quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

 

CRÍTICA DA RAZÃO CONSENSUAL 

A Crítica da Razão Consensual radica no princípio da lógica dialética: o pensamento reflete na oposição de enunciados formalmente contraditórios a realidade objetiva da contradição “na essência mesma das coisas”. Entende-se “Razão Consensual” aquela pretensa racionalidade que dissemina pelas tribunas políticas, pelas escolas e academias, pela publicidade e propaganda, pelas técnicas de submissão, o mito do poder triunfante e inexpugnável do capitalismo.

A Crítica da Razão Consensual, pelos vários ensaios já publicados na VÉRTICE, dirige-se sobretudo contra a ideologia irracionalista que faz o frete ao capitalismo na fase contemporânea. As fábricas de consensos expelem mentiras de manhã à noite com a aparência de verdades do senso-comum, sem alternativas. Nas batalhas ideológicas contra esse inimigo principal a Crítica pressupõe, contudo, três críticas urgentes: o ajuste de contas com a versão ideológica dogmática que teria encontrado no “socialismo real” a sua mais acabada e única expressão “científica”; a crítica às teses pouco marxianas de algum do chamado “marxismo ocidental”, as quais, geradas na antipatia com o “estalinismo” e sob as novas condições do capitalismo, negam as lutas de classes; a crítica à corrente dominante reacionária do pensamento “pós-moderno” que classifica os marxismos como meras “narrativas”, se ocupa em “desconstruir” discursos e “jogos da linguagem”, expulsando as categorias de verdade e de totalidade, navegando nas diferenças sem identidade alguma, e assim colaborando na vasta ofensiva ideológica do capitalismo para quebrar as possibilidades concretas de emancipação humana. Reivindicando-se de marxistas soçobraram regimes políticos, quase arrastando com eles na prática a imagem pública da teoria. Contudo, e apesar das derrotas e dos refluxos, Marx mostra-se de novo redivivo face a face com a crise generalizada do sistema capitalista. Já se ouve dizer nos quadrantes políticos mais inesperados: “Marx, afinal, tinha razão!”. Ao atingir a sua máxima expressão – a hegemonia planetária do capital financeiro – o capitalismo exibe em toda a sua brutalidade as suas finalidades e todas as suas contradições.

De facto a que assistimos? A um irracionalismo “pós-moderno” que é uma nova forma de idealismo do sujeito e de uma subjetividade hipostasiada em que os referentes objetivos se perderam. O próprio sujeito desaparece sob um foguetório de retóricas para reaparecer fragmentado, afogado na superfície líquida em que os pós-modernos dissolvem a Razão.

Filósofos do chamado “marxismo ocidental”, pelo seu lado, dedicaram-se a hiperbolizar a cultura e a práxis social de tal modo que a natureza perdeu toda a sua existência independente, cortaram-se as pontes e mediações, resultando este feito milagroso que é uma espécie de teologia “invertida”: somos nós que criamos a natureza! A coisa-em-si, é incognoscível. Outra forma de idealismo do sujeito. Nessa faina enviam para o lixo os fundamentos de uma ontologia marxista que devemos a Engels e a Lenine. Confiemos que os jovens investigadores marxistas persigam este caminho. O marxismo não é um economicismo, nem um “culturalismo”, nem apenas uma epistemologia. É uma ontologia: o materialismo histórico e dialético.

A acusação de que o marxismo é uma teoria determinista (as ideias seriam epifenómenos) não encontra sustentação nas obras de Marx e Engels. Este, em 1890, em carta a Joseph Bloch (1871-1936), já criticava a leitura economicista e reducionista do marxismo:

“Segundo a concepção materialista da história, o momento em última instância determinante [in letzterInstanz bestimmende], na história, é a produção e reprodução da vida real. Nem Marx nem eu alguma vez afirmamos mais. Se agora alguém torce isso [afirmando] que o momento econômico é o único determinante, transforma aquela proposição numa frase que não diz nada, abstrata, absurda. A situação [Lage] econômica é a base [Basis], mas os diversos momentos da superestrutura [Überbau] – formas políticas da luta de classes e seus resultados: constituições estabelecidas pela classe vitoriosa uma vez ganha a batalha, etc., formas jurídicas, e mesmo os reflexos [Reflexe] de todas as lutas reais nos cérebros dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, visões [Anschauungen] religiosas e o seu ulterior desenvolvimento em sistemas de dogmas – exercem também a sua influência [Einwirkung] sobre o curso das lutas históricas e determinam em muitos casos preponderantemente [vorwiegend] a forma delas.”

As ideias – no sentido alargado (mentalidades, crenças, teorias filosóficas e científicas, doutrinas) – desempenham o papel de agentes da ação através dos indivíduos que as executam. Criadas por indivíduos excecionais, ou por povos e classes, sob condições concretas dos seus modos materiais de existência. As ideias não são frutos de árvores sem raízes, por muito originais que eles o sejam. Para que eles brotem são necessários cérebros e sociedades. O que é determinante na formação das ideias é o cérebro humano, a experiência social (isto é, as relações sociais) e a personalidade do indivíduo singular. Sem estas três condições de base não existiria a atividade cognoscitiva. Esta, por sua vez, organiza-se conforme regras específicas (raciocínios e conceitos); atividade só possível porque a mente goza de uma relativa autonomia. O elemento determinante na formação das ideias (enquanto imagens, intuições concretas, esquemas e categorias, conceitos e relações entre estes) é a experiência social. Entende-se esta como relações entre indivíduos e entre estes e as coisas. Nestas relações as que se entendem como determinantes, em última instância, são as relações de produção. A base económica das sociedades condiciona decisiva e inevitavelmente o tipo de ideias que nos impelem a agir. Este condicionamento material não exclui nem menoriza a atividade mental pela qual conceitos, modelos e teorias, criam novos conceitos e teorias, como sucede na ciência e na filosofia. É necessário estabelecer distinções e graus de autonomia, mas é errado erguer muros.

 

Os materialismos e a Razão Dialética

As filosofias racionalistas idealistas deduzem a racionalidade dos fatos e processos não do seu encadeamento concreto, mas de um sujeito que estes expressariam – a “ideia”, isto é, o pensamento pensado.

Os materialismos, independentemente das suas diferenças internas e das suas limitações, sempre se colocaram mais perto de um discurso verdadeiro sobre a natureza e o homem do que os racionalismos idealistas. Estes, independentemente das suas diferenças, recaíram sempre no sujeito autocentrado, transcendente ou transcendental. Contudo, recusar aos idealismos contribuições de inegável valor que corrigiram os materialismos modernos é miopia ou ignorância. Exemplos: a dialética hegeliana, a atividade do sujeito cognoscente. Marx e Engels deram um exemplo notável de uma atitude de abertura e diálogo com os textos de filósofos idealistas. Todavia, não se julgue que se realizou uma “harmonia de contrários”: a ontologia do materialismo dialético é irreconciliável com qualquer teoria do conhecimento que separe o sujeito das fontes de que ele é originário.

A crítica aos idealismos, porém, não deve menorizar os seus maiores expoentes. Alguns contribuíram para a constituição das ciências matemáticas e da lógica; sem eles não gozaríamos do património cultural de que nos orgulhamos. Foram em boa parte os artífices do Direito moderno, das Constituições democráticas. O mecanicismo cartesiano influenciou La Mettrie (Julien Offray de la Metrie, 1709-1751), o qual soube retirar as devidas consequências materialistas. As teorias de J. Locke (John Locke, 1632-1704), sobretudo a sua crítica à metafísica e às “ideias inatas”, abriram novos rumos para a teoria do conhecimento. Marx e Engels manifestaram sempre a sua genuína admiração pela filosofia hegeliana e pouco ou nenhum apreço pelos materialistas “grosseiros” do grupo dos chamados “ideólogos”.

A disputa entre materialistas e idealistas fecundou o debate de ideias, o apuramento da argumentação e dos conceitos; não existiria filosofia sem as duas “linhas” oponentes. Disputa que raramente foi pacífica nos últimos dois mil e quatrocentos anos. A escolástica foi responsável por uma repressão sistemática dos adversários. Ainda recentemente sob as ditaduras de Salazar e Franco, a ideologia clerical-fascista utilizou (benzeu) o terrorismo pidesco para silenciar os intelectuais que manifestassem apego ao materialismo. O capitalismo arremete com todos os meios coercivos de que possui o monopólio para sufocar a alternativa radical que o materialismo dialético assume, porque quando se desce da teoria pura para a prática política o perigo espreita. A esta tentação de impor uma ideologia única por meios coercivos não foram imunes os ideólogos do “socialismo real”.

As aventuras da Razão no Ocidente

Com a Razão nos libertamos, com ela nos submeteram. A categoria filosófica de Razão (capacidade de produzir conceitos) é ela mesma um produto de sujeitos social e historicamente situados. Não existe nenhuma entidade designada Razão que transcenda a historicidade da ação humana. Nenhuma Razão conduz a História e ambas – Razão e História- são noções gerais de que nos servimos para organizar e distinguir comportamentos e acontecimentos situados no tempo e no espaço. A História é o Tempo no qual os indivíduos concretos se ocupam e se preocupam em viver; a Razão, o conjunto das razões ou modos de ser, agir e interpretar, condicionados pelos modos de produzir e reproduzir a satisfação de determinadas necessidades sociais. Desde a débil luz que se acendeu no cérebro de um “macaco” até à luminosidade solar de Mozart e de Einstein, desde a escravatura mais infame até às grandiosas revoluções de emancipação social. A Razão ora reflete adequadamente as propriedades objetivas das relações sociais, ora as contradiz. Afirma ou nega. Por vezes abdica da sua soberania e submete-se a poderes que toma como estranhos e externos, quando, na realidade, são produtos do seu próprio poder. Quando se aliena de si mesma, se descola do mundo real, se contradiz e se conflitua, não exprime senão a contraditoriedade das relações sociais. A contraditoriedade é imanente à Razão, sem ela não ocorreriam sequer determinadas operações mentais. A interação e ação recíproca, as conexões entre as ideias, entre a imaginação, a memória e os conceitos, em sínteses sucessivas que fazem a unidade das conexões, constituem o movimento processual da Razão. Não recorda verdades imutáveis, mas, antes, é devir indefinido, um livro aberto ao qual se acrescentam páginas de quando em vez. É nesse sentido que se pode afirmar que ela ocorre no tempo. Sem um corpo despojado à partida de instintos rígidos e de uma especialização única e pré-determinada, e sem a socialização que organiza os indivíduos em grupos que conflituam ou cooperam com a natureza, conflituam e cooperam entre si, o homem seria tão ingénuo quanto Adão e extinguir-se-ia com a expulsão do Paraíso. Na verdade, as catástrofes naturais logo o teriam extinguido. Toda a história das diversas culturas e sociedades retrata a luta pelos recursos obtidos do meio ambiente, em harmonia com ele ou em desarmonia, adaptando-se ou adaptando o meio natural às suas necessidades, e esta é a origem e a caminhada da racionalidade e da irracionalidade da espécie que transformou a superfície do planeta. Nesta caminhada, curtíssima comparada com a da Vida na Terra, ergueram-se civilizações e extinguiram-se numa fração infinitesimal do tempo do universo. Nesta caminhada, tão diversa nos quatro cantos do globo, grupos chacinaram outros grupos, saquearam os excedentes que outros guardavam do seu trabalho, converteram os vencidos em escravos, servos ou assalariados, manipularam em seu benefício crenças nascidas do medo e da esperança. Em todas as diferentes formas de produzir, distribuir, consumir, em todas as formas de apropriação comunal ou privada, em todas as formas de divisão do trabalho, existiu sempre uma razão de ser. Aquilo que não é razoável é, todavia, explicável pela razão.

A Razão (categoria para distinguir o homo sapiens das demais espécies) desenvolveu-se por meio de processos de trabalho produtivo que lhe permitiram sobreviver e multiplicar-se. Processos técnicos sem dúvida, mas também relações sociais pois que a técnica é ela mesma uma determinada relação social. Nos modos de produção do viver reside a contradição fundamental: relação antagónica, e não diferente apenas, entre aqueles que produzem os excedentes e os que se apropriam de ambos, excedentes e produtores. Trabalho e dominação da força de trabalho é uma constante da História. Assim as Ideias são instrumentos que ora servem para oprimir, ora para emancipar. Refletem o devir das vicissitudes humanas, os conflitos pelo poder ou contra, os consensos que a cooperação entre os grupos sociais permite, seja para dominar, seja para libertar. O conhecimento objetivo arranca espaço à ignorância e à mentira, mas perde-se quantas vezes nas mãos dos donos de escravos, servos ou proletários. A Razão possui duas faces como Juno: numa irradia a luz do progresso inexorável do conhecimento objetivo do universo e da vida; na outra, o obscurantismo, a loucura, a barbárie. Ao contrário da “Razão que produz monstros”, parece que são os monstros que produzem a razão. Todavia a “Razão Sangrenta” não cobre toda a História. É uma forma de olhar. Alargue-se a visão e poderemos alcançar a negatividade, a contraditoriedade que trabalha os acontecimentos e produz o Novo. Retrocessos sim, prolongados e sufocantes, derrotas inesperadas sob as quais a Razão claudica ou se recolhe em silêncio: a História converte-se, com esse olhar, num cemitério dantesco, um Anjo que caminha às arrecuas. Porém, esse Anjo é uma ficção, um olhar unilateral sombrio e não assombrado, doloroso e negativo. As grandes filosofias do Renascimento, do Iluminismo e do materialismo, de Kant e Hegel, de Marx e Engels, viram na História dos homens um processo de mudanças, onde estas não somente são necessárias como possíveis. Estas possibilidades imanentes ao processo histórico estão na raiz das revoluções e das utopias. Se a barbárie desde sempre nos ameaçou, é por sua causa que o progresso irrompe, paradoxalmente, não nas asas de um Anjo, mas, quantas vezes, do génio de indivíduos excecionais que decifraram enigmas nos sótãos insalubres, no desvão de escadas, na Biblioteca de Londres… ou cavalgam nas ondas revoltosas das massas sociais. Se houvesse algum mistério a envolver as criações revolucionárias que vieram lentamente, contra tantos obstáculos, a iluminar a humanidade, ele estaria no génio absolutamente de Heráclito ou Euclides, de Arquimedes ou Lucrécio, e tantos outros. Os produtos da mente, na sua pura abstração lógico-matemática ou filosófica, podem eventualmente desprenderem-se das condições concretas da existência (social, individual), e, por isso, lhe reconhecemos uma autonomia irrecusável, porém não nascem como Atena nasceu da cabeça de seu pai. Tanto assim é, que se verifica um paradoxo mais: quantos dos criadores de conceitos luminosos não se sustentaram mercê dos escravos, servos ou proletários que alimentavam as sociedades em que viveram? Quantos não produziram monumentos imortais graças à proteção de tiranos, reis e papas? Quantos não bajularam príncipes, não negociaram nas empresas coloniais dos impérios? As pirâmides não foram construídas pelos faraós, lembrava-nos Brecht. Nas filosofias, nas ciências sociais nomeadamente, o impulso e o húmus das teorias encontramo-los no solo dos problemas que uma determinada sociedade enfrenta. Como se sabe, a Grécia Antiga não progrediu mais nas técnicas (nem aproveitou invenções geniais) porque a produção se baseava no trabalho escravo; os senhores feudais entretinham-se com a guerra porque os servos os alimentavam; reis e cáfilas de aristocratas monopolizaram o comércio de além-mar desbravado por marinheiros e comerciantes ousados. Os progressos técnicos desenvolveram-se quando convinha às classes dominantes, caso contrário mergulhavam na poeira dos séculos. Certo é que as burguesias introduziram um interesse nas técnicas lucrativas como nunca antes se vira. Voltamos às duas faces de Juno. Progresso com barbárie. Europeus “descobriram” as Américas, Ásia e África, com canhoneiras, dizimaram, extorquiram, submeteram povos ancestrais, através destes meios irracionais chegou a prata que enriqueceu civilizações, chegou a batata que matou a fome endémica… Sempre a mesma escravatura. Progrediu? Sim, na manha dos “direitos” com os quais um escravo se julga livre. Esse é um dos progressos da Razão…

A “deusa” Razão possui uma longa história. História que sem a outra história não teria história nenhuma. Durante milhares de anos acreditou-se que o espírito descera dos céus como dádiva celestial, as ideias desenrolar-se-iam num mundo acima do miserável trabalho escravo ou servil. Filósofos relevantes que interpretaram o seu mundo começaram por criticar outras interpretações porventura mais racionais que as deles. A Filosofia não parecia ser outra coisa senão uma batalha interminável de razões contra razões no interior de um clube fechado de sábios. Essa autonomia absoluta é uma ilusão. As construções filosóficas não se compreendem sequer sem o contexto histórico que as provoca e fecunda. A hermenêutica do texto pelo texto equivale a uma cultura sem agricultura. Afinal de contas os filósofos intervêm a seu modo sobre o seu tempo seja para o justificar, seja para o transformar. Podem competir entre si diferentes racionalidades numa mesma época: umas justificam e conservam um estado de coisas, outras criticam-no. As lutas de ideias denunciam a realidade de outras lutas, como a espuma na areia denuncia as marés. Os problemas teóricos e a argumentação constituem o modo de pensar filosófico, daí essa aparência de filósofos contra filósofos com que os não filósofos se sentem alheados. Com a Modernidade a filosofia “desceu” ao homem comum, ao burguês letrado. Haveria de chegar o tempo em que “desceu” ainda mais: ao trabalhador assalariado. Nunca abandonou a sua vocação crítica original de compreensão do viver humano.

 O estudo das filosofias revela-nos o interesse mundano que as inspira. As razões concretas da história são a Razão abstrata dos filósofos. A filosofia nas suas origens revolucionou a mentalidade que até então por toda a parte dominava sem alternativas; a coruja de Minerva ergueu o seu primeiro voo entre as luzes e as sombras de um regime político que uma nova classe inventou nas faldas do Mediterrâneo. Muitos séculos decorreriam, entre muitas sombras e poucas luzes, para que pudesse emergir de novo uma revolução, a mais extraordinária da Razão humana: o pensamento científico. Chegou para demonstrar o que os primeiros filósofos já suspeitavam: o importante não é pensar, mas pensar com um determinado método. Tanto mais acertado quanto mais verdades alcança. Para isto o melhor método não é exclusivamente formal mas adequado às propriedades fenoménicas objetivas. É aquele que não é apriorístico mas que exprime e acompanha o movimento dos fenómenos. Aberto e não fechado. Aberto às teorias e progressos científicos, às transformações sociais.  

A razão é o poder de edificar sistemas de regras, de as aplicar e de as tratar.

Emprega-se o termo Razão em sentidos vários, contudo com um denominador comum: capacidade de controlo, previsão, análise-síntese, capacidade de executar operações mentais. Ser racional é ser-se capaz de aprender, sinal indiscutível do desenvolvimento do homem primitivo e da criança. Tanto num caso como no outro a ação foi e é determinante. Quanto mais esta for adequada a um fim benéfico para a comunidade mais ela é racional. Como poderíamos classificar de racionais aquelas atividades que minam a coesão social e destroem o meio ambiente natural?  

Não existe um critério único, em abstrato, que estabeleça de uma vez por todas determinadas ações absolutamente racionais excluindo todas as outras. O prazer ou as vantagens pessoais não constituem esse critério ainda que se lhe acrescente o item: serão vantajosas apenas quando o forem para todos os membros de uma comunidade.

As considerações que se seguem não desenvolvem os contextos concretos por falta de espaço apenas. O percurso é, por conseguinte, breve e a ele acrescentamos algumas considerações sobre algumas categorias e temas polémicos que julgamos oportunas. A Razão que abordamos é um conceito considerado aqui no âmbito da Filosofia com contaminações e extrapolações ideológicas. A Filosofia é considerada aqui exclusivamente como aquela atividade que surgiu na Antiguidade clássica, Ocidental.

O racionalismo (resposta às questões relativas ao ato de conhecer) não é património exclusivo das filosofias idealistas- racionalismos versus realismos- que se contrapunham aos empirismos, embora se reconheça que foi a filosofia idealista clássica alemã (de Kant a Hegel) que salientou o papel ativo do sujeito. Os materialismos sempre foram, embora diferenciados, racionalistas.

A renúncia à razão é a capitulação perante as forças hegemónicas em algum momento do seu processo contraditório. É a capitulação perante uma ideologia irracional. Foi o que sucedeu na Europa durante a Idade Média quando a filosofia se submeteu à ideologia religiosa.

O papel desempenhado pela Razão na História equivale a dizer que as ideias desempenham um papel prático nas invenções e descobertas, nos acontecimentos políticos, nos comportamentos morais, na organização singular de cada cultura, na mobilização das massas sociais. Não são meros epifenómenos da base económica das sociedades. As ciências constituem também uma força produtiva. As filosofias e as ideologias políticas e religiosas enformam as relações de produção, justificam ou, pelo contrário, desvelam e denunciam a sua função de exploração e dominação da força de trabalho. O direito (jurídico) à propriedade privada (seja qual for a sua forma através dos tempos e lugares) é o exemplo mais concludente (assim como o direito religiosamente consagrado dos monarcas absolutos). O marxismo não é um economicismo. Hoje, mais do que nunca, a economia revela-se como a base que sustenta os interesses que movem o capital, as suas contradições, crises, geoestratégias imperialistas; contudo, também fica claro o papel exercido pelos meios de comunicação social, a demagogia (no sentido literal) dos “direitos humanos”; a sua natureza predatória é velada pela ideologia que dispõe atualmente de meios mais poderosos (planetários, tecnocientíficos) do que alguma vez na História. Com a ideologia se motiva, organiza e domestica.

A Filosofia tem agora de concorrer com a cultura industrial ou “cultura digital”, a ideologia segregada pela comunicação de massas. Ideologia do lucro e do dinheiro. O capitalismo “tardio” não é já capaz, ou já não necessita, dos grandes filósofos que construíram gradualmente o liberalismo nas suas lutas contra os obstáculos materiais e imateriais ao seu domínio absoluto. A continuação desse domínio exerce-se por outros meios. O que prolifera nas estantes das livrarias são os economistas, os “politólogos”, informáticos, e livros de “autoajuda”. Os públicos procuram respostas imediatas para problemas urgentes. Técnicas eficazes de mercado orientam as escolhas.

Entendo por irracionalismo a crença em forças sobrenaturais, mistérios ocultos que somente determinados “eleitos” decifram, incapacidade “natural” do homem para alcançar verdades objetivas; crenças segundo as quais somos predestinados ou predeterminados por “instintos” ou impulsos exclusivamente biológicos; descrença na repetição daquilo que a história é o espelho: a mudança social. São igualmente irracionais efabulações messiânicas, ficções sobre destinos e outras missões.

Dito isto não significa que creia numa verdade absoluta. Uma Razão dogmática é o inimigo da Razão Dialética. Por vezes, particularmente em épocas de crise, vale mais uma boa dúvida (cautelosa, interrogativa e condicional) que uma mão cheia de certezas que não nos deixam ver as mudanças que se operam debaixo dos nossos pés. A imagem da doninha que vai escavando o mais rijo solo vem-me sempre à memória. As religiões conservam a influência que sempre tiveram, mas soltaram de dentro as forças mais destrutivas de que há memória desde as Grandes Cruzadas. O imperialismo criou o Médio Oriente capitalista; pois é aí agora que a religião retoma o seu papel fratricida.

«O pensar teórico de cada época – portanto, também o da nossa – é um produto histórico que, em tempos diversos, toma uma forma muito diversa e, por isso, um conteúdo muito diverso. A ciência do pensar é, portanto, tal como qualquer outra, uma ciência histórica, a ciência do desenvolvimento histórico do pensar humano.» 

Em traços largos elenco os seguintes andamentos da dialética da Razão:

1. Falamos de racionalidade(s)s no estrito âmbito da sua construção pela filosofia ocidental. A Razão humana tem origens bio-sociais que se perdem na bruma dos tempos. As primeiras civilizações (Suméria) testemunham o poder da razão humana. Sem o Médio Oriente – berço da civilização – e, mais tarde, a bacia do Mediterrâneo, a filosofia ocidental não teria surgido.

 

2.  Heráclito (Éfeso, século V a.C.), um dos primeiros filósofos, forneceu-nos há milhares de anos uma chave com a qual temos vindo a abrir os mistérios do cosmos e das sociedades: a dialética. As categorias ontognosiológicas do Todo (Ordem racional), movimento, contraditoriedade; a racionalidade é o próprio ser do mundo; «Os homens não sabem como o que é discorde está em acordo consigo mesmo: harmonia de tensões opostas, como as do arco e da lira.» (fr.51). Tales, Anaxágoras, Anaximandro, mostraram-nos um caminho racional para as origens da vida e do homem recorrendo aos elementos naturais ou na quantidade infinita de matéria. Demócrito (Abdera, século IV a.C.) forjou as teses básicas do materialismo filosófico em oposição a Platão, que se conservaram como a linha ou “partido” que se opõe radicalmente ao idealismo. Fundou o atomismo (provavelmente sobre ideias de Leucipo): crente na capacidade racional afirma a possibilidade da razão alcançar a realidade por mais invisível que ela seja: pequenas partículas que compõem tudo que existe: «Por convenção fala-se de cor, de doce, de amargo; na realidade, há só átomos e vazio» (fr.125). Mundivisão estritamente materialista que submete todos os mistérios à lâmina da razão; afirma que a pesquisa científica e o respeito por si próprio (ética filosófica) constituem os primeiros deveres do homem livre. Condições históricas peculiares permitiram que a Razão produzisse uma atividade teórica – a Filosofia- que iniciou um combate emancipador contra os misticismos, os mitos e as religiões. Antepunha-se ao espírito um princípio natural e com esse volte face poder-se-ia ter destronado, se tal viesse a ser possível, o poder político das religiões. Mas a Razão teórica não basta, por mais importante que seja. Quase todos os materialistas, pelos tempos fora, não criticaram a base escravocrata ou servil das suas sociedades. E isso faz toda a diferença entre s próprios materialistas. Epicuro (341-271), discípulo de Demócrito (460-371 a.C.) foi um prolífico autor: cerca de trezentos escritos, que se perderam, dos quais só restam três cartas. Obteve uma enorme influência no período helenístico. Devemos a Lucrécio (96-55 a. C.) a melhor exposição da física e dos preceitos éticos da escola epicurista. Tito Caro Lucrécio legou-nos uma das obras mais notáveis e mais belas da literatura ocidental: De rerum natura. Esta obra é um magnífico exemplo de exposição argumentativa filosófica: enuncia a tese da existência necessária do vazio e do movimento dos átomos, ou seja, da unidade material do mundo, criticando um por um os argumentos contrários.

3. A filosofia grega foi dialética. Não há maior legado desse pequeno povo que a sua filosofia dialética – materialista ou idealista. “O pensar dialético aparece aqui na sua simplicidade natural, não perturbado ainda pelos obstáculos encantadores que a metafísica do século XVII e do século XVIII –  F. Bacon e J. Locke, na Inglaterra, Wolff, na Alemanha – a si mesma levantou e com os quais barrou a si mesma o caminho de chegar do entendimento do singular ao entendimento do todo, à penetração na conexão universal.” 

4. O materialismo no período clássico foi combatido por todas as escolas filosóficas; No Império Romano os grandes pensadores- Séneca, por exemplo- que se constituíram como o património humanista e literário que o Império nos legou, adeptos do estoicismo em geral, silenciaram o epicurismo. O epicurismo não beneficiou de condições que lhe permitissem hegemonia, porque o pensamento científico era incipiente, o qual mal sobreviveu à hegemonia absoluta da religião cristã, que pôde impor-se mercê do império romano tardio e da sua força messiânica de salvação individual. O epicurismo e o estoicismo também a prometiam, mas na Terra e na vida; nas épocas de medo jamais puderam competir com uma religião de massas. A filosofia crítica, desde o berço, viu-se relegada mil anos. O materialismo, identificado com ateísmo e heresias horríveis, foi amordaçado. Quem se atrevia? Ainda assim na Idade Média, larguíssimo período que não se resume à Idade das Trevas, no qual, apesar de tudo, importantes progressos se verificaram a Ocidente e a Oriente, notáveis pensadores árabes, recuperando a Metafísica de Aristóteles, empurraram a teologia de A Cidade de Deus, de Agostinho de Hipona, a teologia cristã da época, para limites tais em que ela já não se suportava a si mesma. Tomás de Aquino prosseguirá esse trilho pois que o feudalismo já consolidado exigia reparações na ideologia: fé sim, e muita, alimentada por rituais emotivos, mas alguma razoabilidade “empírica” que justificasse os poderes seculares. É neste quadro de progressos materiais e culturais (ascensão de novas classes que criavam, por imperativos da práxis, novos valores) que se tornará possível a emergência do pensamento científico com Galileu Galilei, que libertará a filosofia e a ciência da religião.

5. O determinismo integral segundo o qual o perfeito conhecimento de um estado do universo deveria permitir a dedução mecânica de todos seus estados futuros, dominava ainda o pensamento científico nos finais do século XVIII. Nos inícios do século XX ainda se pensava, na comunidade científica, que o universo era estático. A genética era completamente desconhecida. Há cem anos predominavam as teses racistas entre os biólogos e demais cientistas. Desconhecia-se ainda em rigor a natureza e o papel do inconsciente. A racionalidade nos últimos setenta anos deu passos de gigante no domínio científico. A novíssima visão do universo (teoria da Relatividade, flutuações do campo quântico e o Big Bang, Teoria das Cordas, engenharia genética e funções do cérebro, exploração do espaço sideral, comunicação e máquinas inteligentes, etc.) constitui a maior revolução científica de todos os tempos. Um homem da primeira metade do século XIX ficaria abismado se acaso ressuscitasse neste novo universo.

6. O racionalismo contemporâneo não deve desprezar as contribuições dos filósofos das épocas anteriores, da antiguidade clássica e do Iluminismo, pré-modernos e modernos, porque foram eles que ajudaram a construir a racionalidade que herdámos, independentemente das suas limitações, dos seus idealismos, dos seus erros. O alcance crítico contra a mentalidade mítica e despótica que dominava em absoluto a humanidade, o recorte racional do método aristotélico de pensar, a mundividência do estoicismo, deram-nos um olhar sobre o mundo nos antípodas das religiões.

7. Os degraus que o Ocidente subiu pelas mãos de Descartes (1596-1650) e Gassendi, de N. Copérnico, Giordano Bruno e Galileu, de B. Espinosa e Leibniz, de T. Hobbes (1588-1679), J. Locke(1632-1704), Pierre Bayle (1647-1706), não devem ser descartados por um arrazoado ideológico seja ele qual for. Distinguir com verdade cada um deles, demonstrar as limitações dos seus idealismos ou materialismos, expor a base de classe do liberalismo burguês setecentista, é, como tem sido, uma tarefa da nossa racionalidade crítica contemporânea, porém não é sua tarefa destruir. Nunca existiu uma racionalidade pura isenta de idealismos e de ideologias políticas, desinteressada, por mais transparente que o desejasse. Todos os filósofos ambicionaram descrever o mundo e a existência humana tal como são, portanto a ontologia foi sempre o seu desiderato e o seu sustento. Platão, Aristóteles, Agostinho ou Tomás de Aquino, o mundo da cultura grega ou da cultura cristã. Do esclavagismo ou do projeto hegemónico da religião. Nenhuma se apresenta completamente desajustada do seu contexto histórico, do húmus social onde o filósofo cultivou os seus filosofemas.

8. Até as raízes irracionalistas de alguns grandes filósofos dão, por vezes, frutos racionais. Há nos grandes filósofos um excedente, algo como uma espécie de utopia pessoal, que a classe social que eles quantas vezes promoveram, rejeita logo que toma posse do poder. Está para além dos seus interesses políticos imediatos. Essa crença otimista esteve patente nos iluministas. Daí este nome.

9. Ser racional é saber construir um discurso coerente e comunicável sobre a sua conduta e sobre a dos outros; reconhecer objetos e pessoas; orientar-se de modo aceitável pelos demais membros de uma comunidade. A racionalidade filosófica ou científica é mais do isso. É construir um discurso argumentativo, reconhecendo-se nele a influência de outros filósofos, cientistas ou saberes. Na ciência as provas são a posteriori, comprovam uma teoria. Na filosofia não se dispensa também a experiência e a sua reflexão. A filosofia e a ciência estiveram unidas muito tempo depois do início de ambas. O filósofo era um “amigo do saber”, o qual incluía naturalmente as matemáticas e a astronomia.

10. Desde as origens da Filosofia que se constituíram claramente duas correntes opostas que se podem representar pela “linha” de Demócrito e pela de Platão. As escolas epicuristas e estóicas foram hegemónicas no período helenístico e sob o império romano até ao século V quando os imperadores cristãos as proibiram. É neste longo período que o materialismo sofre um eclipse quase total. É somente no século XVII que o materialismo renasce nomeadamente com Pierre Gassendi (1592-1655) que influenciou a filosofia inglesa, a qual por sua vez, marcou indelevelmente os materialismos posteriores. A corrente dos “libertinos”, nomeadamente Cyrano de Bergerac, que iniciou o combate contra o domínio da religião. O mecanicismo de Descartes que, apesar do seu idealismo, há de desaguar no “Homem Máquina”, de La Mettrie. O pessimismo de Thomas Hobbes que cria, no entanto, uma perspetiva realista moderna sobre o Estado e o contrato social. Baruch Espinosa, o grande filósofo holandês filhos de judeus portugueses, observa a luta de classes no seu país e antecipa o regime democrático. Somente no termo desse século Leibniz cunha pela primeira vez o materialismo como corrente filosófica oposta ao idealismo. Por conseguinte, foram necessários muitos séculos para que, chegados ao Iluminismo, o materialismo se afirmasse novamente e se distinguisse com clareza bastante das metafísicas idealistas e das teologias. O empirismo de origem inglesa (J. Locke) contribuiu para o desenvolvimento dos materialismos. O materialismo francês do século XVIII, atento às críticas dos empiristas, não recicla mas refina a argumentação do materialismo. Deste modo existiram diversos materialismos, alguns com escassa influência na corrente contínua da filosofia ocidental, fosse por terem sido desprezados, perseguidos e silenciados, fosse também porque as condições sociais (económicas e culturais) não lhe tivessem sido favoráveis. O que nos leva novamente à constatação de que foram os interesses da classe média – a Burguesia - que propulsionaram o desenvolvimento da ciência e dos materialismos modernos.

11. Na Modernidade a Razão inicia (ou reinicia?) um novo rumo em que, agora, os novos valores do interesse e da utilidade vêm desempenhar um papel decisivo. A experiência é o critério principal. F. Bacon expõe a nova visão do mundo, um mundo novo que se anuncia sob as conquistas do pensamento científico. Os valores medievais perdem a hegemonia sob o impulso dos interesses de novas classes em desenvolvimento, novas instituições políticas (monarquias absolutas) que viam no comércio a riqueza das nações. Razão interessada, útil, experimental, libertando-se do cosmos geocêntrico, das especulações metafísicas subordinadas à teologia, dos valores sociais retrógrados.

12. A Razão calcula, analisa, deduz, sintetiza. Contudo, não é ela, só por si, que nos motiva para da ideia passar à ação. É preciso que intervenham o interesse próprio e o sentimento. Jean-Jacques Rousseau, crítico do iluminismo que endeusa a Razão, colocará na Modernidade o conflito eterno entre a Razão e o sentimento; com ele o Romantismo mergulha no labirinto das contradições e dos conflitos da subjetividade. A dialética emerge no génio de Hegel e Marx.

13.  Referir os filósofos materialistas omitindo os escritores utopistas é um lapso grave. A sua influência não se pode descartar numa história das ideias consequente. A conceção materialista do mundo e da vida está presente em quase todos eles, ainda que, nalguns casos, envolta em uma áurea religiosa que se vai perdendo depois dos percursores Thomas More (1477-1535) e Tommaso Campanella (1568-1639). O seu valioso contributo encontra-se, a meu ver, no desenvolvimento das ideias comunistas modernas e na oposição ao capitalismo. Em More, Campanella, Jean Meslier, Morelly (1717-?), Dom Deschamps, Mably, o que prevalece é a crítica à propriedade privada. A sua oposição ao feudalismo (nos dois primeiros) e à nobreza terratenente do século XVIII é, simultaneamente, uma rejeição do capitalismo comercial. A propriedade comunal é a base que organiza aquelas sociedades utópicas onde reina a igualdade. A primeira metade do século XIX assistirá a uma profusão de projetos utópicos comunistas. Perante o tribunal da Convenção G. Babeuf irá declarar com arrojo que bebeu em Morelly (que ele tomava como um pseudónimo de Diderot) os seus ideais comunistas. O materialismo do século das Luzes é uma mistura inovadora de neo-espinosismo (Jean Meslier, d´Holbach, Diderot, Dom Deschamps), mecanicismo, naturalismo (vitalismo, no caso de Diderot) e os escritos utópicos. A par da influência do empirismo inglês (J. Locke) e da ciência newtoniana, somente esse cadinho “explosivo” nos permite compreender não apenas o século das Luzes, como a primeira metade do século seguinte. A denúncia dos efeitos perversos da apropriação privada dos produtos sociais permanecerá uma trave-mestra de uma racionalidade que se quer alternativa radical.

14. Os fundadores das doutrinas liberais formularam princípios que a teoria socialista não pode renegar, porque os regimes políticos liberais os distorceram e converteram em meras formalidades. O que fora substancial tornou-se formal. O princípio segundo o qual o Estado não deve sufocar a liberdade individual, se essa liberdade não prejudicar a liberdade coletiva; o direito à desobediência civil; o princípio da separação dos poderes (transparência, vigilância e independência); as Constituições políticas que romperam com o discricionário e as servidões consuetudinárias; a ideia de República (o bem público prevalece sobre o interesse privado); ou aquele princípio geral do utilitarismo: o que determina se uma ação ou decisão é correta é o benefício intrínseco que traz para a comunidade; quanto maior o benefício, melhor a ação ou decisão (“agir sempre de forma a produzir a maior quantidade de bem-estar”), se produzir a infelicidade, deve ser condenada. São verdadeiras apenas aquelas teorias éticas que consideram decisões e ações como corretas independentemente das suas consequências? Princípios formalistas e abstratos podem ser tão ou mais perigosos na prática do que a ética utilitarista. Ela foi e é passível de críticas, mas o facto de ter justificado no seu tempo a mundividência burguesa não significa que fosse falsa. Uma filosofia não é falsa. Menos ainda quando ela se adequa à funcionalidade de um modo de produção. De resto, Epicuro, o criador por excelência do materialismo, defendia princípios de uma ética utilitarista. O interesse e o útil predominam nas teorias dos materialistas Helvétius, d’Holbach e Diderot. Os princípios do útil, do interesse, foram criações modernas e progressistas dos empiristas (ou “sensualistas”) e dos materialistas do século das Luzes. A crítica de Kant a esses princípios (Crítica da Razão Prática) não os invalidou. Valeu, sobretudo, como síntese necessária entre a intenção (uma “consciência boa”) e o valor social (“universal”, nos termos kantianos) das consequências de uma decisão ou ação. As noções económico-éticas de interesse e de utilidade exprimiam os desígnios das burguesias (comércio, indústria) e opunham-se aos valores feudais. Constituíram um progresso. O socialismo francês, uma das três fontes do marxismo, desenvolveu-se não apenas com as ideias de Rousseau, mas também com as contribuições dos iluministas, sobretudo da corrente materialista (ainda que o chefe dos jacobinos, Robespierre, não o tenha admitido). Uma outra grande doutrina, o utilitarismo, resultou dos princípios supracitados (Bentham e J.-S. Mill). Doutrina desprezada demasiado facilmente, reduzida à caricatura da sua expressão burguesa como função ideológica. Contudo, o cálculo utilitarista da maximização dos prazeres e da minimização dos sofrimentos elevou a um Princípio o que se encontrava implícito nos iluministas. Fosse como fosse propugnavam pelo primado do direito e da felicidade geral, “a maior felicidade para o maior número de pessoas”. Em termos gnosiológicos o utilitarismo não era um idealismo puro, mas uma corrente do empirismo, no qual radica a sua ética pragmática (a ética kantiana é mais idealista que o pragmatismo). É sobretudo a sua ética baseada no princípio da experiência que deve suscitar o nosso interesse. Se o seu uso tem servido para justificar os meios pelos fins, nenhuma doutrina está isenta desse pecado. Implacável na crítica desta filosofia convertida em ideologia do capitalismo, o marxismo não deve, porém, ignorá-la nem desprezá-la. Valorizar a experiência, a prática, não é desvalorizar a precedência teórica dos projetos. É admitir que um projeto deve ser revisto à luz da experiência (as possibilidades que ele já continha para os erros e os desvios).

15. Max Horkheimer e Theodor Adorno, n’ A Dialética do Esclarecimento, expõem com acerto as responsabilidades do Iluminismo no irracionalismo que lhe sucedeu. Segundo eles o Esclarecimento (Aufklärung) é “totalitário”, o processo de racionalização abstrata produziu a barbárie. É preciso, pois, destruir o mito do progresso, tarefa equivalente à destruição da metafísica idealista. O mito do progresso derivou da ideologia burguesa e pelo qual esta justifica os males como acidentes de percurso, efeitos colaterais da marcha infinita da tecnociência. A racionalidade iluminista não emancipou o homem como prometia, domesticou-o. A grandiloquente subjetividade burguesa traduziu-se na reificação e no fetichismo, afirmará Adorno em obras posteriores, servindo-se de Marx e sob inspiração de Lukács. O pensamento, tolhido pela “culpa” vê-se privado da “linguagem da oposição. Não há mais nenhuma expressão que não tenda a concordar com as direções dominantes do pensamento”. “ Na crença de que ficaria excessivamente suscetível à charlatanice e à superstição, se não se restringisse à constatação de factos e ao cálculo de probabilidades, o espírito conhecedor prepara um chão suficientemente ressecado para acolher com avidez a charlatanice e a superstição.”  O esclarecimento autodestrói-se. Não há dúvida de que “a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento ilustrado. Contudo, acreditamos ter reconhecido com a mesma clareza que o próprio conceito desse pensamento, tanto quanto as formas históricas concretas, as instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, contém o germe para a regressão que hoje tem lugar por toda a parte.”  Eis-nos na época do domínio da abstração niveladora, toda a diferença é anulada sob o signo da identidade e da unidade. Dito isto, o Esclarecimento, isto é, o Iluminismo, é coisa a abater? Não. É, antes, uma tarefa de auto-reflexão a cumprir urgentemente, a partir de uma posição dialética. Era esse o propósito do livro que converteu Adorno num autor de enorme influência (toda “destruição” da Modernidade deriva de Nietzsche, Heidegger e Adorno)? Ele o afirma textualmente e é para acreditar. Esta afirmação é clara: “Não se trata de conservar o passado, sim de cumprir as esperanças do passado.” . Porém, o que dele se extraiu foi uma completa culpabilização da filosofia das Luzes. Errada, a meu ver. A dialética negativa de Adorno não comporta nenhuma saída positiva, nenhuma superação. Se assistíamos ao fim das grandes filosofias da história, então, por consequência, eles próprios (Horkheimer e Adorno) deveriam se demitir de filosofar sobre a história e não incutir nesta um sentido negativo, autodestrutivo… Visão “catastrofista” que, de resto e respirando a mesma atmosfera negativista, Walter Benjamim enunciou. Habilmente, o sacerdote do liberalismo, Karl Popper, saberá prosseguir estes passos para recuperá-lo e convertê-lo na melhor doutrina realista, sem metafísicas; o velho Horkheimer desiste e acomoda-se; Marcuse descobre nos jovens um potencial revolucionário. Num golpe de rins que não é tão invulgar como se poderá julgar, da crítica implacável ao liberalismo ( Modernidade) acabam não poucos na defesa do próprio, recauchutado, sem mitos, com umas tintas de “ética racional e comunicacional”. Ou seja: o pensamento dominante é tão dominante que não permite alternativas; portanto, aceite-se o pensamento dominante! As críticas destrutivas da Razão (= “Razão instrumental”) iam beber todas em Max Weber (o próprio Heidegger foi lá beber). Análises idealistas da ideologia burguesa (do racionalismo de inspiração iluminista e burguesa) redundavam em fracassos pessoais (e geracionais!), em consequências políticas conservadoras e até mesmo reacionárias (Heidegger), ou em apostas cegas em revoltas sociais justas mas inconsequentes.

 As Luzes não foram homogéneas: diferentes correntes de pensamento colidiram. Na França, os materialistas La Mettrie, Jean Meslier, D’Holbach, Diderot, Dom Deschamps, distinguiram-se com clareza suficiente dos sensualistas-empiristas (Condillac). Os próprios materialistas não se copiaram: D’Holbach não foi o mecanicista-cartesiano La Mettrie; os neo-espinosistas Jean Meslier, Dom Deschamps, D’Holbach, Diderot, não replicam os enunciados do empirismo inglês de J. Locke e menos ainda de D. Hume. Jean-Jacques Rousseau afastou-se cedo do programa dos iluministas, mas não deixa por isso de ser um expoente máximo do Esclarecimento. Luzes e sombras, diferenças e aproximações. Confiança na Razão (barreira contra a ideologia clerical obscurantista e os costumes bárbaros), pois em quê devemos confiar? Nos puros sentimentos? Nem Rousseau o fez no seu “Contrato Social”…Nos “direitos consuetudinários” dos senhorios e morgados? É evidente, se quisermos ver, que o capitalismo não nos trouxe a última e única versão do racionalismo; trouxe a sua versão ideológica, no duplo sentido que Marx aplicou à Ideologia: consciência invertida e função social. A razão histórica da missão civilizadora do Império Britânico nas Índias, do facínora imperador Leopoldo no Congo, da missão pacificadora da OTAN, protetora intervencionista dos direitos humanos e da democracia ocidental…

 “A Dialéctica da Ilustração”, de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, de 1944, é, sem dúvida alguma, um dos mais importantes ensaios críticos do século vinte, um marco e uma fonte que ainda não secou. Os seus autores afirmam aí que “não albergamos a menor duvida – e esta é nossa petitio principii – de que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento ilustrado”, mas esse pensamento “contem já o gérmen daquela regressão que hoje acontece por toda a parte”. A regressão aos mitos. O Esclarecimento ao enfatizar o progresso da Técnica como Promessa de um mundo novo, conduziu ao anti-Esclarecimento: a indústria cultural, o consentimento total dos consumidores sem subjetividade e espírito crítico, elimina o passado e realiza a propaganda do mundo existente. A obra é um clarividente repositório dos recuos e contradições do iluminismo burguês. Muito antes Marx e Engels haviam já traçado o balanço do papel da Burguesia: “A burguesia desempenhou na história um papel altamente revolucionário”, ela “não pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produção, por conseguinte as relações de produção, por conseguinte todas as relações sociais.” . O papel negativo está aí claramente exposto. Nessas páginas célebres vemos um exemplo de dialética aplicada à história de “longa duração”. Nas obras posteriores, mais maduras, os seus autores (fundadores da Dialética da História) não perderão nunca de vista o ângulo positivo com que se deve também encarar a evolução da burguesia até esta tomar o poder absoluto nas mãos. Parece-me a mim que estes dois ângulos do mesmo triângulo não foram acentuados, e articulados entre si, em A Dialética da Ilustração e em A Dialética Negativa, de Adorno. O percurso da análise torna-se cada vez mais pessimista: inclui o próprio socialismo que por toda a parte se experimentava, as lutas de classes, o papel revolucionário da classe operária.

A classificação aplicada à Era que se desenvolveu a partir da decadência e por fim dos escombros das sociedades feudais – Era Moderna - é uma expressão que faz todo o sentido relativamente às épocas anteriores na Europa e fora dela. As diferenças progressistas comparativamente, para a humanidade em geral, para a sua maior emancipação ou para lhe fornecer os instrumentos materiais e espirituais para tal, foram substanciais e objetivas. A humanidade progrediu. Foram conduzidas pelas novas classes médias vindas do interior do feudalismo? Sem dúvida. Fundamentalmente et pour cause no seu proveito? Certamente. O capitalismo caracteriza-se por ser uma “criação destrutiva” (não uma “destruição criativa”)? As provas são abundantes e profundamente arrepiantes.

16. Não afirmo que a metafísica não é racional, afirmo que a dialética sem metafísicas dá melhor conta dos fenómenos sociais. Nesse sentido, é mais racional. É necessário distinguir as metafísicas, porque umas foram obstáculos epistemológicos, outras não. Exemplos: a metafísica de Espinosa não se opõe ao desenvolvimento da ciência e mais apurado espírito crítico, bem pelo contrário; o naturalismo metafísico de d’Holbach promoveu uma imagem realista e ética da natureza e do homem. Qualquer crítica do pensamento metafísico deve distinguir os sistemas metafísicos, segundo esse critério. O naturalismo e o materialismo dos séculos XVII e XVIII não devem ser rejeitados como falsos e culpados dos males que sobrevieram. Foram, pelo contrário, um auxiliar importante na marcha difícil das teorias críticas e das práticas científicas. Mas não só os materialistas: o racionalismo metafísico de Descartes lançou as bases do pensamento moderno, precisamente porque a partir dele a filosofia libertou-se da tranquilidade (ilusória) do primeiro começo- Deus- ao estabelecer como início o eu pensante, a independência intelectual; e reconhece o método científico como o mais racional. Espinosa começa o seu sistema com a demonstração da existência de Deus, mas nele Deus é a Natureza e as demonstrações nada têm que ver com as “provas” teológicas e teleológicas. Com o cartesianismo e o espinosismo a filosofia nunca mais foi a mesma. Ser dialético é saber o que se deve conservar (o que realmente se conservou nos caminhos do progresso) e o que se deve eliminar como irracional, isto é, retrógrado ou completamente errado. A Crítica tem de ser radical. Deve-se criticar a forma sobretudo quando ela vela ou mistifica os conteúdos concretos. Criticar o Iluminismo não é tarefa nova, Kant fê-lo, Hegel, Feuerbach e Marx, cada um a seu modo. Depois deles temos de partir deles quer queiramos ou não. Marx fê-lo com Hegel. Estiveram todos eles antes de Marx amarrados a uma forma insuficiente de crítica. Fomos e continuamos a ir mais fundo e mais longe. Na crítica da Ideologia, na crítica da noção de Progresso tanto na perspetiva otimista dos iluministas (Condorcet) como da teleologia hegeliana da Consciência. A própria noção de “evolução”, que substituiu a ideia de progresso, até essa nos suscita reservas. Não se confirma uma linha de evolução contínua da Filosofia que dê consistência a uma História das Ideias baseada nessa crença. Verificam-se retrocessos e perdas tanto nas práticas sociais como nas ideias. As ameaças que o mundo hoje sofre (a humanidade o próprio planeta que a sustenta) jamais existiram nas Eras anteriores. Todavia, a Modernidade, ao mesmo tempo, forjou as possibilidades objetivas e subjetivas para revoluções sociais que a humanidade jamais poderia alcançar em eras anteriores.

17. O texto mais admirável pela forma e pelo conteúdo que alguma vez se publicou, que dirige a mais formidável crítica da Modernidade capitalista, é o Manifesto do Partido Comunista. Porque denuncia as suas origens históricas e os seus caboucos económicos, porque demonstra que a “naturalidade” ou “eternidade” com que se apresenta é falsa. E porque logo na primeira frase expõe a necessidade e possibilidade de novas revoluções sociais desta vez para eliminar a sociedade moldada pelo Capital. É nesta época que vivemos.

18. O que se deve criticar no Iluminismo é a sua ideologia da Abstração, ou a abstração como ideologia. Mas essa crítica da representação e da Identidade entre o pensamento e a realidade, foi precisamente a primeira tarefa dos jovens Marx e Engels. A grande crítica marxiana irá construir-se em plena maturidade com a crítica do conceito de valor de Adam Smith. A crítica de Marx à ideologia, à alienação, deve muito ao modo como “deu a volta” às categorias do método hegeliano. Porque os fenómenos objetivos têm que se manifestar primeiro para que o pensamento filosófico se veja obrigado a responder com os seus meios. Esta ideia é uma das melhores prendas que Hegel nos ofereceu (a coruja de Minerva). O capitalismo teve de manifestar-se em toda sua realidade exploradora e destrutiva para que pudesse encontrar em Marx o seu intérprete e opositor radical. Para ir às raízes é necessário que estas produzam florações (carnívoras). Por que razão vemos na Modernidade, nas suas ideias e práticas, um inimigo? Porque os seus ideais (do sujeito livre, da Vontade, do Valor, da liberdade e igualdade) foram convertidos pelo capitalismo em armas poderosas de dominação. Os princípios e os valores tornaram-se meramente formais, exceto para os próprios capitalistas. Na cabeça dos capitalistas liberdade significa apenas a “livre iniciativa” dele para comprar a força-de-trabalho pelo preço que mais lhe convier na base de uma relação social objetiva completamente desigual. Contudo, se a Modernidade transportou o inimigo para dentro das nossas portas – como o cavalo de Troia – transfere para as nossas mãos ao mesmo tempo um poderoso aliado. Nela se forjou o criador e o produto que o erradicará. A doença e o remédio.

19. Não basta afirmar que o movimento é caraterística imanente da matéria. Foi necessário perguntar: que movimentos? O como. E o como é a sua conexão interna, a contradição inerente, a inter-relação entre os fenómenos. Não basta, por outro lado, afirmar a realidade do Todo (Totalidade de totalidades), foi necessário que se compreendesse que o Todo é percorrido e movido pela Contradição. Uma totalidade não é a mera soma das partes. Não bastou o enunciado segundo o qual a Natureza é o Todo sem nada mais que lhe seja exterior e prevalecente. Foi necessário descobrir-se que a Natureza possui uma história. A Ideia de História emergiu com o Iluminismo. Saltou da sua aplicação limitada à história das instituições políticas e das ideias para o mundo natural. Essa foi, provavelmente, a maior revolução da Modernidade. Dialética do distanciamento/aproximação foi a posição adotada por Marx e Engels sobre o idealismo hegeliano e o materialismo francês. É esta posição que adoto quando persigo.

 

20. A racionalidade diverge de filósofo para filósofo. O racionalismo de Hegel está nos antípodas do racionalismo de d’Holbach, em um o conceito central é a Consciência, no outro é a Natureza. O racionalismo de Marx está nos antípodas do irracionalismo. Nenhum parentesco entre Marx e Schopenhauer. A história das ideias, o modo diferenciado como os grandes filósofos utilizaram a razão e a desenvolveram, as diferentes interpretações do mundo natural, das sociedades e da existência humana, não constituem uma história independente da história das relações sociais. Sem esta as interpretações não existiriam sequer. A crítica das religiões (das mentalidades e dos costumes classificados como irracionais, retrógrados e bárbaros) encetada pelos grandes filósofos da antiguidade clássica, não foi possível no Oriente, mas nas democracias gregas; se ela continuou dificilmente nos séculos posteriores em condições completamente adversas, esse facto apenas afasta um determinismo causal das relações sociais de produção. Ainda assim, não foi na estratosfera que Agostinho de Hipona produziu uma interpretação do mundo e da existência humana toda ela assente na dominância da fé e da maldade inata do homem, antes foi nas condições peculiares dos estertores do Império Romano e do terror da barbárie que ele observava e sentia. Por outro lado, as filosofias são construções pessoais, isto é, o pensamento de Espinosa foi um fruto extraordinário de uma personalidade extraordinária que ergueu o seu voo intemporal sob as condições estritamente temporais de uma República burguesa ameaçada.

21.  No refluxo e refluxo das múltiplas interpretações racionais do mundo e da vida que a humanidade produziu, veio gradualmente a sobrepor-se a Razão científica, com os seus métodos e os seus instrumentos de observação e medida. Não transforma o mundo só por si, não ficou ele melhor no mundo capitalista do século passado apesar dos extraordinários avanços dos nossos conhecimento e das nossas tecnologias. Certamente. A filosofia do positivismo burguês foi a ideologia do cientismo, a festa triunfal da razão tecnocientífica que viria iluminar o mundo sob o império do capital industrial. A neutralidade da ciência face aos interesses mundanos é uma ficção. Converteu-se numa poderosa alavanca de transformação do mundo. A racionalidade científica moderna veio para ficar, isto é, não perderá jamais a hegemonia como sucedeu com a ideologia religiosa da Idade Média (exceto se sobrevier um cataclismo). Por que há nela um excedente que não é meramente ideológico. Mas o diagnóstico dos malefícios do capitalismo é assustador. A humanidade caminha para a sua perdição. A ciência só por si não nos salvou, bem pelo contrário. Porém, o seu abandono não faria qualquer sentido, nem é já possível. É necessário que a racionalidade científica não se feche no seu reduto de indiferença cínica. É urgente que ela se abra para uma interpretação filosófica do mundo e da vida, ética e política. Para uma Razão política que não justifique a dominação do homem pelo homem. Uma Razão prática que governe em proveito comum as forças naturais. Uma Razão científica que vença a fome e a doença. Uma Razão dialética que demonstre que uma contradição socialmente antagónica somente se resolve pela sua dissolução. O que é irracional é esta dose de contradições cada vez mais insuportável para a humanidade: uma economia irracional que gera desemprego e exclusão social, que se reproduz continuamente no mais completo desprezo pela miséria que reproduz, que expropria os povos do seu espaço, que se apropria do tempo dos trabalhadores para benefício exclusivo do lucro. Ao mesmo tempo que a ciência liberta poderes incomensuráveis que curam, que aumentam a longevidade e o bem-estar, a abundância de alimentos, o controlo de desastres naturais, o aumento dos tempos livres para o lazer saudável e criador. O que é irracional é a fúria expansiva e destruidora dos imperialismos, expressão máxima do terror capitalista, responsável por duas guerras mundiais e por sucessivas ditaduras sanguinárias. O que há de racional no capitalismo? As origens da sua acumulação e expansão através da expropriação e do saque, do colonialismo e da escravatura? O que há de racional num modo de realizar lucros sobre lucros, dinheiro através de dinheiro, numa acumulação infinita?

O materialismo dialético

22. O idealismo, místico e mistificante, resulta falso nos seus pressupostos; todavia, contêm um conteúdo real. Este conteúdo revela contradições objetivas e conflitos da vida social concreta.

23. Sob as especulações que impeliram a filosofia ocidental importa destacar a importância do método. Sem um bom método não há boa filosofia, na medida em que, sem ele, não existiria a ciência que hoje conhecemos. Variem embora os métodos para se alcançar verdades, perdurou a necessidade absoluta de um método racional. Com o método dialético constrói-se uma ontologia materialista; com o método experimental  comprova-se uma boa teoria.

24. Toda a ciência hoje é materialista. As opiniões idealistas de alguns cientistas contradizem as descobertas das ciências. A astronomia e astrofísica, a geologia e geografia, a biologia e a antropologia, a física e a química, demonstram a veracidade das teses materialistas, não as do idealismo que julga que é a consciência que cria a realidade. Nos inícios do século XX conhecia-se apenas a existência da nossa galáxia, hoje sabemos que elas são milhares de milhões. Foi a consciência dos astrónomos que as criaram? Evidentemente que sem a capacidade humana, o seu saber e os instrumentos que criou, nada se saberia. Contudo, a práxis humana (a sua atividade criadora) não criou o universo nem a vida neste minúsculo planeta, é apenas de ambos um fenómeno grandioso. A natureza tornou-se autoconsciente através desta sua criatura que surgiu devido a uma conjugação dialética entre a necessidade e o acaso. A substância e os seus atributos.

25. O materialismo dialético não implica uma exterioridade ontológica inibidora da subjetividade; não é uma exterioridade dada que exclua à partida a intervenção criadora do sujeito, bem pelo contrário. Na própria formulação ontológica, na colocação do problema filosófico fundamental, o sujeito está implicado.

26.  “A questão da relação do pensar com o ser, do espírito com a natureza – a questão suprema da filosofia no seu conjunto –“ (F. Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Alemã Clássica, Obras Escolhidas, T. 3, p.388, Edições Avante!) “Conforme esta questão era respondida desta ou daquela maneira, os filósofos cindiam-se em dois grandes campos. Aqueles que afirmavam a originariedade do espírito face à Natureza, que admitiam, portanto, em última instância, uma criação do mundo, de qualquer espécie que fosse – e esta criação é frequentemente, entre os filósofos, por exemplo, Hegel, ainda de longe mais complicada e mais impossível do que no cristianismo - formavam o campo do idealismo. Os outros, que viam a Natureza como o originário, pertencem às diversas escolas do materialismo.” (idem). “Mas a questão da relação de pensar e ser tem ainda um outro lado: como se comportam os nossos pensamentos acerca do mundo que nos rodeia para com esse mesmo mundo? Está o nosso pensar em condições de conhecer o mundo real, podemos nós produzir, nas nossas representações e conceitos do mundo real, uma imagem especular (Spiegelbild) correta da realidade? Esta questão chama-se, na linguagem filosófica, a questão da identidade de pensar e ser, e é respondida afirmativamente, de longe, pelo maior número de filósofos.” (ibidem, pp. 388-9). Este trecho célebre de Engels suscita-me, todavia, duas reservas. Primeira- o termo “especular” remete para a analogia do espelho; ora, o cérebro não é um espelho, o conhecimento não é mecânica passiva. Segundo- Não há identidade entre pensar e ser tout court, mas mediações dialéticas entre o sujeito e o objeto. Esta expressão é hegeliana, portanto, idealismo absoluto. Estas reservas pontuais não invalidam a substância do texto.

27. Os materialistas de todos os tempos escolhem, portanto, racionalmente a primeira resposta. É a resposta do bom-senso, ainda que não seja necessariamente a do senso-comum. Natureza ou Matéria. Porém, porque a noção de Ser encontra-se à partida indeterminada – noção superlativamente geral- pode resvalar, por dedução lógica, para o indeterminado, vazio (pura abstração); porque, a matéria recebe determinações sucessivas através da ciência; e porque a matéria ou Natureza possui como sua propriedade essencial o movimento, vale então dizer que o Ser esteve e estará sempre em processo adveniente. O Ser não é coisidade fixa, é devir, o que está-para-vir e ainda-não-é. É processo. O Ser cria-se a si mesmo na sua eternidade e infinitude. A unidade do mundo consiste na sua materialidade. Não existem, pois, dois Seres (ou Substâncias), mas um único; por conseguinte, o materialismo é uma filosofia do Uno e da (sua) Unidade. Afirmando-se o Ser em devir, introduzimos desde o começo a dialética. Refletimo-la, abstraímo-la da natureza do Ser. O materialismo não é uma metafísica especulativa da(s) Substâncias (s) (inertes, sem desenvolvimento e mudança. A Unidade é Diferença (diferenciação interna). A Natureza desenvolve-se no tempo. Não se desenrola conforme um Plano pré-determinado: cria a sua própria história ( o nosso universo nasceu, envelhece e há de morrer). O materialismo é espinosista na afirmação do Uno unívoco, sem um fora-de-si, e hegeliano na afirmação da Unidade contraditória que se move. O materialismo é um monismo absoluto. A Matéria gerou de si mesma a possibilidade de se pensar a si própria. A Natureza reconhece-se no homem; diferença na Identidade; a espécie humana reconhece em si mesma a sua identidade com a Natureza. O Uno exprime-se de múltiplos e diferentes modos. O marxista afirma que a primeira categoria geral ( filosófica) da Matéria é a de ser independente da consciência. Poder-se-ia dizer com Bento Espinosa: a natureza possui uma infinidade de atributos, sendo um deles o pensamento. O pensamento relaciona-se com o objeto precisamente porque este existe independentemente do processo cognoscitivo. Por isso a escolha mais adequada pra compreender esta relação é pela dialética sujeito/objeto. Na 1ª Tese sobre Feuerbach Marx esclarece-nos: “A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias – o de Feuerbach incluído – é que as coisas, a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sob a forma do objeto ou da contemplação; mas não como atividade sensível humana, práxis, não subjetivamente. Por isso aconteceu que o lado ativo foi desenvolvido, em oposição ao materialismo, pelo idealismo – mas apenas abstratamente, pois que o idealismo naturalmente não conhece a atividade sensível, real, como tal. Feuerbach quer objetos sensíveis realmente distintos dos objetos do pensamento; mas não toma a própria atividade humana como atividade objetiva. (…)” ( Teses sobre Feuerbach, Obras Escolhidas, t. 1, Ed. Avante!). Posição ao mesmo tempo monista e dialética. A categoria de Todo ou Totalidade é inerente ao monismo materialista. Como categoria filosófica é uma abstração. No caminhar do conhecimento formamos totalidades (conceitos e categorias) que incluem totalidades já conhecidas sem jamais virmos a conhecer o Todo ( a sua abertura é infinita). No plano científico trata-se da ambição de unificar todas as leis numa única, todas as formas de Energia numa só. Muito embora de uma forma especulativa ou intuitiva, nunca foi outra a ambição do materialismo desde as suas origens: descobrir um Princípio. Por todo o espaço-tempo material por onde o espírito caminha encontra sempre o seu berço e o seu lar.

28. Vulgarizou-se (por ignorância ou má fé) uma versão de materialismo caricatural. Nada mais errado. As filosofias materialistas, logo na sua origem (Demócrito, Epicuro) são tão complexas quanto as idealistas. Não há certezas se foi um indivíduo excecional que transgrediu a forma sensível e mítica de ver e pensar, se foi um cúmulo de experiências coletivas; julgamos que se verificou numa comunidade particular, circunstâncias particulares. Como visão do mundo, porém, é mais ampla: além de textos escritos, escolas e discípulos (comunidades de iniciados), engloba a comunicação oral, comportamentos alternativos, que se verificaram em todos os continentes. Apesar da mundivisão materialista, segundo a qual tudo que existe é natural, ou deriva da Natureza (Matéria), parecer ser do senso-comum (realismo espontâneo ou ingénuo) não o é, e menos o era nesse tempo; somente circunstâncias sociais muito particulares, que hoje conhecemos, permitem explicar a rutura ou evolução que foi o materialismo como crença racional. Ou seja: a conjugação da práxis com a razão. Do mesmo modo diferentes condições de vária ordem (mental e material) explicam o apagamento da alternativa materialista durante séculos no continente europeu como já vimos. Determinante foi, seguramente, o modo de organização económica e do poder político que lhe correspondia. A mundivisão materialista somente voltou a conquistar espaço livre nas novas cidades burguesas. Os estudos históricos demonstram, portanto, a correção das teses do materialismo histórico.  

Uma ontologia para uma gnosiologia

 

29. Aqueles que refutam o materialismo dialético estribando-se exclusivamente numa teoria do conhecimento, não encontram fundamento que sustente essa posição. Uma gnosiologia sem uma ontologia não possui sentido algum. O que é que se conhece é a questão, e não exclusivamente o como se conhece. Sem o que é nem sequer se conhece coisa alguma. Todos os filósofos idealistas (desde Platão e Aristóteles) reconhecem a existência da Matéria, subordinando-a às formas do espírito é claro, pois sem a inclusão da Matéria (uma determinada ficção da Natureza) o seu idealismo nem seria possível de todo. Porém, o materialismo nega que a Matéria exista e se mova apenas por causa de “formas” (ou categorias) colocadas nela pelo espírito, ou que a matéria em-si seja incognoscível. Quando o homem a conhece ela converte-se num ser-para-mim; e tal é possível porque a Matéria é independente, conjunto de coisas e fenómenos que agem sobre os sentidos e sobre o entendimento. Tudo o que sabemos hoje demonstra que somos seres bio-sociais. Na caraterística “sociais” cabem abundantes elementos materiais. Nós dependemos da natureza, pela origem, pela constituição, pela sobrevivência; a natureza, pelas suas origens e infinidade, não dependeu, nem depende, do homem para coisa alguma. As suas regularidades, repetições ou mudanças, não dependem de nós. Materialismo ontológico, epistemológico, prático, histórico. Marx criou os fundamentos do materialismo histórico e do materialismo dialético; Engels, a ontologia em cooperação com o seu amigo. Na divisão do trabalho entre os dois amigos exemplares, coube ao último esta tarefa. A correspondência diária entre ambos o demonstra cabalmente. (Fizemos alusão a este assunto no último ensaio publicado aqui)

30. Os idealismos subjetivos que menorizam a estrutura biológica e material do homem, tendem a hipostasiar a vontade e o “livre-arbítrio” (ficção que Espinosa foi o primeiro a censurar), como se verifica na inflexão da sociologia contemporânea (individualismo, subjetivismo). Valem de pouco as críticas ao “determinismo materialista” vindas de idealistas e de alguns marxistas erráticos, para tal é conveniente que não caiamos nos excessos ingénuos dos materialistas das Luzes (comum a toda a ciência do tempo, de resto). Paradoxalmente (aparentemente) assistiu-se a um surto de biologismos, num teatro trágico encenado sobre o mecanicismo de Hobbes, que conduziu a teses racistas (resultados inevitáveis do positivismo). Pode-se dizer, a propósito, que as disputas teóricas só têm solução na vida real. Não só as resolve como desnuda a sua natureza ideológica. Não chamarei materialistas aos “biologistas” da estirpe de Desmond Morris, mas, antes, naturalistas. Não chamaria materialista a Chomsky que advoga a natureza inata da linguagem humana, mas, antes, neo-kantiano.

31. A ontologia materialista não mais deveria ser acusada de determinista depois que introduziu na filosofia a categoria marxiana da práxis. A relação do homem com a natureza realiza-se pela mediação da práxis. Não existe um dualismo de duas entidades independentes.

                                                    Do Conhecimento

32. Contudo, surgirá outra interrogação: como se processa o conhecimento, admitindo como irrecusável a práxis? A expressão utilizada por Lenine é o ”reflexo”. Contra ela caíram as acusações de “realismo passivo”, cópia, teoria do ”espelho”. De facto, Lénine serviu-se dos termos “cópia”, “fotografia”, “espelho”, no que foi um momento, raro, de infelicidade do genial teórico. O termo “reflexo” (Lenine vai busca-lo a Engels) é equívoco a menos que signifique adequação e ênfase na prevalência da realidade objetiva. Os sentidos refletem as propriedades dos objetos, de algum modo, mas através de imagens processadas pelo cérebro, não as copiam nem espelham. A imagem assemelha-se (mas não é) a uma fotografia invertida mas é o cérebro que a interpreta (identifica-a, insere-a numa categoria). É evidente que sem estímulos externos os aparelhos sensoriais dos seres vivos não surgiriam, nem se modificariam, nas etapas da evolução. Jean Piaget usou a expressão “assimilação” (oriunda da biologia) e não é por uma palavra que se deva acusar de “biologismo”. Pavlov criou os termos “reflexos simples e reflexos condicionados” e o behaviorismo fez deles a sua base de trabalho (J. Watson e Skinner). Marx, em O Capital, t.1, utiliza o termo reflexão. A terminologia de Lenine fez do seu livro um alvo preferencial de marxistas revisionistas e anti-marxistas. Na verdade era a ontologia que queriam atacar. Precisamente o que fornece a esse livro a sua máxima importância e a sua atualidade. O problema do conhecimento virá, em Lenine, a ser resolvido posteriormente numa conceção dialética melhor esclarecida.

33. Sabemos que sem linguagem não há desenvolvimento intelectual da criança; com toda a segurança dizemos que o mesmo sucedeu com os primeiros homo sapiens que, por efeito de uma mutação, puderam pronunciar sons articulados com significados. As ideias não são apenas imagens, e estas não são cópias. Os empiristas mostraram sempre grandes dificuldades para explicar a formação de ideias por associações de sensações, imbróglio que Kant resolveu ao modo idealista na sua Crítica da Razão Pura. Na realidade da perceção resultam imagens e “esquemas”, as ideias representam abstrações, generalizações. Mais tarde podemos, então, abstrair das coisas objetivas as suas propriedades essenciais. O convívio prático com outras pessoas constitui uma mediação fundamental para a formação das ideias. Os cegos e os surdos-mudos também pensam. O cérebro processa operações segundo regras (frases com significados, associações, regras lógico-dedutivas). É uma esfera com autonomia relativa porque não independe da observação, assimilação, experiência sensorial e social, ainda que se governe a si própria num diálogo com a realidade exterior. Dizemos: o pensamento é um produto do cérebro. É uma frase composta de noções, conceitos abstratos. É por meio do sistema nervoso central que pensamos. Traduzimos, por processos complexos, um facto objetivo. Sem o pensamento (que não é somente linguagem fonética) não poderíamos afirmar coisa alguma; sem o cérebro não poderíamos pensar. É neste quadro de identidades/diferenças (que ainda constituiu o mais profundo enigma), que o idealismo sempre se movimentou. Navegou ao sabor da ignorância dos processos reais, separando com uma parede o que está conectado entre si. Movimentou-se pelo interesse ideológico e prático que poderia extrair dessa ignorância e desse enigma. Na verdade, para compor o próprio problema, compor palavras-conceitos, construir uma resposta dentre um reportório, desenvolver um discurso argumentativo coerente, necessitamos de um cérebro e de práticas sociais (comunicar é a primeira delas). A cada passo da mudança das práticas sociais, a cada passo da evolução das ciências, o idealismo perde um dedo ou um braço: o empirismo de Locke a Hume destronou a sustentação metafísica do racionalismo cartesiano; a Crítica de Kant fez oscilar até aos alicerces tanto o racionalismo puro (dogmático) como o puro empirismo; a dialética de Hegel, profundamente corrosiva de todos eles, mas também do materialismo metafísico, abriu brechas irreparáveis na Lógica convencional. No terreno, quem se digladia hoje são versões autocorrigidas de empirismo, positivismo, idealismo, etc. Sente-se uma espécie de recauchutagem… O próprio materialismo manteve-se imutável? Não. O materialismo histórico não se conserva intocável em recorte dogmático de um punhado de frases sagradas que traduziam, deve-se dizê-lo, um determinado período histórico (cultural, económico, político) e mental dos seus autores. As experimentações políticas (revoluções e regimes) fracassadas, os sete fôlegos de que o capitalismo parece estar dotado como os gatos, colocam enormes desafios. Porém, ao mesmo tempo que é necessário recompor, é fundamental reafirmar a vitalidade do materialismo dialético, porque a própria evolução das ciências vêm demonstrar o acerto dos seus enunciados estruturantes: a Contradição está no âmago da Matéria (Heráclito triunfou!), a dialética desordem/ordem, desorganização/organização, conexões e reciprocidade, saltos qualitativos e singularidades, certeza/incerteza, unidade/multiplicidade, enfim: um neocórtex que começa a revelar o segredo do pensar e um início do Universo que não lembra Deus de modo nenhum…O materialismo histórico vê reconfirmadas as suas descobertas: a economia (o modo de produção) como base estruturante das sociedades; as concomitantes lutas de classes…

34. O conhecimento não é um mero “reflexo” simples, especular, ou cópia: é uma adequação por meios próprios aos fenómenos objetivos; uma reprodução-integração através de representações formais – na criança: das mais concretas às mais abstratas – e discursos linguísticos. Eliminemos o mecanicismo da reflexologia de Pavlov (conservando os reflexos condicionados) e o excessivo formalismo da teoria construtivista de Piaget e talvez nos aproximemos de um modelo do conhecimento mais explicativo. Pensamos com categorias que as sociedades criaram. Interpretamos o mundo conforme “quadros explicativos” que aprendemos. O conhecimento é uma atividade social. O que lemos em Marx é uma teoria do conhecimento que se baseia em dois eixos: a objetividade (a realidade independente da práxis social, e a práxis social (o trabalho em primeiro lugar na origem do processo, ação sobre os objetos e a interação entre os indivíduos – relações que se estabelecem no processo de sociabilidade). É certo que encontramos em Marx uma crítica do idealismo muito mais desenvolvida que a crítica do empirismo, facto que tem dado azo a muitos equívocos. A objetividade em Marx não equivale de modo nenhum a um materialismo grosseiro. A consciência, por exemplo, é um produto eminentemente social (não exclusivamente, pois que requereu uma organização cerebral complexa e singular no homem e que na criança assistimos à sua maturação), nomeadamente nas origens da espécie humana. A consciência não é um abstrato natural. A libertação relativamente às aparências fenomenais, a captação das essências, não traduz um reflexo ou reprodução mecânica e simplesmente reativa, mas uma operação formal das estruturas intelectuais. Se aprendêssemos e julgássemos apenas pela experiência quotidiana (sensorial, do senso-comum, desse “primeiro género de conhecimento” na classificação espinosana) não iriamos mais além de um praticismo, certamente que adequado muitas vezes à ação imediata e até transformadora – verificamo-lo nas sociedades sem conhecimento científico – porém incapaz de haver formalizado as leis newtonianas, a mecânica quântica, a mais-valia…

35. Marx afirmou desde textos da juventude a anterioridade ontológica da natureza social do homem; o problema do conhecimento resolve-se a partir desta base, ou seja: somente depois (Teses contra Feuerbach, I e II); a anterioridade da natureza sobre a práxis (o trabalho), é afirmada em O Capital, Livro I, T.1 (o homem transforma em matérias-primas os recursos naturais.). Engels ocupar-se-á de explanar esta ontologia no Anti-Dühring e na Dialética da Natureza. A determinação do que é antecede a gnosiologia, fundamenta a solução do problema gnosiológico (a relação sujeito/objeto). A resposta ao problema do conhecimento é, portanto, subsequente.

36. Relativamente à teoria do conhecimento encontro em Marx duas posições: uma posição realista- ontológica que afirma sem equívocos a prioridade e objetividade da realidade independente do sujeito cognoscente; uma posição gnosiológica que afirma o carácter social do conhecimento e o trabalho como fator básico; dimensão gnosiológica intransitiva e transitiva respetivamente. Por conseguinte, a prática é a categoria geral para esta segunda dimensão. Os marxismos têm-se dividido entre aqueles que leem em Marx as duas dimensões e aqueles que somente querem ler a segunda. Julgo incorreta a segunda leitura. Abre o campo a um género de idealismo da práxis- ao perder a objetividade- e incorre em graves consequências na prática precisamente. Preocupados em desfazerem-se da metafísica, os “filósofos da práxis” amputam o materialismo histórico da sua base materialista (dialética). Tentando expulsar o positivismo deixam-no entrar pela porta dos fundos: a coisa-em-si inatingível.

37. O conhecimento desenvolveu-se quando o homem começou a produzir os seus meios de subsistência. O ato de produzir incorpora o conhecimento e desenvolve-o. Evolução concomitante: cérebro, atividade produtiva, conhecimento, aprendizagem, comunicação, comunidade. A estas inter-relações, a este encadeamento de causas-efeito-causa de novos efeitos, a este carácter processual dos fenómenos no qual os mais simples se organizam em sistemas mais complexos e que integra saltos qualitativos, chamamos dialética. A dialética não é um método formal criado pelo espírito pelo qual este se desenvolve sempre dentro de si mesmo. A natureza é que se descobre a si mesma nos produtos do cérebro. O idealismo separa o sujeito do objeto, a consciência e o mundo, quando do que se trata é de unidade (mas não de identidade pura). Os dois lados da mesma moeda. O idealismo (nomeadamente o subjetivo) ao proceder assim (com cortes) apenas demonstra que os dois lados podem contradizer-se. Há diferenças reais, mas a Diferença absoluta em que assenta o método metafísico é falsa.

A historicidade de tudo

 

38. O que sempre faltou à Filosofia (tanto idealista como materialista) foi compreender que tudo que existe possui uma história, ou estender a historicidade não apenas às ideias e culturas, mas também à natureza e às práticas sociais na totalidade. Desde a mais bruta rocha até à mais pura das ideias. Este novo paradigma (novo “continente”) deve-se a Marx e a Engels. A história concreta e material das sociedades humanas (Marx), a historicidade inerente a todos os fenómenos naturais (Engels). No primeiro caso nunca, em tempo algum, se explicara a história nesses termos (formação e desenvolvimento de diferentes modos de produção com incidência decisiva sobre as ideias políticas, morais, religiosas). A revolução marxiana é comparável à revolução galilaica: esta fundou a ciência tout court; a de Marx – a dialeticidade da história- penetrou e fecundou todas ciências e saberes, quer os seus filósofos o queiram ou não. Para demonstrar que a ideia de história se aplica também à natureza, Engels serviu-se dos dados das ciências. Não foi somente a ideia de história que Marx estendeu, a ideia simplificada de que no presente há um passado que o explica (antes dele já existiam historiadores), mas a ideia de que a história é um processo contraditório e por isso evolutivo, no qual a produção e reprodução das formas de sociabilidade desempenha o papel capital. A formidável descoberta da filosofia alemã – a Dialética da Ideia – desceu da “cabeça” para os “pés” do chão que pisamos. A dialética da História inicia-se na coordenação do cérebro e da mão do homem primitivo, com as propriedades objetivas do objeto (alimentos, vestuário, etc.). Quando uma mulher anónima, analfabeta e grosseira, descobriu casualmente a primeira sementeira que produziu, memorizou e refletiu sobre a técnica, correu a transmiti-la ao clã, e o trabalho, cooperativo, deu um salto qualitativo, e isto é dialética.

 

39. O primeiro postulado filosófico da Dialética começa por constatar que nada permanece o que é. O que é já foi outra coisa e outra coisa virá a ser. Quem diz dialética diz movimento, mudança. Por conseguinte, colocar-se do ponto de vista da dialética significa colocar-se no ponto de vista do movimento, da mudança. Quando quisermos estudar as coisas segundo a dialética, iremos estudá-las nos seus movimentos (quânticos, mecânicos, químicos, biológicos, sociais), conexões e contradições, que fazem a mudança. Considerar as coisas do ponto de vista dialético é considerar cada coisa como provisória, como tendo uma história no passado e devendo ter outra no futuro, tendo um começo e devendo ter um fim. Portanto, colocar-se do ponto de vista dialético é considerar que nada é eterno, salvo a mudança. É considerar que nenhuma coisa particular pode ser eterna, senão o devir. O processo. Quem diz dialética não diz apenas movimento, transformação, mas autodinamismo, transformação operada por forças internas. Pois nem todo movimento é dialético. O segundo postulado afirma a ação recíproca dos fenómenos. O encadeamento dos processos. Ao contrário da metafísica, a dialética não considera as coisas na qualidade de objetos fixos, acabados, mas enquanto movimentos.

Práxis no sentido atribuído por Marx é a atividade universal, criadora e auto-criadora por meio da qual o homem transforma o mundo, transformando-se por ela a si mesmo. O “mundo” neste enunciado é necessária e logicamente a natureza (meio ambiente) e a sociedade que sobre ela e com ela se erigiu, produzindo e reproduzindo os seus meios de vida. Atividades industriosas (no sentido amplo) e políticas. Desde a juventude Marx enfatiza a ação: a crítica da filosofia especulativa assenta na categoria da práxis. Contudo, Marx não exclui expressamente a teoria relativamente à práxis. Com a teoria (previsão, planeamento) o homem transforma os meios e os fins materiais; as ideias convertem-se em força material quando assimiladas pelas massas. Engels desenvolve o valor fundamental da ciência para a atividade produtiva. A práxis tal como a definiu Marx, foi, e é, um conceito revolucionário para as ciências sociais. Toda a variegada filosofia marxista apoia-se nele para interpretar os poderes transformadores do homem no decorrer da sua história desde os primeiros artefactos que fabricou. O conceito abrange, necessária e evidentemente, as lutas de classes; por conseguinte, as lutas revolucionárias das massas trabalhadoras. Por causa dele os marxismos dividiram-se conforme a posição que lhe conferiram na teoria de Marx: com valor ontológico, excluindo o materialismo dialético e, em alguns casos, o próprio materialismo histórico; com restrito valor gnosiológico, atribuindo-se à Matéria, isto é, à unidade material do mundo, o valor ontológico – a teoria de Marx será, neste sentido, o materialismo dialético mais o materialismo histórico. É esta posição que adoto, por considerar que a práxis pressupõe uma ontologia materialista dialética. O pressuposto epistemológico geral e fundamental: a realidade objetiva e não o trabalho. Alguns filósofos marxistas entendem que a práxis se reduz ao trabalho. Entendo que não: práxis é mais do que o trabalho, embora este constitua o elemento fundamental. A menos que se alargue o trabalho às instituições e às ideias, o que não me parece consentâneo com as distinções necessárias entre os planos da infra e supra- estrutura que Marx assinalou. G. Lukács realizou um esforço extraordinário para expor uma ontologia do ser social. Julgo-a como a obra maior depois do Materialismo e Empiriocriticismo, de Lenine, no século passado. Os três modos ou expressões do ser social, segundo Lukács, são o Trabalho, a Reprodução, a Ideologia. Eu utilizarei as categorias de ontologia geral e ontologia específica: a primeira começa na categoria filosófica de Matéria; a segunda abrange o modo de produção (nele estão incluídos o trabalho, a reprodução social e a Ideologia). Não descarto, portanto, a categoria de modo de produção, tal é como é definido por Marx na Contribuição à crítica da economia política (Prefácio) de 1859.

 Sobre o Trabalho

40. São vários os textos de Marx em que o trabalho se distingue em dois momentos. O primeiro apresenta-se como auto-alienação, o segundo como atividade livre. Nos Grundrisse e em O Capital o trabalho é visto nesta perspetiva; portanto, o trabalho como alienação do trabalhador deve ser abolido. Segundo interpreto não é o trabalho que deve ser abolido, mas as condições (relações sociais de propriedade e produção) que devem ser abolidas para que o trabalho se converta em atividade livre e auto-criadora (atividade verdadeiramente social). Significa – só pode significar- que o trabalho é uma categoria transhistórica, isto é, não se aplica apenas ao modo de produção capitalista. Foi assim entendido –como trabalho- pela cultura marxista. Foi a tese exposta brilhantemente por Engels e prosseguida por Lukács no seu último ensaio. Não foi assim que o entenderam Robert Kurz e Anselmo Jappe. A análise das formas e condições do trabalho sob o capitalismo, segundo esses autores, conduziram-nos à conclusão de que antes do capitalismo não se pode utilizar a categoria do trabalho. Então, deve-se utilizar o quê? Os escravos, plebeus, servos, camponeses, etc., não trabalhavam? Hesíodo, Prometeu, a Bíblia (Génesis) não exprimiram outra senão a condição trabalhadora do homem (como constituição da humanidade ou o seu castigo). A noção não é idêntica nas diversas línguas? O texto de Engels, O papel do trabalho na transformação do macaco em homem é, de resto, paradigmático. O Velho Engels que estes autores abominam e eu julgo saber porquê. As classes trabalhadoras evoluíram no decorrer da história humana, a sua submissão e exploração também se transformou. Não enxergar isto na história é negar a luta de classes. Que é precisamente o que negam. Aliás, para os senhores do Grupo Krisis a eliminação da propriedade privada é também apenas uma obsessão dos marxistas dogmáticos…

41. Trabalho – É por meio da troca de mercadorias, e somente deste modo, que o trabalho privado que as produziu se torna social. No processo da troca dos produtos desse trabalho ocorre a equalização do trabalho (=trabalho abstrato), e só aí pode ocorrer. Porém, no mesmo capítulo I do tomo 1 de O Capital, Marx distingue do trabalho abstrato o trabalho útil ou concreto, que “é uma condição da existência humana independentemente de qual seja a forma de sociedade”. Ou seja, sempre existiu o trabalho; porém, a categoria de trabalho abstrato só a aplica no processo de produção capitalista. As outras formas de trabalho, anteriores ao capitalismo ou não capitalistas, devem ser analisadas com outras categorias. O problema aqui é saber se num regime socialista (anticapitalista) deve existir mercado. Se sim, qual o seu papel? Dominante ou subordinado?

42. Os autores do Manifesto contra o Trabalho propõem a eliminação do trabalho, o que só poderá ocorrer com a eliminação do capitalismo. Os indivíduos continuariam não a “trabalhar” mas a desenvolver atividades necessárias e atividades livremente escolhidas e o ócio. Trata-se de uma batalha meramente semântica? O que importa é que o trabalhador não esteja mais subordinado a um proprietário que se aproprie da mais-valia roubada ao trabalhador. O que passa pela eliminação progressiva da propriedade privada dos meios de produção sociais (incluindo a força humana de produção), pela autogestão da empresa pelos trabalhadores sem patrões, pela planificação centralizada e por outros instrumentos. A sociedade que eles propõem logo a seguir ao derrube do capitalismo, sem etapas, é uma típica utopia, velha de dois séculos. Abolir o trabalho é uma quimera bucólica para crianças. Nem sequer os utopistas do século XVIII a expressaram. O monge Dom Deschamps, o mais radical deles, propôs a eliminação das cidades e da cultura, da moral e da civilização (tal como ele a conheceu), o abandono do comércio e da respetiva produção para a troca, o regresso ao campo, porém o trabalho mantinha-se e não poderia ser de outro modo. Este surgiu com a hominização, elo fundamental de um processo de mediações (metabolismo) do homem com a natureza, de cooperação, fator decisivo do desenvolvimento da linguagem e de outras relações sociais. G. Lukács analisa a questão no seu último estudo, “ Ontologia do ser social”, em que retoma as teses de Engels sobre o papel do trabalho na socialização. É minha convicção de que o Trabalho é um elemento ontológico (filo e ontogenético) da condição e da existência humana, embora enquadrado na ontologia específica, pois que o materialismo é a ontologia geral: o que se coloca em primeiro lugar é a materialidade do homem no seu lugar próprio adentro da materialidade geral (Natureza), o Trabalho é a atividade da espécie humana; o ontos é a natureza ou matéria.

43. Os autores do “Manifesto contra o Trabalho” denunciam a fétichização do trabalho na sociedade capitalista. Porém, Marx sempre exprimiu com clareza o fator propriedade privada como elemento básico do modo de produção capitalista e o conflito entre trabalho assalariado e capital. Enunciado que os autores do Manifesto contra o Trabalho desprezam. Menorizando manifestamente a apropriação privada dos meios de produção, perde-se a compreensão do facto da força-de-trabalho ser uma mercadoria no conjunto dos meios de produção privados. Manifestamente são conduzidos à afirmação de que as lutas de classe não constituem mais do que retórica para ajudar o capital a integrar os operários e ganhar novos fôlegos. O que será, então, o comunismo? A eliminação do mercado e, por conseguinte, da possibilidade de fetichização das mercadorias, proclamam. Certamente, mas passamos ao lado da questão complexa da eliminação súbita do mercado, ou da necessidade de conservá-lo/superá-lo sob formas completamente diferentes. O que reputamos errado e inconsequente é a ideia de que os fenómenos de alienação, reificação e fetichização, possam eclipsar-se (misteriosamente) sem, primeiro que tudo, a abolição da apropriação privada capitalista. Enfim, sem o decurso de agudas lutas de classe.

Sobre o Progresso

 

44. Progresso- As ideias progridem. É absurdo que se negue o progresso das ideias desde a renascença, pelo menos, até aos nossos dias. Coteje-se o período da Alta Idade Média (poder absoluto da religião, mentalidade popular aterrorizada por demónios e bruxas) com os progressos já no século das Luzes. Progresso das ideias políticas, éticas, jurídicas, religiosas. De uma maneira geral as revoluções trouxeram progressos: compare-se o regime fascista em Portugal com os progressos do 25 de Abril. Progresso da técnica, das ciências, dos costumes, da moral, do Direito. Progresso que não foi sempre contínuo e linear. Entrecortado por épocas de caos e retrocessos. É esta uma questão essencial quando nos interrogamos sobre o conceito de Progresso. As transformações dos modos de produção, a luta de classes.

45. O idealismo, enquanto místico e mistificante, resulta falso e mal formulados nos seus problemas específicos; todavia, contêm um conteúdo real. Este conteúdo revela contradições objetivas e conflitos da vida social concreta.

46. O que mais importa nas especulações racionais que fundaram a filosofia ocidental é o método. Sem método não há filosofia, tal como sem ele não existiria a ciência que hoje conhecemos. Variem embora os métodos para se alcançar verdades, perdurou a necessidade absoluta de um método racional. É ele que produz paradigmas.

47. Dialética do distanciamento/aproximação foi a posição adotada por Marx e Engels sobre o idealismo hegeliano e o materialismo francês e o de Feuerbach. É esta posição que adoto quando analiso, por exemplo, o Iluminismo.

48. O capital, Livro II, O processo de circulação do capital. Aqui Marx revela que a produção é também consumo, distribuição e troca/circulação. Diminuir o tempo de circulação do capital, diminuir a diferença entre o tempo de produção e o tempo de circulação. A mercadoria precisa de ser vendida, sem a venda não há realização plena do mais-valor já criado. Esta investigação de Marx é fundamental para se compreender o processo de produção (forças e relações de produção) capitalista e que se apresenta com plena atualidade. Tanto é errado separar o Livro I do Livro II, como o é enfatizar os fenómenos estudados no Livro II (fetichização da mercadoria) desprezando o núcleo da teoria do valor (a mais-valia) exposta no Livro I. É o que fazem alguns autores (M. Postone, R. Kurz, R. Musse), na esteira de Lukács (História e consciência de classe), quando convertem o fenómeno do fetichismo da mercadoria em “feixe estruturante e o princípio explicativo da principal obra de Marx”(R. Musse), a “reificação” como critério decisivo das análises e diagnósticos do presente histórico (R. Musse). Abandona-se a raiz da extorsão da mais-valia: a apropriação privada dos meios de produção, incluindo a força de trabalho. Concomitantemente o controlo do sistema produtivo e distributivo, o controlo da produção e difusão da informação, as causas profundas dos fenómenos de parasitismo, etc. Abandona-se as lutas de classes. É o que fazem alguns declaradamente. Descobriram-se os Grundrisse no século passado. Bastante tempo depois Moishe Postone e outros autores “descobriram” que esses apontamentos geniais de Marx podiam ser utilizados contra as interpretações que os marxistas realizavam tradicionalmente do capitalismo (a questão do valor-trabalho e do valor-dinheiro). O fenómeno da fétichização encontra-se em O Capital, nomeadamente no livro primeiro, t. I. O trabalho produtivo assalariado (não qualquer trabalho não produtivo) e a conversão de tudo em mercadoria pelo capitalismo (e, portanto, em dinheiro) constituem os eixos da obra madura de Marx. Marx não abandonou os temas tratados, em apontamentos, nos cadernos-de-casa dos Grundrisse. Em ambas as obras Marx ocupa-se da análise do Trabalho sob o capitalismo, isto é, da apropriação e exploração do trabalho vivo e o fenómeno do trabalho socialmente necessário. É assim que devemos ler estes. Enfatizar o fenómeno da fétichização, tal como fora anteriormente o enfatizar da alienação, desvinculando-o do modo de produção e reprodução capitalista nas suas bases e na sua totalidade, é retomar o idealismo do Jovem Lukács, que ele mesmo criticou e corrigiu posteriormente.  Ao contrário da opinião de alguns gurus as lutas pelo trabalho constituem patamar necessário para se ascender à consciência politica de que o trabalho alienado (doloroso) se converterá em atividade livre na sociedade comunista. O estranhamento em relação ao produto do trabalho e a fétichização da mercadoria desaparecerão necessariamente. A etapa socialista prepara as condições para a eliminação da apropriação privada dos produtos sociais, a saber: a apropriação privada da mais-valia produzida pelo trabalho vivo.

 

 

Síntese: Enunciados gerais do materialismo

 1. As filosofias materialistas possuem milhares de anos. Nelas, em geral, a relação sujeito/objeto é este que é determinante. O pensamento, nuns casos, é considerado um epifenómeno (composto por elementos materiais), noutros, é um derivado complexo, dotado de alguma autonomia na sua atividade, de condições biossociais (sistema nervoso e práticas sociais). No seu sentido comum, o denominador comum que os une desde os inícios, é a crença de que tudo é matéria ou dela dependente. Na terminologia filosófica o Ser (classificado por vezes como Substância – neste caso Substância única e Una -) é anterior cronologicamente e determina gnosiologicamente o pensamento. Os materialismos - antigo e moderno - anteriores a Marx, não reconheciam o papel ativo do sujeito no processo do conhecimento (um papel passivo) e o papel da práxis. Estes dois aspetos são fundamentais para distinguir os materialismos.

2. O materialismo é uma corrente filosófica e não uma ciência particular. O conceito de “Matéria” é uma abstração; enuncia uma afirmação existencial que se refere e engloba os múltiplos movimentos, as múltiplas interações e transformações da energia (com ou sem massa), incluindo a “energia escura” sobre a qual se especula.

 3. Materialismos diversos tomaram posições erradamente deterministas e mecanicistas; o materialismo de Marx-Engels não é determinista e mecanicista.

 4. O materialismo já foi metafísico (século XVIII), não o é com Marx e Engels. Mas dialético. Na noção de matéria abstraímos das diferenças qualitativas. Por isso, quando falamos destas, devemos utilizar a expressão “materialidade”. A unidade do mundo é a sua materialidade.

5. A partir destes enunciados podemos e devemos afirmar com convicção e certeza de que o ser (ontos) de tudo que sabemos existir e do que existirá e não sabemos (dedução lógico-filosófica) é Matéria (ou Natureza) e, portanto, não um Espírito (qualquer que seja a sua forma, desde que seja independente ou transcendente ou criador da Matéria); Os seres humanos criam objetos materiais e imateriais, porém a partir de matérias (coisas e forças naturais), não criam nem a Matéria, nem a materialidade do universo, como é evidente; a realidade, no seu ser ou substância, não é uma criação da mente; as leis da natureza, se fossem criação subjetiva não teriam servido para nada; com isso, não se ignora nem se subestima o papel ativo da mente que descobre e conceptualiza as propriedades, quantitativas e qualitativas, da natureza; nesse sentido, a realidade é constituída por tudo aquilo que a mente conhece e que se provou objetivamente; contudo, reais são também as nossas ideias, o que não são é sempre objetivas. Portanto, somos materialistas (em filosofia) por razões científicas. O idealismo entra em contradições e becos sem saída, problemas mal formulados que o materialismo resolve por eliminação progressiva. O idealismo é uma racionalização das crenças sobre a imortalidade e independência do espírito (há no idealismo uma superstição –um pré-conceito - que resiste). Da ontologia materialista decorre uma teoria do conhecimento que afirma que os pensamentos não possuem uma autonomia absoluta em relação ao sistema nervoso e às práticas sociais. As funções mentais são, neste sentido, funções da matéria que pensa. Pensar é uma função desempenhada pelo cérebro (mesmo que ele seja artificial). A destruição de alguma parte do cérebro deixa-nos sem faculdades mentais ou sem vida. O que tem o idealismo a contrariar estes simples factos? Dos instintos – reflexos inatos- e dos reflexos condicionados determinados animais evoluíram para a capacidade de elaborarem operações mentais cada vez mais abstratas. Das sensações para operações racionais. O animal tornou-se capaz de criar espectativas e aprender pela experiência. A tomada de consciência do seu próprio corpo (ou o corpo tomando consciência de si) e a consciência do meio envolvente traduziu-se na diferença entre o subjetivo e o objetivo. Os processos da consciência são processos através dos quais nos relacionamos com os nossos semelhantes (em que a linguagem desempenha um papel fundamental) e com a generalidade do mundo exterior. Construímos relações sociais – grupais e intergrupais- cada vez mais complexas que nos tornaram cada vez mais inteligentes, autoconscientes e produtores de novos modos de viver e agir.

6. O Ser é cognoscível, não porque seja expressão da Consciência que o conhece, mas porque esta é expressão do que conhece.

O trabalho é a base do ser social do homem. Basicamente relação (metabolismo) da espécie humana com o meio ambiente. Desvincular o trabalho da origem biológica (físico-química) não faz sentido, a espécie humana é uma matéria orgânica que inventou o trabalho como adaptação à materialidade que o ameaçava e sustentava.

7. O problema fundamental da filosofia só tem sentido na argumentação filosófica. Por isso muitos a desdenham. Porém, ela é fundamental, desde que encarada no estrito âmbito da filosofia. Isto é, a relação do ser e do pensar, em que ao primeiro cabe a primazia. Esse problema surgiu porque existiam formas idealistas de explicação. Os idealistas possuem uma coisa em comum: a negação da existência objetiva, independente, do mundo externo aos sentidos, às representações, ou, o que é mesmo, a impossibilidade de conhecer a coisa-em-si (portanto, não a sabem determinar). O que é uma forma de cegueira do espírito à solta e, em determinada cáfila de intelectuais-sacerdotes, uma pura manipulação dos espíritos incautos. Quando é ideológica e religiosa, é uma artimanha. A prática é a melhor prova e a ciência uma prova maior. Enquanto Hume e Kant declaravam incognoscível a coisa-em-si, fora das suas perceções (a que Hume tudo reduzia) os cientistas demonstravam, pela prática, as propriedades da matéria…As filosofias idealistas estiveram sempre em contradição com o materialismo espontâneo das ciências. Se então a ciência servia os fins do capitalismo por que razão os filósofos a contradiziam? Esta é a pergunta que merecia uma explicação.

8. O Manifesto Comunista expõe na sua síntese admirável as linhas fundamentais dos progressos induzidos pela burguesia e pelo capitalismo, ao mesmo tempo o seu egoísmo como classe social, a sua crueldade, cinismo, instrumentalização dos belos ideais com que a representaram os fundadores do liberalismo. Os seus autores amadureceram a teoria económica que lhe estava subjacente, e nunca renegaram essas páginas. Portanto, a análise critica dos períodos de formação do capitalismo (cujo traçado abreviado mas com grande estilo já se encontra no Manifesto) não deve omitir a dialética que está lá. Os progressos resultaram em benefício exclusivo da burguesia? Não. No seu benefício principal mas não exclusivo. Conquistas civilizacionais, que propiciaram o desenvolvimento do proletariado e até por vezes devido às suas lutas. Os progressos não resultam somente dos interesses particulares da classe dominante: resultaram amiúde de lutas e contradições internas das formações sociais e das classes desejosas de emancipação. O Progresso não deve ser encarado abstratamente, e conforme critérios subjetivos, de nacionalidade, eurocêntricos. Nem conforme exclusivamente critérios positivistas que enfatizam a tecnociência. O proletariado não beneficia com as ditaduras e as barbáries, mas pode vir a beneficiar das ciências e dos progressos civilizacionais. O Manifesto já é muito claro nisso.

 9. Segundo alguns filósofos contemporâneos o problema materialismo versus idealismo já não faz sentido (na cabecinha deles). O argumento é frágil: assenta na equivocidade do termo “Matéria”. Ora, poder-se-ia eventualmente escolher outro termo atribuindo-lhe o mesmo significado: Natureza ou Energia, por exemplo, que o problema não se eliminaria. Porque o que está no problema é a interrogação fundamental e primeira que distingue a filosofia de uma qualquer ciência particular e que já o pensamento na sua forma mais rudimentar de senso comum a coloca sob esta forma: Existe um Deus criador, omnipotente e omnisciente? Qual destas duas realidades é anterior e determinante: a Natureza ou o pensamento?

Quando se diz (muito equivocamente) que o ser e o pensamento são idênticos não significa que a pedra ou o fígado são idênticos ao pensamento. Também o cérebro não “segrega” o pensamento… Identidade ontológica: o Ser (natural e social) coincide consigo próprio porque não existe a substância (Ser) física e uma outra completamente independente, a substância (meta-física) Pensamento. Neste sentido filosófico, todo materialismo é um monismo: somente existe uma única substância. O noús ( mente) e a epistéme ( conhecimento da verdade) diferem da phisis, mas é esta que lhes confere realidade objetiva. Identidade não abstrata (seria vazia), mas concreta, que alberga profundas diferenças e contradições. Qual a relação entre ser e pensamento? Neste sentido eu prefiro afirmar: diferença e identidade. Ambos os polos relativos um ao outro. Entre um átomo e o nosso corpo há uma profunda diferença; todavia, sem uma determinada estrutura atómica não existiríamos (nem corpo físico, nem pensamento).

No século vinte duas correntes filosóficas digladiaram-se pela hegemonia: a corrente liberal-positivista encabeçada por Karl Popper e a corrente estruturalista liderada por Althusser. No entanto, possuíam uma plataforma comum: detestavam Hegel e combatiam-no. O grande filósofo alemão foi um “cão morto” que, afinal e ainda bem, ressuscitou. Todas as posições conduzem a excessos: verificam-se agora posições que consideram que a teoria marxiana advém do hegelianismo exclusivamente, isto é, o seu materialismo resulta das críticas hegelianas ao materialismo, sendo que o materialismo setecentista não desempenhou papel nenhum. Desta feita arruma-se para o lado, mais uma vez, com o Velho Engels (do seu genial livro Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã) que destacou aí tanto a herança hegeliana, como a do materialismo francês. Ora, realmente as duas fontes encontram-se espelhadas desde a juventude de Marx e Engels. E Engels, colaborador, pensador autónomo e confidente do seu amigo, sabia-o melhor que ninguém.

Porque julgamos nós que a crítica das posições filosóficas idealistas é de decisiva importância no terreno das ideias? Em primeiro lugar, porque somos, nós, os materialistas, alvo de ataques permanentes das classes sociais reacionárias e das igrejas suas aliadas, revelando assim que as conceções materialistas do mundo e da vida incomodam as ideologias políticas que bloqueiam a emancipação humana; em segundo lugar, porque determinadas crenças idealistas obstaculizam o progresso das ciências, da ética e, como o demonstra a História, a condução correta da luta política.

A espécie humana, pelas suas caraterísticas cerebrais e sociais, produziu desde os seus alvores mundos paralelos, crenças messiânicas, que tanto serviram para exorcizar medos e incendiar revoltas contra os poderes que oprimem, como para viver de joelhos voluntariamente submissos na segurança aparente da “caverna”, essa imortal metáfora de Platão. Esta constatação, e a crítica respetiva, chama-se Filosofia, e leva já dois mil e quinhentos anos. Perdida a crítica durante séculos de obscurantismo, reencontrou-se há quinhentos anos num livrinho magistral, a Utopia, de Thomas More, um nobre imbuído de sinceros valores cristãos, os quais, no fundo, refletem a pulsão utópica de que nos fala Ernst Bloch, o maior filósofo do século passado.

Porque a ontologia materialista não recusa a Ética. Por isso, propôs-se erradicar uma sociedade sem ética.

 

J. A. Nozes Pires

 

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