quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

 

CRÍTICA DA RAZÃO CONSENSUAL 

(Capítulo 1- Prolegómenos para uma ontologia materialista)

A Crítica da Razão Consensual radica no princípio da lógica dialética: o pensamento reflete na oposição de enunciados formalmente contraditórios a realidade objetiva da contradição «na essência mesma das coisas». Entende-se «Razão Consensual» a ideologia que dissemina pelas tribunas políticas, pelas escolas e academias, pela publicidade e propaganda, pelas técnicas de submissão, o mito do poder triunfante e inexpugnável do capitalismo.

A Crítica da Razão Consensual, pelos vários ensaios já publicados na VÉRTICE, dirige-se sobretudo contra as modas filosóficas que fazem o frete ao capitalismo na fase contemporânea. Combate o consentimento. As fábricas de consensos expelem aparências de verdades do senso-comum, sem lugar a alternativas. Nas batalhas ideológicas contra esse inimigo principal a Crítica pressupõe, contudo, outras críticas urgentes: a crítica a teses pouco marxianas de boa parte do chamado “marxismo ocidental” estribadas em conceções sociológicas eurocêntricas  que teimam em negar a atualidade das lutas de classe e o papel do proletariado; a crítica à corrente dominante conservadora do pensamento “pós-moderno” que classifica o marxismo como mera “metanarrativa”, se ocupa em “desconstruir” discursos e em “jogos de linguagem”, expulsando as categorias de verdade e de totalidade, navegando nas diferenças sem identidade alguma, e assim colaborando na vasta ofensiva ideológica do capitalismo para quebrar as possibilidades concretas de emancipação humana. Reivindicando-se de marxistas “científicos” soçobraram regimes políticos, quase arrastando com eles na prática a imagem pública da teoria. Contudo, e apesar das derrotas e dos refluxos, Marx mostra-se de novo redivivo face a face com a crise generalizada do sistema capitalista. Já se ouve dizer nos quadrantes políticos mais inesperados: “Marx, afinal, tinha razão!”. Ao atingir a sua máxima expressão – a hegemonia planetária do capital financeiro – o capitalismo exibe em toda a sua brutalidade as suas finalidades e todas as suas contradições.

De facto a que assistimos? A um irracionalismo “pós-moderno” , forma recuperada de idealismo, de uma subjetividade hipertrofiada em que os referentes objetivos se perderam. A unilateralidade é tão extremada que o próprio sujeito desaparece sob um foguetório de retóricas para reaparecer fragmentado, afogado na superfície líquida em que os pós-modernos dissolvem a Razão. A filosofia “pós-moderna”, que assim se classifica a si própria, é composta de posições diversas: desde o mais aberto reacionarismo e irracionalismo, a posições com potencial crítico, passando por um conservadorismo por vezes ambíguo. Observo tanto uma clara cumplicidade com o sistema capitalista, como alguma orientação subversiva. De resto, a classificação “filosofia pós-moderna” anda carregada de equívocos e a sua aplicação suscita controvérsia. O próprio potencial subversivo – crítica das sociedades capitalistas contemporâneas- arremete ao mesmo tempo contra aquele marxismo que apelidam de “dogmático”, isto é, marxista-leninista, aquele que continua a defender a atualidade das lutas de classe e dos partidos revolucionários. Preferem apostar nas “manifestações espontâneas” e nas “redes sociais”.

O que observo nas filosofias e nas artes é a utilização sistemática da ironia, que fornece às obras um interesse e uma racionalidade inegáveis; contudo, corre-se o risco da perda da seriedade da crítica e do protesto. Nas sociedades contemporâneas tudo se oferece como espetáculo e o que devia suscitar horror converte-se em banalidade “suportável” pelo fluxo mediático. Determinadas filosofias cultivam a análise das aparências, considerando que a essência (causalidades fundantes) é pura metafísica. A filosofia abandonou a busca do fundamento. O capitalismo cintila de simulacros; porém, ao contrário do que desejava Platão, determinadas conceções críticas não oferecem libertação alguma da “caverna”. Críticos celebrizados do “consumismo” mostram-se incapazes ou desinteressados em descortinar o valor que subjaz à Mercadoria. Alguns afamados críticos “radicais” das sociedades de consumo pregam homilias contra o império da imagem, do espetáculo, utilizando, melhor ou pior, as categorias marxianas da alienação e do feitiço da mercadoria; porém, mais parecem cordeiros que se vestem de lobos: não querem ouvir falar de revolução e de socialismo. Outros, corifeus de novas modas “esquerdistas”, abominam os partidos operários e preferem entoar cânticos às “multidões” libérrimas que hão-de parir “acontecimentos” por geração espontânea. A História é repetição do mesmo, o que importa é a “exceção”, dizem agora alguns teóricos, numa evocação perturbadora das teses nazis de Carl Schmitt. Nas artes cultiva-se o feio, aleatório, pastiche, comercial, despido da emoção genuína que gera o protesto, a indignação, a revolta. Superfícies sem profundidade, plats, o morto e o vazio, hermenêuticas que “brincam” com os textos maiores da nossa cultura e enfraquecem o seu potencial crítico. Eliminam-se as contradições e, entre glamours e kitsch, o sapato gigante de Joana Vasconcelos promove a orgia do luxo, sem a mínima continuidade com os “sapatos de camponês” de Van Gogh. Neste género de arte pop a ironia não possui alcance nenhum, o falso artesanato popular é somente um postal turístico. O propósito é divertir e, claro está, vender-se a bom preço. A burguesia multimilionária compra divertida e capitaliza a arte-mercadoria. Uma nova aristocracia do dinheiro difunde para todos os azimutes o hedonismo individualista sem pudor e disfruta da arte decorativa. O artista autocentra-se num narcisismo psicótico. Cinismos e agressividades sem alvo ou alvo errado. Contra a democratização da cultura ergue-se um novo elitismo que tolera com dificuldade as práticas populares e marginais, exceto se estas prometerem bons negócios. O mercantilismo captura tranquilamente as “armas da crítica” quando estas são de plástico colorido. É da essência do modo de produção capitalista produzir indefinidamente mercadorias, em tudo farejar negócio e transformar em coisa para consumo, nada lhe escapa, nem as artes, as filosofias, as religiões, a vida quotidiana. O que se produz tem de ser vendido, consumido, e para tanto intervém a ideologia, para atrair e para ocultar. Não obstante as graves limitações de que padece a crítica do consumismo e do espetáculo, do feitiço da mercadoria e do poder da publicidade, ela tem contribuído para o conhecimento desta natureza do capital que se tem manifestado com fortíssima relevância nas últimas décadas, pois que o consumo das mercadorias incessantemente produzidas é, para um capitalismo mergulhado numa crise sistémica de superprodução e diminuição da taxa de lucro, garantia da sua sobrevivência. Assistimos ao que já se apelidou “indústria da consciência” (Hans Magnus Enzensberger) ou “Economia da atenção” (Yves Citton), submete-se todo o tempo dos trabalhadores (trabalho e lazeres) ao círculo de ferro da realização do capital.

O abandono da “filosofia primeira”, da articulação entre ontologia (Fundamento primeiro) e uma consentânea epistemologia, pelos “pós-modernos”, isto é, as posições filosóficas que por aí andam que declaram ultrapassadas as teorias críticas não só de Marx, mas também de Adorno e Lukács, enjeitam dispositivos fundamentais para desmistificar as sociedades de mercado. O reconhecimento dos fracassos do modernismo (nas artes, na cultura ocidental), das promessas não cumpridas da Modernidade, não justifica o a-historicismo que campeia nas hostes pós-modernas, mas explica a desorientação geral.

É certo que a contracultura parece haver feito as pazes com a indústria cultural (o comércio capitalista capturou as “artes de rua” e os concertos ao vivo); porém, é necessário lembrar que a contracultura (o surrealismo, inclusivamente alguma pop-arte na sua fase inicial contestatária) foi um produto progressista do modernismo.

A Filosofia entra nestes palcos da vida contemporânea como seu reflexo, agente cúmplice ou, pelo contrário, com as armas da crítica. A negação do futuro, do Ser que ainda-não é mas que se deseja racionalmente como Promessa, fecunda o niilismo neofascista. Os ovos da serpente estão por aí e a Direita não se importa de aquecê-los se necessário. Os novos niilismos constituem os maiores perigos para a civilização. Esse é o terreno dos combates mais urgentes. Enfrentar o assalto e a destruição da Razão. Frente de luta de uma frente mais funda e global: para extirpar o rizoma do fascismo que ressurge com formas diversas em qualquer lugar, os populismos que segregam novas tiranias, as erupções terroristas de fanáticos seja de que credo for, é necessário, questão de sobrevivência das conquistas democráticas e civilizacionais, combater o capitalismo imperialista em todas as esferas onde as transnacionais exercem a sua dominação: na exploração e expropriação pela economia, na submissão pela ideologia.

Os meios de comunicação de massas – da televisão ao cinema – não só selecionam e distorcem as “notícias”, como insuflam mensagens com as quais formatam a mente; não apenas distraem, mas também “ensinam” os gostos e as atitudes, tal como o fazem as escolas. O dinheiro e o sucesso. O valor do trabalho produtivo é desprezado. Os operários fabris e os camponeses (da Europa e do “Terceiro Mundo”) já quase não servem de motivo para as artes, nem quase merecem tratamento nos noticiários e nas reportagens.A hiper-racionalidade tecnológica (pelo menos no modo como a mensagem é vendida) provoca reactivamente a “celebração pós-modernista da jouissance”. Escapes compensatórios. Na realidade, utilizadas pelo sistema. Contudo, antigas e novas práticas culturais resistem à voracidade do sistema e, através dessa diversidade criadora, rasgam-se caminhos alternativos. Não devemos confundir essas múltiplas formas de resistência com o enxame de expectativas, mitos e utopias fracas, com que o mercado suga as justas esperanças dos trabalhadores.

Filósofos do chamado “marxismo ocidental”, pelo seu lado, dedicaram-se a hiperbolizar a cultura e a práxis social de tal modo que a natureza perdeu toda a sua existência independente, cortaram-se as pontes e mediações, resultando este feito milagroso que é uma espécie de teologia “invertida”: somos nós que criamos a natureza! A coisa-em-si é incognoscível. Outra forma de idealismo do sujeito. Nessa faina enviam para o lixo os fundamentos de uma ontologia marxista que devemos a Marx, Engels e Lénine. Confiemos que os jovens investigadores marxistas não persigam este caminho. O marxismo não é um economicismo nem apenas uma epistemologia. É uma ontologia: o materialismo histórico e dialético.

Os estruturalismos removeram o Sujeito das “estruturas”, o pós-estruturalismo reintroduziu-o, porém como mero efeito da linguagem e do inconsciente. Sem identidade, sem devir histórico, cambaleia por aí. O pós-estruturalismo é a afirmação ontológica de uma pluralidade de heterogeneidades e diferenças. Mais vale dizer: entes sem ontologia. Críticos ferozes da abstração, não entendem que as suas singularidades não são mais que outra abstração. Críticos mordazes das mediações, não entendem que o imediato é a particularidade vazia. Críticos de toda a transcendência conceitual, queriam liquidar o idealismo, mas aconchegam-se ao mais primário empirismo. Oferecendo casa e roupa lavada ao diferente (esquizofrénico, patológico, excessivo), na recusa tenaz das “normalizações” (identitárias), acendem frouxas candeias para nos guiarmos nos labirintos da irracionalidade. Acaso poderiam subsistir sociedades em normas e sem controlos? Mais um passo e levantam-se heróicos os “homens extraordinários” com os quais Nietzsche alimentou nazismos.

A acusação de que o marxismo é uma “teoria determinista” (as ideias seriam epifenómenos) não encontra sustentação nas obras de Marx e Engels. Este, em 1890, em carta a Joseph Bloch (1871-1936), já criticava a leitura economicista e reducionista do marxismo:

“Segundo a concepção materialista da história, o momento em última instância determinante [in letzter Instanz bestimmende], na história, é a produção e reprodução da vida real. Nem Marx nem eu alguma vez afirmamos mais. Se agora alguém torce isso [afirmando] que o momento econômico é o único determinante, transforma aquela proposição numa frase que não diz nada, abstrata, absurda. A situação [Lage] econômica é a base [Basis], mas os diversos momentos da superstrutura [Überbau] – formas políticas da luta de classes e seus resultados: constituições estabelecidas pela classe vitoriosa uma vez ganha a batalha, etc., formas jurídicas, e mesmo os reflexos [Reflexe] de todas as lutas reais nos cérebros dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, visões [Anschauungen] religiosas e o seu ulterior desenvolvimento em sistemas de dogmas – exercem também a sua influência [Einwirkung] sobre o curso das lutas históricas e determinam em muitos casos preponderantemente [vorwiegend] a forma delas.”

As ideias – no sentido alargado (mentalidades, crenças, teorias filosóficas e científicas, doutrinas) – desempenham o papel de agentes da ação através dos indivíduos que as executam. Criadas por indivíduos excecionais, por povos e classes, sempre sob condições concretas dos seus modos materiais de existência. As ideias não são frutos de árvores sem raízes, por muito originais que sejam os frutos. Para que eles brotem são necessários cérebros e sociedades. O que é determinante na formação das ideias é o cérebro humano e a linguagem, a experiência social (isto é, as relações sociais e a práxis) e a personalidade. Sem estas três condições de base, interdependentes, não existiria a atividade cognoscitiva comum e singular. Esta, por sua vez, organiza-se conforme regras específicas (raciocínios e conceitos); atividade só possível porque a mente goza de uma relativa autonomia. O elemento determinante na formação das ideias (enquanto imagens, intuições concretas, esquemas e categorias, conceitos e relações entre estes) é a experiência social. Entende-se esta como relações entre indivíduos e entre estes e as coisas. Isto é, a práxis: conjuntos complexos de atividades sociais. Nestas relações as que se entendem como determinantes, em última instância, são as relações de produção. A base económica das sociedades condiciona decisiva e inevitavelmente o tipo de ideias que nos impelem a agir. Este condicionamento material não exclui nem menoriza a atividade mental pela qual conceitos, modelos e teorias, criam novos conceitos e teorias, como sucede na ciência e na filosofia. É necessário estabelecer distinções e graus de autonomia, mas é errado erguer muros. Se é certo que não basta mudar as ideias para que o mundo se modifique em consequência, sem um projeto o que muda pode ser pouco e mau. A relação dialética entre as forças sociais e materiais em presença com um projeto realmente revolucionário abre todas as discussões sobre a Teoria de Marx-Engels. Na base económica das sociedades (é no capitalismo que a Economia adquire um enfoque substancial) intervém a subjetividade humana no trabalho vivo, na invenção e manipulação das forças de produção. Nela germina a luta de classes. É na apropriação privada, na legalidade da relação capital/trabalho, que as normas jurídicas burguesas assentam os seus pilares disfarçadas de transcendência a-histórica.

 

Os materialismos e a Razão Dialética

As filosofias racionalistas idealistas deduzem a racionalidade dos fatos e processos não do seu encadeamento concreto, mas de um sujeito que estes expressariam – a “ideia”, isto é, o pensamento pensado.

Os materialismos, independentemente das suas diferenças internas e das suas limitações, sempre se colocaram mais perto de um discurso verdadeiro sobre a origem natural do homem do que os racionalismos idealistas. Estes, independentemente das suas diferenças, recaíram sempre no sujeito autocentrado, transcendente ou transcendental. Contudo, recusar aos idealismos contribuições de inegável valor que, inclusivamente, corrigiram os materialismos modernos, ou apontaram-lhes com acerto erros, é miopia ou ignorância. Exemplos: a lógica-dialética hegeliana, a crítica de Hegel ao materialismo francês, a ênfase que colocou na atividade do sujeito cognoscente. Marx e Engels deram um exemplo notável de uma atitude de abertura e diálogo com os textos de filósofos idealistas (Hegel, sobretudo). Todavia, não se julgue que se realizou uma “harmonia de contrários”: a ontologia do materialismo dialético é irreconciliável com qualquer teoria do conhecimento que separe o sujeito das fontes de que ele é originário.

O passado não é um amontoado de acontecimentos, nem uma terra plana donde irrompem de vez em quando acontecimentos milagrosos como nos querem fazer crer determinados pensadores místicos. É necessário encontrar nos materiais do passado, nas criações filosóficas e culturais, o inconformado, o insubmisso e aquelas atitudes que sempre se negaram a obedecer a poderes transcendentes. É nos materialistas de todos os tempos que encontro a recusa dos poderes de representação e interpretação exercidos pelos donos da cultura e da verdade.

A crítica aos idealismos, porém, não deve menorizar os seus maiores expoentes. Alguns contribuíram para a constituição das ciências matemáticas e da lógica; sem eles não gozaríamos do património cultural de que nos orgulhamos. Foram em boa parte os artífices do Direito moderno, das Constituições democráticas. O mecanicismo cartesiano influenciou La Mettrie (Julien Offray de la Metrie, 1709-1751), o qual soube retirar as devidas consequências materialistas. As teorias de J. Locke (John Locke, 1632-1704), sobretudo a sua crítica à metafísica e às “ideias inatas”, abriram novos rumos para a teoria do conhecimento. Marx e Engels manifestaram sempre a sua genuína admiração pela filosofia hegeliana e pouco ou nenhum apreço pelos materialistas “grosseiros” do grupo dos chamados “ideólogos”.

A disputa entre materialistas e idealistas fecundou o debate de ideias, o apuramento da argumentação e dos conceitos; não existiria filosofia sem as duas “linhas” oponentes. Disputa que raramente foi pacífica nos últimos dois mil e quatrocentos anos. A escolástica foi responsável por uma repressão sistemática dos adversários. Ainda recentemente sob as ditaduras de Salazar e Franco, a ideologia clerical-fascista utilizou (benzeu) o terrorismo pidesco para silenciar os intelectuais que manifestassem apego ao materialismo. O capitalismo arremete com todos os meios coercivos de que possui o monopólio para sufocar a alternativa radical que o materialismo dialético assume, porque quando se desce da teoria pura para a prática política o perigo espreita.

As aventuras da Razão no Ocidente

Com a Razão nos libertamos, com ela nos submeteram. A categoria filosófica de Razão (capacidade de produzir conceitos) é ela mesma um produto de sujeitos social e historicamente situados. Não existe nenhuma entidade designada Razão que transcenda a historicidade da ação humana. Nenhuma Razão conduz a História e ambas – Razão e História - são noções gerais de que nos servimos para organizar e distinguir comportamentos e acontecimentos situados no tempo e no espaço. A História é o Tempo no qual os indivíduos concretos se ocupam e se preocupam em viver; a Razão, o conjunto das razões ou modos de ser, agir e interpretar, condicionados pelos modos de produzir e reproduzir a satisfação de determinadas necessidades sociais. Desde a débil luz que se acendeu no cérebro de um “macaco” até à luminosidade solar de Mozart e de Einstein, desde as criações culturais de sociedades apoiadas na escravatura até às grandiosas revoluções de emancipação social. A Razão ora reflete adequadamente as propriedades objetivas das relações sociais e di-lo, ora as contradiz. Afirma ou nega. Por vezes abdica da sua soberania e submete-se a poderes que toma como estranhos e externos, quando, na realidade, são produtos do seu próprio poder. Quando se aliena de si mesma, se descola do mundo real, se contradiz e se conflitua, não exprime senão a contraditoriedade das relações sociais. A contraditoriedade é imanente à Razão, sem ela não ocorreriam sequer determinadas operações mentais. A interação e ação recíproca, as conexões entre as ideias, entre a imaginação, a memória e os conceitos, em sínteses sucessivas que fazem a unidade das conexões, constituem o movimento processual da Razão. Não recorda verdades imutáveis, mas, antes, é devir indefinido, um livro aberto ao qual se acrescentam páginas de quando em vez. É nesse sentido que se pode afirmar que ela ocorre no tempo. Sem um corpo despojado à partida de instintos rígidos e de uma especialização única e pré-determinada, e sem a socialização que organiza os indivíduos em grupos que conflituam ou cooperam com a natureza, conflituam e cooperam entre si, o homem seria tão ingénuo quanto Adão e extinguir-se-ia com a expulsão do Paraíso. Na verdade, as catástrofes naturais logo o teriam extinguido. Toda a história das diversas culturas e sociedades retrata a luta pelos recursos obtidos do meio ambiente, em harmonia com ele ou em desarmonia, adaptando-se ou adaptando o meio natural às suas necessidades, e esta é a origem e a caminhada da racionalidade e da irracionalidade da espécie que transformou a superfície do planeta. Nesta caminhada, curtíssima comparada com a da Vida na Terra, ergueram-se civilizações e extinguiram-se numa fração infinitesimal do tempo do universo. Nesta caminhada, tão diversa nos quatro cantos do globo, grupos chacinaram outros grupos, saquearam os excedentes que outros guardavam do seu trabalho, converteram os vencidos em escravos, servos ou assalariados, manipularam em seu benefício crenças nascidas do medo e da esperança. Em todas as diferentes formas de produzir, distribuir, consumir, em todas as formas de apropriação comunal ou privada, em todas as formas de divisão do trabalho, existiu sempre uma razão de ser. Aquilo que não é razoável é, todavia, explicável pela razão.

A Razão (categoria para distinguir o homo sapiens das demais espécies) desenvolveu-se em uma série descontínua de momentos e saltos qualitativos dos processos evolutivos (dispositivos herdados de outras espécies) e por meio de processos de trabalho produtivo que permitiram à nossa espécie sobreviver e reproduzir-se. Processos técnicos sem dúvida, mas também outras relações sociais pois que a técnica é ela mesma uma determinada relação social. Nos modos de produção do viver reside a contradição fundamental: relação antagónica, e não diferente apenas, entre aqueles que produzem os excedentes e os que se apropriam de ambos, excedentes e produtores. Trabalho e dominação da força de trabalho é uma constante da História. Assim as Ideias são instrumentos que ora servem para oprimir, ora para emancipar. Refletem o devir das vicissitudes humanas, os conflitos pelo poder ou contra, os consensos que a cooperação entre os grupos sociais permite, seja para dominar, seja para libertar. O conhecimento objetivo arranca espaço à ignorância e à mentira, mas perde-se quantas vezes nas mãos dos donos de escravos, servos ou proletários. A Razão possui duas faces como Juno: numa irradia a luz do progresso inexorável do conhecimento objetivo do universo e da vida; na outra, o obscurantismo, a loucura, a barbárie. Ao contrário da “Razão que produz monstros”, parece que são os monstros que produzem a razão. Todavia a “Razão Sangrenta” não cobre toda a História. É uma forma de olhar. Alargue-se a visão e poderemos alcançar a negatividade, a contraditoriedade que trabalha os acontecimentos e produz o Novo. Retrocessos sim, prolongados e sufocantes, derrotas inesperadas sob as quais a Razão claudica ou se recolhe em silêncio: a História converte-se, com esse olhar, num cemitério dantesco, um Anjo que caminha às arrecuas. Porém, esse Anjo é uma ficção, um olhar unilateral sombrio e não assombrado, doloroso e negativo. As grandes filosofias do Renascimento, do Iluminismo e do materialismo, de Kant e Hegel, de Marx e Engels, viram na História dos homens um processo de mudanças, onde estas não somente são necessárias como possíveis. Estas possibilidades imanentes ao processo histórico estão na raiz das revoluções e das utopias. Se a barbárie desde sempre nos ameaçou, é por sua causa que o progresso irrompe, paradoxalmente, não nas asas de um Anjo, mas, quantas vezes, do génio de indivíduos excecionais que decifraram enigmas nos sótãos insalubres, no desvão de escadas, na Biblioteca de Londres… ou cavalgam nas ondas revoltosas das massas sociais. Se houvesse algum mistério a envolver as criações revolucionárias que vieram lentamente, contra tantos obstáculos, a iluminar a humanidade, ele estaria no génio absolutamente de Heráclito ou Euclides, de Arquimedes ou Lucrécio, e tantos outros; todavia, as suas obras possuem as marcas evidentes da época e do contexto. Os produtos da mente, na sua pura abstração lógico-matemática ou filosófica, podem eventualmente desprender-se das condições concretas da existência (social, individual), e, por isso, lhe reconhecemos uma autonomia irrecusável, porém não nascem como Atena nasceu da coxa do pai. Tanto assim é, que se verifica um paradoxo mais: quantos dos criadores de conceitos luminosos não se sustentaram mercê dos escravos, servos ou proletários que alimentavam as sociedades em que viveram? Quantos não produziram monumentos imortais graças à proteção de tiranos, reis e papas? Quantos não bajularam príncipes, não negociaram nas empresas coloniais dos impérios? As pirâmides não foram construídas pelos faraós, lembrava-nos Brecht. Nas filosofias, nas ciências sociais nomeadamente, o impulso e o húmus das teorias encontramo-los no solo dos problemas que uma determinada sociedade enfrenta. Como se sabe, a Grécia Antiga não progrediu mais nas técnicas (nem aproveitou invenções geniais) porque a produção se baseava no trabalho escravo; os senhores feudais entretinham-se com a guerra porque os servos os alimentavam; reis e cáfilas de aristocratas monopolizaram o comércio de além-mar desbravado por marinheiros e comerciantes ousados. Muitos progressos técnicos desenvolveram-se tanto quanto convinham às classes dominantes, caso contrário mergulhavam na poeira dos séculos. Certo é que as burguesias introduziram um interesse nas técnicas lucrativas como nunca antes se vira. Voltamos às duas faces de Juno. Progresso com barbárie. Europeus “descobriram” as Américas, Ásia e África, com canhoneiras, dizimaram, extorquiram, submeteram povos ancestrais, através destes meios irracionais chegou a prata que enriqueceu civilizações, chegou a batata que matou a fome endémica… Sempre a mesma escravatura. Progrediu? Sim, na manha dos “direitos” com os quais um assalariado se julga cidadão livre. Esse é um dos progressos contraditórios da Razão: libertou-se o servo, submeteu-se o proletário. O interesse económico determinou, em última instância, o interesse da Razão…

A “deusa” Razão possui uma longa história. História que sem a outra história não teria história nenhuma. Durante milhares de anos acreditou-se que o espírito descera dos céus como dádiva celestial, as ideias desenrolar-se-iam num mundo acima do miserável trabalho escravo ou servil. Filósofos relevantes que interpretaram o seu mundo começaram por criticar outras interpretações porventura mais racionais que as deles. A Filosofia não parecia ser outra coisa senão uma batalha interminável de razões contra razões no interior de um clube fechado de sábios. Essa autonomia absoluta é uma ilusão. As construções filosóficas não se compreendem sequer sem o contexto histórico que as provoca e fecunda. A hermenêutica do texto pelo texto equivale a uma cultura sem agricultura. Afinal de contas os filósofos intervêm a seu modo sobre o seu tempo seja para o justificar, seja para o transformar. Podem competir entre si diferentes racionalidades numa mesma época: umas justificam e conservam um estado de coisas, outras criticam-no. As lutas de ideias denunciam a realidade de outras lutas, como a espuma na areia denuncia as marés. Os problemas teóricos e a argumentação constituem o modo de pensar filosófico, daí essa aparência de filósofos contra filósofos com que os não filósofos se sentem alheados. Com a Modernidade a filosofia “desceu” ao homem comum, ao burguês letrado. Haveria de chegar o tempo em que “desceu” ainda mais: ao trabalhador assalariado. Nunca abandonou a sua vocação crítica original de compreensão do viver humano.

 O estudo das filosofias revela-nos o interesse mundano que as inspira. As razões concretas da história são a Razão abstrata dos filósofos. A filosofia nas suas origens revolucionou a mentalidade que até então por toda a parte dominava sem alternativas; a coruja de Minerva ergueu o seu primeiro voo entre as luzes e as sombras de um regime político que uma nova classe inventou nas faldas do Mediterrâneo. O potencial crítico desenvolve-se sempre sob o descrédito dos mitos tradicionais e das religiões que divinizam os tiranos . Muitos séculos decorreriam, entre muitas sombras e poucas luzes, para que pudesse emergir de novo uma revolução, a mais extraordinária da Razão humana: o pensamento científico. Chegou para demonstrar o que os primeiros filósofos já suspeitavam: o importante não é pensar, mas pensar com um determinado método. Tanto mais acertado quanto mais verdades alcança. Para isto o melhor método não é exclusivamente formal mas adequado às propriedades fenoménicas objetivas. É aquele que não é apriorístico mas que exprime e acompanha o movimento dos fenómenos. Aberto e não fechado. Aberto às teorias e progressos científicos, às transformações sociais.  

A razão é o poder de edificar sistemas de regras, de as aplicar e de as tratar.

Emprega-se o termo Razão em sentidos vários, contudo com um denominador comum: capacidade de controlo, previsão, análise-síntese, capacidade de executar operações mentais. Ser racional é ser-se capaz de aprender, sinal indiscutível do desenvolvimento do homem primitivo e da criança. Tanto num caso como no outro a ação foi e é determinante. Quanto mais esta for adequada a um fim benéfico para a comunidade mais ela é racional. Como poderíamos classificar de racionais aquelas atividades que minam a coesão social e destroem o meio ambiente natural?  

Não existe um critério único, em abstrato, que estabeleça de uma vez por todas determinadas ações absolutamente racionais excluindo todas as outras. O prazer ou as vantagens pessoais não constituem esse critério ainda que se lhe acrescente o item: serão vantajosas apenas quando o forem para todos os membros de uma comunidade.

As considerações que se seguem não desenvolvem os contextos concretos por falta de espaço apenas. O percurso é, por conseguinte, breve e a ele acrescentamos algumas considerações sobre algumas categorias e temas polémicos que julgamos oportunas. A Razão que abordamos é um conceito considerado aqui no âmbito da Filosofia com contaminações e extrapolações ideológicas. A Filosofia é considerada aqui exclusivamente como aquela atividade que surgiu na Antiguidade clássica, Ocidental.

O racionalismo (resposta às questões relativas ao ato de conhecer) não é património exclusivo das filosofias idealistas -racionalismos versus realismos- que se contrapunham aos empirismos, embora se reconheça que foi a filosofia idealista clássica alemã (de Kant a Hegel) que salientou o papel ativo do sujeito. Os materialismos sempre foram, embora diferenciados, racionalistas.

A renúncia à razão é a capitulação perante as forças hegemónicas em algum momento do seu processo contraditório. É a capitulação perante uma ideologia irracional. Foi o que sucedeu na Europa durante a Idade Média quando a filosofia se submeteu à ideologia religiosa.

O papel desempenhado pela Razão na História equivale a dizer que as ideias desempenham um papel prático nas invenções e descobertas, nos acontecimentos políticos, nos comportamentos morais, na organização singular de cada cultura, na mobilização das massas sociais. Não são meros epifenómenos da base económica das sociedades. As ciências constituem também uma força produtiva. As filosofias e as ideologias políticas e religiosas enformam as relações de produção, justificam ou, pelo contrário, desvelam e denunciam a sua função de exploração e dominação da força de trabalho. O direito (jurídico) à propriedade privada (seja qual for a sua forma através dos tempos e lugares) é o exemplo mais concludente (assim como o direito régio religiosamente consagrado). Hoje, mais do que nunca, a economia revela-se como a base que sustenta os interesses que movem o capital, as suas contradições, crises, geoestratégias imperialistas; contudo, também fica claro o papel exercido pelos meios de comunicação social, a demagogia (no sentido literal) dos “direitos humanos”; a sua natureza predatória é velada pela ideologia que dispõe atualmente de meios mais poderosos (planetários, tecnocientíficos) do que alguma vez na História. Com a ideologia se justifica e legitima, se normaliza e domestica.

A Filosofia tem agora de concorrer com a cultura industrial ou “cultura digital”, a ideologia segregada pela comunicação de massas. Ideologia do lucro e do dinheiro. O capitalismo “tardio” não é já capaz, ou já não necessita, dos grandes filósofos que construíram gradualmente o liberalismo nas suas lutas contra os obstáculos materiais e imateriais ao seu domínio absoluto. A continuação desse domínio exerce-se por outros meios. O que prolifera nas estantes das livrarias são os economistas, os “politólogos”, informáticos, e livros de «autoajuda». Técnicas eficazes de mercado orientam as escolhas e dão as respostas.

Entendo por irracionalismo a crença em forças sobrenaturais, mistérios ocultos que somente determinados “eleitos” decifram, incapacidade “natural” do homem para alcançar verdades objetivas; crenças segundo as quais somos predestinados ou predeterminados por “instintos” ou impulsos exclusivamente biológicos; descrença na verdadeira repetição de que a história é o espelho: a mudança social. São igualmente irracionais efabulações messiânicas, ficções sobre destinos e outras missões.

Dito isto não significa que creia numa verdade absoluta. Uma Razão dogmática é o inimigo da Razão Dialética. Por vezes, particularmente em épocas de crise, vale mais uma boa dúvida (cautelosa, interrogativa e condicional) que uma mão cheia de certezas que não nos deixam ver as mudanças que se operam debaixo dos nossos pés. A imagem da «velha toupeira» que vai escavando o mais rijo solo vem-me sempre à memória.

«O pensar teórico de cada época – portanto, também o da nossa – é um produto histórico que, em tempos diversos, toma uma forma muito diversa e, por isso, um conteúdo muito diverso. A ciência do pensar é, portanto, tal como qualquer outra, uma ciência histórica, a ciência do desenvolvimento histórico do pensar humano.» 

Em traços largos elenco os seguintes andamentos da dialética da Razão:

1. Falamos de racionalidade(s)s no estrito âmbito da sua construção pela filosofia ocidental. A capacidade de ajuizar tem origens bio-sociais que se perdem na bruma dos tempos. Em todos os continentes diferentes e não comunicáveis comunidades humanas construíram racionalmente formidáveis civilizações. Sem o Médio Oriente – berço da civilização – e a bacia do Mediterrâneo, a filosofia ocidental não teria surgido.

 

2.  Heráclito (Éfeso, século V a.C.), um dos primeiros filósofos, forneceu-nos há milhares de anos uma chave com a qual temos vindo a abrir os mistérios do cosmos e das sociedades: a dialética. As categorias ontognosiológicas do Todo (Ordem racional), movimento, contraditoriedade; a racionalidade é o próprio ser do mundo; «Os homens não sabem como o que é discorde está em acordo consigo mesmo: harmonia de tensões opostas, como as do arco e da lira.» (fr.51). Tales, Anaxágoras, Anaximandro, mostraram-nos um caminho racional para as origens da vida e do homem recorrendo aos elementos naturais ou na quantidade infinita de matéria. Demócrito (Abdera, século IV a.C.) forjou as teses básicas do materialismo filosófico em oposição a Platão, que se conservaram como a linha ou “partido” que se opõe radicalmente ao idealismo. Fundou o atomismo (provavelmente sobre ideias de Leucipo): crente na capacidade racional afirma a possibilidade da razão alcançar a realidade por mais invisível que ela seja: pequenas partículas que compõem tudo que existe: «Por convenção fala-se de cor, de doce, de amargo; na realidade, há só átomos e vazio» (fr.125). Mundivisão estritamente materialista que submete todos os mistérios à lâmina da razão; afirma que a pesquisa científica e o respeito por si próprio (ética filosófica) constituem os primeiros deveres do homem livre. Condições históricas peculiares permitiram que a Razão produzisse uma atividade teórica – a Filosofia- que iniciou um combate emancipador contra os misticismos, os mitos e as religiões. Antepunha-se ao espírito um princípio natural e com esse volte face poder-se-ia ter destronado, se tal viesse a ser possível, o poder político das religiões. Mas a Razão teórica não basta, por mais importante que seja. Quase todos os materialistas, pelos tempos fora, não criticaram a base escravocrata ou servil das suas sociedades. E isso faz toda a diferença entre s próprios materialistas. Epicuro (341-271), discípulo de Demócrito (460-371 a.C.) foi um prolífico autor: cerca de trezentos escritos, que se perderam, dos quais só restam três cartas. Obteve uma enorme influência no período helenístico. Devemos a Lucrécio (96-55 a. C.) a melhor exposição da física e dos preceitos éticos da escola epicurista. Tito Caro Lucrécio legou-nos uma das obras mais notáveis e mais belas da literatura ocidental: De rerum natura. Esta obra é um magnífico exemplo de exposição argumentativa filosófica: enuncia a tese da existência necessária do vazio e do movimento dos átomos, ou seja, da unidade material do mundo, criticando um por um os argumentos contrários.

3. A filosofia grega foi dialética. Não há maior legado desse pequeno povo que a sua filosofia dialética – materialista ou idealista. “O pensar dialético aparece aqui na sua simplicidade natural, não perturbado ainda pelos obstáculos encantadores que a metafísica do século XVII e do século XVIII –  F. Bacon e J. Locke, na Inglaterra, Wolff, na Alemanha – a si mesma levantou e com os quais barrou a si mesma o caminho de chegar do entendimento do singular ao entendimento do todo, à penetração na conexão universal.” 

4. O materialismo no período clássico foi combatido por todas as escolas filosóficas; ele mesmo forjou-se nos combates. No Império Romano os grandes pensadores, Séneca, por exemplo, que se constituíram como o património clássico humanista, adeptos do estoicismo em geral, silenciaram o epicurismo. O epicurismo não beneficiou de condições que lhe permitissem hegemonia, porque o pensamento científico era incipiente, o qual mal sobreviveu à hegemonia absoluta da religião cristã, que pôde impor-se mercê do império romano tardio e da sua força messiânica de salvação individual. O epicurismo e o estoicismo também a prometiam, mas na Terra e na vida; nas épocas de medo jamais puderam competir com uma religião de massas. A filosofia crítica, desde o berço, viu-se relegada mil anos. O materialismo, identificado com ateísmo e heresias horríveis, foi amordaçado. Quem se atrevia? Ainda assim na Idade Média, larguíssimo período que não se resume à Idade das Trevas, no qual, apesar de tudo, importantes progressos se verificaram a Ocidente e a Oriente, notáveis pensadores árabes, recuperando a Metafísica de Aristóteles, empurraram a teologia de A Cidade de Deus, de Agostinho de Hipona, a teologia cristã da época, para limites tais em que ela já não se suportava a si mesma. Tomás de Aquino prosseguirá esse trilho pois que o feudalismo já consolidado exigia reparações na ideologia: fé sim, e muita, alimentada por rituais emotivos, mas alguma razoabilidade “empírica” que justificasse os poderes seculares. É neste quadro de progressos materiais e culturais (ascensão de novas classes que criavam, por imperativos da práxis, novos valores) que se tornará possível a emergência do pensamento científico com Galileu Galilei, que libertará gradualmente a filosofia e a ciência da hegemonia da religião. Progressos técnicos, económicos, jurídicos, morais, puderam verificar-se, embora as igrejas conservassem um poder imenso de manipulação das consciências. Novas forças sociais exigiram adaptações nas crenças religiosas, com as quais podiam justificar novas relações sociais.

5. O determinismo integral segundo o qual o perfeito conhecimento de um estado do universo deveria permitir a dedução mecânica de todos seus estados futuros, dominava ainda o pensamento científico nos finais do século XVIII. Nos inícios do século XX ainda se pensava, na comunidade científica, que o universo era estático. A genética era completamente desconhecida. Há cem anos predominavam as teses racistas entre os biólogos e demais cientistas. Desconhecia-se ainda em rigor a natureza e o papel do inconsciente. A racionalidade em cem anos deu passos de gigante no domínio científico. A novíssima visão do universo e da vida (Darwinismo, a teoria da História de Marx-Engels, a teoria da Relatividade de Einstein, a física quântica, a astrofísica, a engenharia genética e a neurociência, a exploração espacial, a robótica e a nanotecnologia) constitui a maior revolução científica de todos os tempos. Um homem da primeira metade do século XIX ficaria abismado se acaso ressuscitasse neste novo universo. Paralelamente às mais horrendas barbaridades com as quais às vezes se conjugou o potencial progressista desta mundividência é absolutamente formidável.

6. O racionalismo contemporâneo não deve desprezar as contribuições dos filósofos das épocas anteriores, da antiguidade clássica e do Iluminismo, pré-modernos e modernos, porque foram eles que ajudaram a construir a racionalidade que herdámos, independentemente das suas limitações, dos seus idealismos, dos seus erros. O alcance crítico dos materialistas contra a mentalidade mítica que dominava em absoluto a humanidade, o recorte racional do método aristotélico de pensar, a mundividência ética do estoicismo, ofertaram um olhar sobre o mundo nos antípodas das religiões despóticas.

7. Os degraus que o Ocidente subiu pelas mãos de Descartes (1596-1650) e Gassendi, de N. Copérnico, Giordano Bruno e Galileu, de B. Espinosa e Leibniz, de T. Hobbes (1588-1679), J. Locke(1632-1704), Pierre Bayle (1647-1706), não devem ser descartados por um arrazoado ideológico seja ele qual for. Distinguir com verdade cada um deles, demonstrar as limitações dos seus idealismos ou materialismos, expor a base de classe do liberalismo burguês setecentista, é, como tem sido, uma tarefa da nossa racionalidade crítica contemporânea, porém não é sua tarefa destruir. Nunca existiu uma racionalidade pura isenta de idealismos e de ideologias políticas, desinteressada, por mais transparente que o desejasse. Todos os filósofos ambicionaram descrever o mundo e a existência humana tal como são, portanto a ontologia foi sempre o seu desiderato e o seu sustento. Platão, Aristóteles, Agostinho ou Tomás de Aquino, o mundo da cultura grega ou da cultura cristã. Do esclavagismo ou do projeto hegemónico da religião. Nenhuma se apresenta completamente desajustada do seu contexto histórico, do húmus social onde o filósofo cultivou os seus filosofemas.

8. Até as raízes irracionalistas de alguns grandes filósofos dão, por vezes, frutos racionais. Há nos grandes filósofos um excedente, algo como uma espécie de utopia pessoal, que a classe social que eles quantas vezes promoveram, rejeita logo que toma posse do poder. Está para além dos seus interesses políticos imediatos. Essa crença otimista esteve patente nos iluministas. Daí este nome.

9. Ser racional é saber construir um discurso coerente e comunicável sobre a sua conduta e sobre a dos outros; reconhecer objetos e pessoas; orientar-se de modo aceitável pelos demais membros de uma comunidade. A racionalidade filosófica ou científica é mais do isso. É construir um discurso argumentativo, reconhecendo-se nele a influência de outros filósofos, cientistas ou saberes. Na ciência as provas são a posteriori, comprovam uma teoria. Na filosofia não se dispensa também a experiência e a sua reflexão. A filosofia e a ciência estiveram unidas muito tempo depois do início de ambas. O filósofo era um “amigo do saber”, o qual incluía naturalmente as matemáticas e a astronomia.

10. Desde as origens da Filosofia que se constituíram claramente duas correntes opostas que se podem representar pela “linha” de Demócrito e pela de Platão. As escolas estóicas (a filosofia do estoicismo) foram hegemónicas no período helenístico e sob o império romano até ao século V quando os imperadores cristãos as proibiram (o epicurismo sobretudo). Inicia-se o longuíssimo eclipse quase total dos materialismos. É somente no século XVII que o materialismo renasce, nomeadamente com Pierre Gassendi (1592-1655) que influenciou a filosofia inglesa, a qual por sua vez, marcou indelevelmente os materialismos posteriores. A corrente dos “libertinos”, nomeadamente Cyrano de Bergerac, que iniciou o combate contra o domínio da religião. O mecanicismo de Descartes que, apesar do seu idealismo, há de desaguar no “Homem Máquina”, de La Mettrie. O mecanicismo pessimista de Thomas Hobbes que cria, no entanto, uma perspetiva realista moderna sobre a Política e o Estado. Baruch Espinosa, o grande filósofo holandês filhos de judeus portugueses, observa a luta de classes no seu país e antecipa o regime democrático. Somente no termo desse século Leibniz cunha pela primeira vez o materialismo como corrente filosófica oposta ao idealismo. Por conseguinte, foram necessários muitos séculos para que, chegados ao Iluminismo, o materialismo se afirmasse novamente e se distinguisse com clareza bastante das metafísicas idealistas e das teologias. O empirismo de origem inglesa (J. Locke) contribuiu para o desenvolvimento dos materialismos. O materialismo francês do século XVIII, atento às críticas dos empiristas, não recicla mas refina a argumentação do materialismo. Deste modo existiram diversos materialismos, alguns com escassa influência na corrente contínua da filosofia ocidental, fosse por terem sido desprezados, perseguidos e silenciados, fosse também porque as condições sociais (económicas e culturais) não lhe tivessem sido favoráveis. O que nos leva novamente à constatação de que foram os interesses da Burguesia que propulsionaram o desenvolvimento da ciência e dos materialismos modernos.

A Razão Moderna

11. Na Modernidade a Razão inicia (ou reinicia?) um novo rumo em que, agora, os novos valores do interesse e da utilidade vêm desempenhar um papel decisivo. A experiência é o critério principal para observar a realidade com “olhos de ver”, agindo para melhor observar. F. Bacon expõe a nova visão do mundo, um mundo novo que se anuncia sob as conquistas do pensamento científico. Os valores medievais perdem a hegemonia sob o impulso dos interesses de novas classes em desenvolvimento, novas instituições políticas (monarquias absolutas) que viam no comércio a riqueza das nações. Razão interessada, útil, experimental, libertando-se do cosmos geocêntrico, das especulações metafísicas subordinadas à teologia, dos valores sociais retrógrados.

12. A Razão calcula, analisa, deduz, sintetiza. Contudo, não é ela, só por si, que nos motiva para da ideia passar à ação. É preciso que intervenham o interesse próprio e o sentimento. Jean-Jacques Rousseau, crítico do iluminismo que endeusa a Razão, colocará na Modernidade o conflito eterno entre a Razão e o sentimento; com ele o Romantismo mergulha no labirinto das contradições e dos conflitos da subjetividade. A dialética emerge no génio de Hegel e Marx.

13.  Referir os filósofos materialistas omitindo os escritores utopistas é um lapso grave. A sua influência não se pode descartar numa história das ideias consequente. A conceção materialista do mundo e da vida está presente em quase todos eles, ainda que, nalguns casos, envolta em uma áurea religiosa que se vai perdendo depois dos percursores Thomas More (1477-1535) e Tommaso Campanella (1568-1639). O seu valioso contributo encontra-se, a meu ver, no desenvolvimento das ideias comunistas modernas e na oposição ao capitalismo. Em More, Campanella, Jean Meslier, Morelly (1717-?), Dom Deschamps, Mably, o que prevalece é a crítica à propriedade privada. A sua oposição ao feudalismo (nos dois primeiros) e à nobreza terratenente do século XVIII é, simultaneamente, uma rejeição do capitalismo comercial. A propriedade comunal é a base que organiza aquelas sociedades utópicas onde reina a igualdade. A primeira metade do século XIX assistirá a uma profusão de projetos utópicos comunistas. Perante o tribunal da Convenção G. Babeuf irá declarar com arrojo que bebeu em Morelly (que ele tomava como um pseudónimo de Diderot) os seus ideais comunistas. O materialismo do século das Luzes é uma mistura inovadora de neo-espinosismo (Jean Meslier, d´Holbach, Diderot, Dom Deschamps), mecanicismo, naturalismo (vitalismo, no caso de Diderot) e os escritos utópicos. A par da influência do empirismo inglês (J. Locke) e da ciência newtoniana, somente esse cadinho “explosivo” nos permite compreender não apenas o século das Luzes, como a primeira metade do século seguinte. A denúncia dos efeitos perversos da apropriação privada dos produtos sociais permanecerá uma trave-mestra de uma racionalidade que se quer alternativa radical.

14. Os fundadores das doutrinas liberais formularam princípios que a teoria socialista não pode renegar, só porque os regimes políticos liberais os distorceram e converteram em meras formalidades. O que fora substancial tornou-se formal. O Direito toma a hegemonia. O princípio segundo o qual o Estado não deve sufocar a liberdade individual, se essa liberdade não prejudicar a liberdade coletiva; o direito à desobediência civil; o princípio da separação dos poderes (transparência, vigilância e independência); as Constituições políticas que romperam com o discricionário e as servidões consuetudinárias; a ideia de República (o bem público prevalece sobre o interesse privado); ou aquele princípio geral do utilitarismo: o que determina se uma ação ou decisão é correta é o benefício intrínseco que traz para a comunidade; quanto maior o benefício, melhor a ação ou decisão (“agir sempre de forma a produzir a maior quantidade de bem-estar”), se produzir a infelicidade, deve ser condenada. São verdadeiras apenas aquelas teorias éticas que consideram decisões e ações como corretas independentemente das suas consequências? Princípios formalistas e abstratos podem ser tão ou mais perigosos na prática do que a ética utilitarista. Ela foi e é passível de críticas, mas o facto de ter justificado no seu tempo a mundividência burguesa não significa que fosse falsa. Uma filosofia não é necessariamente falsa. Menos ainda quando ela se adequa à funcionalidade de um modo de produção. De resto, Epicuro, o criador por excelência do materialismo, defendia princípios de uma ética utilitarista. O interesse e o útil predominam nas teorias dos materialistas Helvétius, d’Holbach e Diderot, que os contrapunham à moral clerical. Os princípios do útil, do interesse, foram criações modernas e progressistas dos empiristas (ou “sensualistas”) e dos materialistas do século das Luzes. A crítica de Kant a esses princípios (Crítica da Razão Prática) não os invalidou. Valeu, sobretudo, como síntese necessária entre a intenção (uma “consciência boa”) e o valor social (“universal”, nos termos kantianos) das consequências de uma decisão ou ação. As noções económico-éticas de interesse e de utilidade exprimiam os desígnios das burguesias (comércio, indústria) e opunham-se aos valores feudais. Constituíram um progresso. O socialismo francês, uma das três fontes do marxismo, desenvolveu-se não apenas com as ideias de Rousseau, mas também com as contribuições dos iluministas, sobretudo da corrente materialista (ainda que o chefe dos jacobinos, Robespierre, não o tenha admitido). Uma outra grande doutrina, o utilitarismo, resultou dos princípios supracitados (Bentham e J.-S. Mill). O cálculo utilitarista da maximização dos prazeres e da minimização dos sofrimentos elevou a um Princípio o que se encontrava implícito nos iluministas. Fosse como fosse propugnavam pelo primado do direito e da felicidade geral, “a maior felicidade para o maior número de pessoas”. Em termos gnosiológicos o utilitarismo não era um idealismo puro, mas uma corrente do empirismo, no qual radica a sua ética pragmática (a ética kantiana é mais idealista que o pragmatismo). É sobretudo a sua ética baseada no princípio da experiência que deve suscitar ainda o nosso interesse. Se o seu uso tem servido para justificar os meios pelos fins, nenhuma doutrina está isenta desse pecado. Implacável na crítica desta filosofia convertida em ideologia do capitalismo, o marxismo não deve, porém, ignorá-la nem desprezá-la. Valorizar a experiência, a prática, não é desvalorizar a precedência teórica dos projetos. É admitir que um projeto deve ser revisto à luz da experiência (as possibilidades que ele já continha para os erros e os desvios).

15. Invocámos o passado para melhor entender onde chegámos. Que caminhos se perderam. Como e porque a burguesia renegou o seu passado “heroico”, inclusivamente revolucionário, e “atraiçoou” (como se dizia nos começos do século dezanove) os ideais da República francesa. Invocar este passado em uma perspetiva crítica com recurso à história das classes sociais em presença, é recuperar dele o potencial progressista. É verificar que não pensaríamos do modo que hoje pensamos sem esse potencial. Certo é que não basta mudar as ideias para que o mundo se modifique de alto a baixo, como já o haviam dito oportunamente Marx e Engels (A Ideologia Alemã).

16. O materialismo iluminista era débil, contemplativo, inconsequente, metafísico e escolástico. Faltou-lhe fundamentalmente a categoria objetiva da práxis. Foi aqui que se operou a superação marxiana. 

 

O Iluminismo sob o fogo da crítica

17. Max Horkheimer e Theodor Adorno, n’ A Dialética do Esclarecimento, expõem com acerto as responsabilidades do Iluminismo no irracionalismo que lhe sucedeu. Segundo eles o Esclarecimento (Aufklärung) é “totalitário”, o processo de racionalização abstrata produziu a barbárie. É preciso, pois, destruir o mito do progresso, tarefa equivalente à destruição da metafísica idealista. O mito do progresso derivou da ideologia burguesa e pelo qual esta justifica os males como acidentes de percurso, efeitos colaterais da marcha infinita da tecnociência. A racionalidade iluminista não emancipou o homem como prometia, domesticou-o. A grandiloquente subjetividade burguesa traduziu-se na reificação e no feiticismo, afirmará Adorno em obras posteriores, servindo-se de Marx e sob inspiração de Lukács. O pensamento, tolhido pela “culpa” vê-se privado da “linguagem da oposição. Não há mais nenhuma expressão que não tenda a concordar com as direções dominantes do pensamento”. “ Na crença de que ficaria excessivamente suscetível à charlatanice e à superstição, se não se restringisse à constatação de factos e ao cálculo de probabilidades, o espírito conhecedor prepara um chão suficientemente ressecado para acolher com avidez a charlatanice e a superstição.”  O esclarecimento autodestrói-se. Não há dúvida de que “a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento ilustrado. Contudo, acreditamos ter reconhecido com a mesma clareza que o próprio conceito desse pensamento, tanto quanto as formas históricas concretas, as instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, contém o germe para a regressão que hoje tem lugar por toda a parte.”  Eis-nos na época do domínio da abstração niveladora, toda a diferença é anulada sob o signo da identidade e da unidade. Dito isto, o Esclarecimento, isto é, o Iluminismo, é coisa a abater? Não. É, antes, uma tarefa de auto-reflexão a cumprir urgentemente, a partir de uma posição dialética. Era esse o propósito do livro que converteu Adorno num autor de enorme influência? (toda “destruição” da Modernidade deriva de Nietzsche, Heidegger e Adorno)? Ele o afirma textualmente e é para acreditar. Esta afirmação é clara: “Não se trata de conservar o passado, sim de cumprir as esperanças do passado.”  Porém, o que dele se extraiu foi uma completa culpabilização da filosofia das Luzes. Errada, a meu ver. A dialética negativa de Adorno não comporta nenhuma saída positiva, nenhuma superação. Se assistíamos ao fim das grandes filosofias da história, então, por consequência, eles próprios (Horkheimer e Adorno) deveriam se demitir de filosofar sobre a história e não incutir nesta um sentido negativo, autodestrutivo… Visão “catastrofista” que, de resto e respirando a mesma atmosfera negativista, alarmada, Walter Benjamim exprimiu. O velho Horkheimer desiste e acomoda-se; H. Marcuse descobre nos jovens um potencial revolucionário. Num golpe de rins que não é tão invulgar como se poderá julgar, da crítica implacável ao liberalismo (Modernidade) acabam não poucos na defesa do próprio, recauchutado, sem mitos regressivos, com umas tintas de “ética racional e comunicacional”. Ou seja: o pensamento dominante é tão dominante que não permite alternativas. As críticas destrutivas da Razão (= “Razão instrumental”) iam beber todas em Max Weber (o próprio Heidegger foi lá beber). Análises idealistas da ideologia burguesa (do racionalismo de inspiração iluminista e burguesa) redundavam em fracassos pessoais (e geracionais!), em consequências políticas conservadoras e até mesmo reacionárias (Heidegger), ou em apostas cegas em revoltas sociais justas mas inconsequentes.

 As Luzes não foram homogéneas: diferentes correntes de pensamento colidiram. Na França, os materialistas La Mettrie, Jean Meslier, D’Holbach, Diderot, Dom Deschamps, distinguiram-se com clareza suficiente dos sensualistas-empiristas (Condillac). Os próprios materialistas não se copiaram: D’Holbach não foi o mecanicista-cartesiano La Mettrie; os neo-espinosistas Jean Meslier, Dom Deschamps, D’Holbach, Diderot, não replicam os enunciados do empirismo inglês de J. Locke e menos ainda de D. Hume. Jean-Jacques Rousseau afastou-se cedo do programa dos iluministas, mas não deixa por isso de ser um expoente máximo do Esclarecimento. Luzes e sombras, diferenças e aproximações. Confiança na Razão (barreira contra a ideologia clerical obscurantista e os costumes bárbaros), pois em quê devemos confiar? Nos puros sentimentos? Nem Rousseau o fez no livro celebérrimo «Do Contrato Social» …Nos “direitos consuetudinários” dos senhorios e morgados? É evidente, se quisermos ver, que o capitalismo não nos trouxe a última e única versão do racionalismo; trouxe a sua versão ideológica, no duplo sentido que Marx aplicou à Ideologia: consciência invertida e função social. A razão histórica da missão civilizadora do Império Britânico nas Índias, do facínora imperador Leopoldo no Congo, da missão pacificadora da OTAN, protetora intervencionista dos direitos humanos e da democracia ocidental…

 «A Dialéctica da Ilustração», de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, de 1944, é, sem dúvida alguma, um dos mais importantes ensaios críticos do século vinte, um marco e uma fonte que ainda não secou. Os seus autores afirmam aí que “não albergamos a menor duvida – e esta é nossa petitio principii – de que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento ilustrado”, mas esse pensamento, segundo eles, contem já o gérmen da regressão aos mitos. O Esclarecimento ao enfatizar o progresso da Técnica como Promessa de um mundo novo, conduziu ao anti-Esclarecimento: a indústria cultural, o consentimento total dos consumidores sem subjetividade e espírito crítico, elimina o passado e realiza a propaganda do mundo existente. A obra é um clarividente repositório dos recuos e contradições do iluminismo burguês. Muito antes Marx e Engels haviam já traçado o balanço do papel da Burguesia: “A burguesia desempenhou na história um papel altamente revolucionário”, ela “não pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produção, por conseguinte as relações de produção, por conseguinte todas as relações sociais.” . O papel negativo está aí claramente exposto; contudo, também aí mesmo se expõe a positividade. Nessas páginas célebres vemos um exemplo de dialética aplicada à história de “longa duração”. Nas obras posteriores, mais maduras, os seus autores (fundadores da Dialética da História) não perderão nunca de vista o ângulo positivo com que se deve também encarar a evolução da burguesia até esta tomar o poder absoluto nas mãos. Parece-me a mim que estes dois ângulos do mesmo triângulo não foram acentuados, e articulados entre si, em A Dialética da Ilustração e em A Dialética Negativa, de Adorno. O percurso da análise torna-se cada vez mais pessimista: inclui o próprio socialismo que por toda a parte se experimentava, as lutas de classes, o papel revolucionário da classe operária.

A classificação aplicada à Era que se desenvolveu a partir da decadência e por fim dos escombros das sociedades feudais – Era Moderna - é uma expressão que faz todo o sentido relativamente às épocas anteriores na Europa e fora dela. As diferenças progressistas comparativamente, para a humanidade em geral, para a sua maior emancipação ou para lhe fornecer os instrumentos materiais e espirituais para tal, foram substanciais e objetivas. A humanidade progrediu. Foram conduzidas pela Burguesia vinda do interior do feudalismo? Sem dúvida. Fundamentalmente et pour cause no seu proveito? Certamente. O capitalismo caracteriza-se por ser uma “criação destrutiva” (não uma “destruição criativa”)? As provas são abundantes e profundamente arrepiantes. Não obstante, insisto, a Modernidade teve (ou tem) diversas fases. Vivemos na época da grande Revolução de Outubro e suas consequências formidáveis.

18. Não afirmo que a metafísica não é racional, afirmo que a dialética sem metafísicas dá melhor conta dos fenómenos sociais. Nesse sentido, é mais racional. É necessário distinguir as metafísicas, porque umas foram obstáculos epistemológicos, outras não. Exemplos: o sistema metafísico de Espinosa não se opõe ao desenvolvimento da ciência e ao mais livre e apurado espírito crítico, bem pelo contrário; o naturalismo metafísico de d’Holbach e o “vitalismo” de Diderot promoveram uma nova imagem realista e ética da natureza e do homem. Qualquer crítica do pensamento metafísico deve distinguir os sistemas metafísicos, segundo esse critério. O naturalismo e o materialismo dos séculos XVII e XVIII não devem ser rejeitados como falsos e culpados dos males que sobrevieram. Foram, pelo contrário, um auxiliar importante na marcha difícil das teorias críticas e das práticas científicas. Mas não só os materialistas: o racionalismo metafísico de Descartes lançou as bases do pensamento moderno, precisamente porque a partir dele a filosofia libertou-se da tranquilidade (ilusória) do primeiro começo- Deus- ao estabelecer como início o eu pensante, a independência intelectual; e reconhece o método científico como o mais racional. Espinosa começa o seu sistema com a demonstração da existência de Deus, mas nele Deus é a Natureza e as demonstrações nada têm que ver com as “provas” teológicas e teleológicas. Com o cartesianismo e o espinosismo a filosofia nunca mais foi a mesma. Ser dialético é saber o que se deve conservar (o que realmente se conservou nos caminhos do progresso) e o que se deve eliminar como irracional, isto é, retrógrado ou completamente errado. A Crítica tem de ser radical. Deve-se criticar a forma sobretudo quando ela vela ou mistifica os conteúdos concretos. Criticar o Iluminismo não é tarefa nova, Kant fê-lo, Hegel, Feuerbach e Marx, cada um a seu modo. Temos de partir deles quer queiramos ou não. Marx fê-lo com Hegel. Estiveram todos eles antes de Marx amarrados a uma forma insuficiente de crítica, sem dúvidas. Fomos e continuamos a ir mais fundo e mais longe. Na crítica da Ideologia, na crítica da noção de Progresso tanto na perspetiva otimista dos iluministas (Condorcet) como da teleologia hegeliana da Consciência. A própria noção de “evolução”, que substituiu a ideia de progresso, até essa já nos suscita reservas. Não se confirma uma linha de evolução contínua da Filosofia que dê consistência a uma História das Ideias baseada nessa crença. Verificam-se retrocessos e perdas tanto nas práticas sociais como nas ideias. As ameaças que o mundo hoje sofre (a humanidade o próprio planeta que a sustenta) jamais existiram nas Eras anteriores. Todavia, a Modernidade, ao mesmo tempo, forjou as possibilidades objetivas e subjetivas para revoluções sociais que a humanidade jamais poderia alcançar em eras anteriores.

19. O texto mais admirável pela forma e pelo conteúdo que alguma vez se publicou, que dirige a mais formidável crítica da Modernidade capitalista, é o Manifesto do Partido Comunista. Porque denuncia as suas origens históricas e os seus caboucos económicos, porque demonstra que a “naturalidade” ou “eternidade” com que se apresenta é falsa. E porque logo na primeira frase expõe a necessidade e possibilidade de novas revoluções sociais desta vez para eliminar a sociedade moldada pelo Capital. É nesta época que vivemos.

20. O que se deve criticar no Iluminismo é a sua ideologia da Abstração, ou a abstração como método ideológico para apresentar como a-histórico o que é efetivamente histórico e particular. Mas essa crítica da representação e da Identidade entre o pensamento e a realidade, foi precisamente a primeira tarefa dos jovens Marx e Engels. A grande crítica marxiana irá construir-se em plena maturidade com a crítica do conceito de valor de Adam Smith. A crítica de Marx à ideologia, à alienação, deve muito ao modo como “deu a volta” às categorias do método hegeliano. Porque os fenómenos objetivos têm que se manifestar primeiro para que o pensamento filosófico se veja obrigado a responder com os seus meios. Esta ideia é uma das melhores prendas que Hegel nos ofereceu (a coruja de Minerva). O capitalismo teve de manifestar-se em toda sua realidade exploradora e destrutiva para que pudesse encontrar em Marx o seu intérprete e opositor radical. Para ir às raízes é necessário que estas produzam florações (carnívoras). Por que razão vemos na Modernidade, nas suas ideias e práticas, um inimigo? Porque os seus ideais (do sujeito livre, da Vontade, do Valor, da liberdade e igualdade) foram convertidos pelo capitalismo em armas poderosas de dominação. Os princípios e os valores tornaram-se meramente formais, exceto para os próprios capitalistas. Na cabeça dos capitalistas liberdade significa apenas a “livre iniciativa” dele para comprar a força de trabalho pelo preço que mais lhe convier na base de uma relação social objetiva completamente desigual. Contudo, se a Modernidade transportou o inimigo para dentro das nossas portas – como o cavalo de Tróia – transfere para as nossas mãos ao mesmo tempo um poderoso aliado. Nela se forjou o criador e o produto que o erradicará. A doença e o remédio.

21. Não basta afirmar que o movimento é caraterística imanente da matéria. Foi necessário perguntar: que movimentos? O como. E o como é a sua conexão interna, a contradição inerente, a inter-relação entre os fenómenos. Não basta, por outro lado, afirmar a realidade do Todo (Totalidade de totalidades), foi necessário que se compreendesse que o Todo é percorrido e movido pela Contradição. Uma totalidade não é a mera soma das partes. Não bastou o enunciado segundo o qual a Natureza é o Todo sem nada mais que lhe seja exterior e prevalecente. Foi necessário descobrir-se que a Natureza possui uma história. A Ideia de História emergiu com o Iluminismo tardio, já na sua fase de autocrítica. Daí saltou da sua aplicação limitada à história das instituições políticas e das ideias para o mundo natural. Essa foi, provavelmente, a maior revolução da consciência crítica da Modernidade. Dialética do distanciamento/aproximação foi a posição adotada por Marx e Engels sobre o idealismo hegeliano e o materialismo francês. Dito de outro modo: conservação/superação. É esta posição que adotei.

 

Os racionalismos

22. A racionalidade diverge de filósofo para filósofo. O racionalismo de Hegel está nos antípodas do racionalismo de d’Holbach, em um o conceito central é a Consciência, no outro é a Natureza. O racionalismo de Marx está nos antípodas do irracionalismo. Nenhum parentesco entre Marx e Schopenhauer. A história das ideias, o modo diferenciado como os grandes filósofos utilizaram a razão e a desenvolveram, as diferentes interpretações do mundo natural, das sociedades e da existência humana, não constituem uma história independente da história das relações sociais. Sem esta as interpretações não existiriam sequer. A crítica das religiões (das mentalidades e dos costumes classificados como irracionais, retrógrados e bárbaros) encetada pelos grandes filósofos da antiguidade clássica, não foi possível no Oriente, mas nas democracias gregas; se ela continuou dificilmente nos séculos posteriores em condições completamente adversas, esse facto apenas afasta um determinismo causal das relações sociais de produção. Ainda assim, não foi na estratosfera que Agostinho de Hipona produziu uma interpretação do mundo e da existência humana toda ela assente na dominância da fé e da maldade inata do homem, antes foi nas condições peculiares dos estertores do Império Romano e do terror da barbárie que ele observava e sentia. Por outro lado, as filosofias são construções pessoais, isto é, o pensamento de Espinosa foi um fruto extraordinário de uma personalidade extraordinária que ergueu o seu voo intemporal sob as condições estritamente temporais de uma República burguesa ameaçada.

23.  No refluxo e refluxo das múltiplas interpretações racionais do mundo e da vida que a humanidade produziu, veio gradualmente a sobrepor-se a Razão científica, com os seus métodos e os seus instrumentos de observação e medida. Não transforma o mundo só por si, não ficou ele melhor no mundo capitalista do século passado apesar dos extraordinários avanços dos nossos conhecimentos e das nossas tecnologias. Certamente. A filosofia do positivismo burguês foi a ideologia do cientismo, a festa triunfal da razão tecnocientífica que viria iluminar o mundo sob o império do capital industrial. A neutralidade da ciência face aos interesses mundanos é uma ficção. Converteu-se numa poderosa alavanca de transformação do mundo. A racionalidade científica moderna veio para ficar, isto é, não perderá jamais a hegemonia como sucedeu com a ideologia religiosa da Idade Média (exceto se sobrevier um cataclismo). Por que há nela um excedente que não é meramente ideológico. Mas o diagnóstico dos malefícios do capitalismo é assustador. A ciência só por si não nos salvou, bem pelo contrário. Porém, o seu abandono não faria qualquer sentido, nem é já possível. É necessário que a racionalidade científica não se feche no seu reduto de indiferença cínica. É urgente que ela se abra para uma interpretação filosófica do mundo e da vida, ética e política. Para uma Razão política que não justifique a dominação do homem pelo homem. Uma Razão prática que governe em proveito comum as forças naturais. Uma Razão científica que vença a fome e a doença. Uma Razão dialética que demonstre que uma contradição socialmente antagónica somente se resolve pela sua dissolução. O que é irracional é esta dose de contradições cada vez mais insuportável para a humanidade: uma economia irracional que gera desemprego, profunda desigualdade e exclusão social, que se reproduz continuamente no mais completo desprezo pela miséria que reproduz, que expropria os povos do seu espaço de vida e trabalho multimilenar, que se apropria do tempo dos trabalhadores para benefício exclusivo do lucro. Ao mesmo tempo que a ciência liberta poderes incomensuráveis que curam, que aumentam a longevidade e o bem-estar, a abundância de alimentos, o controlo de desastres naturais, o aumento dos tempos livres para o lazer saudável e criador. O que é irracional é a fúria destrutiva da economia imperialista, expressão máxima de uma ditadura terrorista planetária. O que há de racional no capitalismo? As origens, novamente repetidas, da sua acumulação e expansão através da expropriação e do saque, do colonialismo e da escravatura? O que há de racional num modo de realizar lucros sobre lucros, dinheiro através de dinheiro, numa acumulação cega para a qual os seres humanos interessam somente como meios?

 

J.A. Nozes Pires

18/10/2016

 

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