, no próprio Marx, o aprofundamento materialista da ciência que inaugurou. Nas últimas obras de Marx a alienação é explicada pelo antagonismo das classes e pela dialéctica da história, resulta de determinadas relações sociais(históricas, transitórias) que se prolongam no interior da vida dos indivíduos. É um determinado modo de produção, e de relações sociais correspondentes, que geram e modulam a psicologia individual, e não o contrário. Por conseguinte, as formas de alienação religiosa, política, ideológica, encontram aí a sua raiz e perpétuo sustento. Por outras palavras: o núcleo duro da teoria marxista da alienação é a realidade objectiva das relações sociais, historicamente concretas, realidade que é preciso investigar, e que Marx estabelece, desde as Teses sobre Feuerbach, como eixo da nova ciência : o materialismo histórico. Nem idealismos, nem economicismos.
Chegar ao marxismo, ou seja ao comunismo, é descobrir que o único verdadeiro remédio é cortar o mal pela raiz: romper com este modo de produção e edificar novas relações sociais que lhe correspondam. Os caminhos para lá chegar podem ser vários e até imprevisíveis, mas não é, seguramente, com partidos e com Governos que organizem consensos com o grande capital.
Quando Galileu demonstrou que é a Terra que se move ao redor do Sol, não foi por isso que ela deixou de o fazer. Com as evidências de Marx sucede algo de diferente: uma boa parte do mundo deixou realmente de andar à volta do Capital. O sucesso há-de repetir-se, com acrescidas razões...e prevenidas cautelas. Por ora, uns tocam a marcha triunfal, outros um requiem. Não são os novatos os piores inimigos dos trabalhadores, são os lobos disfarçados de ovelhas. É, por exemplo, no terreno das lutas pelo trabalho com direitos, nas formas de propriedade e de distribuição da riqueza, que a música deve ser tocada, e é aí que a busca de consensos vale a pena.
Nozes Pires
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