À guisa de conclusão
Nenhuma interpretação permite conclusões definitivas. Bento Espinosa ou F. G-W. Hegel produziram monumentos maciços por fora mas cortados por dentro por imbricados labirintos, sempre percorridos, sem pre revisitados, ontem, hoje e amanhã. Em cada época se ensaia uma leitura, em cada leitor há uma senha que decifra um pouco mais, ou um pequenino detalhe que a ele lhe toca especialmente. Pomos na obra muito do que já levamos, trazemos dela muito daquilo que esperamos.
O sistema de dom Deschamps não é à primeira vista de fácil leitura. Um leitor hodierno está demasiado habituado à boa leitura, aos grandes romances, e aos textos aparentemente límpidos dos filósofos mais apetecíveis. Seria provavelmente uma tarefa ingrata, condenada ao insuceso ou à indigestão, aconselhar a leitura de A Voz da Razão, de Deschamps. Mas será fácil a leitura de A Fenomenologia do espírito? E quem lê hoje o Sistema da natureza, de d’Holbach? Ou os magníficos tratados do extraordinário Helvétius, tão esquecido, tãa desprezado? É que na escolha das leituras também uma opção, mais ou menos consciente, de natureza ideológica, e não apenas uma livre espontaneidade do gosto...Nem todos os livros “velhos” se desprezam, mas desprezam-se mais uns do que outros. Queremos crer, sem parti-pris e juízos de reserva, que, em parte pelo menos, os livros dos filósofos materialistas tombaram no olvido de propósito, e nós, cá em Portugal, sabemos disso muito bem.
Os sistemas, enquanto edifícios autosuficientes, perdem vitalidade com o passar da vida, com a mudança profunda das condições em que foram construídos. A sua verdade fechada não resiste ao novo pensar, às muitas dúvidas e infirmações que passaram debaixo da ponte. Certamente. Hoje não faria qualquer sentido que um cidadão francês, ou um partido político, defendesse para o seu país um programa de economia camponesa à imagem e semelhança do “estado de costumes”, de dom Deschamps. Essa conclusão é justa e nenhum filósofo, para mais utopista, fica imune a esse tremendo desgaste, nem Platão tão ensinado nas escolas! No caso das utopias sociais, esse é uma comclusão, e uma crítica, que muito justamente se lhes deve aplicar. Porque a experiência, no sentido amplo, ainda é uma mãe e uma boa pedra-de-toque. Se a autopia possui alguma fraqueza congénita há de esta encontrar-se no “como lá chegar” e no desneho da cidade que o autor nos oferece. Ficaríamos provavelmente horrorizados se fossemos transplantados para a Cidade do Sol, de Campanella. E confranger-nos-ia a uniformidade das habitações e do vestuário na ilha da Utopia. O “estado de costumes”, de Deschamps, provoca-nos um arrepio só por imaginarmos que teríamos de viver sem as sinfonias de Beethoven e os romances de Sthendal..E sem, sejamos francos, as comodidades do mundo moderno. Eternamente, sem sequer uns amanhãs que hão de cantar finalmente...
No entanto, existem outras possibilidades de leitura. A começar pela selecção de fragmentos, ou seja, isto não serve, mas aquilo é bom, actual, inteligente. Dizemos então : realmente a felicidade é uma coisa muito complicada : a posse, a acumulação, a ostentação, o uso, de bens materiais sempre novos, não nos garante, só por si, a feliicidade! Todavia, logo nos lembramos que a maioria esmagaora da humanidade não goza desses bens, e muitos milh~es não têm sequer o que comer...E, de novo, reflectimos : pois, por isso seria necessário produzir mais e distribuir melhor! Ora, homens como Deschmps, já há muito nos advertem de que terra mãe é a base todo o auto sustento, devíamos preservá-la, preservar as técnicas tradicionais de cultivo, que, embora menos eficientes que as nossas, eram, contudo, mais respeitadoras...
Em suma : os bons filósofos, que são aqueles que observam o seu tempo e falam para outros tempos, contêm advertências, erguem sinais de trânsito, alertam inclusive para a sociedade que está para vir : cuidado com as vossas auto confianças pois Prometeu também foi castigado!
Deste arremedo fica a perceber-se uma imperativa interpretação dos avisos de dom Deschamps e eles dirigem-se ao Movimento das Luzes. Por isso ele dispara em todas as direcções : rejeita as ilusões religiosas, por falsas, manipuladoras, instrumentos da monarquia absoluta divina, e meras projecções psicológicas dos medos e das esperanças. Fiquemos sem Deus dos teólogos e da populaça, fiquemos com a divina natureza e recuperemos das ruínas o infinito e a eternidade, sem que disto façamos um novo Deus obscuro e ignotus. Indubitavelmente que o grande mestre e o rico filão foi Espinosa e o seu Tratado Teológico-Político.
Ao mesmo tempo arrete contra as ilusões daqueles que julgavam ter demolido todas as ilusões político-religiosas : a nova fé na Razão! A excepcional defesa deque a educação é tudo, advogada por Helvétius, tropeça numa pergunta capital : educar para que sociedade? Se se conservam os alicerces desta, tudo renascerá, provavelmente com mais vício e violência.
Basta “matar” Deus para que todo o mundo fique liberto e feliz? Ou passaremos por uma fase de puro niilismo como anunciaria Nietzsche?
A questão capital para Deschamps não era, em boa verdade, uma pura e simples questão moral, ainda que ele, e os demais, usem e abusem da palavra : a questão central era política, de regime, de organização da sociedade. E a esta questão não podemos escapar, associando para o alto, ainda que a sociedade que ele nos oferece não nos seduza por aí além. No entanto, é conveniente admitir que outros se deixem seduzir.
Determinados filósofos fizeram a morte uma objecção a determinadas formas de existência. Talvez hajam pensado mais na morte do que na vida, contrariamente ao que nos ensinava Espinosa, para quem o sábio é aquele que pensa mais na vida do que na morte. As reflexões de Deschamps sobre a morte, e sobretudo o modo como a aceitaremos no “estado de costumes”, levam-nos a concluir que ele aprendeu a lição de Espinosa. Deschamps não é um precursor de Heidegger.
Apesar das críticas, das suspeitas, que Deschamps lança sobre os iluministas, sobre os seus programas, ele foi um deles. Em muita coisa que escreveu, e até no modo como se perguntou, revela-se a marca do seu tempo, a presença dos mais notórios filósofos das Luzes, o ruído dos diálogos que ele estabeleceu com alguns deles. Deschamps, embora fortemente marcado por Rousseau, embora tivesse sido, como este, um críico das Luzes, foi mais iluminista do que Rousseau, porque este, em certo sentido, também o foi. Ambos alimentaram a crença no progresso, fosse qual fosse, o passado servia somente para aprender com ele, não para o repetir, o futuro era o caminho, não o passado. Ambos acreidtaram nos poderes da Razão, ainda que Rousseau lhe colocasse o contrapeso do coração, e Deschamps desocbrisse nessa nova racionalidade imensas contradições. Para Deschamps, é certo, a Razão não vinha vestida dos paramentos da Ciência experimental, mas vinha finalmente iluminar os espíritos e resolver o grande enigma. Foi preciso passar-se pelo “inferno” do “estado de leis”. Numa palavra : para ambos o século no qual lhes fora dado a sorte de viverem, era realmente o Século! Por isso, Deschamps é definitivo : Tout est tout, et tout est dit! Depois, queimem-se os livros, o meu também. Poucos, ou talvez mais nenhum levou tão longe, afinal, essa fé racional na Razão. Ou seja, de que esta nos dá o acesso à Verdade. À verdade do fundamento, será correcto acrescentar, para quem, como todos nós, leu a crítica de Heidegger.
Temos vindo a mostrar que Deschamps sem Espinosa poderia ter sido um filósofo de qualquer modo, mas não seria o Deschamps que lemos. Seria provavelmente um “padre sem igreja”, um anti-clerical e um moralista que zurgia nos vícios sociais. Mas não se teria interorgado sobre a substância única e os deus atributos cognoscíveis, e não teria daod muito provavelmente a mesma resposta. Não o desmerecemos por isso, ainda que Espinosa se engrandeça.
Na realidade o fundamento é o mesmo : quer seja a Existência, quer seja a substância única. Os dois atributos são inseparáveis e relativamente, só relativamente, diferentes.
Escreve Deschamps :
“ Le rapport de Tout au Tout est purement négatif, et quand je dis de Tout qu’il est sans rapport, j’entends : sans rapport positif. Le rapport négatif de Tout au Tout affirme nécessairement l’existence du Tout, et, conséquemment, celle de ses parties : c’est l’infini qui nie et affirme tout à la fois le fini ; c’est le Rien qui nie et affirme tout à la fois l’existence sensible, et qui par là est la contradiction même. Tout dans Le Tout (mais non pas telle ou telle chose) est Le Tout : tout dans Le Tout et Le Tout sont Tout ; ou, si l’on veut, tout dans le fini est le fini, et tout dans le fini et le fini sont l’infini ; tout dans le temps est le temps, et tout dans le temps et le temps sont l’éternité ; l’éternité prise négativement, car on la prend positivement quand on parle d’éternité antédédante et subséquente, et qu’au lieu de la définir comme ce qui n’a ni commencement ni fin, ce qui nie tout commencement et toute fin, on la définit comme ce qui a toujours été, ce qui est, et ce qui sera toujours : définition positive qui ne convient qu’au temps. Tout est le tout du Tout, comme Le Tout l’est des parties, Ces deux êtres, qui sont le même vu sous deux aspects contraires, sont la seule science, tout le reste est connaissance ; et cette seule et unique science, ou la Vérité, est tellement nous et tout ce qui existe que sa clarté, quand elle nous frappe, ne nous semble jamais qu’une réminiscence.
Le mot Dieu est à retrancher de nos langues, à cause de l’idée de moralité et de celle d’intelligence qu’on lui a attachées, et de l’idée du Tout et de celle de Tout que l’on a confondues dans lui, en le disant infini et parfait, ce qui ne peut pas se dire du même être : il faut nécessairement deuz noms pour exprimer la substance, vue sous ses deux aspects contraires, puisqu’elle affirme sous l’un ce qu’elle nie sous l’autre. » (p. 141).
A substância não pode ser dividida, tal como di-lo Espinosa na Prop. XII, da ÈTICA, e explica na Demonstração.
No Escólio da Prop. XIII : “Compreende-se mais simplesmente que a substância seja indivisível por isto apenas : a natureza da substância não pode ser concebida senão como infinita, e por “parte da substância” não pode entender-se outra coisa que não seja “substância finita”, o que (pela prop.8) implica manifesta contradição”. Contradição, de facto...
Por fim, e quanto ao materialismo, não temos dúvidas em classificar Deschamps como materialista. Sem reservas, porque, em boa verdade, mais reservados deveriam ser aqueles que reduzem a matéria ou a um algo informe, ou um algo vil. A Academia Francesa decretava em 1762 que o materialismo era a “Opinião dos que não admitem outra substância além da matéria”, mais circunspecta, como lhe competia, do que o dicionário de Trévoux, o qul alertava pata esse “dogma muito perigoso, segundo o qual alguns filósofos, indignos de tal nome, pretendem que tudo é matéria, negando a imortalidade da alma”. Nem tudo, porém, era “matéria”, se por tal coisa se entendia aquilo que era “bruto” e “grosseiro”. Nem “passivo”, como vieram a demonstrar que o não era todos os materialistas, ou naturalistas, com que muitas vezes se confundiam. Uma grande batalha tiveram pela frente. Às vezes cediam, aqui e ali, mas raramente cediam na concepção, que procuraram modernizar, da unidade material do mundo. E não cederam, embora o fizessem com variantes, no combate contra o dualismo de intenção religiosa. Foi contra essa tese, contraditória nos termos segundo acreditavam, que se bateram, tese que impossibilitava admitir a unidade do homem e da natureza e, portanto, viver para ela com uma moralidade recta e natural. É nesse combate, que é todo um programa, que havemos de incluir justamente dom Deschamps. Houve panteístas? Pois houve, ainda prisioneiros de uma crença em uma Alma, ainda que imanente à matéria. Por isso, filósofos houve que procuraram libertar o materialismo dessas antiguidades místicas. Talvez fosse por isso que alguns deles lidaram com manifesta dificuldade com o sistema de Espinosa, interpretado como panteísta, e insuficientemente ateu. Pois bem: dom Deschamps não quis ser panteísta, em boa verdade não o foi, mas não rompeu com Espinosa por causa disso, ou não foi por causa disso que em alguma coisa rompeu. Foi, sobretudo, porque os ateus, ao pretenderem corrigir Espinosa, deixaram de fora o infinito, construindo um Todo demasiado ‘naturalizado’, ao qual se acedia mais pelos sentidos do que por essa abstracção vazia. Como é que se pode aceder à substância – a tudo - através dos sentidos? Ora, se alguém involuntária ou voluntariamente “salvou” de facto Espinosa, foi o próprio Deschamps. Quem melhor compreendeu a necessidade de um conhecimento do ‘terceiro género’ e a necessária distinção entre a Matéria como ‘extensão’ e o Pensamento, e ambos os atributos como co-essenciais à substância ‘Deus’. Quem melhor teria construído uma ponte entre o iluminismo materialista ateu do século dezoito e a recuperação de Espinosa pela filosofia alemã do termo do século. Se as voltas do destino tivessem trazido fama a Dom Deschamps, talvez Hegel, nas suas lições sobre a história da filosofia, houvesse referido o seu sistema à parte do materialismo «superficial» do barão d’Holbach. Mesmo que o considerasse sem grande genialidade, haveria de se mostrar atento à esforçada busca do Infinito. Rematando, é claro, que este ‘infinito’ do beneditino ateu não possuia ‘subjectividade’ suficiente para exprimir o movimento da Consciência em direcção ao Absoluto.
Os sistemas filosóficos constituem, nalguns casos, uma espécie de logomaquias, senão mesmo logomanias. No século dezoito acentuou-se esta perspectiva crítica cujas origens já encontramos muito tempo atrás na crescente rejeição dos excessos da escolástica. No entanto, tal ambição não se finou tão depressa, adquiriu até uma fôlego inesperado com a obra de d’Holbach, a qual parece conter todas as virtudes e defeitos dessas construções que se pretendem absolutamente coerentes, em circuito fechado, a que chamamos Sistemas. Quando os encaramos desligados do contexto epocal ou histórico, e não nos referimos somente ao campo das controvérsias filosóficas, ainda que admitamos que eles cumpriram o seu papel e saíram da cena, ficamos sem saber muito bem qual foi esse papel. Pontos de vista redutores parecem querer apagar da história das ideias o facto de que esta também é expressão de batalhas ideológicas, tomado o termo Ideologia no sentido de conter interesses práticos e programas políticos e éticos. A história das ideias, qualquer que ela seja, não se movimenta no éter do firmamento mas nos territórios das diferenças e dos antagonismos sociais. Em relação a estes a sua autonomia é bem relativa. A filosofia não é nunca pura e desinteressada, como todos sabemos porventura, nenhum muro de betão separa a filosofia, por mais especulativa que ela seja, da Ideologia, ainda que esta se apresente amiúde como confusos conglomerados de opiniões, desejos e ficções. Temos vindo a percorrer uma época, um século, onde as batalhas de ideias foram fortes e implacáceis, saldando-se por fracassos e êxitos, vencidos e vencedores. Acreditamos que os filósofos materialistas abalaram bastante, na segunda metade do século, as poderosas defesas da igreja católica em França, ou, se preferirmos, o regime monárquico-clerical. Ora, tal desfecho anunciava-se já na década de sessenta, o sucesso do Sistema da natureza de d’Holbach, é amplamente elucidativo, e dom Deschamps percebeu isso perfeitamente. Quando ele avisa das consequências de uma revolução violenta, que pode deixar o fundamental de pé, também nós o percebemos muito bem. Não é por acaso que uma das questões que mais sensibilizava os espíritos prendia-se com a existência do mal, isto é, da infelicidade, das fomes, dos cataclismos, da morte dos inocentes, etc. Se existia uma Deus bom e misericordioso, como era possível que Ele o permitisse? Todos conhecemos a célebre sátira de Voltaire, O Cândido, e o seu ensaio sobre os efeitos do terramoto de Lisboa.
Por conseguinte, para Deschamps a pergunta continha já a resposta: esse Deus não pode existir por mera evidência da razão e, portanto, há que buscar a raiz dos males noutro lado. Que ele julgou ter descoberto. Daí que derrubar a religião para substituí-la por uma ideologia meramente jurídica (as leis), não era mais que substituir uma ficção por uma ilusão. Interpretado deste modo, dom Deschamps é, a nosso ver, mais interessante do que d’Holbach. Talvez fosse por isso que Diderot gostou deveras do beneditino. Paradoxalmente as utopias parecem atrair os espíritos mais cépticos, críticos e radicais.
Interpretado deste modo dom Deschamps chega aos nossos dias, porque desafia ainda determinadas evidências, já muito abaladas por Marx, Nietzsche e Freud.
Dom Deschamps foi um iluminista (os outros eram apenas semi, como ele garante), deu-nos um coerente sistema de ateísmo (os outros eram ateus não esclarecidos, como ele afirma), e foi um iluminado de seita (como os outros foram mações). Certamente. Mas aquilo que nele perdura é aquilo que mais fascina em Espinosa (salvaguardadas as diferenças e as paternidades): uma interessante explicação do mundo natural e uma inteligente doutrina sobre os significados da existência humana; não é exclusivamente a verdade científica que discrimina o bom do mau filosofar.
É incontestável que o sistema da Verdade, enquanto Sistema, não venceu o tempo. Se a vida condena os sistemas, condena mais aqueles que geram um programa que interrompe ou finaliza a História. Todavia, a pulsão utópica e a orientação ontológica não morreram, e presume-se que suceda aqui como sucede naquela peça teatral em que as personagens andam à procura de um Autor.
Dir-se-á que o crítico Kant fez o ajuste de contas com a Razão Pura de todos os sistemas. Mas não tardaria muito que logo F. G-W. Hegel haja produzido o mais completo e ambicioso sistema de todos os tempos.
Jean-Jacques Rousseau e Dom Deschamps
Dom Deschamps leu os Discursos de Rousseau, trocou com ele correspondência, e não se encontraram no castelo dos Voyer apenas porque Rousseau se sentia doente. As semelhanças de pensamento entre ambos são flagrantes, como iremos comprovar; a tese menos óbvia é demonstrar que o beneditino sofreu influência do famoso escritor. Contudo, existem diferenças, e é por essa razão que o monge se tornou interessante aos nossos olhos, tal como marcou diferenças com Espinosa. Rousseau é-lhe evidentemente superior no estilo, na poderosa influência que obteve em vida e postumamente; assim também, como cremos ter deixado claramente dito, Espinosa foi um filósofo indiscutivelmente superior a Deschamps. Não temos pretensão alguma de colocar este na galeria dos imortais.
«Veja-se entre mil escritos que se debruçaram sobre as nossas misérias, a nota sétima desse Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de J.-J. Rousseau. É aí que poder-se-á ver, melhor do que eu o podesse fazer, toda a infelicidade do nosso estado social, mas vê-se aí esta infelicidade por comparação com a felicidade do estado selvagem, e isto não basta; é necessário que se veja por comparação com a felicidade do verdadeiro estado social, do estado de união sem desunião, estado, sem dúvida, infinitamente mais vantajoso ao homem do que o estado de desunião sem união, o estado selvagem»
A nota sétima a que se refere é importante por duas razões: primeira, porque o autor, Jean-Jacques, sintetiza, e de maneira admirável, a ordem original do seu pensamento, a qual, de resto, não abandonaria até ao termo da vida; segunda, porque é nessa nota – longa – que o monge encontra a sua inspiração principal, ou, pelo menos, um apoio seguro.
A nota, como se sabe, analisa e descreve diversos males sociais, argumentando o autor que não existiriam, ou seriam bem menores, se os homens vivessem em concordância com a simplicidade natural. A civilização comercial e industrial é atacada nos seus fundamentos, ou seja, no ponto de vista ético, político e económico. O luxo, por exemplo, é apontado como causa de muitos males e, ao mesmo tempo, efeito de uma orientação errada da governação das nações europeias. A comparação com os «selvagens» serve para demonstrar as diferenças, aquilo que é inútil e aquilo que nos devia ser infinitamente mais vantajoso. Sobressaiem aqui duas questões: a primeira é a de que nesta nota Rousseau não defende expressamente o regresso aos tempos primordiais, nem sequer que os europeus passem a viver tal qual os «selvagens»; a segunda, é que o fundamento dos males encontra-se – como defende a tese do discurso – num modo determinado de apropriação dos recursos da natureza e de apropriação dos frutos do trabalho alheio. Ainda se poderia referir, por outro lado, a noção de «utilidade» sobre a qual Rousseau expressa um ponto de vista completamente oposto a um determinado utilitarismo já em voga. O que é «útil» para Rousseau é apenas aquilo que concordar com a natureza, ou com a nossa natureza boa. Dom Deschamps pensa rigorosamente o mesmo. Ora, tais valores não coincidem com os valores ditos modernos transportados pelas burguesias, e aos quais até aderiam alegremente amplos sectores da aristocracia de toga. Dir-se-á que ambos preferiam os valores burgueses da Holanda, por exemplo, que privilegiavam o conforto, contudo severo e austero, como observamos na pintura flamenga do século anterior. Nem isso. De resto, o luxo já lá estava, e muito mais haveria de estar no século seguinte. Dom Deschamps viajou muito pouco – não encontrámos nenhuma indicação de que haja viajado para além das fronteiras do sue país -, Rousseau bastante mais, mas o beneditino era um homem bem informado, o seu amigo marquês, que passava largos pe´riodos de tempo fora de casa, constituia uma óptima fonte de informação.
A posição crítica que o monge adopta é, pois, a seguinte: o estado actual da sociedade - a sua endógena e universal infelicidade- não deve ser comparado com nem com o passado longínquo, nem com as sociedades «primitivas» contemporâneas. Tal posição está absolutamente conforme a sua visão do que seriam as sociedades primordiais, o primeiro estado. Esta posição, relativamente ao «estado natural», está, aliás, de acordo com a perspectiva espinosana, ainda que se possa afirmar que não está menos em acordo com as célebres páginas do Leviatão, de Hobbes. Sobre este tema podemos detectar duas correntes dispares desde o Renascimento: o desejo de um regresso, qualquer que fosse, a um passado mítico, ou Idade de Oiro, repassado de lirismo e pintado com muitos tons bucólicos. O Poeta Vergílio foi, e vai!, renascendo em épocas diversas...Em suma, a vida campestre em toda a sua idealização. A outra corrente traça um quadro mais ou menos brutal do «estado natural», primitivo, ou anterior às Leis, e antevê no horizonte melhores dias. Cada corrente, chamemos-lhe assim, contem diferenças internas; apesar disso, podemos colocar Rousseau na primeira. Ou seja, o «estado natural» foi, ou é ainda, melhor por comparação; a «natureza humana» é naturalmente boa. Esta posição corresponde a uma forma de utopia. A outra forma de utopia aponta para um futuro luminoso, libertando-se da barbárie, quer utilizando os benefícios da ciência e da técnica – como, exemplarmente, na Nova Atlândida, de F. Bacon -, quer aproveitando o progresso, bom e rejeitando o mau, como fizeram More e Campanella. Evidentemente que a a obra de Bacon é das mais representativas de uma visão utópica da ciência da técnica, enquanto que a de More acentua mais os benefícios da agricultura e de um comércio sem revoluções técnicas (o seu tempo também não ia tão longe), sobretudo dispensando a apropriação privada e a dominação de uma classe social possidente. Neste sentido, e com as devidas diferenças, a utopia de Deschamps filia-se na utopia de More, paradigma filosófico e literário do género.
Rousseau adverte, na nota sétima do Discurso, que não advoga o regresso à vida dos ursos; a sua crítica ao luxo, por exemplo, ou às artes mecânicas que se desenvolvem por causa dele, não conduz à idealização do paraíso original; ele próprio já advertia os leitores, embora se dirigisse mais aos seus adversários potenciais e actuais. E tinha razão: nesse aspecto, como em outros, Rousseau foi erroneamente interpretado. Aplicou-se a grande escritor e pensador francês a mesma receita que se aplicou a Espinosa: a caricatura e a desfiguração. Nem se trata de traduzir mal para outra língua, trata-se de manipulação e má-fé. Tanto mais grave quanto muitos não são leitores das obras originais, mas de interpretações, comentários, resumos, sebentas, histórias e dicionários de filosofia. E é ainda grave o facto de dever-se a Voltaire o comentário injusto, mas definitivo, sobre o «bom selvagem».
Na perspectiva de Rousseau a sociabilidade natural dos homens não esteve, nem está, isenta de erros, inclinações más, egoísmos, invejas, crueldade e bestialidade. Sucede é que antes do conhecimento e da instauração das leis, os homens, no seu estado de natureza, não são bons nem maus. Não são imorais, são a-morais. Contudo,e apesar das semelhanças, não imagina esses homens como Adão e Eva: a inocência não equivale à bondade pura, e isto ver-se-á com mais clareza no seu EMÍLIO. O individualismo caprichoso tem de ser educado, orientado, disciplinado. Não é, contudo, por meio de novos caprichos e maus hábitos, contrários e nocivos à natureza humana.
Justifica-se referir estas ideias que estivemos a sintetizar na medida em que por alturas em que o Discurso foi redigido e publicado, o nosso beneditino procurava um rumo para o seu próprio ideário. Nos cadernos que foi preenchendo, entre as décadas de cinquenta e sessenta, sobretudo naqueles que expõem a sua utopia, a presença das ideias de Rousseau, ou a coincidência, é perfeitamente visível. Dir-se-á que na atmosfera erudita e literária já perpassava um estado de ânimo propenso a idealizar o campo em desfavor das urbes, e que, até mesmo, um certo moralismo, de inspiração mais ou menos cristã, censurava os novos usos e costumes. As políticas governamentais que promiviam o investimento na agricultura, em paralelo com o grande interesse pelos negócios do comércio, tentando até mesmo inflectir os capitais mais em direcção ao sector primário, aumentavam o eco destes sentimentos bucólicos. Tentou-se repetir em França os efeitos da «Revolução Verde» da Inglaterra.Uma ideologia, num corpo bastante difuso de ideias e sentimentos, tentava abir caminho na mente colectiva, em confronto com a ideologia mercantil que correspondia aos interesses dos sectores económico-sociais comprometidos com os negócios e com o apetitoso mercado que o crescimento urbano exigia. A Igreja, instituição pesada na sua inércia secular e directamente ligada à terra e aos senhorios, adaptava-se com muita dificuldade aos novos tempos. O nosso filósofo vivia na Igreja, com ela e para ela.
Ficamos surpreendidos quando constatamos que o nosso beneditino concluiu do Discurso o mesmo que a tradição e o vulgo dos leitores desatentos ou menos bem informados. «É necessário que se veja por comparação com a felicidade do verdadeiro estado social, do estado de união sem desunião, estado, sem dúvida, infinitamente mais vantajoso ao homem do que o estado de desunião sem união, o estado selvagem.»
Parece haver acreditado que a analogia empregue por Rousseau fora mais do que um método, tão estratégico como a fórmula do «Deus» cartesiano. A hipótese do «bom selvagem» não constitui um fundamento, nem sequer um suporte técnico para sair de uma dificuldade. O problema de qual seja a natureza humana prendia-se (como ainda se prende) com a incontornável resposta que se encontarva na ordem-do-dia: o direito natural, o direito positivo, e o direito a erguer. A condição humana primitiva, que a todo o momento ameaçava o homem civilizado, permitiu a Hobbes, por exemplo, projectar um Estado centralizado dotado de um poder soberano e independente. A crítica de Rousseau aos males da civilização, exigia dele que esclarecesse em quê e porquê fomos nós degenerados. Não éramos brutos e maus, como defendia Hobbes, nem pecadores como defendia a Igreja; porém, não éramos totalmente puros, angelicais, como também não o são os hotentotes. Possuímos, isso sim, uma dupla natureza: uma inclinação para o egoísmo feroz e uma inclinação para a sociabilidade e a solidariedade. A crítica dos novos costumes (do império do luxo ou do consumo pelo consumo) ganha acutilância quando nos distanciamos dos nossos hábitos arreigados que julgamos serem uma segunda pele, isto é, quando nos vemos pelo olhar do Outro...pelo olhar dos «primitivos». Todos conhecemos agora a história do Papalagui...Não podemos jamais regredir, nem o deveríamos fazer. O estado original está definitivamente ultrapassado; a própria civilização produziu vantagens e benefícios.
Contudo, o beneditino mostra-se implacável para com um dos seus indiscutíveis mestres: «todas as religiões só têm e só podem ter como finalidade consagrar o vício da nossa união; o que o obrigaria a rejeitar todas as religiões, que ele derruba cum uma mão para reerguer com a outra; e a terceira (razão), que lhe daria a primeira e a segunda, não ter visto o estado verdadeiro de sociedade, depois de ter visto o estado selvagem e o nosso estado social.»
Ora, é aqui que a diferença se levanta. O monge interpreta a tese do «bom selvagem» à letra, toma-a como fundamento da doutrina de Rousseau; baseado nisto conclui que o separam dele versões completamente opostas de progresso, ou de futuro: Rousseau com as suas perspectivas regressivas não consegue detectar as raízes dos males que o estado social provoca e, portanto, não aponta uma solução eficaz, o qual é, para o monge, o estado sem leis. Também aqui a surpresa é grande: pois não teria lido, o monge, já o Contrato social (que é dos inícios da década de sessenta)? È bem provável que o haja feito na altura em que redigiu esta nota relativa a Rousseau, ainda que as notas sejam sempre posteriores.
Nos manuscritos legados pelo monge encontra-se um que se intitula «Crítica do Contrato Social», redigido provavelmente nos finais da década de sessenta, com certeza para ser pronunciado num serão do castelo dos Voyer, e que é dirigido expressamente a Jean-Jacques. A crítica abre com as seguintes palavras:
«O autor do Contrato social estabelece como princípio que o homem nasce livre, coisa que não prova de modo nenhum, e que será sempre uma coisa em discussão, até que se demonstre a verdadeira origem do homem, e que se esclareça bem a ideia que devemos atribuir à palavra liberdade. Para isso é necessário ser mais do que moralista e político; é necessário ser verdadeiramente metafísico; e isto é o que o nosso autor e seus semelhantes são tão pouco que nem sentem mesmo a necessidade de o ser para tratar sensatamente o seu objecto (...)»
Em nota de rodapé o monge escreve que o homem teve a mesma origem que todas as outras espécies: O Todo. Por isso é que todas as espécies se assemelham, e que tudo anda ligado, partes de um todo. Nos cadernos intitulados «Observações morais», onde desenvolve em minúcia a sua utopia, afirma que foi «agrupando-se por causa das suas necessidades e para sua defesa que o homem chegou ao ponto de sociedade em que se encontra», pois que «todo agrupamento entre animais da mesma espécie é um começo de sociedade, que comporta com ele uma qualquer linguagem.» Por exemplo: o «vício de propriedade» existe naturalmente, no sentido de que existe positivamente, mas não é, apesar disso, uma inclinação natural; natural, isto é, não contra natura, é, por exemplo, o apetite entre os dois sexos. Impôr o vício de propriedade ou o casamento é que pode exprimir normas artificiais e contrárias à verdadeira natureza. Se os selvagens, ou mesmo os animais selvagens, demonstram vício de propriedade, tal não demonstra que esse comportamento é natural, no sentido de que é inevitável, e que é bom ( e se não é completamente bom não há, porém, nada a fazer). O facto de já existir na natureza bruta e selvagem dos primeiros homens, ou nos primitivos de hoje, não implica a sua fatalidade. Este assunto ainda é hoje de uma capital importância; as ciências dehoje, como sabemos, não estão imunes aos assaltos da Ideologia. Por isso, é muito útil conhecerem-se as controvérsias dos séculos dezassete e dezoito, porque colocavam já as traves mestras da discussão que ainda não se encerrou. A confusão, por ignorância ou má-fé, que hoje, e sempre, se faz entre apropriação e o direito estabelecido de propriedade privada, não a fizeram nem Rousseau, nem Deschamps.
O monge caracteriza as primeiras etapas da humanidade com a mesma sem complacência com que as ciências humanas do nosso tempo julgam-nas. É Hobbes, mas sem o egoísmo básico e exclusivo; essa noção- psicológica e histórica- só pode ter aplicação em sociedades mais desenvolvidas. O vício selvagem de propriedade foi estimulado e prosseguido, erradamente, pela sociedades que criaram as leis; estas não serviram outro fim fundamental senão este, assim como reprimir o apetite natural entre os sexos. O monge não pensava contra as nossas ciências do homem, nem contra Freud. Nem contra Marx, no que respeita à propriedade.
No contexto da sua curiosa tese e expresão de «mais ou menos» («plus ou moins»), a liberdade é o oposto da necessidade, somos mais ou menos livres conforme somos mais ou menos necessitados. Como já dissémos, o mundo e a vida são compostos de opostos; estes constituem os «extremos» no movimento contínuo entre o mais e o menos.
«O princípio de que o homem nasce livre funda-se na ideia do nosso autor (Rousseau) de que o homem nasceu livre primitivamente no estado selvagem, ou, o que equivale, no estado dos leões e dos ursos.». A tese de Rousseau continua a ser levada à letra, dizendo melhor: a interpretação que Voltaire popularizou (poupando o trabalho de uma leitura, leitura atenta, do texto do autor comentado). «Não lhe contesto este estado de modo algum; porém, sobre que fundamento pode ele encarar como um estado de liberdade um estado no qual o homem solitário e desprovido desta força que somente pode ter lugar através da sua união, pela sociedade com os seus semelhantes, e quase sempre dominado pelo medo?»
Realmente não faz sentido afirmar-se que o homem primitivo era livre. A ideia suprema que funda o liberalismo – todo o homem nasce livre – não encontra fundamento nos primórdios da humanidade, e, menos ainda, na comparação com os povos ditos «primitivos».
Em seguida cita a fórmula célebre de Rousseau e do seu Contrato social – a solução do enigma-: «encontrar uma forma de associação que defende e protege de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um unindo-se aos demais não obedece portanto senão a si mesmo, e permanece tão livre como dantes.»
Indiscutivelmente coerente o nosso monge ataca a fórmula: se este estado continuar a conter o vício de propriedade, está corrompido desde logo, e irá degenerar em democracia imperfeita, aristocracia, monarquia ou despotismo. A Vontade Geral fica comprometida, viciada desde o início. Todos os males renascerão, tudo se repetirá. O erro não está em sermos sociáveis, bem pelo contrário, está em dividirmo-nos, em opormo-nos, em desunirmo-nos, em primeiro lugar por causa da propriedade privada. Não se nasceu livre nos primórdios, não se nasce livre entre os hotentotes, não se nasce livre na modernidade. Esta é a diferença principal com Rousseau. Esta é a base da sua sociedade promissora e utópica; não porque tivessemos vivido alguma vez sem a apropriação, mas porque poderemos dispensá-la. A conquista da consciência não se encontra no retorno, mas no progresso. Aquilo que jamais fomos e tivemos, poderemos sê-lo e tê-lo por força do esclarecimento, isto é, das Luzes, inteiras, completas, e não por metade.
«Um estado de sociedade é necessariamente vicioso, e muito vicioso, desde que a desigualdade aí reine; e ela reina necessariamente, desde que o teu e o meu tenham aí lugar, que os bens aí não sejam comuns.»
Um paralelismo torna-se inevitável, tais são evidentes as contiguidades entre as teses de Rousseau e de Deschamps. Documento algum nos demonstra ter havido contacto entre Rousseau e Deschamps antes de 1762; a correspondência trocada entre ambos é dos finais da década (bem depois da publicação de O Contrato social e de Emílio. Antes de 1762 o monge nada publicou; o começo da redacção do seu sistema remonta quando muito aos finais da década de cinquenta. Se alguém influenciou alguém somente pode ter sido Rousseau; de resto, a fama que desde logo alcançou, com os Discursos, assim o justificaria.
Se o monge divide a história da humanidade em três estados, Rousseau dividiu em três momentos, e aqui a diferença dos termos não possui qualquer relevância. No primeiro estado o monge coloca os homens na desunião; Rousseau descreve um animal pré-social, que parece evocar a descrição à maneira de Hobbes e de Espinosa (conservação de si, ou o conatus). Com o surgimento da linguagem as coisas começam a mudar, e é Rousseau que no-lo diz antes de Deschamps. As necessidades obrigam os indivíduos a unirem-se. O homem natural, segundo Rousseau, adquire sentimentos, linguagem, pensamento (de um instinto bruto de autoconservação passa para a piedade), cria a família e o a posse é justificada pelo trabalho. O segundo estado, para o monge, corresponde à desunião na união.
O esquema parece idêntico. Porém, o que parece não é: a diferença, e bem decisiva, passa pelo valor atribuído à propriedade. O monge não nega que a posse esteja até nas inclinações selvagens (mesmo entre animais não humanos), mas recusa que tenha existido uma idade de harmonia, o que equivale a justificar a propriedade e, portanto, a repô-la na sociedade harmoniosa do futuro. Em Rousseau estabelece-se um terceiro período: a sociedade do «parecer», da mentira, da inveja, do vicioso uso da posse e da linguagem, do amor-próprio, enfim, da dsesigualdade; o Contrato social promete, afinal, um quarto período. O monge fixa a História em três estados; contudo, bem vistas coisas, o primeiro estado também se subdivide em dois momentos (antes e depois da linguagem). Ambos acreditam na perfectibilidade do ser humano. Não existe ponta de fatalismo. Em Rousseau, o que parecia denunciar um profundo e irremediável pessimismo, os livros posteriores desmentem-no. Idêntica asserção se aplica a Deschamps. A análise extremamente crítica do passado, e do presente, não o conduziu para a descrença. Não existe nada que mais desminta o pessimismo e o cepticismo do que uma utopia social. Do que uma utopia tão optimista como a do monge. Claro está que, para nos libertarmos dos erros e dos males, cuja raíz já se encontra na própria condição humana, teremos de proceder a enormes renúncias. Tão difíceis que já ultrapassam o impossível, no projecto do beneditino, tomado em todos os seus pormenores. Possível o projecto de Rousseau, pensaram os revolucionários de 1790.
A antropologia que lemos em Rousseau não contraria frontalmente a de Deschamps, e vice-versa. Qualquer uma delas, em aspectos fulcrais, constitui um preâmbulo, ou prenúncio, da Antropologia que viria a dar passos de gigante com Morgan e Darwin. Certamente que encontramos rasgos de talento e de acerto com Buffon, Maupertuis, Voltaire, Montesquieu, Helvétius, d’Holbach, Diderot...a atmosfera está densa e prenhe, o legado de Hobbes, Espinosa, Locke, é imenso e incontornável. É o espírito científico a fazer o caminho enquanto vai caminhando, é o empirismo, o materialismo, os chamados «naturalistas» de maneira geral. De Rousseau, do seu papel capital no desenvolvimento da antropologia moderna já se disse muito (Lévi-Strauss considerou-o o pioneiro), mas de um monge isolado numa modestíssima abadia de Poitou ainda não.
Na correspondência trocada entre Deschamps e Rousseau, lemos pela pena deste, que responde ao envio pelo primeiro do Prefácio (com o qual, como já informámos, o monge pretendia sondar a opinião de determinados filósofos, com vista à publicação do seu sistema) o seguinte: «O sistema que vós aí anunciais é tão inconcebível, e promete tantas coisas, que não sei que pensar disso. Se consigo porventura transmitir a ideia confusa por comparação com qualquer coisa conhecida, reportá-la-ei ao sistema de Espinosa: porém, se decorre alguma moral deste, ela era puramente especulativa, em vez disso a vossa parece ter leis práticas, o que faz supor que essas leis possuem algumas sanções.». Depois de criticar o método analítico e de rejeitar com alguma veêmencia todo o tipo de abstracções (deduzir as partes a partir do todo, ou de princípios) escreve: «O vosso estilo é muito bom (...) e não duvido que o vosso livro não seja bem escrito: você possui uma cabeça pensante, luzes, filosofia. A vossa maneira de anunciar o vosso sistema torna-o interessante, inquietante mesmo, mas apesar disso fico persuadido que é uma pura fantasia (rêverie)» Curiosa essa evocação de Espinosa!
Evidentemente que o monge não concordou. Está convicto do que descobriu e disso não abre mão. Rousseau quase pede desculpa por não sentir pela metafísica a mesma crença na sua utilidade que aquela que o beneditino tão enfaticamente demonstra. A modéstia que Rousseau adopta (de resto, encontra-se na fase mais difícil da sua vida, sente-se envehecido, com achaques...e sabemos como se isolara, depois de tratar menos bem amigos verdadeiros, e de se sentir perseguido, humilhado e mal compreendido pelos contemporâneos), recusando o epiteto de «filósofo», afirmando-se descrente, ao unicamente crente na realidade substancial do indivíduo concreto e singular e numa razão temperada pelo sentimento, parece converter o monge, por comparação, num espírito dogmático. Com o significado que costumamos atribuir ao dogmatismo, sobretudo dos filósofos de sistema, o monge não era realmente outra coisa. E mais justa é a suspeita quanto sabemos como era imperativa a sua personalidade e a ideia que fazia de si mesmo e do sistema que, finalmente!, vinha iluminar os erros da humanidade e oferecer-lhe a única via de salvação. Isto é, a História estava destinada, por imperativo de uma evolução triádica, a gerar o terceiro estado.
No entanto, Deschamps é um homem dotado de espírito fino e de moralidade respeitável, e mostra-se comedido, sincero admirador do grande Rousseau, elogia-lhe a honestidade, a simplicidade e a modéstia, na resposta. Mas, embora sem tour de force, afirma, e agora com uma clareza que torna admiravelmente compreensível o seu desígnio :« Sempre se tem dito religião e costumes: isso, bem analisado, não quer dizer outra coisa que metafísica e costumes. A sâ metafísica é a verdadeira religião, a única verdadeira e sólida sanção dos costumes.»
Que teria comentado I. Kant se houvesse lido o monge francês?
Conclusões:
1. Dom Deschamps declarou que o seu Verdadeiro Sistema estava terminado em 1761. Levou ez anos a redigi-lo, diz. Rousseau publica os dois Discursos em 1750 e 1754. O mais provável é que as teses de Rousseau, no seu incomparável estilo, hajam encontrado um solo, no monge, já fertilizado pela sua cultura beneditina e monástica, pelo impacto do Testamento, de Jean Meslier, por uma ideologia que promovia os valores da terra e do trabalho, e que cencurava os excessos do luxo e do supérfluo; a tudo isto acrescentava-se, ou pressupunha-se, uma determinada origem social e uma experiência da miséria em que viviam os pobres camponeses (se esta fosse a sua única qualidade moral e o seu único mérito, bastaria para o imaginarmos um sacerdote sensível e respeitável). Além disso, julgamos ter demonstrado a influência do espinosismo.
Ainda assim, devemos enfatizar a aproximação flagrante entre as posições de Deschamps e Rousseau, e aqui não nos parece haver apenas puras coincidências. Caminham par a par no ataque à civlização tal qual se apresentava, às ciências e às artes literárias pelo rumo que prosseguiam, às leis, predominantemente arbitrárias e servindo para agrilhoar os homens, ao vicioso uso do direito de propriedade, à falsidade das relações sociais. Mas a utopia social de Deschamps é completamente rústica – as cidades desaparecem – e o seu igualitarismo é de um radicalismo que dificilmente encontra quem o supere em toda a história moderna das utopias. Nivelamento absoluto. Curioso é constatar que o poderoso marquês de Voyer defendeu convictamente o sistema do seu protegido, e o seu filho vir a ser um dos amigos de Sylvain Maréchal, notório, e notável, adepto de utopias radicais durante a Revolução. De resto, se Rousseau foi a fonte onde Maréchal bebeu, também o foi para o beneditino que faleceu quando Sylvain tinha pouco mais de vinte anos. Se os philosophes obtiveram grande influência (por exemplo no grande Condorcet), é de admitir que Rousseau teve muito mais, sobre os revolucionários de 1790. E algumas das teses influentes de Rousseau encontram-se no seu L’Emile. Aí os revolucionários, como Maréchal e babeuf, assimilaram a apologia da natureza, da idade de oiro, da vida patriarcal, a crítica das cidades, das artes que prevertem, dos grandes Estados que abafam a liberdade...Estão ambos, Rousseau e Deschamps, tão próximos um do outro, que nos parece bem mais do que simples coincidência. A atmosfera intelectual impregnou os utopistas sociais dessa época, e eles, pelo seu lado, fecundaram-na. Como intelectuais, como ideólogos, tiveram uma influência decisiva na formação das mentalidades. Diderot não resistiu a escrever aquele belo livro que se intitula «Suplemento à viagem de Bougainville».
Dom Deschamps não nutria simpatia especial pelos philosophes, que julgava capazes de tirar com a mão direita o que ofereciam com a mão esquerda; Rousseau tão pouco os admirava, como se sabe. Os jacobinos, Robespierre à cabeça, dedicaram-se à tarefa de construir a Vontade Geral; os grupos mais à esquerda, G. Babeuf entre eles, apostaram as vidas num jogo que muito atrapalhou a Revolução, senão mesmo a ajudou a afundar-se. O igualitarismo de um monge esquecido encontrou eco e uma base social. Falhou completa e estrondosamente. E aquilo que fracassa costuma classificar-se como utopia. E se...porém, ao historiador não interessa cenários possíveis mas que não se realizaram.
No entanto, ao historiador das ideias interessa detectar na confusão das ideias que correm, quais eram e donde vieram. As críticas desfechadas à civilização mercantil ou burguesa (que a aristocracia não desdenhava) da sua lavra não foram as únicas (famosas foram as de Rousseau), nem sequer foi excepcional o seu igualitarismo nivelador. Era uma época que estava prenhe de projectos e de utopias. Apesar disso, apesar da importância que os contextos desempenham, o Sistema Verdadeiro, de Dom Deschamps, acompanhado pelo projecto do último estado (o da união sem desunião), continua a ser de uma surpreendente originalidade, de uma perturbadora singularidade. Empurrou até às últimas consequências o espinosismo (bem ou mal assimilado) e fez outro tanto com as teses de Rousseau. Se as cidades são fontes de maus costumes, extingam-se; se as ciências e as artes são inúteis, eliminem-se; se o casamento é pura convenção que produz mais males do que bens, substitua-se pelas relações naturais e pela comunidade das mulheres (e dos homens), sem que isso traduza o regresso à animalidade; se a apropriação - e o direito que a veio consagrar- é toda ela vício e raiz de todos os males, extirpe-se a raiz. « Se todos os homens fossem iguais e comuns os bens, homem algum acalentaria inveja pelo seu semelhante, nem se esforçaria por elevar-se acima dele, nem a apropriar-se de alguma coisa, e, consequentemente, a inveja, a ambição, o interesse, estes vícios tão perniciosos e tão destrutivos, não teriam lugar nenhum. É uma verdade à qual todo o homem sensato dever-se-ia vergar, e que me basta anunciar para fazer ver que a minha moral é incontestável.»
2. Deschamps critica a tese de Rousseau de que o homem nasceu livre, com a antítese de que a liberdade é o oposto da necessidade. Esta formulação é muito mais dialéctica do que a de Rousseau. A nosso ver, mais justa. De resto, os homens quando dominados pelo medo não podiam ser livres.
1. Deschamps submete o empirismo, ou o sensualismo, em voga nos iluministas, à crítica implacável, como já vimos antes, e como seria de esperar em congruência com a defesa que faz relativamente à metafísica, à razão esclarecida, à intuição intelectual. Muito embora J.J. Rousseau atribua um papel especial ao sentimento, ao coração, não é por isso que aprova o sensualismo e o fisicismo. Rousseau em rigor não é empirista. A ênfase que coloca na subjectividade, não o impede de modo algum de ligar cada indivíduo à totalidade; a Vontade Geral é precisamente o resultado dessa formulação dialéctica. Neste sentido Rousseau e Deschamps não se opôem.
2. Ambos submetem a Modernidade à crítica. Ambos não acreditam que a Modernidade, conforme a visão de muitos iluministas, traduza completamente o progresso, isto é, que esgote toda e qualquer outra alternativa. Segundo o pensamento de ambos esse progresso, concreto e determinado, não exprime somente o excelente, mas transporta rumos e consequências negativas. Nesse progresso existe qualquer coisa de decadente. A França, ou a Europa, não estava a singrar pelos melhores caminhos. Para Deschamps anunciava-se o perigo de terríveis violências, e fala claramente em «Revolução». Também Rousseau não desejou que o tomassem como um revolucionário. Paradoxalmente foi ele que mais incendiou os corações. O monge, pelo seu lado, advogou a «comunidade dos bens», ideia que não encontra outra mais revolucionária...
3. Em uma carta dirigida ao abade Raynal, Rousseau escreve que «prefere a rusticidade à orgulhosa e falsa polidez do nosso século». A decadência dos costumes está em proporção directa com a elevação da cultura. Tese importante, dom Deschamps exprime-a como sendo sua, de certa maneira sê-lo-á. Nessa carta Rousseau declara-se céptico relativamente a palavras como «Virtude, verdade», que não são mais do que palavras, ainda que proferidas com grande ênfase declarativo. Ao submeter a «cultura» ao crivo da crítica, Rousseau eleva o debate das ideias. Qual a sua origem, a sua finalidade, quais os actores e respectivos papéis. Dom Deschamps, em um discurso pronunciado muito provavelmente num serão cultural (!) do castelo do seu mecenas marquês, responde a seu modo à questão que «se tem agitado muito nestes últimos tempos», começando por orientar o debate, que lhe parece viciado pelo mesmo erro de perspectiva, segundo três pontos de vista, isto é, é preciso considerar o homem conforme os dois extremos e o meio que comportam em geral os estados de sociedade, pois que nada existe na natureza que não comporte extremos e meio. É preciso, portanto, considerar os homens no estado selvagem, primeiramente, como, de resto, o fez «com inteligência um homem eloquente»e comparar com o nosso, pois que ambos são os extremos; o primeiro na realidade não é preferível ao nosso, embora possa parecer (remoque dirigido a Rousseau). É prciso, então, considerar os homens no estado do «meio, estado simples, que verdadeiramente jamais existiu, embora sempre geralmente desejado; nesse estado do qual amamos apaixonadamente as pinturas, por toda a parte onde as encontemos, que esta idade de oiro, [...] este estado de inocência tão vangloriado, e que não é outra coisa, no fundo, que os dois outros estados rectificados; neste estado no qual os homens, todos iguais, não conhecerão, vivendo em sociedade, nem o teu nem o meu [...] em que os homens apenas cultivarão as artes de primeira necessidade[...] em que não existirão mais virtudes, porque não existirão aí vícios[...] onde as leis, fonte de todos os crimes, não terão nenhuma entrada», para além de todo o bem e de todo o mal, poder-se-ia deduzir das teses do beneditino, para além da necessidade de fabricar valores, porque «a verdade inteiramente nua não terá necessidade alguma da iluminura do discurso, do adorno da eloquência, da harmonia dos versos, coisas que existem apenas na falta da verdade», desaparecendo uma necessidade desaparecem as necessidades correlativas, basta conhecer as causas, elemniá-las para suprir os efeitos, sem os tormentos da paixão os poetas não escreveriam versos,, sem ócio e a insatisfação não sentiríamos o aborrecimento, «este flagelo das cidades»; consequentemente «não existirão mais cidades», apenas simples aldeias, dispensar-seão porque não haverá mais divisão do trabalho, e desemprego, e necessidade de trabalhar para alguiém para não morrer de fome»...A cultura? Linguagem e razão? « não serão transformadas em arte», da mesma maneira que não moralisaremos mais»; aliás, não será preciso mesmo saber ler e escrever», bastará o uso para ensinarmos e aprendermos»; afinal para que servem tantos livros se continuamos ignorantes sobre o fundo das coisas? «A verdade metafísica, [logo que]conhecida, eliminá-los-á desde o ABC até àqueles que têm por objecto as artes de primeira necessidade.»
4. Apesar destas afirmações de um radicalismo que ainda assombra, o beneditino não assusta: não advoga a tomada do poder pela violência, e a utilização desse poder para evacuar as cidades e exterminar os intelectuais. Compacentemente considera que enquanto vivermos neste estado, ou seja, no pior de todos, podemos e devemos extrair das ciências e das artes a utulidade possível e necessária; na verdade, «as ciências são mais úteis à nossa sociedade que prejudiciais», e bom seria que elas se generalizassem, aumentasse o número das pessoas polidas e cultivadas; que a cultura erudita cultiva os bons espíritos prova-se pelo género de pessoas de fino gosto que escutam este discurso...Na verdade, «sem os conhecimentos, as artes e os talentos, a sociedade dos homens que não são povo, nem, consequentemente obrigados aos trabalhos úteis do povo, não seria mais que uma vil necessidade, que se satisfaria com aborrecimento. É um corpo fraco[ o povo] que só subsiste através de recursos que o enfraquecem cada vez mais, que somente se sustenta com os magros alimentos do jogo, da malidicência, com o uso perigoso de uma comida excessiva, do vinho, e do amor. A liberdade degenera aí em grosseria, toda a delicadeza é banida, o espírito prostitue-se aí em equívocos enfadonhos, no abuso miserável das palavras, fala-se por falar, é uma intemperança contínua da linguagem, da qual nada resulta.»
O ponto de vista do monge não colide com o de Rousseau. É para as gentes esclarecidas e sérias que os querem escutar e ler que eles dirigem a sua mensagem. É para afastar dos males aqueles que ouberem e quiserem fazê-lo. Não sendo moralistas, são profetas. Trazem a boa nova. Avisam das terríveis consequências da teimosia numa determinada forma de existência e anunciam uma outra. A existência é uma palavra decisiva no vocabulário de ambos. Por enquanto não existimos verdadeiramente, ou existimos mal. Para Deschamps a compreensão metafísica do mundo e da vida (pelo Tudo) dá-nos a existñcia verdadeira. O terceiro estado é a sua adequada expressão.
IGUALITARISMOS
No século que ora estamos a abordar – o século XVIII – a França era uma economia eminentemente rural, na década de sessenta. A crítica social exercia-se princupalmente sobre a propriedade fundiária, advogando uns que ela fosse restruturada em moldes capitalistas (o que pressupunha uma reforma profunda dos dirteitos de posse, renda e usufruto), outros, que se olhasse para a situação miserável dos camponeses. Pairava permanentemente a ameaça da fome, das dívidas, da brutalidade dos comerciantes de grãos. Como escrever Alberto Soboul «A utopia social inscreveu-se nestes mesmos quadros: a cidade ideal foi a maior parte das vezes uma sociedade agrária e artesanal, onde o problema de base continuava a ser o da repartição de uma produção que mal chegava.»
A utopia de Dom Deschamps situa-se perfeitamente neste contexto. Contudo, distingue-se daquela forma de distribuição que se classifica de «igualitarismo», que viria a constituir-se como um poderoso movimento de massas no decurso da Revolução, e ainda com forte expressão em 1848 com o «socialisme des partageux», que desejava conservar a propriedade, pequena ou familiar, mas organizando-a sobe um fundamento de igualdade.
Dom Deschamps, porém, faz eliminar toda e qualquer forma de apropriação privada. Não recorre sequer ao Estado, às «nacionalizações». Dispensa mediações, intermediários e controlos. Dispensa governos e centralizações. De resto, a economia da sua sociedade ideal é suficientemente simples, ou primitiva, para necessitar de aparelhos complexos. O projecto da «pequena propriedade» de O Contrato social, de Rousseau, orientou a esquerda jacobina; os projectos de Morelly e de Mably influenciaram a Conspiração pela Igualdade, de G. Babeuf e do seu grupo. Os Iguais instaurariam, se tivessem podido, um Estado fortemente centralizador.
Sylvail Maréchal, poeta, franco-mação, companheiro de Babeuf, foi amigo dos Argenson, agitou seguramente a cabeça ardente do mais jovem dos Voyer, era, de resto, frequentador da sua casa e da sua biblioteca, muito provavelmente teve conhecimento de um monge que falecera há una anos atrás, ateu e advogado dos pobres. Novos estudos sobre esta personagem deveras interessante talvez trouxessem à luz algum contacto com os manuscritos do beneditino. Reinava com certeza ainda na atmosfera daquele castelo de importantes Grandes de França, a presença tutelar do robusto monge, decidido e definitivo nas suas prelecções.
Rousseau marcou várias gerações; mas, para alguns, mostrava-se demasiado tímido nas suas conclusões; a geração de S. Maréchal, sobretudo a de Babeuf, muito mais novo, depressa inflectiram em direcção às doutrinas de Mably e Morelly.
Rousseau só conseguiu conceber um Estado baseado sobre estruturas agrárias, não viu a necessidade da divisão social do trabalho, nem as transformações civilizacionais transportadas pela economia industrial. Tal e qual Dom Deschamps.
Mably, nascido em 1709, foi um escritor político muito considerado na fase da «revolução aristocrática» (1787-1788), e ainda o foi na segunda fase da «revolução liberal» sob a Assembleia Constituinte de 1789 a 1791. O então célebre tribuno Camille Desmoulins defende a passagem da «revolução burguesa» para uma fase mais avançada – uma fase democrática – servindo-se das doutrinas de Rousseau e de Mably. Mably nunca colaborou com a Encyclopédie e não foi certamente um philosophe e um iluminista. Casos como este não foram raros e demonstram que é errado circunscrever o movimento das ideias na França (como, de resto, na Europa em geral) ao Movimento das Luzes, especificamente falando. No sentido amplo todos estes pensadores se sentiam «iluminados» pela Razão, pelos progressos do espírito humano (parafraseando Condorcet), mas nem todos tocavam a mesma música. O interesse que atribuímos a Deschamps encontra-se nesta questão que não é de somenos importãncia, nem para a história da Filosofia Moderna, nem para uma História das Ideias.
Se fazemos refer~encia a Mably não é porque entre ele e o nosso monge beneditino houvesse conhecimento recíproco, pessoal pelo menos. Mably é mais tardio, a sua obra só começa a ser discutida no termo da vida de Dom Deschamps. Sobre este não houve seguramente qualquer influência de Mably, mas nada proibe a hipótese – meramente uma hipótese – de que o primeiro haja influenciado o segundo.
Nos textos intitulados «Da Legislação ou do Princípios das leis», publicados em 1776 (já depois da morte de Dom Deschamps), Mably elogia o modo de existência que souberam escolher os espartanos e os Suecos, «orgulhosos da sua pobreza, da sua temperança, da sua frugalidade e da sua coragem, eles era, felizes». Pelo contrário quando o filósofo entra no palácio de um rico exclama:« Quantas coisas das quais não tenho qualquer necessidade!». Sobre «A Igualdade», por exemplo, escreve:« Desço aos abismos do meu coração; estudo os meus diversos sentimentos, examino as suas relações, a sua ligação, e creio descobrir que anatureza destina os homens à igualdade.»; «Acaso não foi após o estabelecimento da sociedade, que veio a suceder esta funesta revolução?»[ os homens acostumaram-se à subordinação, começando por se submeter às leis e aos seus ministros]. E ainda a propósito do «estabelecimento da propriedade»:« Eles [os poetas que Platão quis escorraçar da sua república] chamaram século de oiro esse tempo feliz em que as propriedades eram desconhecidas; e pressentiram que a distinção do teu e do meu produziu todos os vícios». Finalmente o desenho da utopia:« Nada parece amis fácil do que conter os homens no dever, antes de se ter estabelecido as propriedades; porque nada era mais fácil que prover às suas necessidades e satisfazê-las. Eu creio imaginar os cidadãos distribuídos em diferentes classes; os mais robustos são destinados a cultivar a terra, os outros trabalham em artes grosseiras sem as quais a sociedade não pode passar; vejo por todo o lado armazéns públicos, onde são guardadas as riquezas da república; e os magistrados, verdadeiramente pais da pátria, não têm quase outra função que conservar os costumes, e distribuir a cada família as coisas que lhe são necessárias.»
Ideias como estas não fazem todo o tom do pensamento evolutivo de Mably, esta utopia, bebida na ficção de uma Idade de Oiro, não constitui, a nosso ver, a finalidade última e o escopo principal do conjunto dos textos que mably foi escrevendo no decurso de cerca de vinte anos, mas tais ideias – a ideia da «comunidade dos bens» - encontra-se presente, como se fossem o limite, o sonho, enfim, a utopia. Não se podendo chegar a tanto que se fique, pelo menos, com uma república de cidadãos iguais no trabalho, nos deveres, nos direitos, no consumo.
Rousseau, Deschamps, Mably : a ideia de Igualdade a ganhar raízes na Modernidade.
Étinne-Gabriel Morelly nasceu em 1717. A sua biografia mantem-se uma incógnita. As suas obras editadas foram-no provavelmente entre 1743 e 1755 – La Basiliade ou le naufrage des îles flottantes e o Code de la nature. A segunda foi atribuída a Diderot durante muito tempo após a morte deste. Graccus Babeuf no decurso do julgamento que conduziu à guilhotina, declarou ter sido influenciado, entre outros filósofos, por Diderot precisamente por esta obra. As duas obras foram publicadas anonimamente. A primeira narra uma viagem imaginária, estilo ao gosto da época. A segunda trata das leis justas que devem governar a Cidade. Verificam-se contradições nas ideias defendidas entre uma e outra, o que levou alguns invetsigadores a colocar a hipótese de se estar perante dois autores diferentes. Na primeira, por exemplo, o povo libérrimo pratica com naturalidade o incesto, enquanto na segunda o casamento é obrigatório na cidade ideal. O tema, porém, é essencialmente o mesmo: investigar o que é natural no homem e o que é convencional, artificial, e até contra a sua própria natureza. A apropriação privada é uma invenção social; o núcleo da crítica de Morelly orienta-se contra a propriedade privada. No seu ponto de vista todas as leis foram elaboradas para a consolidar e justificar. A sociedade de acordo com a natureza deve aboli-la. O tom é moralista. Os utopistas franceses, incluindo evidentemente Dom Deschamps, utilizaram regra geral uma perspectiva moral sobre os sucessos e insucessos humanos. A discussão do Bem e do Mal conforme estes valores encarados de acordo ou não com a uma putativa natureza humana. Daí que a expressão «vícios» fosse recorrente. Além de simplificar o que é complexo, simplificavam, sobretudo, o que é contraditório. A dialéctica escapava-lhes normalmente. Apesar disto, estamos convictos de que o monge beneditino de Poitou era, de todos e de longe, o mais dialéctico dos utopistas. Tanto naquela Contradição que constitui o TUDO, como na luta de opostos que constitui O TODO. Antagonismos, conflitos, superação. Enfim, a unidade dos contrários. Ainda assim, e retomando o tema, a sua crítica foi moralista, o que, de resto, não surpreende em filósofos que ignoravam ainda os meandros da Economia Política.
Nenhuma pista ou documento nos permite fundamentar a hipótese de que Deschamps terá lido uma ou ambas as obras de Morelly, mas atrevidamente conjecturamos tal possibilidade, não só porque era um leitor persistente e atento, com especial interesse com certeza por obras de pendor utopista, mas também porque em casa do marquês de Voyer, desde seu pai e tio, o célebre Conde d’Argenson, recebia-se literatura regularmente; naturalmente que as narrativas de viagens agradariam a um espírito aventureiro como o do jovem marquês, que haveria de notabilizar-se em grandes batalhas.
Jean Meslier
Jean Meslier foi um cura que, após a sua morte –ocorrida no primeiro terço do século- legou um Testamento qie viria a revelar-se uma mina. Voltaire conheceu o texto no todo ou em parte em 1730, mas somente nos anos sessenta publicou um extrato; o barão d’Holbach edituou-o completo depois de 1770. Investigadores do século vinte quiseram demonstrar que Meslier foa «o único socialista revolucionário e ateu da França pré-revolucionária, o precursor incontestável de Helvétius, d’Holbach e dos seus discípulos, assim como de Babeuf e dos Iguais», «o pai do materialismo francês do século XVIII» e «o precursor directo do socialismo utópico da primeira metade do século XIX”.B. F. Porchnev tratou de demonstrar que o Testamento exerceu uma grande influência sobre o pensamento social e, particularmente, sobre os Enciclopedistas.
A primeira versão publicada, por Voltaire, corresponde apenas a uma parte, com um prefácio que enfatiza os ataques violentos do cura contra os padres. A edição de d’Holbach foi clandestina, embora ninguém ignorasse que fosse dele, e determinados círculos letrados não ignoravam sequer o Testamento truncado, de Voltaire. As Obras Completas do cura de Étrépinhy estão publicadas desde 1972, numa excelente edição coordenada por Roland Desné.Se Fénelon havia exaltado o «amor puro», e parece ter inspirado a Basiliade, de Morelly, recebe de Meslier uma forte e dura crítica.Charles Rhis interpreta a filosofia de Meslier como sendo uma forma de panteísmo (O Ser «se se estende por toda a parte possui partes em tudo» - Meslier) e um «sistema cosmogónico». E adianta esta tese sobejamente interessante: «para quase todos os utopistas, a influência de Espinosa foi capital»
Admitindo que Deschamps conheceu, pelo menos, a versão incompleta do Testamento no período em que iniciava a redacção das suas teses, encontrou no cura de Champagne uma crítica cerrada ao estado dos poderosos que legalizava a exploração dos pobres enquanto os oprimia e reprimia. «Vós não tendes necessidade alguma de todas essas gentes, passareis facilmente sem elas, mas elas não saberiam de modo nenhum passar sem vós», e arranca com a tirada que o celebrizou: «que todos os tiranos fossem pendurados e estrangulados com a stripas dos padres.»Diderot não esquecerá esta tirada, nem os socialistas do século dezanove.
Meslier apela à violência, Legítima, justa e implacável, segundo ele, contra os poderosos, isto é, os nobres e os padres; Descampas tomando estes incitamentos como proféticos e sentindo, no seu tempo, a atmosfera carregada, teme (ou, pelo menos, não crê nos seus benefícios) a revolução, propõe, a tempo, avisadamente, uma revolução pacífica, o despojamento voluntário dos bens (pelos próprios poderosos). Com o monge temos de estar também avisados: entre o publicista que deseja ser editado, lido e escutado, o abade que come à mesa do marquês, e o iluminado que se condói com a miséria dos camponeses da sua região, qual deles é o verdadeiro? No apelo a uma revolução pacífica, no apelo dirigido aos letrados e poderosos, quanto cepticismo não corre entre as palavras? Acreditaria mesmo em tal revolução impossível? Ainda que admitamos que ele era mais «papista que o papa», mais iluminista que os próprios iluministas que ele censurava, a verdade é que estes se não propunham uma revolução violenta, propunham, no entanto, uma revolução política do Estado. Acreditaram demasiado todos eles? Fracassaram nos seus «bons» propósitos? Os revolucionários de 1790 rejeitaram a «seita» dos iluministas, louvaram apenas Diderot, outros juntaram a este os nomes de Rousseau, de Mably, Morelly, Meslier...
Uma boa parte dos textos de Meslier são compostos de análises do Testamentos, segundo o método perfeitamente hermenêutico, que lembra o método de Espinosa no Tratado Teológico-político...Não nos propomos nesta Tese trabalhar as aproximações de Meslier com Espinosa; contudo, deixamos como garantidas, a nosso ver, as vizinhanças e, portanto, as influências. Certamente que essas hermenêuticas também foram perseguidas por Voltaire...mas depois.
O Testamento de Jean Meslier, não o Antigo e o Novo Testamento bíblicos, circulava em Paris em 1768 multiplicado por cem cópias (bastantes truncadas) que se vendiam por dez luízes cada.
Meslier defende uma sociedade camponesa utópica, onde todos trabalham a terra, apropriam-se colectivamente, não praticam o casamento, não obedecem a leis e a um Estado fosse qual fosse. Estes projectos, o dele e o de Dom Descampas, parecem-nos ser, no seu recorte, no seu conteúdo e alcance, casos únicos no século das Luzes francês. Em Jean Meslier um panteísmo materialista (a noção de Todo avulta ) ao serviço de uma comunidade sem propriedade e sem cidades. A semelhança com o nosso monge é tão grande que incita qualquer investigador a tirar conclusões. Não encontrámos nenhum manuscrito do beneditino que faça referência ao cura de Etrépigny, mas provará apenas que o monge não se queria ver associado a um nome tão amaldiçoado. Tanto mais porque Meslier é reverenciado por d’Holbach e seus discípulos...
Meslier não leu a ÉTICA de Espinosa. Professa um materialismo ateu, o Grande Todo, o Ser em geral, o Ser em si, não corresponde de modo algum ao Deus espinosano, com os seus atributos, a extensão divisível pela imaginação e a extensão indivisível tal qual é concebida pelo entendimento. O percurso do pensamento de Meslier foi através, sobretudo, do cartesianismo, puxado até a um neo-epicurismo, um naturalismo absoluto. Sem divindade, sem Providência, o universo, na concepção de Meslier, é um espeaço sem limites. Esta cosmovisão penetra profundamento no imaginário das élites letradas do século dezoito e é nele e com ele que os materialistas, os naturalistas, e Dom Deschamps, trabalham.
As utopias sociais deste século, tanto francesas como britânicas, traçam um quadro ideal de felicidade em comum e de uma vida simples, e lamentam que os progressos materiais não fossem acompanhados pelo progresso moral. O naturalismo é uma concepção nova que tanto se deve aos cientistas, como inspirou os utopistas.
Jean Meslier foi um precursor das utopias sociais do século dezoito. Antecipando-se a Dom Deschamps elaborou uma crítica radical do Estado, de qualquer tipo, e das leis. Mably virá a defender, nas últimas obras, um género de «socialismo de Estado». Se a utopia camponesa de Deschamps se assemelha à de Meslier, o seu sistema filosófico não foi copiado, de modo algum, nem sequer inspirado, nos textos de Meslier; tê-los-á conhecido provavelmente apenas na década de setenta quando d’Holbach os editou.
A filiação de Meslier relativamente a Espinosa não está agarantida, não é consensual entre os invetsigadores. Paul Vernière declara que o propósito de Meslier foi «sobretudo extrair do espinosismo as suas consequências lógicas mas repudiando os seus antecedentes: as contradições dos teólogos conduziram a que ao esvaziamento da noção de Deus; destruiram este, reduziram-no a nada. Deus é nada. Deus ou Natureza: «porque então não realizar a economia de Deus?»
A estratégia cartesiana de fundar a exist~encia de Deus no argumento da Perfeição sucumbe com a contra-argumentação de Espinosa, mas sucumbe ainda mais, segundo a crença dos materialistas, com o argumento de que Deus é uma ideia inútil pois que em perfeição basta a exist~encia da Natureza, do universo, seja ele finito ou infinito. Meslier admite apenas um infinito espacial, extenso, material, temporal (um todo que é inifinito em extensão, porque as suas partes são infinitas em número colectivo. Dom Deschamps não segue este caminho. As partes – chamemos-lhes «modos» - não são ininitos, nem a duração; o infinito é «transportado» para o Tudo, que se distingue da Matéria, algo que evoca a distinção espinosana relativamente aos atributos e aos modos. Meslier concluía que uma mera hipótese, lógica ou moral, e trata-se da exist~encia ou não de Deus (infinito e perfeito), podemos dela prescindir em qualquer momento, bastando construir outro quadro. A primeira hipótese é produto da imaginação. Robinet falaria mais tarde de um Rien e de um riénnisme (não exactamente de nadificação, ou puro néant). Meslier escreve «pure néant» - que se conhece na medida em que se concebe o que é nada. Deus converte-se num nada. Aquilo que é infinito, e é Tudo, e Perfeito, mas ignoto, inacessível, completamente contraditório com o Todo que é o universo, que são os seres vivos, que é o homem, equivale a nada.
A especulação filosófica vai abrindo o caminho para o niilismo. De resto, Robinet já o defende.
O nosso monge beneditino não faz mais do que trabalhar sobre os elementos que encontra na atmosfera intelectual do seu tempo. Os materialistas, tout court, Meslier e La Mettrie, d’Holbach, Sylvain Maréchal, eliminam Deus, basta-lhes a Natureza. O beneditino não advoga tais materialismos, tenta conciliar materialismo e imaterialismo, o Finito e o Infinito, O Todo material e o Nada.
Jean Meslier teve o mérito de ser um ousado pioneiro (embora optasse pela edição póstuma...) de um naturalismo radical, do materialismo e do ateísmo, e do socialismo libertário. O seu Testamento teve muitíssimo mais impacto que os opúsculos de Deschamps. Como se d’Holbach desejasse fornecer às teses do célebre cura uma sustentação científica (físico-química, fisiológica), e Diderot uma fundamentação biologista. Como se o desejassem depois de absorverem as ideias tremendas de Meslier e de La Mettrie. Não foi somente o anticlericalismo implacável do cura que os impressionou, foi qualquer coisa mais. Uma doutrina que revolucionasse os costumes e emancipasse o homem de todas as servidões. Que o tornasse uma «criança» feliz, para além de todo o Bem e de todo o Mal, como o «bom selvagem» de Rousseau ou do Diderot que escreveu essa bela fábula que continua a ser «O Suplemento à Viagem de Bougainville». Afinal de contas, como preconizou um monge beneditino de Poitou.
O humanismo exigia uma essência para o homem; tal essência à qual tudo se deve reconduzir, em última instância, é a Natureza, que significa tanto a força produtiva como a colecção dos seres produzidos, as formas primitivas e não alteradas pela indústria humana, e significa «o amor filial, a ternura paternal, a vida inocente que levavam os primeiros habitantes da terra, e esta inspiração segura, independente das convenções sociais, que nos adverte, nos guia, quando nós a queremos escutar, e que é a consciência verdadeira»
«Para possuir uma moral, fazia falta reconhecer duas substâncias, como o fez a religião, que somente se enganou na maneira como as viu. Estas duas substâncias são Deus e a matéria, segundo ela; e segundo a Verdade é A Matéria, ser metafísico, e a matéria, ou tal matéria, ser físico. Para além destas duas substâncias, existe a substância em si, ou para si, substância estéril, sobre a qual a religião se enganou igualmente, embora conhecendo a sua existência, porque construíu um Deus existente antes do tempo, antes da matéria, e criador da matéria.» Idealismo, imaterialismo, ou materialismo? Quantas variações não têm cabido no idealismo, por um lado, e no materialismo, por outro! Ainda que nenhuma destas correntes filosóficas possuam uma história independente dos processos sociais e culturais, a história de ambas, sempre adversárias, e no interior de cada uma, está repleta de soluções diferentes. Ainda bem. É este acervo prolífero que constitui o encanto da filosofia. Ela não é nunca monótona, unívoca, transparente, ortodoxa. Muito embora assim a desejassem os poderes hegemónicos de todas as épocas. Certamente que a vontade de hegemonia permanece e há-de permanecer sempre, tanto nos poderes políticos como nas doutrinas de que se servem ou que elas justificam, mas pulsa no filosofar, com sistema ou sem ele, uma vontade de mudança, de antecipação. Numa palavra: de emancipação.
Natureza e Civilização
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