quarta-feira, 9 de maio de 2018


As sociedades opacas e a liberdade de expressão.

1.      Das sociedades abertas às sociedades opacas.

O pós-modernismo de Lyotard, Lipovetsky e Vattimo apresentava um novo horizonte ontológico. Do panopticon de Bentham e da previsibilidade gnoseológica inerente à noção de Física Social assim como uma sociedade Orwelliana, transitou-se para a sociedade aberta. A pulverização das personalidades, a glorificação dos projectos individuais, lugares comuns da narrativa dos anos 80 e 90, promoveram uma sociedade permissiva e uma adaptação das instituições ao indivíduo.
Como bem disse António Guerreiro, Umberto Eco morreu e com ele parece ter terminado a terminologia pós-moderna. Possivelmente que não passou disso mesmo, de uma terminologia. Apesar de marcas predominantes de um estilo de vida, podemos designar o pós-modernismo como uma mera tendência. Se a sua principal força residiu na projecção do individual, foi nesta onde se encontrou a sua principal fraqueza, chegando-se a apelidar a época como um espécie de neo-individualismo. O enfoque exclusivo na liberdade e projecto pessoal promoveu o seu contrário, começando a surgir nas manifestações culturais, preâmbulos de uma nova ordem. Com a sua característica antecipatória, nos finais dos anos 90, começaram a surgir na 7ª arte tópicos que promoviam uma ontologia diferente. Assistiu-se a uma recuperação do génio maligno que Descartes: Matrix exemplificava bem essa matriz revolucionária assim como ao EXistenZ de Cronenberg transparecia uma espécie de monismo ôntico, sem se saber onde acaba a realidade e começa o jogo. É o preâmbulo da sociedade da suspeita pelo óbvio ocultismo do poder.
A este propósito, Daniel Innerarity em A Sociedade Invisíve[1]l, promove a ideia de uma ocultação da realidade, atribuindo-lhe a designação de Sociedade Invisível. O núcleo central das sociedades atuais está presente na falta de distinção entre ver e compreender. Ver é compreender, compreender é ver. A casa do ser está por esse motivo oculta pela própria superficialidade da imagem e do consequente afastamento da complexidade. A globalização descoordenou a possibilidade lógica da justificação, apresentando uma continuidade de desculpas. Diz Innerarity[2] que das desculpas estão ausentes os instrumentos da justificação: não há relações causais, deduções ou silogismos, mas apenas manejos oportunistas da atenção que não exigem esforço intelectual. Os OVNIS foram substituídos pelos OPNIS[3] (objectos políticos não identificados), organizações sem território, mecanismos financeiros sem dono, corpos económicos que se manifestam sem se conseguir vislumbrar causas e consequências, nem impor qualquer análise silogística. Vivemos tempos pouco propícios para a aceitabilidade da hermenêutica filosófica e, simultaneamente, nunca houve época tão interessante para o olhar perscrutador da filosofia. Como afirmou Antero, a filosofia é uma acto limitado e uma potência infinita.
Entendo a filosofia como forma de suspeita que se torna protesto. Contudo, as formas de protesto ganharam contornos muito próprios. A saída da filosofia da Ágora comportou um risco enorme para o protesto porque, de um domínio da palavra tornou-se um domínio da imagem, espaço físico e internáutico. Nas últimas décadas assistiu-se a uma tentativa de simbiose entre o protesto de rua e as convocatórias facebookianas, o que promoveu um protesto difuso e próprio do mainstream. O excessivo protesto mata o protesto, por outras palavras, as excessivas manifestações tornam a manifestação normal, a crítica cultural torna-se aceite pelo poder difuso. Se antes o poder havia sido medido pela capacidade de ser visto e de não ver, atualmente todos parecem ter essa oportunidade. As redes sociais potenciaram a possibilidade de todos serem vistos mas também de não verem, dando uma sensação, e não passa disso mesmo, de poder. Por tal motivo, a trivialidade está na ausência de trivialidade, as provocações são vulgares deixando de o ser. O que é o ortodoxo e o heterodoxo, atualmente? Mesmo as mais virtuosas transgressões são acolhidas pela cultura dominante. Como diz Innerarity, O underground foi introduzido no mainstream em virtude da ausência de blocos explicativos. As sociedades atuais funcionam como uma rede que. por isso mesmo, também é uma trama. Qual a saída, se é que a queremos?
2.      Do agir comunicacional
À opacidade comunicativa da actual sociedade, autorizada de forma não intencional pela democracia representativa que promove uma certa apatia e desdém pela política por parte de um espectro considerável da sociedade, Habermas propõe uma democracia deliberativa ou discursiva. A democracia tradicional foi abalada pela agregação de preferências e negociação de interesses individuais e a base deste acordo está no símile do mercado que reduz o debate a uma panóplia que faz confluir na avaliação entre as partes a congruência de interesses privados. Para Habermas, «a política é o meio pelo qual os cidadãos se tornam simultaneamente conscientes da sua dependência mútua e do estabelecimento de relações recíprocas, não se orientando apenas para a competência mas para o diálogo e o entendimento.» Esta noção, apesar de não ser nova – Péricles ou Locke já haviam formulado curiosas incursões a esta forma política – encaminha-se para territórios onde a linguagem ocupa uma posição decisória. Substituindo o «eu transcendental» kantiano pelo «eu linguístico» das teorias da ação, Habermas propõe uma racionalidade do agir comunicacional cujo telos será uma crítica da razão para a formação do consenso numa comunidade real de comunicação[4]. Os designados atos de fala de Searle que, por sua vez, são baseados nos atos locutórios, ilocutórios e perlocutórios de Austin, são o leit motiv da teoria da ação de Habermas. Não pretendemos aqui encetar qualquer estudo aprofundado de uma teoria pragmática da linguagem, antes salientar o cuidado que devemos ter na construção de qualquer teoria à volta da política. Só será possível qualquer escopo se a considerarmos como um produto da linguagem e da comunicação.
Habermas versa sobre as condições de possibilidade da comunicação[5]. Para tal classifica os atos ilocutórios de acordo com a sua força: constativos, expressivos e regulativos. A cada um deles, faz corresponder a concepção dos três mundos de Popper, mundo 1, mundo 2 e mundo 3, respectivamente. A cada um desses mundos corresponde a ação teleológica, dramatúrgica e comunicativa. A ação teleológica desenvolve a estratégia em consonância com o propósito que é a verdade, a segunda desenvolve-se de acordo com a veracidade e a última com a retidão. O que se pretende é um entendimento intersubjectivo para o qual é fundamental o desenvolvimento da comunicação dialógica sem coacção nem dominação da parte de um falante relativamente a um ouvinte.
3.      A política como projecto inacabado.
Como já fora focado, a política é essencialmente comunicação, procurando consensos. Por tal motivo, a democracia deliberativa parece concorrer melhor para esta noção de política. Efetivamente, a democracia deliberativa assenta sobre quatro pressupostos:
 A) a justificação das propostas apresentadas;
B) estas razões devem ser acessíveis a todos os cidadãos interessados (que possa ser entendível pelos cidadãos);
C) é um processo dinâmico (o sua justificação não é eterna);
D) visa tomar uma decisão que seja vinculativa num certo período de tempo.
E os seus principais objectivos são:
A) Visar a melhoria da qualidade das decisões colectivas.
B) Almejar o escopo de uma cidadania participativa.
C) Projectar-se na busca colectiva da melhor proposta para todos.
O processe democrático enceta, assim, uma rede de discursos a partir da ideia do que queremos ser colectivamente, negociações, promessas e compromissos, estabelecendo critérios de validade dos discursos.
4. O problema da liberdade de expressão
A democracia discursiva não só se constrói a partir da livre expressão como a exige. Atualmente, por variadíssimos factores têm surgido muitas posições, também elas livres, acerca da liberdade de expressão. Se parece ser de uma existência indelével, também é verdade que a sociedade opaca produz formas de censura subtis que, apesar de não ser uma censura física como acontecia nas instituições existentes em países totalitários, não deixa de ser censura, quer por ocultação quer, como exemplificámos, por estratégias perfeitamente intencionais. Portanto, a reflexão à volta do conceito é urgente não apenas quando surgem atentados à livre opinião vindas de credos estranhos à cultura dominante mas também dentro dessa mesma cultura, mais meandrosos.
Conhecemos as teses fundamentais de Mill acerca da liberdade de expressão em Sobre a Liberdade que se resumem da seguinte forma[6]:
a.       O argumento da infalibilidade: Todas as crenças são potenciais erros tal como podem ser potenciais verdades. O que é certo é que a certeza não significa verdade. Até há pouco tempo havia a certeza de que as mulheres não deviam possuir os mesmos direitos dos homens, o que não corresponde à verdade. Foi a liberdade de expressão que alterou este estado de coisas.
b.      O argumento do dogma morto: Quem possuir uma crença deve ser capaz de a tentar refutar, descobrindo objecções Uma tese que considere a possibilidade de se tornar viva, dignifica-se e justifica-se. Ganha valor. Afirma Mill: «O mal peculiar de silenciar a expressão de uma opinião é que isso constitui um roubo à humanidade – aos que discordam da opinião, mais ainda aos que a defendem.» Para Mill, há um ganho cognitivo indesmentível.
c.       O argumento da verdade parcial: Mesmo nas posições falsas pode haver elementos verdadeiros
Ressalvando a ideia de que Mill se coloca numa posição em que o contexto argumentativo seria o ideal, onde houve uma troca de ideias de um modo essencialmente racional, Mill apresenta argumentos muito válidos relativamente à liberdade de expressão e à própria ideia de democracia. Esta forma política tem o seu fundamento na constatação da enorme possibilidade de qualquer um de nós estar errado, assim, como qualquer instituição que exerça o poder, como é de fácil constatação. Contudo, o desenvolvimento e o surgimento das redes sociais assim como a possibilidade de todos, sem exceção, poderem dar a sua opinião noutras plataformas existentes, configurou uma nova realidade. Se anteriormente todos se aborreciam pelo facto do seu diário ter sido violado, actualmente todos querem partilhar esse diário, o que motiva interrogações, dúvidas e perplexidades. Apesar de tudo, os tempos são exigentes, o esforço intelectual é maior porque o escrutínio democrático está mais presente e é constante; as formas de comunicação possuem cada vez mais subtilezas e opacidades o que pode promover uma reflexão acerca dos limites que por vezes somos tentados impor a este novo mundo. Quem é capaz de os impor? Quem é capaz de delimitar as fronteiras da livre expressão? Convenhamos que a internet não modifica a natureza humana, pode sim amplificá-la. Tal como Mill afirmou, devemos ter a liberdade de errar, embora seja conveniente que as pessoas possuam essa mesma consciência, caso contrário somos levados a dizer que também devemos defender a liberdade de não se exprimirem.
Sejamos optimistas: Eis um tempo propício para a intelectualidade.

António Daniel Fernandes Pereira da Costa
Mafra, 9 de abril de 2016


[1] Innerarity, Daniel, A sociedade Invisível, trad. Manuel Ruas, Teorema, Lisboa, 2009.
[2] Ibidem, pág. 59 e ss.
[3] Ibidem, pág 52.
[4] Acílio Estanqueiro Rocha, «Democracia Deliberativa», in Manual de Filosofia Política, organizador João Cardoso Rosas, Almedina, Coimbra, 2008
[5] Ibidem, pág130 e ss.
[6] Nigel Warburton, Sobre a Liberdade, Filosofia Aberta, Gradiva, 2015.