quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

 

CRÍTICA DA RAZÃO CONSENSUAL 

A Crítica da Razão Consensual radica no princípio da lógica dialética: o pensamento reflete na oposição de enunciados formalmente contraditórios a realidade objetiva da contradição “na essência mesma das coisas”.

As teses que exponho sobre o materialismo dialético constituem evidentemente a minha interpretação. A época, a conjuntura, a personalidade, realizam sempre o seu trabalho. Nenhuma interpretação é absolutamente verdadeira. Queremos que ela(s) seja(m) a melhor aproximação à verdade. À afirmação que está na moda “Tudo são interpretações” devia acrescentar-se logicamente: “Esta afirmação é também uma interpretação”. O que significa que pode não ser verdadeira.  

A Crítica da Razão Consensual dirige-se sobretudo contra a doutrina  hegemónica do imperialismo. As fábricas de consensos expelem mentiras com a aparência de verdades irrefutáveis, sem alternativas “realistas”.  A esta ofensiva permanente que se iniciou com a Revolução bolchevique e a Rússia Soviética reagiram e desenvolveram-se diversas posições no interior  do marxismo, entendido aqui como o conjunto daqueles que se reivindicavam de marxistas e que se tornou usual designar, por grosso, como “marxismo ocidental”. Na verdade, nunca houve consenso entre estas correntes, umas que adotam Marx sem Engels, outras que adaptaram a teoria marxiana às situações históricas e preocupações pessoais, procedendo a revisões profundas que a desfiguraram (Adorno, Marcuse, Althusser). Apesar da funda diferenciação entre elas e seus mentores (de resto, notáveis pensadores com contribuições positivas múltiplas) verifica-se um denominador comum em algumas das mais influentes: a menorização, senão mesmo a recusa, das lutas de classes e do papel revolucionário da classe operária e um afastamento crítico declarado em relação às revoluções socialistas realizadas. Nestas posições não incluo Gramsci e Lukács obviamente. De maneira geral vai-se espancando sem remorso o materialismo dialético, isto é, a ontologia (erro em que recaiu Gramsci, mas não Lukács). O desprezo pela ontologia inerente à teoria crítico-revolucionária de Marx e Engels ou a predominância da ontologia heideggeriana nos círculos marxistas parece-me ser o erro maior em que muitos incorreram e incorrem. A meu ver, a recusa de uma ontologia marxiana, a qual se apresenta com toda a evidência nos seus fundamentos (ainda que não em seu desenvolvimento) em Marx e necessariamente no seu amigo e colaborador Engels, é um sinal distintivo de um marxismo incorretamente interpretado que se traduzem, entre outras graves consequências políticas, ao abandono do leninismo. É claro que importa demonstrar que o materialismo dialético e histórico é uma ontologia, e não apenas uma gnosiologia ou um método, e é essa operação iniciada por Lenine, continuada a seu modo por G. Lukács, José Barata-Moura e João Paulo Neto, entre outros filósofos vivos ou já desaparecidos, que urge continuar pelos jovens investigadores dos partidos comunistas.

Reivindicando-se de marxistas soçobraram regimes políticos, quase arrastando com eles na prática a imagem pública da teoria. Contudo, e apesar das derrotas e dos refluxos, Marx mostra-se de novo redivivo face a face com a crise generalizada do sistema capitalista. Já se ouve dizer nos quadrantes políticos mais inesperados: “Marx, afinal, tinha razão!”. Ao atingir a sua máxima expressão – a hegemonia planetária do capital financeiro – o capitalismo exibe em toda a sua brutalidade as suas finalidades e todas as suas contradições.

De facto a que assistimos? A um irracionalismo “pós-moderno”, uma nova forma de idealismo do sujeito e de uma subjetividade hipostasiada em que os referentes objetivos se perderam. O próprio sujeito desaparece sob um foguetório de retóricas para reaparecer fragmentado, afogado na superfície líquida em que os pós-modernos dissolvem a Razão.

Alguns filósofos do então chamado “marxismo ocidental”, por seu lado, dedicaram-se a hiperbolizar as relações sociais e a práxis de tal modo que a natureza perdeu toda a sua existência independente, resultando este feito milagroso, que eles provavelmente não previam, que é uma espécie de teologia “invertida”: somos nós que criamos a natureza! A Outra, a coisa-em-si, permanece incognoscível. Outra forma de idealismo do sujeito.  

A acusação de que o marxismo é uma teoria determinista (as ideias seriam epifenómenos) não encontra sustentação nas obras de Marx e Engels. Este, em 1890, em carta a Joseph Bloch (1871-1936), já criticava a leitura economicista e reducionista do marxismo:

“Segundo a concepção materialista da história, o momento em última instância determinante [in letzterInstanz bestimmende], na história, é a produção e reprodução da vida real. Nem Marx nem eu alguma vez afirmamos mais. Se agora alguém torce isso [afirmando] que o momento econômico é o único determinante, transforma aquela proposição numa frase que não diz nada, abstrata, absurda. A situação [Lage] econômica é a base [Basis], mas os diversos momentos da superestrutura [Überbau] – formas políticas da luta de classes e seus resultados: constituições estabelecidas pela classe vitoriosa uma vez ganha a batalha, etc., formas jurídicas, e mesmo os reflexos [Reflexe] de todas as lutas reais nos cérebros dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, visões [Anschauungen] religiosas e o seu ulterior desenvolvimento em sistemas de dogmas – exercem também a sua influência [Einwirkung] sobre o curso das lutas históricas e determinam em muitos casos preponderantemente [vorwiegend] a forma delas.” 

As Ideias

As ideias – no sentido alargado (mentalidades, crenças, teorias filosóficas e científicas, doutrinas) – desempenham o papel de agentes da ação através dos indivíduos que as executam. Criadas por indivíduos excecionais, ou por povos e classes, sob condições concretas dos seus modos materiais de existência. O que é determinante na formação das ideias é o cérebro, a experiência social e a personalidade. Sem estas três condições de base não existiria a atividade cognoscitiva. Esta, por sua vez, organiza-se conforme regras específicas (raciocínios e conceitos); atividade só possível porque a mente goza de uma relativa autonomia. O elemento determinante na formação das ideias (enquanto imagens, intuições concretas, esquemas e categorias, conceitos e relações entre estes) é a experiência social. Entende-se esta como relações entre indivíduos e entre estes e as coisas. Nestas relações as que se entendem como determinantes, em última instância, são as relações de produção. A base económica das sociedades condiciona inevitavelmente o tipo de ideias (políticas, éticas) que nos impelem a agir. Este condicionamento material não exclui nem menoriza a atividade mental pela qual conceitos, modelos e teorias, criam novos conceitos e teorias, como sucede na ciência e na filosofia. É necessário estabelecer distinções e graus de autonomia, mas é errado erguer muros. O conceito de mediação é, portanto, fundamental.

Exponho dois assuntos interligados: alguns percursos, a traço muito largo, dos materialismos que mostram uma evolução muito acidentada e intermitente dessa racionalidade que reputo como sendo o caminho mais acertado da Razão Ocidental. Neste contexto, defendo uma atitude que julgo mais dialética (aproximação/distanciação, superação/conservação) relativamente ao Iluminismo, contrária aos críticos radicais da Modernidade. Por fim, alguns enunciados sobre o materialismo dialético que creio mais conformes ao pensamento dos seus criadores, Marx e Engels.

 

Os materialismos e a Razão Dialética

As filosofias racionalistas idealistas deduzem a racionalidade dos fatos e processos não do seu encadeamento concreto, mas de um sujeito que estes expressariam – a “ideia”, isto é, o pensamento pensado.

Os materialismos, independentemente das suas diferenças internas e das suas limitações, sempre se colocaram mais perto de um discurso verdadeiro sobre a natureza e o homem do que os racionalismos idealistas. Estes, independentemente das suas diferenças, recaíram sempre no sujeito autocentrado, transcendente ou transcendental. Contudo, recusar aos idealismos contribuições de inegável valor que corrigiram os materialismos modernos é miopia ou ignorância. Exemplos: a dialética hegeliana, a atividade do sujeito cognoscente. Poderíamos citar o formidável contributo de Platão e Aristóteles, relevando este como sendo um dos maiores pensadores de todos os tempos. Marx e Engels deram um exemplo notável de uma atitude de abertura e diálogo com os textos de filósofos idealistas. Todavia, não se julgue que se realizou uma “harmonia de contrários”: a ontologia do materialismo dialético é irreconciliável com qualquer teoria do conhecimento que separe o sujeito das fontes de que ele é originário.

A crítica aos idealismos não deve menorizar os seus maiores expoentes. Alguns contribuíram para a constituição das ciências matemáticas e da lógica; sem eles não gozaríamos do património cultural de que nos orgulhamos. Foram em boa parte os artífices do Direito moderno, das Constituições democráticas. O mecanicismo cartesiano influenciou La Mettrie (Julien Offray de la Metrie, 1709-1751), o qual soube retirar as devidas consequências materialistas. As teorias de J. Locke (John Locke, 1632-1704), sobretudo a sua crítica à metafísica e às “ideias inatas”, abriram novos rumos para a teoria do conhecimento. Os sistemas filosóficos idealistas foram, em muitas épocas e autores, implacavelmente críticos relativamente às doutrinas religiosas dominantes (Platão, Aristóteles) ainda que tivessem sido capturados pelas teologias posteriores. Marx e Engels manifestaram sempre a sua genuína admiração pela filosofia hegeliana e pouco ou nenhum apreço pelos materialistas “grosseiros” do grupo dos chamados “ideólogos”.

A disputa entre materialistas e idealistas fecundou o debate de ideias, o apuramento da argumentação e dos conceitos; não existiria filosofia sem as duas “linhas” oponentes. Disputa que jamais foi pacífica nos últimos dois mil e quatrocentos anos. A escolástica foi responsável por uma repressão sistemática dos adversários. Ainda recentemente sob as ditaduras de Salazar e Franco, a ideologia clerical-fascista utilizou (benzeu) o terrorismo pidesco para silenciar os intelectuais que manifestassem apoio ao materialismo (=ateísmo comunista). O capitalismo arremete com todos os meios coercivos de que possui o monopólio para sufocar a alternativa radical que o materialismo dialético assume, porque quando se desce da teoria pura para a prática política o perigo espreita. Numa coisa os anticomunistas acertam: o materialismo dialético é uma teoria e uma prática.

As aventuras da Razão no Ocidente

Com a Razão nos libertamos, com ela nos submeteram. A categoria filosófica de Razão (capacidade de produzir conceitos) é ela mesma um produto de sujeitos social e historicamente situados. Não existe nenhuma entidade designada Razão que transcenda a historicidade da ação humana. Nenhuma Razão conduz a História e ambas – Razão e História- são noções gerais de que nos servimos para organizar e distinguir comportamentos e acontecimentos situados no tempo e no espaço. A História é o Tempo no qual os indivíduos concretos se ocupam e se preocupam em viver; a Razão, o conjunto das razões ou modos de ser, agir e interpretar, condicionados pelo modo de produzir coisas materiais. Desde a débil luz que se acendeu no cérebro de um “macaco” até à luminosidade solar de Mozart e de Einstein, desde a escravatura mais infame até às grandiosas revoluções de emancipação social. A Razão ora reflete adequadamente as propriedades objetivas das relações sociais, ora as contradiz. Afirma ou nega. Por vezes abdica da sua soberania e submete-se a poderes que toma como estranhos e externos, quando, na realidade, são produtos do seu próprio poder. Quando se aliena de si mesma, se descola do mundo real, se contradiz e se conflitua, não exprime senão a contraditoriedade das relações sociais. A contraditoriedade é imanente à Razão, sem ela não ocorreriam sequer determinadas operações mentais. A interação e ação recíproca, as conexões entre as ideias, entre a imaginação, a memória e os conceitos, em sínteses sucessivas que fazem a unidade das conexões, constituem o movimento processual da Razão. Não recorda verdades imutáveis, mas, antes, é devir indefinido, um livro aberto ao qual se acrescentam páginas de quando em vez. É nesse sentido que se pode afirmar que ela ocorre no tempo. Sem um corpo despojado à partida de instintos rígidos e de uma especialização única e pré-determinada, e sem a socialização que organiza os indivíduos em grupos que conflituam ou cooperam com a natureza, conflituam e cooperam entre si, o homem seria tão ingénuo quanto Adão e extinguir-se-ia com a expulsão do Paraíso. Na verdade, as catástrofes naturais logo o teriam extinguido. Toda a história das diversas culturas e sociedades retrata a luta pelos recursos obtidos do meio ambiente, em harmonia com ele ou em desarmonia, adaptando-se ou adaptando o meio natural às suas necessidades, e esta é a origem e a caminhada da racionalidade e da irracionalidade da espécie que transformou a superfície do planeta. Nesta caminhada, curtíssima comparada com a da Vida na Terra, ergueram-se civilizações e extinguiram-se numa fração infinitesimal do tempo do universo. Nesta caminhada, tão diversa nos quatro cantos do globo, grupos chacinaram outros grupos, saquearam os excedentes que outros guardavam do seu trabalho, converteram os vencidos em escravos, servos ou assalariados, manipularam em seu benefício crenças nascidas do medo e da esperança. Em todas as diferentes formas de produzir, distribuir, consumir, em todas as formas de apropriação comunal ou privada, em todas as formas de divisão do trabalho, existiu sempre uma razão de ser. Aquilo que não é razoável é, todavia, explicável pela razão.

A Razão começa por ser a capacidade de criar e utilizar processos de trabalho produtivo que permitiram à espécie sapiens sobreviver e multiplicar-se. Processos técnicos, mas também relações sociais, pois que a técnica é ela mesma a mediação com a natureza e relação entre os indivíduos. Nos modos de produção do viver reside a contradição fundamental: relação antagónica, e não diferente apenas, entre aqueles que produzem os excedentes e os que se apropriam de ambos, excedentes e produtores. Trabalho e dominação da força de trabalho é uma constante da História. Assim as Ideias são instrumentos que ora servem para oprimir, ora para emancipar. Refletem o devir das vicissitudes humanas, os conflitos pelo poder ou contra, os consensos que a cooperação entre os grupos sociais permite, seja para dominar, seja para libertar. O conhecimento objetivo arranca espaço à ignorância e à mentira, mas perde-se quantas vezes nas mãos dos donos de escravos, servos ou proletários. A Razão possui duas faces como Juno: numa irradia a luz do progresso inexorável do conhecimento objetivo do universo e da vida; na outra, o obscurantismo, a loucura, a barbárie. Ao contrário da “Razão que produz monstros”, parece que são os monstros que produzem a razão. Todavia a “Razão Sangrenta” não cobre toda a História. É uma forma de olhar. Alargue-se a visão e poderemos alcançar a negatividade, a contraditoriedade que trabalha os acontecimentos e produz o Novo. Retrocessos sim, prolongados e sufocantes, derrotas inesperadas sob as quais a Razão claudica ou se recolhe em silêncio: a História converte-se, com esse olhar, num cemitério dantesco, um Anjo que caminha às arrecuas. Porém, esse Anjo é uma ficção, um olhar unilateral sombrio e não assombrado, doloroso e negativo. As grandes filosofias do Renascimento, do Iluminismo e do materialismo, de Kant e Hegel, de Marx e Engels, viram na História dos homens um processo de mudanças, onde estas não somente são necessárias como possíveis. Estas possibilidades imanentes ao processo histórico estão na raiz das revoluções e das utopias. Se a barbárie desde sempre nos ameaçou, é por sua causa que às vezes o progresso irrompe, paradoxalmente, não nas asas de um Anjo, mas, quantas vezes, do génio de indivíduos excecionais que decifraram enigmas nos sótãos insalubres, no desvão de escadas, na Biblioteca de Londres… ou cavalgam nas ondas revoltosas das massas sociais. Se houvesse algum mistério a envolver as criações revolucionárias que vieram lentamente, contra tantos obstáculos, a iluminar a humanidade, ele estaria no génio absolutamente de Heráclito ou Euclides, de Arquimedes ou Lucrécio, e tantos outros. Os produtos da mente, na sua pura abstração lógico-matemática ou filosófica, podem eventualmente desprenderem-se das condições concretas da existência (social, individual), e, por isso, lhe reconhecemos uma autonomia irrecusável, porém não nascem como Atena nasceu da cabeça de seu pai. Tanto assim é, que se verifica um paradoxo mais: quantos dos criadores de conceitos luminosos não se sustentaram mercê dos escravos, servos ou proletários que alimentavam as sociedades em que viveram? Quantos não produziram monumentos imortais graças à proteção de tiranos, reis e papas? Quantos não bajularam príncipes, não negociaram nas empresas coloniais dos impérios? As pirâmides não foram construídas pelos faraós, lembrava-nos Brecht. Nas filosofias, nas ciências sociais nomeadamente, o impulso e o húmus das teorias encontramo-los no solo dos problemas que uma determinada sociedade enfrenta. Como se sabe, a Grécia Antiga não progrediu mais nas técnicas (nem aproveitou invenções geniais) porque a produção se baseava no trabalho escravo; os senhores feudais entretinham-se com a guerra porque os servos os alimentavam; reis e cáfilas de aristocratas monopolizaram o comércio de além-mar desbravado por marinheiros e comerciantes ousados. Os progressos técnicos desenvolveram-se quando convinha às classes dominantes, caso contrário confinaram-se aos pergaminhos. A invenção de instrumentos é anterior às sociedades divididas em classes, tal como a invenção da agricultura, passo decisivo na sobrevivência da espécie e na formação das cidades; porém, logo o desenvolvimento das técnicas da divisão do trabalho, a possibilidade de acumulação de excedentes, originaram conflitos desconhecidos até então. Milhares de anos depois num canto do planeta conjugaram-se condições que possibilitaram a emergência de uma classe social que fez da Técnica a sua arma de conquista e de enriquecimento. Certo é que, fruto de uma nova economia, as burguesias (ainda que subordinadas aos Estados absolutistas) introduziram um interesse nas técnicas lucrativas como nunca antes se vira. Voltamos às duas faces de Juno. Progresso com barbárie. Europeus “descobriram” outros continentes, com canhoneiras dizimaram, extorquiram, submeteram povos ancestrais. Por meios de uma violência irracional (os espanhóis nas Américas) chegou o oiro e a prata que escorou impérios, mas também chegou o milho e a batata que mataram a fome endémica… Paradoxos. Riquezas e escravidão. Uma Razão dividida. Progredimos?

A divina Razão dos iluministas possui uma longa história. História que sem a outra história não teria história nenhuma. Durante milhares de anos acreditou-se que o espírito descera dos céus como dádiva celestial, as ideias desenrolar-se-iam num mundo acima do miserável trabalho escravo ou servil. Filósofos relevantes que interpretaram o seu mundo criticaram outras interpretações porventura mais racionais que as deles (Platão versus Demócrito). A Filosofia não parecia ser outra coisa senão uma batalha interminável de razões contra razões no interior de um clube fechado de sábios. Essa autonomia absoluta é uma ilusão. As construções filosóficas não se compreendem sequer sem o contexto histórico que as provoca e fecunda. A hermenêutica do texto pelo texto equivale a uma cultura sem agricultura. Afinal de contas os filósofos intervêm a seu modo sobre o seu tempo seja para o justificar, seja para o transformar. Podem competir entre si diferentes racionalidades numa mesma época: umas justificam e conservam um estado de coisas, outras criticam-no. Normalmente a razão crítica é melhor que a outra. As lutas de ideias denunciam a realidade de outras lutas, como a espuma na areia denuncia as marés. Os problemas teóricos e a argumentação constituem o modo de pensar filosófico, daí essa aparência de filósofos contra filósofos com que os não filósofos se sentem alheados. Com a Modernidade a filosofia “desceu” ao homem comum, ao burguês letrado. Haveria de chegar o tempo em que “desceu” ainda mais: ao trabalhador assalariado. Nunca abandona a sua vocação crítica original de compreensão do viver humano se for realmente Filosofia. Mesmo aquela que quer fazer-nos crer na eternidade dos poderes instalados, mesmo aquela que descrê mas não oferece alternativas radicais, são ambas Filosofia. Filosofar verdadeiramente é apresentar argumentos racionais.

 O estudo das filosofias revela-nos o interesse mundano que as inspira. As razões concretas da história são a Razão abstrata dos filósofos. A filosofia nas suas origens revolucionou a mentalidade que até então por toda a parte dominava sem alternativas; a coruja de Minerva ergueu o seu primeiro voo entre as luzes e as sombras de um regime político que uma nova classe inventou nas faldas do Mediterrâneo. Muitos séculos decorreriam, entre muitas sombras e poucas luzes, para que pudesse emergir de novo uma revolução, a mais extraordinária da Razão humana: o pensamento científico. Chegou para demonstrar o que os primeiros filósofos já suspeitavam: o importante não é pensar, mas pensar com um determinado método. Tanto mais acertado quanto maior a aliança entre razão e experiência. Para isto o melhor método não é exclusivamente formal mas adequado às propriedades fenoménicas objetivas. É aquele que não é apriorístico mas que exprime a essência na presença fenoménica. Aberto, sem preconceitos, a novas teorias que resolvam problemas que as próprias teorias provocam. Essa é a sua autonomia relativa.

A razão é o poder de edificar sistemas de regras, de as aplicar e de as tratar.

Emprega-se o termo Razão em sentidos vários, contudo com um denominador comum: capacidade de controlo, previsão, análise-síntese, capacidade de executar operações mentais. Ser racional é ser-se capaz de aprender, sinal indiscutível do desenvolvimento do homem primitivo e da criança. Tanto num caso como no outro a ação foi e é determinante. Quanto mais esta for adequada a um fim benéfico para a comunidade mais ela é racional. Como poderíamos classificar de racionais aquelas atividades que destroem o meio ambiente natural, como aquele tonto que serra o próprio ramo onde se empoleirou?  

  É perigoso impor um critério único, em abstrato, que estabeleça de uma vez por todas determinadas ações como absolutamente racionais excluindo todas as outras. Contudo, temos de ser capazes de formular critérios que distingam o que é racional daquilo que é absolutamente irracional. O prazer ou as vantagens pessoais não constituem esse critério ainda que se lhe acrescente o item: serão vantajosas apenas quando o forem para todos os membros de uma comunidade. Considerar que é irracional alguém explorar o trabalho de outros para seu exclusivo benefício, produzir coisas prejudiciais para a saúde do planeta e da humanidade, constituem, por exemplo, bons critérios.

As considerações que se seguem não desenvolvem os contextos concretos por falta de espaço apenas. O percurso é, por conseguinte, breve e a ele acrescentamos algumas considerações sobre algumas categorias e temas polémicos que julgamos oportunas. A Razão que abordamos não é, nunca o foi, um conceito puro, sem contaminações e extrapolações ideológicas. A Filosofia é considerada aqui como aquela atividade que surgiu na Antiguidade clássica, Ocidental, que investiga o Ser, a verdade e as condições da sua possibilidade.

O racionalismo (resposta às questões relativas ao ato de conhecer) não é património exclusivo das filosofias idealistas- racionalismos versus realismos- que se contrapunham aos empirismos, embora se reconheça que foi a filosofia idealista clássica alemã (de Kant a Hegel) que salientou o papel ativo do sujeito. Os materialismos sempre foram, embora diferenciados, racionalistas.

O papel desempenhado pela Razão na História equivale a dizer que as ideias desempenham um papel prático nas invenções e descobertas, nos acontecimentos políticos, nos comportamentos morais, na organização singular de cada cultura, na mobilização das massas sociais. Não são meros epifenómenos da base económica das sociedades. As ciências constituem também uma força produtiva. As filosofias e as ideologias enformam as relações de produção, justificam ou, pelo contrário, desvelam e denunciam a sua função de exploração e dominação da força de trabalho. O direito (jurídico) à propriedade privada (seja qual for a sua forma através dos tempos e lugares) é o exemplo mais concludente (assim como o direito religiosamente consagrado dos monarcas absolutos). Hoje, mais do que nunca, a economia revela-se como a base que sustenta os interesses que movem o capital, as suas contradições, crises, geoestratégias imperialistas; contudo, também fica claro o papel da ideologia. A natureza predatória do neoliberalismo é velada através de todos os meios de informação e formatação das consciências (famílias, escolas, jornais e livros, publicidade, televisão, cinema, instituições sociais e políticas). Sob estes meios atua a força poderosa do fetichismo da mercadoria.

A Filosofia tem agora de concorrer com a cultura industrial ou “cultura digital”, a ideologia segregada pela comunicação de massas. Ideologia do lucro e do dinheiro. O capitalismo “tardio” não é já capaz, ou já não necessita, dos grandes filósofos que construíram gradualmente o liberalismo nas suas lutas contra os obstáculos materiais e imateriais ao seu domínio absoluto. A continuação desse domínio exerce-se por outros meios. O que prolifera nas estantes das livrarias são os economistas, os “politólogos”, informáticos, e livros de “autoajuda”. Os públicos procuram respostas imediatas para problemas urgentes. Técnicas eficazes de mercado orientam as escolhas.

Entendo por irracionalismo a crença em divindades transcendentes; em forças sobrenaturais, mistérios ocultos que somente determinados “eleitos” decifram; incapacidade “natural” do homem para alcançar verdades objetivas; crenças segundo as quais somos predeterminados por impulsos exclusivamente biológicos; descrença no que a história é o espelho: a mudança social. São igualmente irracionais efabulações messiânicas, ficções sobre destinos e outras missões.

Dito isto não significa que creia numa verdade absoluta. Uma Razão dogmática é o inimigo da Razão Dialética. Por vezes, particularmente em épocas de crise, vale mais uma boa dúvida (cautelosa, interrogativa e condicional) que uma mão cheia de certezas que não nos deixam ver as mudanças que se operam debaixo dos nossos pés. A imagem da doninha que vai escavando o mais rijo solo vem-me sempre à memória. As religiões conservam a influência que sempre tiveram, mas soltaram de dentro as forças mais destrutivas de que há memória desde as Grandes Cruzadas. O imperialismo criou o Médio Oriente; pois é aí agora que a religião retoma o seu papel fratricida. A guerra contra o imperialismo, aí, já não é mais uma batalha pela emancipação social. A imagem é gasta mas serve: a cobiça brutal do imperialismo abriu a caixa de Pandora.

«O pensar teórico de cada época – portanto, também o da nossa – é um produto histórico que, em tempos diversos, toma uma forma muito diversa e, por isso, um conteúdo muito diverso. A ciência do pensar é, portanto, tal como qualquer outra, uma ciência histórica, a ciência do desenvolvimento histórico do pensar humano.» 

Em traços largos elenco os seguintes andamentos da dialética da Razão:

1. Falamos de racionalidade(s) no estrito âmbito da sua construção pela filosofia ocidental, mas a Razão humana tem origens biossociais que se perdem na bruma dos tempos. As primeiras civilizações (Suméria) testemunham o poder da razão humana. Sem o Médio Oriente – berço da civilização – e, mais tarde, a bacia do Mediterrâneo, a filosofia ocidental não teria surgido.

 

2.  Heráclito (Éfeso, século V a.C.), um dos primeiros filósofos, forneceu-nos há milhares de anos uma chave com a qual temos vindo a abrir os mistérios do cosmos e das sociedades: a dialética. As categorias ontognosiológicas do Todo (Ordem racional), movimento, contraditoriedade; a racionalidade é o próprio ser do mundo; «Os homens não sabem como o que é discorde está em acordo consigo mesmo: harmonia de tensões opostas, como as do arco e da lira.» (fr.51). Tales, Anaxágoras, Anaximandro, mostraram-nos um caminho racional para as origens da vida e do homem recorrendo aos elementos naturais ou à quantidade infinita de matéria. Demócrito (Abdera, século IV a.C.) forjou as teses básicas do materialismo filosófico em oposição a Platão, que se conservaram como a linha ou “partido” que se opõe radicalmente ao idealismo. Fundou o atomismo (provavelmente sobre ideias de Leucipo): crente na capacidade racional afirma a possibilidade da razão alcançar a realidade por mais invisível que ela seja: pequenas partículas que compõem tudo que existe: «Por convenção fala-se de cor, de doce, de amargo; na realidade, há só átomos e vazio» ( fr. 125). Mundivisão estritamente materialista que submete todos os mistérios à lâmina da razão; afirma que a pesquisa científica e o respeito por si próprio (ética filosófica) constituem os primeiros deveres do homem livre. Condições históricas peculiares permitiram que a Razão produzisse uma atividade teórica – a Filosofia- que iniciou um combate emancipador contra os misticismos, os mitos e as religiões. Antepunha-se ao espírito um princípio natural e com esse volte face poder-se-ia ter destronado, se tal viesse a ser possível, o poder político das religiões. Mas a Razão teórica não basta, por mais importante que seja. Quase todos os materialistas, pelos tempos fora, não desdenharam a base escravocrata ou servil das suas sociedades. E isso faz toda a diferença entre os próprios materialistas. Epicuro (341-271), discípulo de Demócrito (460-371 a.C.) foi um prolífico autor: cerca de trezentos escritos, que se perderam, dos quais só restam três cartas. Obteve uma enorme influência no período helenístico. Devemos a Lucrécio (96-55 a. C.) a melhor exposição da física e dos preceitos éticos da escola epicurista. Tito Caro Lucrécio legou-nos uma das obras mais notáveis e mais belas da literatura ocidental: De rerum natura. Esta obra é um magnífico exemplo de exposição argumentativa filosófica: enuncia a tese da existência necessária do vazio e do movimento dos átomos, ou seja, da unidade material do mundo, criticando um por um os argumentos contrários.

3. A filosofia grega foi dialética. Não há maior legado espiritual desse pequeno povo que a sua filosofia dialética – materialista ou idealista. “O pensar dialético aparece aqui na sua simplicidade natural, não perturbado ainda pelos obstáculos encantadores que a metafísica do século XVII e do século XVIII –  F. Bacon e J. Locke, na Inglaterra, Wolff, na Alemanha – a si mesma levantou e com os quais barrou a si mesma o caminho de chegar do entendimento do singular ao entendimento do todo, à penetração na conexão universal.” 

4. O materialismo no período clássico foi combatido por todas as escolas filosóficas; No Império Romano os grandes pensadores- Séneca, por exemplo- que se constituíram como o património humanista e literário que o Império nos legou, adeptos do estoicismo em geral, silenciaram o epicurismo em favor do estoicismo menos subversivo. O epicurismo, pela sua ontologia materialista e pela sua ética que exigia rigor, desinteresse e plena independência individual, jamais poderia influenciar para fora de uma elite muito restrita. De resto, o pensamento científico era incipiente e quase se extinguiu durante séculos de “civilização cristã”. O cristianismo pôde impor-se mercê do império romano tardio e da sua força messiânica de salvação. O epicurismo e o estoicismo (embora também a prometessem) jamais puderam competir com uma religião de massas que soube acomodar-se aos novos senhorios. A filosofia crítica, desde o berço, viu-se relegada mil anos por uma religião que não sendo nem querendo ser a filosofia de vocação independente e crítica soube extrair do idealismo clássico (platonismo e do aristotelismo) uma teologia adequada às suas finalidades terrenas.

5. Ainda assim na Idade Média, extenso período que não se resume à Idade das Trevas, importantes progressos se verificaram a Ocidente e a Oriente, gerações de pensadores (começando nos árabes e deslocando-se para a Escócia) empurraram a escolástica para limites tais em que ela já não se suportava a si mesma. É neste quadro de progressos materiais, a partir do século catorze (ascensão da classe mercantil que criou para si novos valores) que se tornará possível a emergência do pensamento científico com Copérnico, Bruno, Galileu. A filosofia liberta-se da religião. A Idade Média durou mil anos; oitocentos anos separam Agostinho de Hipona, de Tomás de Aquino! Mais valia distinguir nesse longo período diversas sub-idades. A anarquia que sobreveio ao colapso do Império do Ocidente acarretou perdas irreparáveis em todos os campos da vida social; verificaram-se tentativas de salvaguardar o património cultural clássico, o cristianismo procurou, com sucesso, a bem ou a mal, adaptar-se e aproveitar o que convinha desse grandioso património (o platonismo, sobretudo). O cristianismo, doutrina messiânica do povo ou nação judaica revoltada com a ocupação romana, doutrina sempre dividida entre uma tendência subversiva e uma tendência “escapista”, converteu-se na ideologia imperial; colapsado o império do ocidente sobrou o papado de Roma. Quatro ou cinco séculos foram precisos para compor o texto canónico do Novo Testamento, após muitas intrigas, expurgos, destruição maciça de textos inconvenientes, não somente versões do Antigo e Novo Testamento (descobertos recentemente) como muito provavelmente escritos de teor subversivo. A anarquia dos povos bárbaros somou-se à política destrutiva dos guardiões da verdadeira fé.

6. O desenvolvimento do comércio (dos novos burgos- classe comercial burguesa) e as lutas dos servos nos campos preparam a decadência gradual do feudalismo e a emergência do modo de produção capitalista. Na Filosofia formulações de orientação empirista (em sequência lógica do aristotelismo mas abertos às novas demandas) abrem caminho, sobretudo na Inglaterra. O materialismo “adormecera” mil anos! Nada de notável se descobriu até à data que negue este facto espantoso. As forças culturais e materiais hegemónicas varreram o materialismo. Por isso, é correto associarmos os afloramentos empiristas na Baixa Idade Média aos novos modos de produzir riquezas materiais. Com o Renascimento da cultura clássica (século XVI) é o platonismo que sobressai, as escolas materialistas gregas (o atomismo) somente no século seguinte encontram notáveis advogados. Como é possível dissociar estes fenómenos das grandes mudanças: as novas rotas comerciais marítimas, a afluência das esplêndidas riquezas da Ásia, a chegada do oiro e da prata das Américas, os famosos pastos para carneiros de que nos fala Thomas More, as primeiras manufaturas, etc.?

7. O determinismo integral segundo o qual o perfeito conhecimento de um estado do universo deveria permitir a dedução mecânica de todos seus estados futuros, dominava ainda o pensamento científico nos finais do século XVIII. Nos inícios do século XX ainda se pensava, na comunidade científica, que o universo era estático. A genética era completamente desconhecida. Há cem anos predominavam as teses racistas entre os biólogos e demais cientistas. Desconhecia-se ainda em rigor a natureza e o papel do inconsciente. A racionalidade nos últimos setenta anos deu passos de gigante no domínio científico. A novíssima visão do universo (teoria da Relatividade, flutuações do campo quântico e o BigBang, Teoria das Cordas, engenharia genética e funções do cérebro, exploração do espaço sideral, comunicação e máquinas inteligentes, etc.) constitui a maior revolução científica de todos os tempos. Um cidadão do século XIX ficaria abismado se acaso ressuscitasse neste novo universo. De há pouco mais de cento e cinquenta anos para cá o modo como imaginamos o mundo e a vida não encontra qualquer paralelo na longa história da humanidade. Não é apenas uma novidade: é uma rutura completa!

8. É claro que o racionalismo contemporâneo não pode desprezar as contribuições dos filósofos das épocas anteriores, da antiguidade clássica e do Iluminismo, pré-modernos e modernos, porque foram eles que ajudaram a construir a racionalidade que herdámos, independentemente das suas limitações, dos seus idealismos, dos seus erros. A crítica da mentalidade mítica e supersticiosa pelos filósofos gregos, dos despotismos orientais, a luminosidade racional que perdura nos textos de Platão, o rigor do método aristotélico de pensar, a mundividência ética do epicurismo e do estoicismo, ilustram um olhar sobre o mundo nos antípodas das grandes religiões que vieram a impor-se. Nesse sentido não se progrediu, antes se regrediu.

9. Os degraus que o Ocidente subiu pelas mãos de Descartes (1596-1650) e Gassendi, de N. Copérnico, Giordano Bruno e Galileu, de B. Espinosa e Leibniz, de T. Hobbes (1588-1679), J. Locke (1632-1704), Pierre Bayle (1647-1706), não devem ser descartados por um arrazoado ideológico seja ele qual for. Distinguir com verdade cada um deles, demonstrar as limitações dos seus idealismos ou materialismos, expor a base de classe do liberalismo burguês setecentista, é, como tem sido, uma tarefa da nossa racionalidade crítica contemporânea, porém não é sua tarefa destruir. Nunca existiu uma racionalidade pura isenta de idealismos e de ideologias políticas, desinteressada, por mais transparente que o desejasse. Todos os filósofos ambicionaram descrever o mundo e a existência humana tal como são, portanto a ontologia foi sempre o seu desiderato e o seu sustento. Platão, Aristóteles, Agostinho ou Tomás de Aquino, o mundo da cultura grega ou da cultura cristã. Do esclavagismo ou do projeto hegemónico da religião. Nenhuma se apresenta completamente desajustada do seu contexto histórico, do húmus social onde o filósofo cultivou os seus filosofemas.

10. Até as raízes irracionalistas de alguns grandes filósofos dão, por vezes, frutos racionais. Há nos grandes filósofos um excedente, algo como uma espécie de utopia pessoal, que a classe social que eles quantas vezes promoveram, rejeita logo que toma posse do poder. Está para além dos seus interesses políticos imediatos. Essa crença otimista esteve patente nos iluministas. Daí este nome.

11. Ser racional é saber construir um discurso coerente e comunicável sobre a sua conduta e sobre a dos outros; reconhecer objetos e pessoas; orientar-se de modo aceitável pelos demais membros de uma comunidade. Mas a racionalidade filosófica ou científica é mais do isso. É construir um discurso argumentativo, reconhecendo-se nele a influência de outros filósofos, cientistas ou saberes. Na ciência as provas são a posteriori, comprovam uma teoria. Não fazia sentido algum uma experiência cega e depois a teoria correspondente. Na filosofia não se dispensa também a experiência e a sua reflexão. A filosofia e a ciência estiveram unidas muito tempo depois do início de ambas. O filósofo era um “amigo do saber”, o qual incluía naturalmente as matemáticas e a astronomia. Descartes, Leibniz. Newton dizia-se filósofo.

12. Desde as origens da Filosofia que se constituíram claramente duas correntes opostas que se podem representar pela “linha” de Demócrito e pela “linha” de Platão. As escolas epicuristas e estóicas foram poderosas no período helenístico e ainda sob o império romano até os imperadores cristãos as proibirem. É neste longo período que o materialismo sofre um eclipse quase total. É somente no século XVII que o materialismo renasce nomeadamente com Pierre Gassendi (1592-1655) que influenciou a filosofia inglesa, a qual por sua vez, marcou indelevelmente os materialismos posteriores. A corrente dos “libertinos”, nomeadamente Cyrano de Bergerac, que travou corajosos combates contra o domínio de uma religião obscurantista e repressiva. O mecanicismo de Descartes que, apesar do seu idealismo, há- de desaguar no “Homem Máquina” de La Mettrie. O materialismo de Thomas Hobbes que inaugura uma perspetiva realista moderna sobre o Estado. Entretanto, Baruch Espinosa, o grande filósofo holandês filhos de judeus portugueses, observa a luta de classes no seu país e antecipa os fundamentos da República democrática. No termo desse século Leibniz cunha pela primeira vez o materialismo como corrente filosófica oposta ao idealismo. Por conseguinte, foram necessários muitos séculos para que, chegados ao Iluminismo, o materialismo ressurgisse e se afirmasse novamente, distinguindo-se com clareza bastante das escolas idealistas. É nesse contexto que o combate principal vai ser contra as metafísicas herdeiras da teologia. O empirismo de origem inglesa (J. Locke) contribuiu enormemente para o desenvolvimento dos materialismos, ainda que a este se opusesse. Por isso, o materialismo francês do século XVIII, atento às críticas dos empiristas, não recicla mas refina a argumentação do materialismo (o materialismo de Diderot distingue-se claramente do empirismo de Condillac). Deste modo existiram diversos materialismos, alguns com escassa influência na corrente contínua da filosofia ocidental, fosse por terem sido desprezados, perseguidos e silenciados, fosse também porque as condições sociais (económicas e culturais) não lhe tivessem sido favoráveis. O que nos leva novamente à constatação de que foram os interesses da classe média – a Burguesia - que propulsionaram o desenvolvimento da ciência e dos materialismos modernos. Daí que surja por vezes esta interrogação exclamativa: como é possível que tivesse sido a Burguesia a promover a filosofia crítica materialista? Sim, foi, mas não esta burguesia…

13. Na Modernidade a Razão inicia (ou reinicia?) um novo rumo em que, agora, os novos valores do interesse pessoal e da utilidade vêm desempenhar um papel decisivo. A experiência (sensual ou experimental) é o critério e a bandeira nos ofícios e nas Artes. F. Bacon expõe a nova visão do mundo, um mundo novo maravilhoso que se anuncia sob as conquistas do pensamento científico. Os valores medievais caem no descrédito sob a força atrativa dos mercados, as monarquias divinizam-se em monarquias absolutas para melhor controlar todo o comércio. Razão interessada, útil, experimental, libertando-se do cosmos geocêntrico, das especulações metafísicas subordinadas à teologia, dos valores sociais retrógrados.

14. A Razão calcula, analisa, deduz, sintetiza. Contudo, não é ela, só por si, que nos motiva para da ideia passar à ação. É preciso que intervenham o interesse próprio e o sentimento. Jean-Jacques Rousseau, crítico do iluminismo que endeusa a Razão, colocará na Modernidade o conflito perpétuo entre a Razão pura e o sentimento; com ele o Romantismo posterior mergulhará no labirinto das contradições e dos conflitos da subjetividade. Nesse contexto, onde sobressaem os conflitos de classes e de ideias da Revolução Francesa, a dialética moderna emergirá do génio de Hegel.

15.  Referir os filósofos materialistas omitindo os escritores utopistas é um lapso grave. A sua influência não se pode descartar numa história das ideias consequente. A conceção materialista do mundo e da vida está presente em quase todos eles, ainda que, nalguns casos, envolta em uma áurea religiosa que se vai perdendo depois dos percursores Thomas More (1477-1535) e Tommaso Campanella (1568-1639). O seu valioso contributo encontra-se, a meu ver, no desenvolvimento das ideias comunistas modernas e na oposição ao capitalismo. Em More, Campanella, Jean Meslier, Morelly (1717-?), Dom Deschamps, Mably, o que prevalece é a crítica à propriedade privada. A sua oposição ao feudalismo (nos dois primeiros) e à nobreza terra tenente do século XVIII é, simultaneamente, uma rejeição do capitalismo comercial. A propriedade comunal é a base que organiza aquelas sociedades utópicas onde reina a igualdade. A primeira metade do século XIX assistirá a uma profusão de projetos utópicos comunistas. Perante o tribunal da Convenção G. Babeuf irá declarar com arrojo que bebeu em Morelly (que ele tomava como um pseudónimo de Diderot) os seus ideais comunistas. O materialismo do século das Luzes, inicialmente sob a influência do empirismo inglês, é uma mistura inovadora de neo-espinosismo (Jean Meslier, d´Holbach, Diderot, Dom Deschamps), mecanicismo, naturalismo (vitalismo, no caso de Diderot) e utopias revolucionárias. A par da influência do empirismo inglês, somente esse cadinho “explosivo” nos permite compreender não apenas o século das Luzes, como a primeira metade do século seguinte. Marx e Engels farão o ajuste de contas, como também prestarão a sua homenagem. Seja como for, a denúncia dos efeitos perversos da apropriação privada dos produtos sociais permanecerá uma trave-mestra de uma racionalidade que se queira alternativa e radical.

16. Os fundadores das doutrinas liberais formularam princípios progressistas que os regimes políticos distorceram ou aplicam conforme as conveniências. O princípio segundo o qual o Estado não deve sufocar a liberdade individual, se essa liberdade não prejudicar a liberdade coletiva; o direito à desobediência civil; a supremacia da Lei e do Direito; o princípio da separação e independência dos poderes; as Constituições políticas; a ideia de República e de soberania popular.

17.  Das filosofias utilitaristas é de reter: o que determina se uma ação ou decisão é correta é o benefício intrínseco que traz para a comunidade; quanto maior o benefício, melhor a ação ou decisão (“agir sempre de forma a produzir a maior quantidade de bem-estar”), se produzir a infelicidade, deve ser condenada. São verdadeiras apenas aquelas teorias éticas que consideram decisões e ações como corretas independentemente das suas consequências? Princípios formalistas e abstratos podem ser tão ou mais perigosos na prática que a ética utilitarista que Bentham formulou. Ela foi e é passível de críticas, mas o facto de ter justificado no seu tempo a mundividência moderna burguesa não significa que fosse completamente falsa. Uma filosofia não é falsa. Menos ainda quando ela se adequa aos interesses temporais de uma classe social. De resto, Epicuro, o criador por excelência do materialismo, defendia princípios de uma ética utilitarista. O interesse e o útil predominam nas teorias dos materialistas Helvétius, d’Holbach e Diderot. Os princípios do útil, do interesse, foram criações modernas e progressistas dos empiristas (ou “sensualistas”) e dos materialistas do século das Luzes. A crítica de Kant a esses princípios (Crítica da Razão Prática) não os invalidou. Valeu, sobretudo, como síntese necessária entre a intenção (uma “consciência boa”) e o valor social das consequências de uma decisão ou ação. As noções económico-éticas de interesse e de utilidade exprimiam os desígnios das burguesias (comércio, indústria) e opunham-se aos valores feudais. Constituíram um progresso. O socialismo francês, uma das três fontes do marxismo, desenvolveu-se sobre as contribuições dos iluministas, sobretudo do seu materialismo. O utilitarismo ficou reduzido no marxismo vulgar à caricatura da sua expressão burguesa. Contudo, o cálculo utilitarista da maximização dos prazeres e da minimização dos sofrimentos elevou a um Princípio o que se encontrava explícito nos iluministas. Fosse como fosse propugnavam pelo primado do direito e da felicidade geral, “a maior felicidade para o maior número de pessoas”. Em termos gnosiológicos o utilitarismo era é uma sub-corrente do empirismo, no qual radica a sua ética pragmática. É sobretudo a sua ética baseada no princípio da experiência e da ação que deve suscitar o nosso interesse. Se o seu uso tem servido para justificar os meios pelos fins, nenhuma doutrina está isenta desse pecado. Implacável na crítica desta filosofia convertida em ideologia do capitalismo, o marxismo não deve, porém, ignorá-la nem desprezá-la. O idealismo, enquanto místico e mistificante, resulta falso e mal formulados os seus problemas específicos; todavia, contém um conteúdo real. Este conteúdo revela contradições objetivas e conflitos da vida social concreta.

 

 

O Iluminismo debaixo do fogo

 

 

18. Max Horkheimer e Theodor Adorno, n’ A Dialética do Esclarecimento, expõem com acerto as responsabilidades do Iluminismo no irracionalismo que lhe sucedeu. Segundo eles o Esclarecimento (Aufklärung) é “totalitário”, o processo de racionalização abstrata produziu a barbárie. É preciso, pois, destruir o mito do progresso, tarefa equivalente à destruição da metafísica idealista. O mito do progresso correspondeu à ideologia burguesa pelo qual esta justifica os males como acidentes de percurso, efeitos colaterais da marcha infinita da tecnociência. A racionalidade iluminista não emancipou o homem como prometia, domesticou-o. A grandiloquente subjetividade burguesa traduziu-se na reificação e no fetichismo, afirmará Adorno em obras posteriores, servindo-se de Marx e sob inspiração de Lukács. O pensamento, tolhido pela “culpa” vê-se privado da “linguagem da oposição. Não há mais nenhuma expressão que não tenda a concordar com as direções dominantes do pensamento”.“ Na crença deque ficaria excessivamente suscetível à charlatanice e à superstição, se não se restringisse à constatação de factos e ao cálculo de probabilidades, o espírito conhecedor prepara um chão suficientemente ressecado para acolher com avidez a charlatanice e a superstição.” O esclarecimento autodestrói-se. Não há dúvida de que o a liberdade na sociedade é inseparável do esclarecimento, “Contudo, acreditamos ter reconhecido com a mesma clareza que o próprio conceito desse pensamento, tanto quanto as formas históricas concretas, as instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, contém o germe para a regressão que hoje tem lugar por toda a parte.”. Eis-nos na época do domínio da abstração niveladora, toda a diferença é anulada sob o signo da identidade e da unidade. Dito isto, o Esclarecimento  é um alvo a abater? Não. É, antes, uma tarefa de autorreflexão a cumprir urgentemente, a partir de uma posição dialética. Era esse o propósito do livro que converteu Adorno numa referência obrigatória? Não me parece. Julgo que dele se extraiu uma completa culpabilização da filosofia das Luzes. Errada, a meu ver. A dialética negativa não comporta nenhuma saída positiva, nenhuma superação. Proclama-se o fim das grandes filosofias da história. Por consequência, eles próprios deveriam em coerência se demitirem de filosofar sobre a história: não apresentam desta um sentido negativo, autodestrutivo? E que sentido faz nesta filosofia da história que esta se divida em duas partes: um antes e um depois do Iluminismo? Porquê desprezar as revoluções sociais e políticas sucessivas nos últimos três séculos? Visão catastrófica que Walter Benjamim enunciava em textos pessimistas. Karl Popper saberá prosseguir estes passos para recuperar o liberalismo; Horkheimer dá-lhe o mote nas últimas obras. Num golpe de rins que não é tão invulgar como se poderá julgar, da crítica implacável ao liberalismo (Esclarecimento) acaba-se na defesa do próprio. Ou seja: o pensamento dominante é tão dominante que não permite alternativas; portanto, aceite-se o pensamento dominante, pelo menos sob a sua forma negativista, pessimista. A crítica da Modernidade na sua feição burguesa e racionalista iniciou-se com os românticos e encontra em F. Nietzsche o seu arauto mais influente até aos nossos dias, é ele sobretudo que alimentará a pós-modernidade nos seus aspetos mais conservadores e até mais reacionários. Nele e em Heidegger. Paralelamente, a crítica da Razão (Razão instrumental, técnica, burocrática) vai beber a Max Weber. É neste que Horkheimer e Adorno, Marcuse, se vão apoiar refletindo sobre os excessos da racionalidade capitalista. Perdera-se o fio condutor da crítica marxiana das ideologias de classe.

19. As Luzes não foram homogéneas: diferentes correntes de pensamento se atravessaram e até colidiram. Na França, os materialistas  La Mettrie, Jean Meslier, D’Holbach, Diderot, Dom Deschamps, distinguiram-se com clareza suficiente dos sensualistas-empiristas (Condillac). Os próprios materialistas não se copiam: D’Holbach não foi o mecanicista-cartesiano La Mettrie; os neo-espinosistas Jean Meslier, Dom Deschamps, D’Holbach, Diderot), não replicam os enunciados do empirismo inglês de J. Locke a D. Hume. Jean-Jacques Rousseau afastou-se cedo do programa dos iluministas, mas não deixa por isso de ser um expoente máximo do Esclarecimento. Luzes e sombras, diferenças e aproximações. Confiança na Razão (barreira contra a ideologia clerical obscurantista e os costumes bárbaros), pois em quê devemos confiar? No Progresso (Condorcet, no termo derradeiro do século, fará a síntese brilhante dos “Progressos do espírito”) que conduzirá inexoravelmente a humanidade a relações sociais e instituições políticas mais liberais. A crítica às metafísicas de orientação teológica (às ideias e à maldade inatas no homem), a predominância dos valores do útil e do interesse, aproximam as diversas correntes. Esses fios condutores defendidos pelas elites letradas que comungavam do mesmo entusiasmo pela ciência, pelo livre intercâmbio de ideias e de comércio, pela crítica, corajosa quantas vezes, das relações de produção feudais (e pelos concomitantes direitos e privilégios consuetudinários), confluíam para o cadinho das aspirações revolucionárias das burguesias. Contudo, insistimos, o programa democrático de Rousseau não era idêntico ao de Montesquieu; o pensamento político de Kant – filósofo alemão!- não equivale ao programa de David Hume- filósofo inglês! -. Certo é que a burguesia liderava os processos de mudança nas teorias e nas práticas, contudo os doutrinadores diferenciavam-se na medida das diferenças das burguesias nacionais. A Revolução Francesa encarregar-se-ia de revelar essas diferenças. Rousseau, por exemplo, foi reconhecido como o mentor intelectual dos programas da esquerda e extrema-esquerda…mas a grande burguesia fará o funeral da pequena-burguesia jacobina e dos sans-cullots.

19.  “A Dialéctica da Ilustração”, de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, de 1944, é um dos mais importantes ensaios críticos do século vinte. Os seus autores afirmam que “não albergamos a menor duvida – e esta é nossa petitio principii – de que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento ilustrado.” (p.13), mas esse pensamento “contem já o gérmen daquela regressão que hoje acontece por toda a parte” (idem). A regressão aos mitos. O Esclarecimento ao enfatizar o progresso da Técnica como Promessa de um mundo novo, conduziu ao anti-Esclarecimento: a indústria cultural, o consentimento total dos consumidores sem subjetividade e espírito crítico, elimina o passado e realiza a propaganda do mundo existente. A obra é um clarividente repositório dos recuos e contradições do iluminismo burguês. Um século antes Marx e Engels haviam já traçado o balanço do papel da Burguesia: “A burguesia desempenhou na história um papel altamente revolucionário”, ela “não pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produção, por conseguinte as relações de produção, por conseguinte todas as relações sociais.” (Manifesto do Partido Comunista, Obras Escolhidas, t.1, p. 109, Edições Avante!). O papel negativo está aí claramente exposto. Nessas páginas célebres vemos um exemplo de dialética aplicada à história de “longa duração”. Nas obras posteriores, mais maduras, os seus autores (fundadores da Dialética da História) não perderão nunca de vista o ângulo positivo com que se deve encarar a evolução da burguesia até esta tomar o poder absoluto nas mãos. Parece-me a mim que estes dois ângulos do mesmo triângulo não foram acentuados, e articulados entre si, em “A Dialéctica da Ilustração” e em “A Dialética Negativa”, de Adorno. O percurso da análise torna-se cada vez mais pessimista: inclui o próprio socialismo que por toda a parte se experimentava, as lutas de classes, o papel revolucionário das classes exploradas. As críticas da Modernidade iniciaram-se com Nietzsche, Kierkegaard, Max Weber. Prolongaram-se pelo século passado através de Heidegger e seus múltiplos discípulos. Desaguaram nos corifeus da pós-modernidade. Critica-se uma determinada concepção de razão (técnica, instrumental) e é toda a racionalidade que acaba a ser julgada. O lance supremo é a liquidação da verdade. O universal esvai-se e os critérios de validade evaporam-se. A razão que sobra é débil e amputada. Serve bem os interesses de uma classe para quem a ideia de futuro e de alternativa já não convém que façam sentido.

20. Não afirmo que a metafísica não é racional, afirmo que a dialética dá melhor conta dos fenómenos sociais. Nesse sentido, é mais racional. É necessário distinguir as metafísicas, umas foram obstáculos epistemológicos, outras não. Exemplos: a metafísica de Espinosa não se opõe ao desenvolvimento da ciência, bem pelo contrário; o naturalismo metafísico de d’Holbach pretendeu promover uma imagem realista da natureza e do homem. Qualquer crítica do pensamento metafísico deve distinguir os sistemas metafísicos, segundo esse critério. O naturalismo e o materialismo dos séculos XVII e XVIII não devem ser rejeitados como falsos e culpados dos males que sobrevieram. Foram, pelo contrário, um auxiliar importante na marcha difícil das teorias e das práticas científicas. Mas não só os materialistas: o racionalismo metafísico de Descartes lançou as bases do pensamento moderno, precisamente porque a partir dele a filosofia libertou-se da tranquilidade do primeiro começo- Deus- ao estabelecer como início o eu pensante; reconhece o método científico como o mais racional. Espinosa começa o seu sistema com a demonstração da existência de Deus, mas nele Deus é a Natureza e as demonstração nada têm que ver com as provas teológicas tradicionais. Com o cartesianismo e o espinosismo a filosofia nunca mais foi a mesma. Ser dialético é saber o que se deve conservar (o que realmente se conservou nos caminhos do progresso da emancipação humana) e o que se deve eliminar como irracional, isto é, que perdeu necessidade histórica, retrógrado e ideológico. A Crítica tem de ser radical. Deve-se criticar a forma sobretudo quando ela vela ou mistifica os conteúdos concretos. Criticar o Iluminismo não é tarefa nova, Kant fê-lo, Hegel, Feuerbach e Marx, cada um a seu modo. Depois deles temos de partir deles quer queiramos ou não. Marx fê-lo com Hegel. Estiveram todos amarrados a uma forma errada ou insuficiente de crítica? Podemos ir mais longe? Sem dúvida, é sempre possível. Por exemplo a crítica da noção de Progresso tanto na perspetiva dos iluministas, como da dialética da Consciência hegeliana. Não se confirma uma linha contínua de evolução linear das filosofias que dê consistência a uma História evolutiva das Ideias. Verificam-se retrocessos e perdas tanto nas técnicas como nas ideias: na transição para o feudalismo perderam-se técnicas dos romanos e boa parte da cultura clássica. E é inegável que se aproveitam e utilizam para outros fins métodos de pensar anteriores: Agostinho teorizou as duas “cidades” (terrena e celeste) no quadro do platonismo. O Renascimento tentou ser isso mesmo: regresso e recomeço da história. O Iluminismo continua o ciclo dos eternos recomeços. Os revolucionários franceses travestiram-se de romanos. Até Marx não resistiu à tentação de colocar no passado o “comunismo primitivo”.

21. Deve-se criticar no Iluminismo a sua ideologia da Abstração, ou a abstração como ideologia, que serviram de capa ao valor, ao trabalho abstrato, ao trabalho alienado. Mas essa crítica das representações abstratas e da Identidade do pensamento e da realidade objetiva, foi precisamente a primeira tarefa dos jovens Marx e Engels. A grande crítica marxiana irá construir-se em plena maturidade com a crítica do conceito de valor de Adam Smith. A crítica de Marx à ideologia, alienação e fetiche, devem bastante ao modo como soube ler Hegel e Feuerbach, mas sobretudo à análise concreta da lógica do capital que estava lá, porém ninguém vira. Os fenómenos objetivos têm que se manifestar para que o pensamento se veja obrigado a responder com os seus meios. O capitalismo teve de manifestar-se em toda sua realidade exploradora e destrutiva para que pudesse encontrar em Marx o seu intérprete e opositor radical. Para ir às raízes é necessário que estas produzam florações (carnívoras). Esta ideia somente Hegel a conceptualizou e toda ela encerra um programa e um método. Por que razão vemos hoje na Modernidade, no Iluminismo em particular, um alvo a abater? Porque os seus ideais (do sujeito, da Vontade, do Valor, da liberdade e igualdade) foram convertidos pelo capitalismo em armas poderosas de dominação. Os princípios e os valores tornaram-se meramente formais. Na boca dos capitalistas a liberdade significa apenas “livre iniciativa” (até a “livre concorrência” é um embuste face à omnipotente concentração do capital) de comprar a força-de-trabalho pelo preço que mais lhe convier na base de uma relação completamente desigual capitalista/ assalariado. Por conseguinte, a crítica da Abstração não deve despojar esse passo fundamental do método racional. Sem ela não haveria sequer método. Valores universais como os direitos de expressão ou o direito à vida são abstratos porque são universais. O que importa é concretizá-los.

22. Não basta afirmar que o movimento é caraterística imanente da matéria. Foi necessário perguntar: que movimentos e como. O como é a sua conexão interna, a contradição inerente, a inter-relação entre os fenómenos. Não basta, por outro lado, afirmar a realidade do Todo ou Natureza como era recorrente nos materialistas franceses iluministas; o conceito de universo nos termos da física contemporânea fornece uma outra substância a esse  grand tout metafísico do filósofo d´Holbach. Foi necessário que se compreendesse que qualquer totalidade é percorrida e movida pela Contradição. Não bastou o aforismo de que a Natureza é o Todo sem nada mais que lhe seja exterior e prevalecente. Foi necessário descobrir-se que a Natureza possui uma história. A Ideia de História emergiu com o Iluminismo. Saltou, depois, da sua aplicação limitada à história das instituições políticas e das ideias para o mundo natural. Essa foi, provavelmente, a maior revolução mental da Modernidade. “ A lógica cultural do capitalismo tardio: o esmaecimento da historicidade.” (F. Jameson).

23.  Dialética do distanciamento/aproximação foi a posição adotada por Marx e Engels sobre o idealismo hegeliano e o materialismo francês. É esta posição que adoto quando analiso, por exemplo, o Iluminismo.

 

24. A racionalidade diverge de filósofo para filósofo (os grandes filósofos criadores). O racionalismo de Hegel está nos antípodas do racionalismo de d’Holbach, em um o conceito central é a Consciência, no outro é a Natureza. O racionalismo de Marx está nos antípodas do irracionalismo. Nenhum parentesco entre Marx e Schopenhauer. A história das ideias, o modo diferenciado como os grandes filósofos interpretaram a razão humana e a desenvolveram, as diferentes interpretações do mundo natural, das sociedades e da existência humana, não constituem uma história independente da história das relações sociais. Sem esta as interpretações não seriam possíveis nem necessárias. A crítica das religiões (das mentalidades e dos costumes classificados como irracionais, retrógrados e bárbaros) encetada pelos grandes filósofos da antiguidade clássica, não foi possível no Oriente, mas nas democracias gregas; se ela continuou nos séculos posteriores em condições completamente adversas, esse facto (que para alguns demonstra a autonomia quase absoluta das ideias) apenas afasta um determinismo causal absoluto das relações sociais de produção. Ainda assim, não foi na estratosfera que Agostinho de Hipona produziu uma interpretação do mundo e da existência humana toda ela assente na dominância da fé sobre a razão, da religião e da moral (a noção de pecado original ou da maldade inata do homem) que desprezava a vida terrena, antes foi nas condições peculiares dos estertores do Império Romano e do terror da barbárie que ele observava e sentia. Por outro lado, as filosofias são construções pessoais, isto é o pensamento de Espinosa, para o qual as condições particulares da Holanda do século XVII contribuíram, foi fruto em primeiro lugar da personalidade e da vida singular desse génio descendente de judeus portugueses fugidos da Inquisição.

25. Entre as várias conceções de Razão, entre as várias interpretações racionais do mundo e da vida que qualquer uma delas se queria mais verdadeira que as demais (elas querem-se sempre um progresso relativamente às do passado), veio gradualmente sobrepor-se a Razão científica, com os seus métodos e os seus instrumentos de observação e medida. Não transforma o mundo só por si, não ficou ele melhor no mundo capitalista do século passado apesar dos extraordinários avanços dos nossos conhecimento e das nossas tecnologias. Certamente. A filosofia do positivismo burguês foi a ideologia do cientismo, a festa triunfal da razão tecnocientífica que viria iluminar o mundo sob o império do capital industrial. A neutralidade da ciência face aos interesses mundanos é uma ficção. Independentemente da paixão quantas vezes desinteressada do cientista, o seu produto é social e o seu trabalho nos centros de investigação também. Converteu-se numa poderosa alavanca de transformação do mundo, quer nos regimes socialistas, quer nos regimes capitalistas. A racionalidade científica moderna veio para ficar, isto é, não perderá jamais a hegemonia como sucedeu com a ideologia religiosa da Idade Média. Mas o diagnóstico dos malefícios do capitalismo é assustador. A ciência só por si não nos salvou, bem pelo contrário. Porém, o seu abandono não faria qualquer sentido, nem é já possível. É necessário que a racionalidade científica não se feche no seu reduto de indiferença cínica. É urgente que ela se abra para uma interpretação filosófica do mundo e da vida, ética e política. Para uma Razão política que não justifique a dominação do homem pelo homem. Uma Razão prática que governe em proveito comum as forças naturais. Uma Razão científica que vença a fome e a doença. Uma Razão dialética que demonstre que uma contradição socialmente antagónica não se soluciona pelo seu equilíbrio mas pela sua solução simultaneamente destrutiva e criadora. O que é irracional é esta dose de contradições cada vez mais insuportável para a humanidade: uma economia irracional que gera desemprego e exclusão social, que se reproduz continuamente no mais completo desprezo pela miséria que reproduz, que expropria os povos do seu espaço, que se apropria do tempo dos trabalhadores para benefício exclusivo dos lucros. Ao mesmo tempo que a ciência liberta poderes incomensuráveis que curam, que aumentam a longevidade e o bem-estar, a abundância de alimentos, o controlo de desastres naturais, o aumento dos tempos livres para o lazer saudável e criador. O que é irracional é a fúria expansiva e destruidora dos imperialismos, expressão máxima do terror capitalista, responsável por duas guerras mundiais e por sucessivas ditaduras sanguinárias. O que há de racional no capitalismo? As origens da sua acumulação e expansão através da expropriação e do saque, do colonialismo e da escravatura? O que há de racional num modo de realizar lucros sobre lucros, dinheiro através de dinheiro, numa acumulação infinita?

A questão do Progresso

26. O conhecimento das passadas formações sociais humanas nos quatro continentes exclui qualquer concepção que sustente uma ideia de progresso unilinear, homogéneo em todo o planeta, que as submeta a um processo uniforme e universal rumo a um fim pré-estabelecido. O que se verifica são diversas combinações de modos ou modelos, por vezes coexistindo no espaço e tempo, experimentados com sucesso ou condenados à extinção. Avanços e recuos. Impérios vastíssimos assentes em modos de produção diferentes sob uma dominação mais ou menos coerciva que tornam difícil aplicar classificações à escala planetária na mesma época, sobretudo se tivermos em conta a larga diversidade de relações sociais (políticas, culturais, etc.) que se organizam sobre a base produtiva e distributiva. Necessitamos de critérios objetivos e rigorosos (sem etnocentrismos e apriorismos) para classificarmos o tipo de modo de produção quiçá dominante numa determinada época em todos os continentes, desde as primeiras civilizações, e se esse modo de produção, a haver existido, foi mais progressivo em comparação com o anterior. Não dispomos de um modelo consensual sob essa matéria, exceto quando nos aproximamos do presente onde o modo de produção capitalista é hegemónico na maior parte do globo. Menos consensual o diagnóstico se valoramos este em comparação com modos de produção de planificação central e predomínio da propriedade social existentes ou falhados. Para os marxistas (não todos eles seguramente) estes sistemas são ou foram mais progressivos nesses aspetos considerados, embora em muitos outros aspetos (políticos, culturais, etc.) se mantenha aberta a discussão. O conceito de progresso não deve ser encarado de modo abstrato, ideológico, requer metodologia científica que sustente um quadro normativo. Sem utopias abstratas. Marx, no Prefácio “Para a crítica da economia política”, diz o seguinte: “Nas suas grandes linhas, os modos de produção asiático, antigo, feudal e, modernamente, o burguês podem ser designados como épocas progressivas da formação económica e social.”. A emancipação humana depende do pleno domínio do homem sobre as forças da natureza (Marx, Grundrisse) no decurso das diferentes sociedades humanas; modernamente, do desenvolvimento da ciência sobre o conjunto das forças de produção. Progressos nuns casos lento e gradual, noutros por saltos qualitativos (pense-se na recuperação notável da URSS no pós-guerra) através da luta de classes sobretudo (pense-se nas revoluções modernas). Admito que Marx e Engels conservaram (a outro nível) a ideia de progresso iluminista, ideia que que a burguesia, entretanto, reduziu ao aspeto exclusivamente técnico (Tecnociência) e produtivista, com a qual algum marxismo alinhou. Marx deixou-nos, não tenho dúvidas, critérios gerais para definir o Progresso, toda a sua obra e pensamento, tal como em Engels, está percorrida por essa convicção. A sociedade comunista será o fim da “pré-história”. A ênfase no progresso da base económica não subestima de modo nenhum o seu efeito nas supraestruturas. A consciência reflete e retroage sobre a base. Por outro lado, as contradições são imanentes ao processo: antagónicas nas sociedades de classes, não antagónicas nas sociedades socialistas cujo projeto é a sociedade comunista.

27. O Manifesto Comunista expõe na sua síntese admirável as linhas fundamentais dos progressos induzidos pela burguesia e pelo capitalismo, ao mesmo tempo o seu egoísmo como classe social, a sua crueldade, cinismo, instrumentalização dos belos ideais com que a representaram os fundadores do liberalismo. Os seus autores amadureceram a teoria económica que lhe estava subjacente, mas nunca renegaram essas páginas. Portanto, a análise crítica dos períodos de formação do capitalismo (cujo traçado abreviado mas com grande estilo já se encontra no Manifesto) não deve omitir a dialética com que foi interpretado. Os progressos resultaram em benefício exclusivo da burguesia? Não. No seu benefício principal mas não exclusivo. Conquistas civilizacionais, que propiciaram o desenvolvimento do proletariado e até por vezes devido às suas lutas. Os progressos não resultaram apenas das lutas e interesses das classes dominantes: resultaram amiúde de lutas e contradições internas das formações sociais e das classes em ascensão ou desejosas de emancipação (aplica-se na Roma Antiga, no termo da Idade Média, na sociedade capitalista desenvolvida). O Progresso não deve ser encarado abstratamente, e conforme critérios subjetivos, de nacionalidade, eurocêntricos. Nem conforme exclusivamente critérios positivistas que enfatizam a tecnociência. O critério principal com que se deve interpretar a evolução humana é este: no traçado sinuoso desta o progresso é aquela parte que beneficiou a humanidade. Saber distingui-la da barbárie que o acompanha e por vezes o impele, saber e poder abrir amplas avenidas para que ela se aprofunde e estenda a todo o planeta.

O materialismo dialético rompe com os materialismos a-históricos

28. Todos os materialismos anteriores a Marx tinham um defeito principal: a historicidade estava ausente. Faltava-lhes a substância da práxis: a história. 29. O idealismo, enquanto místico e mistificante, resulta falso e mal formulados os seus problemas específicos; todavia, contém um conteúdo real. Este conteúdo revela contradições objetivas e conflitos que regem a vida social concreta individual e coletiva. As crenças religiosas, por exemplo, a que não faltam muitas vezes características supersticiosas, coexistem contraditoriamente nos indivíduos com convicções e atividades puramente científicas. Conceções idealistas no plano da teoria do conhecimento que recusam quer a ontologia materialista (que consideram mera metafísica), quer a própria Dialética (materialismo histórico ou o materialismo dialético), defendidas por célebres militantes comunistas, provocaram intensos debates no seio dos marxistas. Somente os contextos políticos e as personalidades dos seus intérpretes nos permitem compreender. De resto, o marxismo não é uma religião e muito provavelmente o idealismo é a atitude mais espontânea da mente humana: Começamos todos por ser idealistas e somente depois, com um esforço considerável e porque esse idealismo não resistiu à prova da vida, é que nos tornamos materialistas consequentes.

29. O que mais importa nas especulações racionais que fundaram a filosofia ocidental é o método. Sem método não há filosofia, tal como sem ele não existiria a ciência que hoje conhecemos. Variem embora os métodos para se alcançar verdades, perdurou a necessidade absoluta de um método racional. É ele que produz paradigmas. Entre estes a religião já foi paradigmática. Hoje é o método científico que é consensual. Não foram menos racionais (e racionalistas) os clássicos, mas não se reuniram as condições para o uso dos métodos experimentais associados à dedução. Porém, esse progresso formidável, gradual até se tornar vertiginoso, que não resultou de génios mais inteligentes que os de outrora mas de condições sociais diferentes, origens da Modernidade foi sempre um instrumento de dominação. A sua utilização para fins militares, desde o século XVI, é exemplo indubitável.

30. Toda a ciência hoje é materialista ou demonstra as teses básicas do materialismo. As opiniões idealistas de alguns cientistas (na Física Quântica, por exemplo) apenas contradizem as descobertas das ciências. A astronomia e astrofísica, a geologia e geografia, a biologia e a antropologia, a física e a química, demonstram a veracidade das teses materialistas, não as do idealismo que acredita que é a consciência que cria a realidade. Nos inícios do século XX conhecia-se apenas a existência da nossa galáxia, hoje sabemos que elas são milhares de milhões. Foi a consciência dos astrónomos que as criaram? Evidentemente que sem a capacidade humana, o seu saber e os instrumentos que criou, nada se saberia. Contudo, a práxis humana (a sua atividade criadora) não criou o universo nem a vida neste minúsculo planeta, é apenas de ambos um fenómeno grandioso. Os cientistas, pela sua atividade específica e pela divisão do trabalho, tendem a hiperbolizar o papel da mente. É compreensível naqueles casos da teoria pura em que se calcula a existência de uma partícula, de uma forma de energia, ou de uma lei, ainda não comprovada. Porém, a prova ou descoberta não é senão a demonstração de um facto objetivo. Se a ciência se apoiasse apenas nas criações da mente, não serviria, como tem servido, para compreender as propriedades da matéria e, portanto, dominá-las. Os matemáticos enfatizam o rigor e validade dos seus cálculos puramente mentais, mas esquecem a validade do método experimental nas ciências do homem e da natureza, com as quais a aliança é sempre imprescindível.

31. O materialismo dialético não implica uma exterioridade ontológica inibidora da subjetividade; não é uma exterioridade dada que exclua à partida a intervenção criadora do sujeito. Na própria formulação ontológica, na colocação do problema filosófico fundamental, o sujeito está implicado.

32.  “A questão da relação do pensar com o ser, do espírito com a natureza – a questão suprema da filosofia no seu conjunto –“ , “Conforme esta questão era respondida desta ou daquela maneira, os filósofos cindiam-se em dois grandes campos. Aqueles que afirmavam a originalidade do espírito face à Natureza, que admitiam, portanto, em última instância, uma criação do mundo, de qualquer espécie que fosse – e esta criação é frequentemente, entre os filósofos, por exemplo, Hegel, ainda de longe mais complicada e mais impossível do que no cristianismo - formavam o campo do idealismo. Os outros, que viam a Natureza como o originário, pertencem às diversas escolas do materialismo.” “Mas a questão da relação de pensar e ser tem ainda um outro lado: como se comportam os nossos pensamentos acerca do mundo que nos rodeia para com esse mesmo mundo? Está o nosso pensar em condições de conhecer o mundo real, podemos nós produzir, nas nossas representações e conceitos do mundo real, uma imagem especular (Spiegelbild) correta da realidade? Esta questão chama-se, na linguagem filosófica, a questão da identidade de pensar e ser, e é respondida afirmativamente, de longe, pelo maior número de filósofos.” Este trecho célebre de Engels suscita-me, todavia, duas reservas. Primeira- o termo “especular” remete para a analogia do espelho; ora, o cérebro não é um espelho, o conhecimento não é mecânica passiva. Segunda- Não há identidade entre pensar e ser tout court, mas mediações dialéticas entre o sujeito e o objeto.

33. Os materialistas de todos os tempos escolhem, portanto, racionalmente a primeira resposta. É a resposta do bom senso, ainda que não seja necessariamente a do senso-comum. Natureza ou Matéria. Porém, porque a noção de Ser encontra-se à partida indeterminada – noção superlativamente geral- pode resvalar, por dedução lógica, para o indeterminado, vazio (pura abstração); porque, a matéria recebe determinações sucessivas através da ciência; e porque a matéria ou Natureza possui como sua propriedade essencial o movimento, vale então dizer que o Ser esteve e estará sempre em processo adveniente. O Ser cria-se a si mesmo na eternidade e na infinitude. A unidade do mundo consiste na sua materialidade. Não existem, pois, dois Seres (ou Substâncias), mas um único; por conseguinte, o materialismo é uma filosofia do Uno e da (sua) Unidade. Afirmando-se o Ser em devir, introduzimos desde o começo a dialética. O materialismo não é uma metafísica especulativa da(s) Substâncias (s) (inertes, sem desenvolvimento e mudança. A Unidade é Diferença (diferenciação interna). A Natureza desenvolve-se no tempo. Não se desenrola conforme um Plano pré-determinado: cria a sua própria história ( o nosso universo nasceu, envelhece e há de morrer). O materialismo é espinosista na afirmação do Uno sem reservas, e hegeliano na afirmação da Unidade contraditória que se move. O materialismo é um monismo absoluto. A Matéria gerou de si mesma a possibilidade de se pensar a si própria. A Natureza reconhece-se no homem; diferença na Identidade; a espécie humana reconhece em si mesma a sua identidade com a Natureza. O Uno exprime-se de múltiplos e diferentes modos. O marxista afirma que a primeira categoria ( filosófica) de Matéria é a de ser independente da consciência. Poder-se-ia dizer com Bento Espinosa: a natureza possui uma infinidade de atributos, sendo um deles o pensamento. O pensamento relaciona-se com o objeto precisamente porque este existe independentemente do processo cognoscitivo. Por isso a escolha mais adequada pra compreender esta relação é pela dialética sujeito/objeto. Na 1ª Tese sobre Feuerbach Marx esclarece-nos: “A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias – o de Feuerbach incluído – é que as coisas, a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sob a forma do objeto ou da contemplação; mas não como atividade sensível humana, práxis, não subjetivamente. Por isso aconteceu que o lado ativo foi desenvolvido, em oposição ao materialismo, pelo idealismo – mas apenas abstratamente, pois que o idealismo naturalmente não conhece a atividade sensível, real, como tal. Feuerbach quer objetos sensíveis realmente distintos dos objetos do pensamento; mas não toma a própria atividade humana como atividade objetiva. (…)” Posição ao mesmo tempo monista e dialética. A categoria de Todo ou Totalidade é inerente ao monismo materialista. Como categoria filosófica é uma abstração. No caminhar do conhecimento formamos totalidades (conceitos e categorias) que incluem totalidades já conhecidas sem jamais virmos a conhecer o Todo ( a sua abertura é infinita). No plano científico trata-se da ambição de unificar todas as leis numa única, todas as formas de Energia numa só. Muito embora de uma forma especulativa ou intuitiva, nunca foi outra a ambição do materialismo desde as suas origens: descobrir um Princípio. Por todos o espaço-tempo material por onde o espírito caminha encontra sempre o seu berço e o seu lar.

34. Tendemos a designar materialismo somente a visão do mundo exposta em alguns textos de filósofos ao longo de milénios. Poucos filósofos e muito poucos textos. Não há certezas se foi um indivíduo excecional que transgrediu a forma comum de ver e pensar, se foi um cúmulo de experiências coletivas; julgamos que se verificou numa comunidade particular, circunstâncias particulares. Como visão do mundo, porém, é mais ampla: além de escritos, escolas e discípulos (comunidades minoritárias), engloba a comunicação oral, comportamentos alternativos. Apesar da mundivisão materialista, segundo a qual tudo que existe é natural, ou deriva da Natureza (Matéria), parecer ser do senso-comum (realismo espontâneo ou ingénuo) não o é, e menos o era nesse tempo; somente circunstâncias sociais muito particulares, que hoje conhecemos, permitem explicar a rutura ou evolução que foi o materialismo como crença racional. Do mesmo modo diferentes condições de vária ordem (mental e material) explicam o apagamento da alternativa materialista durante séculos. Determinante foi, seguramente, o modo de organização económica e do poder político que lhe correspondia. A mundivisão materialista somente voltou a conquistar espaço nas novas cidades burguesas. Os estudos históricos demonstram, portanto, a correção das teses do materialismo histórico. O intercâmbio e a comunicação, a organização política autonómica das classes de comerciantes favoreceram o pensamento alternativo e a liberdade de expressão e criação. O desenvolvimento das forças de produção chocou-se com relações retrógradas. Cada camada ou classe social dominada exprimiu sempre interesses próprios opostos aos interesses particulares dos grupos sociais dominantes, embora, muitas vezes, ideologias alienantes possam convencer os dominados que os interesses dos dominadores são os seus próprios interesses.

35. Aqueles que tentam refutar o materialismo dialético e se apoiam exclusivamente numa teoria do conhecimento, não encontram fundamento que a sustente essa posição. Uma gnosiologia sem uma ontologia não possui sentido algum. O que é que se conhece é a questão, e não exclusivamente o como se conhece. Todos os filósofos idealistas (desde Platão e Aristóteles) reconhecem a existência da Matéria, subordinando-a às forma do espírito é claro, pois sem a inclusão da Matéria (uma determinada ficção da Natureza) o seu idealismo não sequer possível. Porém, o materialismo nega que a Matéria exista e se mova apenas por causa de “formas” (ou categorias) colocadas nela pelo espírito, ou que a matéria em-si seja incognoscível ou que haja uma matéria em-si). Quando o homem a conhece ela converte-se num ser-para-mim; e tal é possível porque a Matéria é independente, conjunto de coisas e fenómenos que agem sobre os sentidos e sobre a razão. Tudo o que sabemos hoje demonstra que somos seres bio-sociais. Na caraterística “sociais” cabem abundantes elementos materiais. Nós dependemos da natureza, pela origem, pela constituição, pela sobrevivência; a natureza, pelas suas origens e infinidade, não dependeu, nem depende, do homem para coisa alguma. Materialismo ontológico, epistemológico, prático, histórico. Marx criou os fundamentos do materialismo histórico e do materialismo dialético; Engels, o materialismo ontológico. Na divisão do trabalho entre os dois amigos exemplares, coube ao último esta tarefa. A correspondência diária entre ambos o demonstra cabalmente.  

36. Os idealismos subjetivos que menorizam a estrutura biológica e material do homem, tendem a hipostasiar a vontade e o “livre-arbítrio” (atitude pouco racional que Espinosa foi o primeiro a censurar), como se verifica na inflexão da sociologia contemporânea (individualismo). Valem de pouco as críticas ao “determinismo materialista” vindas de idealistas e de alguns marxistas (?) se não cairmos nesse erro ingénuo dos materialistas das Luzes (comum então de resto a todas as filosofias naturalistas). Em boa verdade o que assistimos no século vinte foi, isso sim, a surtos de “biologismos” nas hostes dos próprios idealistas…perigosamente racistas alguns deles (resultados inevitáveis do positivismo). Pode-se dizer, a propósito, que as disputas teóricas só têm solução na vida prática real. Não só as resolve como põe a nu a sua natureza ideológica.

37. A ontologia materialista não mais deveria ser acusada de determinista depois que introduziu na filosofia a categoria marxiana da práxis. A relação do homem com a natureza realiza-se pela mediação da práxis. Não existe um dualismo de duas entidades independentes.

38. Contudo, surgirá outra interrogação: como se processa o conhecimento, admitindo como irrecusável a práxis? A expressão utilizada por Lenine é o ”reflexo”. Contra ela caíram as acusações de “realismo passivo”, cópia, teoria do ”espelho”. De facto, Lénine serviu-se dos termos “cópia”, “fotografia”, “espelho”, no que foi um momento, raro, de infelicidade do genial teórico. O termo “reflexo” ( Lénine vai busca-lo a Engels) é equívoco a menos que signifique adequação e ênfase na prevalência da realidade objetiva. Os sentidos refletem as propriedades dos objetos, de algum modo, mas através de imagens processadas pelo cérebro, não as copiam. A imagem assemelha-se a uma fotografia invertida mas é o cérebro que a interpreta (identifica-a, insere-a numa categoria). É evidente que sem estímulos externos os aparelhos sensoriais dos seres vivos não surgiriam, nem se modificariam, nas etapas da evolução. Jean Piaget usou a expressão “assimilação” (oriunda da biologia) e não foi por isso acusado de “biologismo”. Pavlov criou os termos “reflexos simples e reflexos condicionados” e o behaviorismo fez deles a sua base de trabalho (J. Watson e Skinner) Frases de Marx, O Capital, t.1, Engels Marx e Engels utilizam o termo reflexão a miúde. A terminologia de Lenine fez do seu livro um alvo preferencial de marxistas e anti-marxistas. Na verdade era a ontologia que queriam atacar. Precisamente o que fornece a esse livro a sua máxima importância e a sua atualidade. O problema do conhecimento virá, em Lenine, a ser resolvido posteriormente numa conceção dialética melhor esclarecida (referir)

39. Sabemos que sem linguagem não há desenvolvimento intelectual da criança; com toda a segurança dizemos que o mesmo sucedeu com o primeiro homo sapiens sapiens que, por efeito de uma mutação, pôde pronunciar sons articulados a que deu um significado. As ideias não são apenas imagens, e estas não são cópias. Os empiristas do século XVIII mostraram sempre grandes dificuldades para explicar a formação de ideias a partir dos sentidos, questão que faz um dos propósitos da Crítica da Razão Pura, de Kant. Da perceção resultam imagens e “esquemas”, as ideias representam abstrações, generalizações. Mais tarde podemos, então, abstrair das coisas objetivas as suas propriedades essenciais. O convívio prático com outras pessoas constitui uma mediação fundamental para a formação das ideias. Os cegos e os surdos-mudos também pensam. O cérebro processa operações segundo regras e princípios (associações, regras lógico-dedutivas). É uma esfera com autonomia relativa que não independe da observação, assimilação, experiência sensorial e social, mas que se governa a si própria num diálogo com a realidade exterior. Dizemos: o pensamento é um produto do cérebro. É uma frase composta de palavras, noções ou conceitos abstratos. Traduzimos, por processos complexos, um facto objetivo. Sem o pensamento não poderíamos afirmar coisa alguma; sem o cérebro não poderíamos pensar. É neste quadro de identidades/diferenças (que já constituiu o mais profundo enigma), que o idealismo sempre se movimentou. Navegou ao sabor da ignorância dos processos reais, separando com uma parede o que está conectado entre si. Movimentou-se pelo interesse ideológico e prático que poderia extrair dessa ignorância e desse enigma. Na verdade, para compor o próprio problema compor palavras-conceitos, construir uma resposta dentre um reportório, desenvolver um discurso argumentativo coerente, necessitamos de um cérebro e de uma atmosfera cultural. A cada passo da mudança das práticas sociais, a cada passo da evolução das ciências, o idealismo perde um dedo ou um braço: o empirismo de Locke a Hume destronou a sustentação metafísica do racionalismo cartesiano; a Crítica de Kant fez oscilar até aos alicerces tanto o racionalismo puro (dogmático) como o puro empirismo; a dialética de Hegel, profundamente corrosiva de todos eles, mas também do materialismo metafísico, abriu brechas irreparáveis na Lógica convencional. No terreno, quem se digladia hoje são versões autocorrigidas de empirismo, positivismo, idealismo, etc. O próprio materialismo manteve-se imutável? Não. O materialismo histórico não se conserva intocável em recorte dogmático de um punhado de frases sagradas que traduziam, deve-se dizê-lo, um determinado período histórico (cultural, económico, político) e mental do seu autor. As experimentações políticas (revoluções e regimes reivindicando-se de comunistas) fracassadas, os sete fôlegos de que o capitalismo parecia estar dotado como os gatos, a evolução prodigiosa das ciências naturais, colocam enormes desafios. Porém, ao mesmo tempo que é necessário recompor, é fundamental reafirmar a vitalidade do materialismo dialético, porque a própria evolução das ciências vêm demonstrar o acerto dos seus enunciados estruturantes: a Contradição está no âmago da Matéria (Heráclito triunfou!), a dialética desordem/ordem, desorganização/organização, conexões e reciprocidade, saltos qualitativos e singularidades, certeza/incerteza, unidade/multiplicidade, enfim: um neocórtex que começa a revelar o segredo do pensar e um início do Universo que não lembra Deus de modo nenhum…O materialismo histórico vê reconfirmadas as suas descobertas: a economia (o modo de produção) como base estruturante das sociedades; as concomitantes lutas de classes…

40. O conhecimento objetivo não é um mero reflexo (simples, especular, ou cópia): é uma adequação por meios próprios aos fenómenos objetivos; uma reprodução através de representações formais – na criança: das mais concretas às mais abstratas – e discursos linguísticos. Pensamos com categorias que diversas sociedades –culturas-  criaram.  Interpretamos o mundo conforme modelos que aprendemos e que, de vez em quando, por força das contradições, oscilam e tombam.

41. Marx afirmou desde textos da juventude a anterioridade ontológica da natureza social do homem; o problema do conhecimento resolve-se a partir desta base, ou seja: somente depois (Teses contra Feuerbach, I e II); a anterioridade da natureza sobre a práxis (o trabalho), é afirmada em O Capital, Livro I, T.1 (o homem transforma em matérias-primas os recursos naturais.). Engels ocupar-se-á de explanar esta ontologia no Anti-Dühring e na Dialética da Natureza. A determinação do que é antecede a gnosiologia, fundamenta a solução do problema gnosiológico (a relação sujeito/objeto). A resposta ao problema do conhecimento é, portanto, subsequente.

42. Relativamente à teoria do conhecimento encontro em Marx duas posições: uma posição realista- ontológica que afirma sem equívocos a prioridade e objetividade da realidade independente do sujeito cognoscente; uma posição gnosiológica que afirma o carácter social do conhecimento e o trabalho como fator básico; dimensão gnosiológica intransitiva e transitiva respetivamente. Por conseguinte, a prática é a categoria geral para esta segunda dimensão. Os marxismos têm-se dividido entre aqueles que leem em Marx as duas dimensões e aqueles que somente querem ler a segunda. Julgo incorreta a segunda leitura. Abre o campo a um género de idealismo da práxis- ao perder a objetividade- e incorre em graves consequências na prática precisamente. Preocupados em desfazerem-se da metafísica, os “filósofos da práxis” amputam o materialismo histórico da sua base materialista (dialética). Tentando expulsar o positivismo deixam-no entrar pela porta dos fundos: a coisa-em-si inatingível.

43. O conhecimento desenvolveu-se quando o homem começou a produzir os seus meios de subsistência. O ato de produzir incorpora o conhecimento e desenvolve-o. Evolução concomitante: cérebro, atividade produtiva, conhecimento, aprendizagem, comunicação, comunidade. A estas inter-relações, a este encadeamento de causas-efeito-causa de novos efeitos, a este carácter processual dos fenómenos no qual os mais simples se organizam em sistemas mais complexos e que integra saltos qualitativos, chamamos dialética. A dialética não é um método formal criado pelo espírito pelo qual este se descobre a si mesmo na natureza (identidade idealista). A natureza é que descobre a si mesma nos produtos do cérebro. O idealismo separa o sujeito do objeto, a consciência e o mundo, quando do que se trata é de unidade. Os dois lados da mesma moeda. O idealismo (nomeadamente o subjetivo) ao proceder assim (com cortes) apenas demonstra que os dois lados podem contradizer-se. Há diferenças reais, mas a contradição em que assenta o método metafísico é falsa.

44. O que sempre faltou à Filosofia (tanto idealista como materialista) foi compreender (descobrir, verificar empiricamente, teorizar) que tudo que existe possui uma história. Desde a mais bruta rocha até à mais pura das ideias. Este novo paradigma (novo “continente”) deve-se a Marx e a Engels. A história concreta e material das sociedades humanas (Marx), a história dos fenómenos naturais (Engels). No primeiro caso nunca, em tempo algum, se explicara a história nesses termos (formação e desenvolvimento de diferentes modos de produção com incidência decisiva sobre as ideias políticas, morais, religiosas). A revolução marxiana é comparável à revolução galilaica: esta fundou a ciência tout court, a de Marx – a dialeticidade da história- penetrou e fecundou todas ciências e saberes, quer os seus filósofos o queiram ou não. Para demonstrar que a ideia de história se aplica também à natureza, Engels serviu-se dos dados das ciências. Qualquer ciência particular da natureza (Física, Biologia, Geologia, etc.) trabalha sobre essa base inquestionável.  

 

45. O primeiro postulado filosófico da Dialética começa por constatar que nada permanece o que é. O que é já foi outra coisa e outra coisa virá a ser. Quem diz dialética diz movimento, mudança. Por conseguinte, colocar-se do ponto de vista da dialética significa colocar-se no ponto de vista do movimento, da mudança. Quando quisermos estudar as coisas segundo a dialética, iremos estudá-las nos seus movimentos (quânticos, mecânicos, químicos, biológicos, sociais), conexões e contradições, que fazem a mudança. Considerar as coisas do ponto de vista dialético é considerar cada coisa como provisória, como tendo uma história no passado e devendo ter outra no futuro, tendo um começo e devendo ter um fim. Portanto, colocar-se do ponto de vista dialético é considerar que nada é eterno, salvo a mudança. É considerar que nenhuma coisa particular pode ser eterna, senão o devir. O processo. Quem diz dialética não diz apenas movimento, transformação, mas autodinamismo, transformação operada por forças internas. Pois nem todo movimento é dialético. Este é o primeiro postulado. O segundo postulado afirma a ação recíproca dos fenómenos. O encadeamento dos processos. Ao contrário da metafísica, a dialética não considera as coisas na qualidade de objetos fixos, acabados, mas enquanto movimentos.

1. Práxis no sentido atribuído por Marx é a atividade universal, criadora e auto-criadora por meio da qual o homem transforma o mundo, transformando-se por ela a si mesmo. O “mundo” neste enunciado é necessária e logicamente a natureza (meio ambiente) e a sociedade que sobre ela e com ela erigiu, produzindo e reproduzindo os seus meios de vida. Atividades industriosas (no sentido amplo) e políticas. Desde a juventude Marx enfatiza a ação: a crítica da filosofia especulativa assenta na categoria da práxis. Marx não exclui expressamente a teoria relativamente à práxis. Com a teoria (previsão, planeamento) o homem transforma os meios e os fins materiais; as ideias convertem-se em força material quando assimiladas pelas massas. Engels desenvolve o valor fundamental da ciência para a atividade produtiva. A práxis tal como a definiu Marx, foi, e é, um conceito revolucionário para as ciências sociais. Toda a variegada filosofia marxista apoia-se nele para interpretar os poderes transformadores do homem no decorrer da sua história desde os primeiros artefactos que fabricou. O conceito abrange, evidentemente, as lutas de classes; por conseguinte, as lutas revolucionárias das massas trabalhadoras. Por causa dele os marxismos dividiram-se conforme a posição que lhe conferiram na teoria de Marx: a práxis com valor ontológico, excluindo o materialismo dialético e, em alguns casos, o próprio materialismo histórico; com restrito valor gnosiológico, atribuindo-se à Matéria, isto é, à unidade material do mundo, o valor ontológico – a teoria de Marx será, neste sentido, o materialismo dialético mais o materialismo histórico. É esta posição que adoto, por considerar que a práxis pressupõe uma ontologia materialista dialética. O pressuposto epistemológico: a realidade objetiva e não o trabalho. Alguns filósofos marxistas entendem que a práxis se reduz ao trabalho. Entendo que não: práxis é mais do que o trabalho (produtivo, quero dizer), embora este constitua o elemento fundamental. Práxis é todo o conjunto das atividades humanas (sempre sociais, obviamente) de que não se excluem as designadas “imateriais”, isto é, de modo geral, a Cultura (os ritos e hábitos de vida associados ao trabalho não são práticas sociais?).

Ainda o materialismo

 

 O materialismo é uma posição filosófica que investiga a origem das coisas, da vida, do espírito. Na relação sujeito/objeto é este que ele considera determinante. O denominador comum, desde os inícios, é a crença de que tudo é composto de elementos materiais. Na terminologia filosófica o Ser (classificado por vezes como Substância – neste caso Substância única e Una -) é anterior cronologicamente e determina gnosiologicamente o pensamento. Os materialismos antigo e moderno, mas anteriores a Marx, não reconheciam o papel ativo do sujeito no processo do conhecimento e o papel da práxis. Estes dois aspetos são fundamentais para distinguir os materialismos.  O materialismo é uma corrente filosófica e não uma ciência particular. O conceito de “Matéria” é uma abstração; enuncia uma afirmação existencial que se refere e engloba os múltiplos movimentos, as múltiplas interações e transformações da energia (com ou sem massa), incluindo a “energia escura” sobre a qual se especula. Materialismos diversos tomaram posições erradamente deterministas e mecanicistas; o materialismo de Marx-Engels não é determinista e mecanicista. O materialismo já foi metafísico (século XVIII), não o é com Marx e Engels.  Na noção de matéria abstraímos das diferenças qualitativas. Por isso, quando falamos destas, devemos utilizar a expressão “materialidade”. A unidade do mundo é a sua materialidade. A partir destes enunciados afirmamos que o ser (ontos) de tudo que sabemos existir e do que existirá e não sabemos (dedução lógico-filosófica) é Matéria (ou Natureza) e, portanto, não um Espírito (qualquer que seja a sua forma, desde que seja independente ou transcendente ou criador da Matéria). Os seres humanos criam objetos materiais e imateriais, porém a partir de matérias (coisas e forças naturais), não criam nem a Matéria, nem a materialidade do universo, como é evidente; a realidade, no seu ontos ou substância, não é uma criação da mente; as leis da natureza, se fossem criação subjetiva não teriam servido para nada; com isso, não se ignora nem se subestima o papel ativo da mente que descobre e conceptualiza as propriedades, quantitativas e qualitativas, da natureza; nesse sentido, a realidade é constituída por aquilo que a mente conhece que nos fornecem um quadro completamente materialista. Portanto, somos materialistas (em filosofia) por razões científicas. O idealismo entra em contradições e becos sem saída, problemas mal formulados que o materialismo resolve por eliminação progressiva. O idealismo é uma racionalização das crenças sobre a imortalidade e independência do espírito (há no idealismo uma superstição – um pré-conceito - que resiste). Da ontologia materialista decorre uma teoria do conhecimento que afirma que as ideias não possuem uma autonomia absoluta em relação aos sistema nervoso e às práticas sociais. As funções mentais, são funções da matéria). Pensar é uma função desempenhada pelo cérebro (mesmo que ele seja artificial). A destruição de alguma parte do cérebro deixa-nos sem faculdades mentais ou sem vida. O que tem o idealismo a contrariar estes simples factos? Dos instintos – reflexos inatos- e dos reflexos condicionados determinados animais evoluíram para a capacidade de elaborarem operações mentais cada vez mais abstratas. Das sensações para operações racionais. O animal tornou-se capaz de criar espectativas e aprender pela experiência. A tomada de consciência do seu próprio corpo (ou o corpo tomando consciência de si) e a consciência do meio envolvente traduziu-se na diferença entre o subjetivo e o objetivo. Os processos da consciência são processos através dos quais nos relacionamos com os nossos semelhantes (em que a linguagem desempenha um papel fundamental) e com a generalidade do mundo exterior. Construímos relações sociais – grupais e intergrupais- cada vez mais complexas que nos tornaram cada vez mais inteligentes, autoconscientes e produtores de novos modos de viver e agir.

O Ser (Natureza) é cognoscível, não porque seja expressão da Consciência que o conhece, mas porque esta é expressão do que conhece.

O trabalho é o ser social do homem. Basicamente relação da espécie humana com o meio ambiente. Desvincular o trabalho –ser social do homem- da origem biológica física, química) não faz sentido, a espécie humana é uma matéria orgânica, animalidade, que inventou o trabalho como adaptação.

O problema fundamental da filosofia só tem sentido na argumentação filosófica. Por isso muitos a desdenham. Porém, ela é fundamental, desde que encarada no estrito âmbito da filosofia. Isto é, a relação do ser e do pensar, em que ao primeiro cabe a primazia. Nasceu porque existiam e existem idealistas que a negam com velhos argumentos remendados, que apenas denotam recuos, ou perplexidades perante novas descobertas científicas de fenómenos desconhecidos. Mas os idealistas têm uma coisa em comum: a crença na impossibilidade de conhecer a coisa-em-si (portanto, não a sabem determinar). O que é uma cegueira e, hoje, uma idiotice. Quando é religiosa, é uma artimanha. A prática é a melhor prova e a ciência uma prova maior. Enquanto Hume declarava incognoscível a coisa-em-si, fora das suas perceções (a que tudo reduzia) os cientistas demonstravam, pela prática, as propriedades da matéria…As filosofias idealistas estiveram sempre em contradição com o materialismo espontâneo das ciências. Se então a ciência servia os fins do capitalismo por que razão os filósofos a contradiziam? Esta é a pergunta que merece uma explicação.

O Manifesto Comunista expõe na sua síntese admirável as linhas fundamentais dos progressos induzidos pela burguesia e pelo capitalismo, ao mesmo tempo o seu egoísmo como classe social, a sua crueldade, cinismo, instrumentalização dos belos ideais com que a representaram os fundadores do liberalismo. Os seus autores (Foi Marx que o redigiu e, julgamos, apressadamente) amadureceram a teoria económica que lhe estava subjacente, mas nunca renegaram essas páginas. Portanto, a análise crítica dos períodos de formação do capitalismo (cujo traçado abreviado mas com grande estilo já se encontra no Manifesto) não deve omitir a dialética com que foi interpretado. Os progressos resultaram em benefício exclusivo da burguesia? Não. No seu benefício principal mas não exclusivo. Conquistas civilizacionais, que propiciaram o desenvolvimento do proletariado e até por vezes devido às suas lutas. Os progressos não resultaram apenas das lutas e interesses das classes dominantes: resultaram amiúde de lutas e contradições internas das formações sociais e das classes em ascensão ou desejosas de emancipação (aplica-se na Roma Antiga, no termo da Idade Média, na sociedade capitalista desenvolvida). O Progresso não deve ser encarado abstratamente, e conforme critérios subjetivos, de nacionalidade, eurocêntricos. Nem conforme exclusivamente critérios positivistas que enfatizam a tecnociência. É descontínuo. O proletariado não beneficia com as ditaduras e as barbáries. O Manifesto é muito claro nisso.

Segundo alguns filósofos contemporâneos o problema materialismo versus idealismo já não faz sentido. O argumento é frágil: assenta na equivocidade do termo matéria. Ora, poder-se-ia eventualmente escolher outro termo (mas não se deve) atribuindo-lhe o mesmo significado: Energia, por exemplo, que o problema não se eliminaria. Porque o que está no problema é a interrogação fundamental e primeira que distingue a filosofia de uma qualquer ciência particular e que já o homem de mentalidade totémica e mitológica colocava: qual destas duas realidades é anterior e causante: a natureza ou o meu pensamento?

Quando dizemos que o ser e o pensamento são idênticos não dizemos que são duas realidades. Identidade ontológica: o ser (ou a substância) coincide consigo próprio. O materialismo é um monismo. O pensamento difere da phisis, mas é esta que lhe confere realidade. Identidade não abstrata (seria vazia), mas concreta, que alberga profundas diferenças e contradições. Qual a relação entre ser e pensamento? De diferença, não de identidade. Entre um átomo e o nosso corpo há uma profunda diferença; porém, sem uma determinada estrutura atómica não existiríamos (nem corpo físico, nem pensamento).

 

 O materialismo é uma posição filosófica que investiga a origem (o elemento natural originário) das coisas, da vida e do espírito. O denominador comum, desde os inícios, é a crença de que tudo é matéria (natureza) ou dela dependente. Na terminologia filosófica o Ser (classificado por vezes como Substância, única e una) é anterior ao pensamento e determina-o (os idealistas Platão e Aristóteles admitiam a existência da matéria, porém esta era secundária, inerte e informe). Os materialismos - antigo e moderno -, anteriores a Marx, não reconheciam o papel ativo do sujeito no processo do conhecimento e o papel da práxis. Estes dois aspetos são fundamentais para distinguir os materialismos. O materialismo é uma corrente filosófica e não uma ciência particular. O conceito de “Matéria” é uma abstração; enuncia uma afirmação existencial que se refere a, e engloba, os múltiplos movimentos, as múltiplas interações e transformações da energia (com ou sem massa), incluindo a “energia escura” sobre a qual se especula. Materialismos diversos tomaram posições erradamente deterministas e mecanicistas; o materialismo de Marx-Engels não é determinista e mecanicista. O materialismo foi, portanto, metafísico (e sê-lo-á ainda algum), não o é, porém, com Marx e Engels. Na noção de matéria abstraímos das diferenças qualitativas. Por isso, quando falamos destas, devemos utilizar a expressão “materialidade”. A unidade do mundo é a sua materialidade. A partir destes enunciados podemos afirmar com certeza que o ser (ontos) de tudo que existe é Matéria. Os seres humanos criam formas e ideias, mas não criam a materialidade do universo, como é evidente; a realidade, na sua essência ou substância, não é uma criação da mente; as leis da natureza, se fossem criação subjetiva não teriam servido para nada. O idealismo entra em contradições e becos sem saída, problemas mal formulados que o materialismo, com a ajuda da ciência e da práxis, resolve por eliminação progressiva. Contudo, não os elimina da discussão filosófica e das crenças. O idealismo é uma racionalização das crenças sobre a imortalidade e independência do espírito (há no idealismo uma superstição – um pré-conceito - que resiste). Da ontologia materialista decorre uma teoria do conhecimento que afirma que as ideias não possuem uma autonomia absoluta em relação aos sistema nervoso e às práticas sociais. O espírito é uma função do cérebro. A destruição de alguma parte deste deixa-nos sem faculdades mentais ou sem vida. O que tem o idealismo a contrariar estes simples factos? Dos instintos – reflexos inatos- e dos reflexos condicionados determinados animais evoluíram para a capacidade de elaborarem operações mentais cada vez mais abstratas. Das sensações para operações racionais. O animal tornou-se capaz de criar espectativas e aprender pela experiência. A tomada de consciência do seu próprio corpo (ou o corpo tomando consciência de si) e a consciência do meio envolvente traduziu-se na diferença entre o subjetivo e o objetivo. Os processos da consciência são processos através dos quais nos relacionamos com os nossos semelhantes (em que a linguagem desempenha um papel fundamental) e com a generalidade do mundo exterior. Construímos relações sociais – grupais e intergrupais- cada vez mais complexas que nos tornaram cada vez mais sociais e autoconscientes. O Ser (Natureza) é cognoscível, não porque seja expressão da Consciência que o conhece, mas porque esta é expressão do que conhece.

O problema fundamental da filosofia - a relação do ser e do pensar - só tem sentido na argumentação filosófica. É isso que algumas correntes filosóficas não compreendem e não aceitam. Porém, não o conseguirão descartar, porque ela é o começo e o resultado do filosofar. Os idealistas têm uma coisa em comum: consideram impossível conhecer a coisa-em-si. O mesmo é dizer: sem o pensamento não sabemos o que seja a matéria. Que significa no fim de contas esta atitude? Significa que o pensar é estruturalmente diferente da matéria, de algum modo independente dela, é ele que determina as suas propriedades. Ora, já o dissemos: o senso comum, as práticas humanas, a ciência, demonstram que o pensamento é que é uma propriedade da matéria. O que afirma hoje a ciência? Que somos feitos de átomos. Somos feitos do “pó das estrelas”, literalmente. Enquanto David Hume declarava incognoscível a coisa-em-si, fora das suas perceções (a que tudo reduzia) os cientistas descobriam propriedades objetivas da matéria…As filosofias idealistas estão sempre em contradição com o materialismo espontâneo das ciências. Por que razão? Se a ciência tem servido as finalidades do capitalismo por que razão os idealistas a contradizem? Esta é a pergunta que merece uma explicação. O idealismo, enquanto místico e mistificante, resulta falso; todavia, contém um conteúdo real. Reflete as contradições objetivas, as divisões e conflitos da vida social.

 

 

 

 “A burguesia não pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produção, por conseguinte todas as relações sociais.”  

O Manifesto Comunista  expõe na sua síntese admirável as linhas fundamentais dos progressos induzidos pela burguesia e pelo capitalismo, ao mesmo tempo o seu egoísmo como classe social, a sua crueldade, cinismo, instrumentalização dos belos ideais com que a representaram os fundadores do liberalismo. Os seus autores amadureceram a teoria económica que lhe estava subjacente, mas nunca renegaram essas páginas. O capital, de Marx, é precisamente a crítica da economia política liberal. Portanto, a análise crítica dos períodos de formação do capitalismo (cujo traçado abreviado mas com grande estilo já se encontra no Manifesto) não deve omitir a dialética com que foi interpretado. Os progressos resultaram em benefício exclusivo da burguesia? Não. No seu benefício principal mas não exclusivo. Conquistas civilizacionais, que propiciaram o desenvolvimento do proletariado e até por vezes devido às suas lutas. Os progressos não resultaram apenas das lutas e interesses das classes dominantes: resultaram amiúde de lutas e contradições internas das formações sociais e das classes em ascensão ou desejosas de emancipação (aplica-se na Roma Antiga, no termo da Idade Média, na sociedade capitalista desenvolvida). O Progresso não deve ser encarado abstratamente, e conforme critérios subjetivos, de nacionalidade, eurocêntricos. Nem conforme exclusivamente critérios positivistas que enfatizam a tecnociência. O critério principal com que se deve interpretar a evolução humana é este: no traçado sinuoso desta o progresso é aquela parte que beneficiou a humanidade. Saber distingui-la da barbárie que o acompanha e por vezes o impele, saber e poder abrir amplas avenidas para que ela se aprofunde e estenda a todo o planeta.

A crítica das filosofias idealistas não se traduz automaticamente na crítica das condutas morais dos indivíduos que as professam. Inclusivamente nem sempre nas lutas políticas. As relações pessoais e as convergências políticas não se organizam conforme o critério da identidade absoluta na interpretação do mundo e da vida. Se o confronto ideológico-político equivalesse ao confronto filosófico, este não era necessário. Não podemos almejar que um dia todos os seres humanos adotem a filosofia materialista no seu viver pessoal, muito embora até tempos não muito longínquos todos, ou quase todos, houvessem sido idealistas.

Porque julgamos nós que a crítica das posições filosóficas idealistas é de decisiva importância no terreno das ideias? Em primeiro lugar, porque somos, nós, os materialistas, alvo de ataques permanentes das classes sociais reacionárias e das igrejas suas aliadas, revelando assim que as conceções materialistas do mundo e da vida incomodam as ideologias políticas que bloqueiam a emancipação humana; em segundo lugar, porque determinadas crenças idealistas obstaculizam o progresso das ciências, da ética e, como o demonstra a História, a condução correta da luta política.

A espécie humana, pelas suas caraterísticas cerebrais e sociais, produziu desde os seus alvores mundos paralelos ilusórios, crenças messiânicas e utopias, que tanto serviram para exorcizarem medos e se erguerem de pé contra os poderes que os oprimem, como para viver de joelhos voluntariamente submissos na segurança aparente das “cavernas”. Esta constatação, e a crítica respetiva, chama-se Filosofia, e leva já dois mil e quinhentos anos.

O projeto emancipatório da Modernidade continha tanto um programa exclusivamente de emancipação da Burguesia, como reivindicações que há muito e em muito a ultrapassam, que ela abandonou ou que nem sequer alguma vez abraçou.

NOZES PIRES

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