quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

COMUNICAÇÃO DE SARA GONÇALVES (U. Minho)



Encontros com a Filosofia – “Progresso ou Barbárie?”
“Sobre a relação entre a moral e a arte cinematográfica: três perspetivas”
23 de janeiro de 2015 - Rua do Campo, 2565-770 Turcifal, Torres Vedras



Uma vez que estamos a trabalhar no projeto de doutoramento intitulado Filosofia e Cinema: Uma interseção entre a Estética e a Moralidade do Filme - financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) -, pensámos que seria frutífero discutir convosco três perspetivas distintas sobre a relação entre a estética e a moralidade de uma obra cinematográfica. No decorrer da discussão, tentaremos também mostrar se debater filmes atentando na perspetiva moral dos mesmos é sinal de progresso científico, ou se, pelo contrário, estamos a inferiorizar a sétima arte, cometendo uma espécie de ato bárbaro. Perguntar-nos-emos ainda, no decorrer da comunicação, sobre quais os efeitos que determinados atos considerados imorais têm ou poderão ter na nossa perceção estética do filme.


Sobre a relação arte-moral

Se existe arte que nasceu e cresceu graças à tecnologia (note-se que o desenvolvimento tecnológico é um assunto que está na ordem do dia para muitos filósofos que se preocupam, essencialmente, com o seu imperialismo) foi a arte cinematográfica. Podemos situar o seu nascimento nos finais do século XIX / inícios do século XX: Thomas Edison (1847-1931), famoso empresário americano responsável pelo desenvolvimento de alguns dos mais famosos dispositivos industriais – como a lâmpada incadescente ou o fonógrafo -, permitiu a criação do cinetoscópio. Apesar de só ter sido patenteado em 1891, foi em 1889 que o assistente de Edison, William Dickson, inventou o aparelho. Publicitado pela primeira vez em 1893, o cinetoscópio foi o precursor de todos os aparelhos de filmar que apareceram posteriormente. Apresentado em Paris, em 1894, despertou a atenção de Louis e Auguste Lumière. Os dois irmãos franceses começaram então a trabalhar numa máquina que conseguisse rivalizar com o instrumento de Edison. Foi assim que nasceu o cinematógrafo, inicialmente uma combinação de projetor e câmera, patenteado a 13 de fevereiro de 1895.
Ora, dada a importância que tem vindo a adquirir na vida das pessoas, acreditamos que o cinema, com as suas múltiplas formas imaginativas e os seus conteúdos realistas e irrealistas, é uma área particularmente promissora no confronto entre estética e moral.
Note-se que a relação entre a arte e a moral não é um tema novo; é, aliás, um assunto sobre o qual a filosofia se debruça pelo menos desde a Antiguidade Grega. Já Platão e Aristóteles centraram-se no efeito moral que as obras de arte, nomeadamente a poesia e a tragédia, poderiam provocar no público. Se o autor da obra A República acreditava que a poesia afastava os seres humanos do ideal de racionalidade e da Ideia do Bem em si, o peripatético advogava que a arte da tragédia poderia ser uma espécie de ‘ginásio emocional’ onde, os espectadores, ao reverem-se nas personagens, poderiam retirar do drama alguns ensinamentos morais que os auxiliariam a viver o dia-a-dia.
Não obstante, a partir de David Hume e do seu escrito “Do Padrão do Gosto”, vários filósofos começaram a debruçar-se mais especificamente numa dimensão que está, atualmente, bastante presente no pensar sobre a arte - o efeito que os valores éticos poderão ter sobre o valor estético de uma obra.
A verdade é que os debates existentes até agora sobre o assunto supra mencionado têm-se focado predominantemente no conceito geral de ‘arte’. Desde logo, filósofos contemporâneos que refletem sobre as implicações morais das obras de arte admitem que ainda sabemos muito pouco ou até quase nada sobre o assunto. Noël Carroll ou Jerrold Levinson, por exemplo, têm vindo a fazer um esforço para perceber se uma falha ética de um objeto artístico constitui, necessariamente, um defeito estético.
O nosso objetivo é vincular a discussão anterior ao cinema, tentando perceber se, nos filmes, podemos encarar a estética e a moral como esferas independentes. Para isso, é necessário falar de três perspetivas distintas: o autonomismo estético, o eticismo e o imoralismo. Urge, pois, perguntar: será que a estética e a moralidade de uma obra cinematográfica constituem esferas autónomas?; será que um filme com falhas morais é uma obra de arte esteticamente má?; ou será que os aspetos imorais presentes no cinema intensificam a relação que estabelecemos com essa arte?


Autonomismo

O autonomismo estético defende o chamado ‘ideal de arte pela arte’, sustentando que a arte deve ser distinta de quaisquer outras esferas e que o seu valor estético não pode ser medido em função dos seus conteúdos morais ou políticos. Para os autonomistas, nem toda a arte possui um dimensão moral (veja-se o caso da pintura abstrata). Em resultado disso, não podemos avaliar o valor artístico de uma obra atendendo à sua dimensão moral, pois, para tal, essa mesma dimensão teria de ser algo comum a todas as obras. Mas importa perguntar: haverá algum filme que nos consiga desligar daquilo a que chamamos ‘dimensão moral’? Vejamos o exemplo de Lost Highway (Estrada Perdida, em português), de 1997. Esta obra de David Lynch é particularmente difícil de entender, desde logo, porque, como afirma um crítico do ImDb, “the film exists in it's own queer dimension” (tmensamaster-2, 2002). Resumidamente, o filme conta a história de um saxofonista de jazz chamado ‘Fred’ que é acusado de ter assassinado a sua esposa, sendo, por isso, preso. Na prisão, o músico começa a ter visões de um ‘Homem Misterioso’, com quem já tinha tido contacto, anteriormente, e transforma-se em ‘Pete’, um mecânico. No entanto, com o decorrer da trama, acaba por ser ‘Fred’ outra vez... O que Lynch faz é contar-nos a história de  um assassino esquizofrénico, num ambiente irrealista e ameaçador que em momento algum é questionado, o que nos faz pensar na obra como amoral. Mas será mesmo assim?
Prosseguindo com a apresentação da perspetiva autonomista, há que esclarecer que os defensores desta também consideram que é errado pensar que a arte pode funcionar como veículo de educação moral. Mesmo acreditando que existem obras que contêm em si determinadas mensagens, há que admitir que é risível pensarmos que essas mesmas mensagens são, de alguma forma, novas, ainda não apreendidas pelo público.
Para um autonomista, nem a arte cinematográfica nem qualquer outra arte podem ser consideradas instrumentos ao serviço da moralidade, pelo que não podemos avaliar obras artísticas pelas suas consequências morais. Não devemos usar os filmes para explicar, por exemplo, certos graus de violência prevalecentes entre algumas cultura. Fazer isso é cometer um ato bárbaro, pois é desvalorizar a arte cinematográfica; é, de outra maneira, incumprir o princípio do desinteresse, que nos diz que devemos centrar a nossa atenção no objeto de arte em si mesmo e não em certos fins ulteriores (e, quando falamos de fins ulteriores, falamos não só de fins morais, como também de fins monetários, meritocráticos, etc).



Eticismo

Atentando na segunda posição sobre a relação entre a sétima arte e a moral, os eticistas partilham uma ideia central: a de que uma limpeza ética de um filme pode produzir melhorias estéticas no mesmo. Podemos enquadrar nesta visão as ideias do Platonismo e do Utopismo - duas versões do eticismo - sobre os efeitos morais da arte no ser humano. Ao funcionar como mimesis ou cópia da realidade, o Platonismo diz-nos que a poesia implica uma identificação do público com as personagens, nomeadamente com o seu riso, provocando assim uma desestabilização da personalidade. O apelo às emoções afasta o homem da Razão e isso, para Platão, é perigoso em termos ético-sociais. Já para os Utopistas, a arte, de uma forma geral, é uma espécie de fenómeno emancipatório. Pelo simples facto de ser arte, a obra tem sempre implícito algo moralmente positivo, que conduz, pedagogicamente falando, a uma elevação moral do público.  
O eticismo toma como um dos seus principais argumentos o ‘argumento da resposta meritória’. Este defende que os filmes contêm em si determinadas prescrições implícitas; de outra maneira, são esperadas respostas específicas às ficções por si apresentadas – respostas essas que deverão ser verdadeiramente vividas e sentidas. A ideia é que as obras cinematográficas dizem algo a um público e a forma como o dizem exige, por parte dos espectadores, uma resposta adequada. Caso essa resposta contenha falhas morais, então, temos fortes razões para não responder ao apelo do filme. Vejamos outro exemplo cinematográfico: Antichrist (em português, Anticristo), de 2009, do realizador Lars von Trier. De forma sucinta, podemos dizer que este filme gira em torno da dor de um casal que perdeu o seu filho. Assistimos à morte da criança logo no início da trama: enquanto o casal protagonista faz sexo explícito numa das divisões da casa, o seu um bebé consegue sair do berço, dirigir-se a uma janela aberta com o seu urso de peluche e cair.
Anticristo é um filme recheado de imoralidade: não só o nome, mas também os elementos que nele aparecem opõem-se fortemente à decência e aos bons costumes. A floresta onde se desenrola a trama é chamada de ‘Éden’, contudo, esta não representa o lugar idílico da perfeita felicidade; representa, sim, o inferno, um mundo dessacralizado, completamente despido de hierofanias, isto é, de elementos onde o sagrado se possa manifestar, na linguagem de Mircea Eliade. É nessa mesma floresta que assistimos a uma castração e até a um homicídio. Resta-nos então perguntar: como é que podemos responder ao apelo de um filme que só exalta a maldade humana?


Imoralismo

Para além do autonomismo e do eticismo, existe uma outra posição acerca da relação entre arte e moralidade: o imoralismo. O imoralismo advoga que o conteúdo imoral de uma obra cinematográfica não só tem relevância como intensifica a nossa relação com ela. Um dos argumentos mais utilizados pelos imoralistas denomina-se  ‘argumento da perspicácia cognitiva’ - ou, na linguagem de Robert Stecker, cognitive insight argument -, que patenteia a ideia de que os filmes envolvem o ser humano com diversos modos de compreensão; ora, essas diferentes formas de encarar o mundo podem muito bem chegar-nos através de erros e de perspetivas imorais presentes no cinema. Isto faz com que possamos encarar a imoralidade como preciosa, na medida em que nos oferece um novo olhar sobre o universo. A barbárie que encontramos em determinadas obras cinematográficas é, pois, essencial para uma melhor compreensão das obras. Vejamos como através de outro exemplo em concreto, desta vez documental: O Triunfo da Vontade.
Dirigido pela cineasta Leni Riefenstahl, o documentário Triumph des Willens (O Triunfo da Vontade, em português) teve a sua estreia na Alemanha, a 28 de março de 1935. A obra retrata o 6° Congresso do Partido Nazi, realizado no ano de 1934, na cidade de Nuremberga, que contou com a presença de mais de 30.000 simpatizantes do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores da Alemanha. Nele, vemos Hitler a ser exaltado como seu fosse um Deus na Terra e, não obstante tal exaltação, este documentário é commumente elogiado pelos críticos de cinema, devido à sua forma e à sua técnica. A nós, meros espectadores, obriga-nos a colocar uma questão deveras relevante: por que é que as pessoas esperavam ansiosamente por Hitler, quando tal homem causou tanto sofrimento e morte? Em Triunfo da Vontade há quase um apelo a que nos coloquemos na pele daqueles alemães que esperavam pelo Fürer, por forma a relacionarmo-nos inteiramente com a obra de arte. Será que conseguimos?


Conclusão / Abertura do debate

Apesar de cada uma das posições anteriormente apresentadas fazerem um esforço para defender de forma sólida a sua tese, a verdade é que elas não estão imunes a objeções. Começando pelo autonomismo, parece-nos complicado dissociar a arte cinematográfica da moral. Quando pensamos em exemplos de filmes que não contenham conteúdos morais, a tarefa revela-se bastante complicada. Ademais, muitos filmes nasceram mesmo para servir propósitos ulteriores, políticos e religiosos, por exemplo. E para se compreender uma peça artística, requere-se ao público que este tenha um conhecimento de assuntos do quotidiano, assuntos morais. Na ausência de uma dimensão moral, muitas obras artísticas ficam por decifrar.
No que respeita ao eticismo, cremos que este falha na distição entre aquilo que é a avaliação ética e a avaliação estética de uma obra. Se acreditarmos que muitos filmes são obras meramente ficcionais, reveladoras de mundos ilusórios, então temos de dar razão aos autonomistas quando estes alegam que a crítica ética de uma obra cinematográfica não é de todo relevante para a apreciação do seu valor estético, até porque, quando falamos de algo imaginativo, a eticidade nem sequer existe.
Finalmente, a posição imoralista também pode ser alvo de críticas uma vez que, se acreditarmos nos autonomistas, a imoralidade de uma obra, de facto, não acrescenta nada ao seu valor estético. A verdade é que muitos filmes não devem o seu valor aos conteúdos ou temas abordados, mas sim à forma como os realizadores os exploram.
Terminamos com algumas questões: o que pensam destas críticas? Que críticas acrescentariam? Qual é a perspetiva que vos parece mais sedutora?
Sara Tiago Gonçalves
Universidade do Minho / Bolseira de Investigação da FCT

Referências bibliográficas:
Bergan, Ronald (2011), The Film Book. A Complete Guide to the World of Cinema, London et al., Dorling Kindersley.
Carroll, Noël (2003), “Art, Narrative, and Moral Understanding”, in Beyond Aesthetics: Philosophical Essays, Cambridge, Cambridge University Press.
Gabellieri, Paula (2010), A Relação entre Arte e Moral: O Moralismo Moderado de Noël Carroll, Lisboa, Departamento de Filosofia, Faculdade de Letras.
Lars von Trier (2009), Antichrist, Denmark et al., Zentropa Entertainments et al.
Lynch, David (1997), Lost Highway, France / USA, October Films et al.
Riefenstahl, Leni (1935), Triumph des Willens, German, Leni Riefenstahl-Produktion et al.
Tmensamaster (2002), “Lynch’s most bizarre movie to date...”, inhttp://m.imdb.com/title/tt0116922/reviews?ref_=m_tt_urv#showAll (Consultado a 20/01/2016).

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Comunicação de Nozes Pires



1º Encontro com a Filosofia[1]
Apresentação
«Progresso ou Barbaria?»
  Coube-me abrir o 1º Encontro com a Filosofia, ideia que em menos de dois meses conseguimos materializar. É sem dúvida a primeira vez que em Torres Vedras se realiza um encontro de trabalhadores da Filosofia. O que já temos são os importantes Encontros de História. De resto, generalizando porventura demasiado, este género de eventos não são vulgares, sobretudo fora das Universidades.
Posto isto, não pretendemos sobrevalorizar este nosso Encontro, mas situá-lo no espaço e no tempo. Conforme ele decorra hoje tentaremos repeti-lo daqui a dois ou três meses. Para vos falar com toda a franqueza, ambiciono que estes Encontros sejam um primeiro passo para a fundação a breve trecho de uma Universidade Popular nesta cidade do Oeste. Julgo que conhecem as finalidades dessas associações. Uma Universidade Popular ofereceria a toda a gente, sem exclusões ou seleções, conferências e cursos com especialistas de diversas áreas do saber, do fazer e da criação artística.
Comecemos, pois, por este Encontro. Trata-se de propiciar um espaço de diálogo com, principalmente, professores do ensino secundário. Queremos que no próximo Encontro colaborem outros  trabalhadores da cultura, não exclusivamente profissionais da área das filosofias. Entenda-se a Filosofia não apenas aquela atividade e especialidade a que se dedicam alguns docentes dos ramos de ensino superior e secundário. Entenda-se a Filosofia como estudo, investigação e reflexão aprofundados sobre temas e problemas com que o nosso viver quotidiano se confronta. Certamente que a filosofia não é o mero senso comum, o conhecimento do primeiro género na classificação de Baruch Espinosa, ou mera ideologia. Todavia, o filosofar é mais comum do que acaso se julga. Não podemos passar o tempo a ler e a remoer as páginas da Crítica da Razão Pura ou da Fenomenologia do Espírito. Inevitavelmente, pelo menos para muitos, somos impelidos a decifrar os códigos em que a natureza e a realidade social se gostam de disfarçar ou ocultar. E fazemo-lo de diversos modos. Somos impelidos a dar resposta, a compreender os desafios, os choques, as preocupações que nos assaltam no presente. Vamos ao passado, aos grandes filósofos, não por devaneios livrescos, mas para encontrar neles uma possível origem e formação dos modos como hoje pensamos e, porventura, um método razoável para explicar o presente. Nessa medida todos os acontecimentos são do interesse dos filósofos. Sócrates discutia, a crer pelos soberbos diálogos de Platão, os assuntos que interessavam à polis, essa relativamente pequena cidade de Atenas, infinitamente mais pequena que as nossas megapolis. Discutia tudo que achava necessário, para clarificar ideias e forjar conceitos, pois que a vocação da filosofia é produzir conceitos ou sobre eles trabalhar. Discutia tudo que enformava as relações sociais na democracia, quase tudo convenhamos, porque o esclavagismo que permitia o famoso ócio dos cidadãos livres não parece ter interessado o nosso filósofo. Tendo a filosofia nascido pelas condições de um regime infinitamente mais democrático, apesar de tudo, que os despotismos orientais, julgou-se que a Filosofia somente se produz nesses regimes. É um erro. Houve filosofia no império romano, nos reinos obscurantistas de uma determinada Idade Média Feudal, e prosseguiu nas brutais ditaduras do século passado, incluindo aquela que perdurou mais de quatro décadas em Portugal. E temos de admitir, mesmo que a contragosto, que não era menos filosofia aquela que emanava dos círculos conservadores do Portugal salazarista, ainda que não fossem todas elas de pendor fascizante. Temos de admitir. Valoramos, porém, aqueles pensadores que se colocaram em luta aberta com a ditadura, com as ditaduras, devemos aqui generalizar. A história da filosofia não nos retrata uma vocação desta para a consecução da Liberdade efetiva. Teríamos de nos entender sobre o que é Liberdade. Pelas diversas conceções que importantes filósofos dela nos deram, só podemos concluir que a Liberdade não é um conceito inequívoco e consensual. E precisamente porque não é, nem pode ser, um conceito científico, só pode ser aquilo que é: um conjunto diversificado de noções gerais, umas mais idealistas do que outras. As quais dependem, ou variam, não só da personalidade do filósofo em questão, como, eu diria principalmente, do lugar que ele ocupa e do papel que ele desempenha numa determinada sociedade, numa determinada classe ou estrato dessa sociedade, em condições sócio-históricas bem concretas. Grandes pensadores contemporâneos um do outro, como Platão e Demócrito, forjaram conceitos diferentes de Liberdade. Certamente que alguns tentaram forjar noções disto e daquilo tão abstratas, ou tão formais, que pudessem deste modo alcançar a universalidade consensual. Foi o caso do Kant, como todos aqui sabemos. Na verdade a opção pelo formalismo afigurou-se correntemente como a que melhor servia o rigor racionalista e, portanto, a máxima universalidade. Como sucede com qualquer opção filosófica o critério kantiano não se eximiu à crítica. No curso da prática política caminhou-se no sentido de formalizarem-se as leis, os direitos, as liberdades, porém procurando exprimir os seus conteúdos, os predicados das categorias, as determinações concretas, para que se alcance o máximo de objetividade, de universalidade e de possibilidades de efetivação. Já topamos isso na célebre Declaração Universal dos Direitos do Homem que tem conseguido um consenso indiscutível. Daria também o exemplo, se me permitem, da nossa Constituição da República Portuguesa, na qual as liberdades políticas formais vêm acompanhadas pela definição dos direitos económicos, sociais e culturais. Deste modo os direitos e as liberdades deixam de ser meramente formais, ou abstratas se preferirem.
É que em boa verdade os consensos são muito difíceis.
Vejamos o que se passa com as noções de Progresso e de Barbárie que dão o mote a este Encontro. Poderíamos investigar da mesma maneira outras noções: em vez de Progresso, o Socialismo, como preferiu Rosa Luxemburgo que cunhou a célebre consigna “Socialismo ou Barbárie!”. Investigar a definição mais adequada à Razão, mais objetiva ou correspondente com os dados factuais e históricos. Aqui a investigação filosófica necessita do concurso das ciências ditas empíricas, a começar pela História. Os dados acumulados pelos historiadores meticulosos fornecem elementos preciosos para produzirmos uma visão larga e objetiva da formação e percurso das ideias. É que as ideias possuem a sua própria autonomia, não se duvide disso, contudo a sua história é muito dependente e condicionada pelas condições sociais concretas do viver. Isto faz que o filósofo seja por vezes simultaneamente historiador amador e se cruze com as ciências humanas e até, é preciso dizê-lo, com as ciências da natureza. Como traçar o percurso da humanidade ignorando sobranceiramente o que hoje sabemos ao certo da origem e formação do universo e deste planeta que habitamos, da Vida, dos climas e da geologia que permitiu, por destruição criativa, o sucesso de pequenos mamíferos e destes a sucessão, ou coexistência, de diversos grupos de hominídeos até, finalmente, sem plano e sem destino, surgir a nossa espécie? E por tudo isto e o mais que fica por dizer podemos nós garantir que a Natureza, a Matéria, a Energia, se moveu por qualquer intenção ou programa? De modo nenhum. Por ora tudo indica que no universo e na vida as coisas acontecem por acasos e causas. Acaso e Necessidade, nessa dialética que encontramos a cada passo.
Podemos, então, negar que a nossa espécie se apresenta como um progresso nos desenvolvimentos múltiplos das forças cegas naturais? Julgo que não. Julgo que as nossas caraterísticas bio-psico-sociais constituíram um enorme progresso comparativamente, sobretudo, com as inúmeras espécies malsucedidas que se extinguiram. Sem dúvida que a nossa capacidade intelectiva é um extraordinário passo de gigante na evolução da vida. Quem defende a ideia de evolução da espécie humana encontra aqui um forte argumento. Mas talvez errem aqueles que pensam que nascemos totalmente bons ou, pelo contrário, totalmente maus. Provavelmente nem uma coisa, nem outra. Herdamos um sistema nervoso muito complexo, o que nos torna de uma extrema fragilidade, ao mesmo tempo que nos dota de uma enorme plasticidade. Tal constituição abala qualquer otimismo que creia que somos anjos que a sociedade deforma ou perverte. E isto tem que ver com a violência e a barbaridade de que a espécie tem dado sobejas provas. Lembremos os indivíduos “normais”, pais carinhosos nos seus lares, que executaram friamente milhões de judeus e outros seres humanos no Holocausto. Lembremos a extrema violência das cruzadas na Idade Média, movidas pelo mais sincero sentimento cristão. Lembremos as guerras sucessivas, onde a paz não ocupou quase nenhum tempo, dos séculos XVI e XVII. Um período da história europeia em que, todavia, se forjaram na teoria e na prática os Estados Modernos indiscutivelmente progressivos relativamente à anarquia, brutalidade e ociosidade, dos senhores feudais. E pegando nesta linha de reflexão lembremos as incontáveis atrocidades decorridas na história humana associadas quantas vezes a progressos de diversa índole, ou, como queria Hegel, encaremos antes os resultados que se afiguravam para Hegel racionalmente progressistas. Por exemplo, um génio militar, bêbado, rancoroso, assassino, chamado Alexandre, que, apesar disso ou por causa disso mesmo, transformou a face do mundo, inegavelmente para melhor em vários aspetos. Lembremos o colapso do império romano, o afundamento da luminosa Antiguidade Clássica, o terrível período da Idade das Trevas que se lhe seguiu, mas sem a qual não se formaria um novo modo de produção do viver humano, porventura mais propício ao trabalho, ao surgimento dos burgos do artesanato e do comércio. Encadeamento de acontecimentos completamente imprevisíveis para as gerações antigas, mas que hoje dispomos de condições para melhor conhecer a sua lógica causal, por baixo da sua irracionalidade.
Antes de prosseguir nestas linhas de reflexão necessitamos distinguir barbárie de violência. Usualmente aplicamos o primeiro termo à violência massiva, extremada e vemo-la nas guerras e genocídios. A violência comum, digamos assim, vulgar no mundo rural e nas práticas cavaleirescas, tem vindo a diminuir, desde o século XVII. A nossa consciência mais evoluída e os meios de comunicação tornam-nos mais sensíveis e informados, e tal já significa um progresso. Eu devo dizer que há violências que pouca atenção suscitam nos media: refiro-me ao desemprego massivo ou ao trabalho precário em países europeus como Portugal e, em muitas regiões do globo, à mais bárbara escravatura, à extorsão de recursos naturais a populações que assim são condenadas à fome, etc., etc. Não sei se o que estamos presenciando neste mundo de capitalismo selvagem não é de facto uma barbaridade, ou se, ao invés, somente devemos denominar barbárie o terrorismo. E mais: serão terroristas apenas os que perpetram atentados na Europa, ou também um sistema imperialista que está na origem de guerras monstruosas?
Adiante. Vejamos, em uma enorme contração do tempo histórico e de recursos de prova, a evolução da ideia de Progresso. Traço apenas alguns momentos.
A Antiguidade Clássica não possuía uma conceção de progresso contínuo, de perfetibilidade do ser humano e da sociedade. A ideia de humanidade restringia-se às classes livres do trabalho manual. “Bárbaros” eram os outros, os que habitavam nas fronteiras. A Antiguidade Clássica, apesar das suas luzes fulgurantes que a Idade das Trevas apagou, e apesar de possuir de si própria, nos gregos e romanos, uma forte consciência do seu grandioso papel no mundo de então, não formulou uma ideia de um futuro cada vez melhor, necessariamente melhor, impelido pelos meios produzidos pelo homem. Platão seguramente que formulou um modelo de sociedade mais perfeita, porém inspirada em Esparta e numa rígida diferenciação de castas. Não se distingue em Aristóteles também uma efetiva ideia de Progresso, marcha evolutiva para um futuro indefinido.
O cristianismo, que eliminou as culturas endógenas (“bárbaras” ou “pagãs” no seu ponto de vista) assimilando-as ou destruindo-as, impõe gradualmente a sua hegemonia absoluta servindo os seus próprios fins ecuménicos e, mais tarde, as finalidades da formação do novo modo de produção feudal. Através dessa crença universalizante e imperialista por vocação, impõem-se novos valores não consentâneos com a antiga escravatura mas, antes, com a servidão e as relações de vassalagem. O Providencialismo cristão não contém a ideia de Progresso. Agostinho de Hipona forneceu a fórmula: o homem, criatura do Deus transcendente, é mau por natureza, condenado a sofrer o pecado original, a trabalhar e a morrer. Contudo, a condenação do trabalho duro cabe a uns mas não a todos. Condenados em vida somente estes, que herdam dos pais a mesma condição indefinidamente. Na crença do Juízo Final não há qualquer ideia de Progresso. Todavia, essa conceção de uma história da humanidade que caminha para um fim, onde não há progresso mas porventura decadência, servirá para muito mais tarde de andaime para se construir, por negação, a ideia de Progresso.
A ideia de Progresso está realmente, a meu ver, associada à ideia de Modernidade.
Anatole France, o grande escritor francês ao qual tanto devo da minha formação inicial, escreveu algures. “Que devemos entender por essa palavra (Progresso)? Se a definirmos como bons gramáticos, diremos que é um acréscimo de bem ou de mal; e estaremos assim a representar o próprio avanço da humanidade. Mas se (…) dissermos que o progresso é o movimento da humanidade que se aperfeiçoa sem cessar, estaremos a dizer uma coisa que não corresponde à realidade. Esse movimento não se observa na história, a qual só nos apresenta ma sucessão de catástrofes e de avanços seguidos de retrocessos.”[2]
Com este pensamento, profundo mas aparentemente tão banal, fico com a suspeita de que o tempo em que o autor viveu, no período áureo da ideia de Progresso – o positivismo oitocentista – e a eclosão da 1ª Guerra Mundial, teria fornecido as cores mais ou menos sombrias do que acabo de citar. “Sucessão de catástrofes”, “avanços e retrocessos.” Sim, é tal e qual o que observo. E, ainda assim, racionalista como me exijo a mim mesmo, assalta-me a pergunta: Apesar disso, ou talvez por isso mesmo, não existirá porventura uma lógica nisto tudo?
Os acontecimentos simultaneamente grandiosos e terríveis da Revolução Francesa mostraram um quadro claríssimo de lutas de classes, com os seus partidos e os seus programas. Hegel viu nele, nesse quadro, a dialética das ideias, Marx a dialética da história, e ambos converteram as categorias que lhes serviram para reproduzir os antagonismos da sua época em categorias transhistóricas. Ou seja, a Lógica da História é uma determinada dialética, fosse ela idealista, ou materialista.
A ideia de uma civilização – a civilização ocidental é bom de ver – que contem em si uma abertura ilimitada, um movimento em direção ao futuro, uma flecha do tempo projetada para diante e que não aumenta a degradação, mas a criação do novo, um aperfeiçoamento constante, tal ideia somente a vemos Na Modernidade, a bem dizer na transição do século XVIII para o século seguinte. Formou-se com ritmos diferenciados: devagar no século XVI, com saltos bruscos nos séculos seguintes. Não a vemos exclusivamente nos textos de autores mas nos comportamentos dos grupos sociais. No decurso dos séculos XVI, XVII, os homens dos burgos e das comunas que vinham crescendo desde a última fase da Idade Média, enriquecidos pelo comércio, pelas novas oficinas de artesãos que em breve seriam manufaturas que produziam bens que os mercadores distribuíam, pela usura e pelos bancos, exibiam novos interesses e novos valores, os quais contrariavam os valores senhoriais e feudais. Sentiam a sua crescente importância, junto dos monarcas e nos órgãos de poder das grandes cidades. A honra nos negócios substituía a honra cavaleiresca, o gosto do luxo importava-se pouco com os pecados veniais. O Progresso via-se materialmente nas novas técnicas de trabalho e produção, nos servos que afluíam para as cidades, nos mercados onde o dinheiro ia substituindo a troca-justa. Descartes dera o impulso filosófico à valorização do espírito científico. Galileu abrira a estrada infinita do conhecimento. Francis Bacon formulara as bases do método experimental. O mecanicismo, expressão dos pensamentos avulsos das classes médias, atraía já sectores da pequena e média aristocracia entusiasmada com a nova Física. Os advogados das teorias do contrato social, como John Locke, construíam um programa político e económico de alianças consentâneas com os regimes absolutistas que se vergavam já, a bem ou a mal, para o lado dos grandes negócios da manufatura e do colonialismo.
E, assim, a ideia de Progresso vai penetrando nas classes dinâmicas, nos capitães da indústria e nos intelectuais. No século das Luzes essa ideia ainda não é clara e distinta. Aflui aqui e acolá nos sentimentos, comportamentos, textos filosóficos e literários. Rousseau começa por exprimir aceradas dúvidas sobre a civilização do luxo, porém apresenta na maturidade um autêntico programa político para as classes médias, “O Contrato Social”. Diderot é porventura o mais lúcido na forma como reconhece o fim de um mundo e o começo de um novo. Também Turgot, o pioneiro da economia clássica sem o qual Condorcet não teria escrito, provavelmente, o mais importante texto da Ilustração, Ensaio de um quadro histórico do progresso do Espírito humano, de 1795. Um pouco mais de quatro décadas depois, já os ideais do Progresso iluminista sofriam reveses e reviravoltas. Marx e Engels escrevem num manifesto célebre que “A burguesia, onde ascendeu ao poder, destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas.” E, mais adiante: «Realizou maravilhas completamente diferentes das pirâmides egípcias, dos aquedutos romanos e das catedrais góticas, levou a cabo expedições completamente diferentes das antigas migrações de povos e das cruzadas.”[3] Todavia, não se julgue por aqui que os autores tecem um cego elogio ao Progresso e à Modernidade transportado pela classe que se preparava, de revolução em revolução, para desalojar do poder absoluto definitivamente em toda a parte, da Europas às Américas, os aristocratas e o antigo modo de produção. Como causa e efeito, num encadeamento menos casual ou aleatório do que parecia, os progressos económicos aos quais se somavam progressos políticos, mentais, culturais, ocorriam com mais guerras de conquista e saque, espoliações de terras, sobre-exploração e miséria de massas humanas que definhavam nas novas fábricas.
Este quadro de antinomias Progressos/ barbaridades (ou, se preferirmos, exploração, opressão, depauperamento) não surgira pela primeira vez desenhado nesse famoso manifesto. Já muito antes, nos primeiros tempos da Modernidade, desde o século XVI ao XVIII, lúcidos escritores haviam denunciado os efeitos dos antagonismos sociais. Nem toda a gente pintara a cor-de-rosa as transformações que observavam. Referi já Rousseau, mas poderia referir muito antes dele Thomas More do qual se comemoram este ano cinco séculos o seu livro “A Utopia”. Poderia referir as cautelas de que se revestem, apesar da fé nas novas relações, os programas de Bacon ou de Locke, como se sentíssemos nestes e em outros filósofos uma espécie de excedente, de utopia, que não correspondia aos interesses reais da classe que aspirava à hegemonia global. Os utopistas do século das Luzes constituem um bom exemplo de como a Modernidade que então se via não era a Modernidade que eles desejavam ver. Refiro-me aos abades Morelly e Dom Deschamps, ao ex-padre Gabriel Bonnot de Mably. Refiro-me aos programas utópicos da esquerda e extrema-esquerda na Revolução Francesa. Refiro-me a Thomas Paine.
O século XIX é o século da marcha triunfal da revolução industrial, da fé na bondade da tecnociência, das filosofias positivista e utilitarista, todas elas bandeiras do liberalismo.  Entretanto, foi também o século das primeiras contestações aos modos como ocorria a Modernidade, ao modo como a ideia de Progresso se convertera na ideologia de uma classe social. Foi o século das revoltas de escravos nas Américas, das barricadas populares nas ruas de Paris, das doutrinas que reivindicavam o progresso, sim, mas para todas as classes, a democracia e o socialismo do nosso José Félix Henriques Nogueira, de Marx, Proudhon e Blanqui, da Internacional dos Trabalhadores.
O século passado foi o século no qual se iniciou a decadência de uma ideia, um ideal, para alguns mesmo decadência da própria civilização moderna erguida na Europa e exportada para os quatro cantos do globo. Já Nietzsche, em suas perspetivas românticas, havia semeado dúvidas pertinentes sobre a ideia de Modernidade; Weber, pelo seu lado, vaticinara a hegemonia perniciosa de uma “razão instrumental” e de Estados mais burocráticos que democráticos. Contudo, é com Walter Benjamim[4] e a sua terrível alegoria do “Anjo da História”, com Horkheimer e Adorno, de maneira geral todos os grandes mestres da Escola de Frankfurt e seus discípulos, com exceção de Habermas, que a crítica negativa da Modernidade conquista um lugar indeclinável na Filosofia contemporânea. As catástrofes das duas guerras mundiais, mas não só, conduziram-nos à conclusão de que todos esses males não se deviam a erros ou desvios do presente, mas que vinham de muito longe, das próprias origens da ideologia do Progresso iluminista. Outros houve que, vendo também a natureza destrutiva do capitalismo, não se deixaram conduzir pelo mesmo olhar negativo de Horkheimer, Benjamim e Adorno, e antes olharam para as potencialidades de novas sociedades alternativas contidas na Modernidade contraditória: Lenine, Rosa Luxemburgo, Ernst Bloch, G. Lukács, Gramsci, para citar apenas alguns da plêiade de escritores e dirigentes políticos da 1ª metade do século passado, cujas ideias e ação (ação foi o que faltou ao lúcido Adorno) desempenharam um papel fundamental no pensamento político e nos revolucionamentos sociais.
Para terminar, pois já vai demasiado longa esta apresentação, permiti que assinale, e assinale apenas, mais dois ou três enunciados:
Um tem que ver com o Positivismo, que julgo haver sido a filosofia mais representativa de um certo triunfalismo burguês, da sua confiança na ciência e nas técnicas produtivistas no quadro do individualismo burguês, no desprezo pelas metafísicas. Sejamos, contudo, rigorosos com a verdade: o positivismo do seu fundador, Auguste Comte, discípulo do socialista Saint-Simon, defendia a paz como condição sine qua non do progresso do conhecimento e suas aplicações práticas. Na sua visão utópica burguesa o militarismo iria terminar com a eliminação dos valores do feudalismo guerreiro. Tal conceção pacifista, crente das virtudes da livre iniciativa das elites conjugada ou mesmo regulada por Estados que protegiam os direitos dos cidadãos e a propriedade adquirida pelo mérito e pela industrialização racional, haveria de animar os nossos mentores intelectuais da 1ª República portuguesa.
Num breve parêntesis assinalo a vertente utópica do liberalismo ou utilitarismo de Stuart Mill, na proposição de que o novo regime, se bem regulado, haveria de produzir o máximo de felicidade geral.[5]
Um outro enunciado prende-se com a força quase consensual das ideias evolucionistas, derivadas pela formidável teoria de Charles Darwin. Posso mesmo afirmar que sem o darwinismo a ideia de Progresso, no sentido de evolução da espécie humana e da sua superioridade, a ideia da seleção social, não teria obtido tamanha aceitação. As ciências humanas e sociais pareciam oferecer sustentação à crença ideológica. 
Finalmente, e abreviando ao máximo, temos vindo a assistir desde os anos setenta ao descalabro das filosofias otimistas da História. Os acontecimentos que o provocaram são de diversa ordem: na política, os fracassos dos programas revolucionários dos países que se libertaram do colonialismo (provocados por acesas lutas de classes e algumas intervenções brutais do imperialismo), o colapso da 2ª superpotência mundial, a URSS, e o espaço que forneceu à expansão global do capitalismo. Disse otimistas mas não progressistas. Porque a crença nas tendências e forças progressistas não morreu com a perda das ilusões otimistas. Ilusões quantas vezes reduzidas a fórmulas de propaganda política da Guerra Fria.
Pertenço ao número daqueles que prescindindo do método dialético de investigação se sentem completamente desarmados. Sem ele receio abandonar o espaço das lutas às correntes mais reacionárias do pós-modernismo, aquelas que recusam validade à Razão, ao poder desta formular juízos verdadeiros, objetivos e universais. Reconheço que temos sofrido profundas transformações sociais, que já não podemos pensar com os mesmos modelos de há cem ou mesmo cinquenta anos. Mas, ao alinhar com os filósofos que nos últimos séculos, sobretudo no último, como Ernst Bloch, Theodor Adorno, G. Lukács e outros, apontaram na natureza do capitalismo o cerne de males que sem ele poderiam sarar, ainda que todos os males do mundo não desaparecessem miraculosamente, ao encontrar neles fundamentos da crítica, creio e julgo que o Progresso ainda é possível. Tenho consciência de que é uma possibilidade, não uma destinação, uma possibilidade que depende não de um “motor imanente” da História, sim da consciência e decisão das classes e minorias sociais interessadas na paz, no conhecimento, na administração racional das coisas. Uma possibilidade que reflete tendências objetivas das dinâmicas sociais.
Torna-se mais difícil resolver problemas teóricos quando estes são formulados como antinomias abstratas ou especulativas. É certo que o iluminista alemão Kant conseguiu formular antinomias racionais, porém não as resolveu no plano teórico. Aquele que as resolveu à sua maneira foi Hegel com a sua lógica das contradições. Ponhamos o exemplo da antinomia que dá o título a este Encontro: “Progresso ou Barbaria?”. Podemos definir a ideia de Progresso que, decorridos séculos, emergiu clara e triunfalmente no século XIX, mas teríamos que verificar a sua negação e, nessa contraditoriedade, a superação. Teríamos também de definir Barbaria, dizendo talvez que esta é o contrário do movimento para a paz que esteve também no conteúdo da ideia de Progresso. Portanto, uma contradição antagónica. A ideia de Progresso necessita, sempre necessitou, do seu contrário para se exprimir e tentar realizar-se objetiva e materialmente. Foi com violência (o “Terror” na Revolução Francesa) que se alcançaram progressos políticos e sociais e foi com violência desmedida que as contrarrevoluções executaram os seus programas reacionários. Avanços e recuos. Aprende-se com a experiência. “Depois da casa saqueada, trancas à porta.” A atitude mais sensata é a permanente vigilância. É a consciência e a ação dos amantes da Paz, das forças sociais que não necessitam da barbária para progredir em direção a mais felicidade.
Esperais, porventura, que eu cite o aforismo célebre de António Gramsci: «Pessimismo da razão, otimismo da vontade.” Ainda não derrapei para esse patamar. O pessimismo é uma forma exacerbada do ceticismo. E o voluntarismo, só por si, é demasiado cego. Tende a tornar-se moda um certo radicalismo utópico que balança entre o anarquismo inconsequente e o catastrofismo. Um polémico filósofo alemão, já falecido, Robert Kurz, na sua revista de ideias “Krisis”, resumia na fórmula “Razão Sangrenta” a mais violenta crítica do Iluminismo e da Modernidade. Se a Modernidade é, ou foi, toda ela, apenas destrutiva, então a pós-modernidade não é a sua consciência superadora, mas, ao invés, a derrota da Razão.
Nozes Pires
Torres Vedras, 23 Janeiro 2016
Conferência de abertura do 1º ENCONTRO COM A FILOSOFIA


[1] Comunicação apresentada no 1º Encontro com a Filosofia, realizado em 23 de Janeiro de 2016, em Torres Vedras.
[2] In “A Vida em Flor”.
[3] Marx-Engels, Obras Escolhidas, tomo 1, edições Avante!-edições Progresso-Moscovo, 1982.
[4] Walter Benjamin, O Anjo da História, Assírio & Alvim
[5] John Stuart Mill, Sobre a Liberdade; Utilitarismo.