Crítica da Razão Consensual
A Identidade e a Diferença
Poucas noções são tão ricas, complexas e controversas como a noção de Identidade. Noção errante que percorre todas as áreas do saber, evasiva e invasiva, cómoda e incómoda, desacreditada pelos efeitos políticos de ambição ditatorial ou totalitária, recuperada nas novas formas de reivindicação das identidades comunitárias reactivas ou inventivas. Questão incontornável quando nos defrontamos com os novos comportamentos narcisistas e com a ideologia neo-liberal do «individualismo». Nos discursos psicológicos, psicossociais, políticos, religiosos, a ideia de «identidade» perfila-se como um reduto conservador ou, pelo contrário, um ideal de autonomia libertária. As comunidades -em-rede via inter-net desempenham cada vez mais um modo de comunicação inter-pares, comunitária, «tribal», e uma forma de intervenção e participação democráticas que não escapa à atenção vigilante e interesseira das corporações políticas e económicas. Democracia virtual versus sociedades de controlo.
Propomos-nos expor os seus componentes e significados e analisar a sua relevância nos tempos convulsos que atravessamos. A nossa tese principal é a seguinte: a representação que cada um faz de si mesmo depende em grande medida da distribuição dos papéis e estatutos que uma determinada sociedade conserva ou fabrica, regulamenta e controla. Por conseguinte, é na dialéctica dos grupos que a identidade se manifesta. Interessa-nos, sobretudo, a identidade social e socialmente atribuída.
Os vários significados e usos do termo
Podemos pensar a identidade como aquilo que torna idênticas as coisas todas, uma série. Por exemplo, afirmando que tudo que existe possui uma causa -ou razão suficiente- e que esta é sempre da ordem da natureza (sentido amplo, incluindo a natureza social). Corpúsculos ou ondas de energia compõem todas as formas de existência. Nada existe fora, criando-a ou providenciando. Uma pedra é idêntica a um ser vivo. Todos os nós, e os «nós» que habitam esses mundos, somos filhos das estrelas e, estas, da explosão original. O «eu» dissolve-se pela decomposição física. A matéria-prima permanece a mesma -Energia- idêntica a si mesma através do tempo (ela própria faz o espaço-tempo, ou é), plural nas diversas formas ou modos de energia, da qual pontos infinitesimais nascem ao mesmo tempo que morrem, radiações que percorrem centenas de milhões de anos, biliões de galáxias com biliões de estrelas, estrelas de neutrões, buracos negros que abismam a nossa pequenez.
Podemos pensá-la como Espécie. Todos os seres humanos, filo e ontogenética, são portadores de uma identidade, em última instância, pelo genoma. Surgimos, muito provavelmente por acaso, de uma mutação, de uma nova variedade na grande família de hominídeos. Ignoramos ainda o como e o porquê da origem da Vida.
Podemos pensá-la como organização social. Como seres sociais. Os fundamentos das nossas origens (e condições), causa-efeito das nossas competências e necessidades sociais, identificam todas as sociedades.
Podemos pensá-la em termos lógicos: uma mesma proposição não pode ser ao mesmo tempo verdadeira e falsa, sob a mesma relação (A=A). O que é, é; e o que não é, não é. Reconhecemos uma coisa como pertencendo a uma classe lógica, ou reconhecendo que a classe a que ele pertence é equivalente a outra.
Podemos aplicá-la a um grupo social que se constituiu e se continua a reproduzir segundo fundamentos idênticos. Uma organização tribal, um clã, um estrato, uma classe social.
Podemos aplicá-la a uma região com características comuns, específicas, que perduram; a um país (a língua comum, por exemplo).
Podemos, enfim, admitir o «eu» como uma unidade que permanece num indivíduo singular, até à sua morte.
A constatação de que existem mudanças (naturais, sociais, pessoais) obriga-nos a admitir que a(s) identidade(s) podem mudar. Ou a Identidade é simultaneamente mudança – o que parece contradizer a sua definição- ou ela apenas se aplica a objectos transcendentes (as Ideias platónicas, dotadas de eternidade ou eterna identidade em si mesmas) que são o que são em si-mesmas, intemporais e imperecíveis.
Mudança na Identidade
Se excluirmos crenças teológicas e religiosas muito complexas baseadas em última instância num sentimento, a antiga e moderna filosofia e a ciência não admitem senão identidades mutáveis. O princípio da identidade contem em si mesmo o princípio da mudança. Visto que a contradiz, então não parece existir outra alternativa senão admitir que o o princípio da identidade e o princípio da contradição são conciliáveis. O mesmo contem a possibilidade (potencialidade, potência) de se transformar em algo diferente, ou até oposto.
Então, a «matéria» assume formas diferentes e diversas, sob determinadas condições, incluindo a enigmática anti-matéria (ou não-matéria), sem massa, que «ocupa» mais de 90% do universo, e sem a qual não existiria nem subsistiria a «matéria», e vice-versa. Nem por isso subsistem argumentos credíveis sobre a existência de um Ser, ou mais do que um, transcendente, puramente «espiritual», etc. Bem pelo contrário.
Então, a «materialidade» social organiza-se reorganiza-se, sob condições objectivas e subjectivas, no decurso da uma historicidade (tempos de curta e longa duração) indubitável, de tanto modo quanto a «primeira natureza»: a natureza transforma-se por si mesma, é transformada pelo homem, o homem transforma-se a si próprio. A mudança, transformação, é indiscernível da identidade.
Logica e empiricamente o sentido (ou a definição específica) de identidade depende do sentido (a definição específica) da diferença. Assim como existem ( e existiram) múltiplas identidades, logicamente diferenciadas entre si, existem (ou existiram) múltiplas diferenças ainda que oriundas de uma identidade comum. O Ser é múltiplo, diverso, diferente, temporal (não eterno), finito (não infinito), histórico numa palavra. O indivíduo no singular é um processo complexo e contraditório de desenvolvimento -da criança à velhice-. Uma sociedade nunca é a mesma pelos séculos fora, ainda que conserve (em certos casos conserva-se aparentemente sem mudanças de substância) traços comuns que lhe fornecem uma forte identidade.
Os dispositivos que fornecem a identidade no interior de uma sociedade são, principalmente, os ritos e as tradições. Tais dispositivos permitem-lhe subsistir como corpo social coeso e, ao mesmo tempo, diferenciá-lo de outras formações sociais. Neste sentido amplo, uma sociedade é uma totalidade.
A noção de «totalidade» remete-nos, de novo, para a noção de «identidade». É a identidade que permite falar em totalidade (num Todo, se se preferir). Já vimos, porém, que uma dada totalidade ( ou totalidade de totalidades) contem a Diferença (não semelhança, semelhanças fracas, oposições e antagonismos).
Nem toda a diferença gera antagonismos, e nem todos os antagonismos são irreconciliáveis. Um predador e a sua presa favorita são opostos antagónicos, na relação que estabelecem (embora idênticos na mesma natureza de que são constituídos; quase sempre são, até, componentes essenciais para um determinado equilíbrio ecológico). No caso, todavia, da relação do homem com a natureza (o Meio, o Ambiente) a relação, embora oponente, de modo nenhum é antagónica. O homem não pode eliminar a natureza, ainda que a domine de muitos modos, sob pena de se destruir a si próprio (sendo que ele próprio é natureza pensante).
Uma Coisa Idêntica entre si – ou totalidade- é composta de diferenças. Valia mais definir com um único conceito o que se diz em dois: Identidade e Diferença. A identidade é a unidade de diferenças que cabem numa totalidade determinada. É a totalidade que permite a existência dessas diferenças e que lhes confere sentido; ao mesmo tempo, são determinadas diferenças que conferem existência e sentido a essa identidade. Podemos supôr um Processo Dialéctico que se inicia por uma unidade indeterminada e indiferenciada (unidade original) e se desenvolve pela separação e unidades diferenciadas cada vez mais complexas, com uma meta (Identidade com um mínimo de contradições) ou sem ela.
Admitamos, por hipótese, o postulado segundo o qual o Devir é verdadeira natureza da Existência, Por outras palavras: não existe Ser imutável, imóvel, eterno. Então, se o Devir é tudo e tudo devém, na realidade o que existem são acontecimentos. Nem estruturas invariáveis, nem uma singularidade imutável. Os acontecimentos possuem as suas condições práticas que os actualizam, mas são, sobretudo, possibilidades, virtualidades. Tal como se diz de alguém que afirmamos possuir uma determinada capacidade para criar algo. Se cria, actualizou a potência. Uma obra de arte é singular, não há duas iguais nem no mesmo autor.
Uma dada formação social é composta de diferenças (indivíduos diferentes; classes e grupos diferentes); é a sua estrutura que gera essas diferenças, concretizadas pela acção social e pelas interacções. A formação social capitalista não deixou de ser capitalista, embora se haja modificado bastante (bastaria falar no período que decorre desde a Revolução Industrial). Por outro lado, o Mercado capitalista desenvolveu-se assente em novas classes sociais que se mantêm intactas no essencial, ainda que profundamente modificadas (estamos a falar do empresário capitalista e do operário a quem ele compra a força de trabalho). Seja actualmente o capital financeiro especulativo a desempenhar um papel na economia internacional maior do que nunca, não é por isso que o «velho» capitalismo se extinguiu. Esteja a classe operária, como é evidente, profundamente desestruturada, não é por isso que o operariado esteja extinto (alargou-se e estendeu-se a novas camadas). O fundamento é a relação Capital/Trabalho vivo), não a relação entre Dinheiro e Técnicas de produção.
Quando falamos de sociedades, é em relações que estamos a pensar. As relações sociais dependem do tipo de organização da produção de bens (aquisição de capital, matérias-primas, técnicas e operários-técnicos, controlo do processo, distribuição, reprodução do capital), dos costumes e tradições, das crenças e valores, das mais diversas instituições sociais; dependem do conjunto dos símbolos que constituem uma dada cultura, nos quais se baseiam as crenças e as práticas sociais. No entanto, tudo anda ligado: sem a linguagem que o trabalho desenvolveu, sem o próprio trabalho, sem as formas de consumo e de apropriação dos recursos naturais e produzidos, sem as hierarquias e os estatutos, sem os papéis admitidos e atribuídos, sem as crenças e os seus rituais, sem as instituições que recolhem e distribuem os poderes, não existiam sociedades. Das suas formas mais simples evoluíram (dito isto sem juízo de valor) para as formas complexas com que se apresentam hoje. As relações sociais organizam os grupos em grupos mais amplos (sociedades, regiões, países, o que seja), através delas se socializa e se concretizam as interacções.
A Razão constituída, dominante, obriga-nos (ensina-nos) a confundir pensamento com conquista de fórmulas abstractas. Elas existem de facto, porém o mais das vezes eliminam as singularidades concretas: este e aquele indivíduo, este ou aquele grupo social. A ideologia (política) encarrega-se de converter este resultado numa verdade evidente, isto é, que não vale a pena analisar. O triunfo da suprema Identidade: o Dinheiro/Capital, aquilo que faz que todos as mercadorias se equivalem, fortalece a tendência para entronizarmos o pensamento convergente, consensual. A doutrina dos «direitos humanos» exemplifica bem esta tendência para conjugarmos a Verdade com a Moral. Vivemos na trágica condição do dever e do hábito. Quando um objecto artístico nos descongela, desassossega, experimentamos a diferença subversiva, e afastamo-nos sem ousar um comentário, quando o que deveríamos dizer era isto: «Não sei se gosto. Não estou habituado.». Quando na América Latina, ou nos subúrbios das metrópoles, a subversão estala, olhamos para o lado :«Não percebo. Ainda bem que estou longe». A identidade é o que é re-conhecido. Assim é também o entendimento usual de «cognição»: re-conhecimento. Sob este império da Representação a Identidade submete todos os seres a equivalências, a generalidades. O devir existe, mas é recusado pela consciência. A «globalização» transporta estes equivalentes universais, a começar pelo Dinheiro/Capital e a acabar em Deveres e Hábitos que se exportam. Ao contrário do que se apregoava a «globalização» torna-nos mais dependentes (nações, regiões, continentes). O accionista e o corretor da Bolsa são idênticos nos E.U. e no Japão. O Joe Berardo é idêntico a milhares de outros Joe por este mundo fora. A Identidade suporta uma longa tradição de embustes, de estratagemas de dominação, de pulsões totalitárias (a doutrina dos Partidos Nazi e Fascista).
Contudo, o combate pela identidade (singular ou comunitária) é um combate urgente em pontos vários do planeta e por diversas formas e conteúdos. A comunicação em-rede, global e interactiva, tem permitido o intercâmbio de culturas e de causas. Os novos multiculturalismos - o conhecimento ajuda a amar a diferença – conduzem-nos em contra-mão na autoestrada dos novos colonialismos.
O que queremos dizer é que a Identidade abstracta é demasiado perigosa para poder ser defendida sem crítica. É indispensável provocar o surgimento da Diferença, a afirmação da singularidade. A identidade como igualdade absoluta é uma utopia arrepiante. Tanto quanto o é a conversão da nossa personalidade num mero número contabilístico.
Subjectividade e Grupos
As identidades sociais não são exclusivamente inventadas pelas ideias e pelas crenças, ainda que tudo que é social esteja impregnado pela dimensão simbólica. Não resultam exclusivamente da subjectividade (menos ainda, da vontade ou do livre-arbítrio). As formações sociais são Objectos, isto é, são também da ordem da objectividade: uma dada instituição é objectiva, não existe em função somente do ponto de vista (relativo e mutável) dos indivíduos singulares, nem dos grupos. A organização económica tanto depende da regulação interna (o modo-de-produção) objectiva, como das instituições políticas objectivas (os Estados, p. ex.). O indivíduo singular move-se no quadro de determinadas relações que existem independentemente de que ele viva ou morra, case ou não, trabalhe ou não, etc. As identidades exprimem estatutos e papéis que lhes são anteriores, que ele ambiciona ou não, que lhe são atribuídos ou não. Na identidade social existe uma componente incontornável: a consensualidade. Sendo um conjunto de critérios que definem o ser de um indivíduo ou grupo, é necessário que haja alguma consensualidade para que a identidade seja reconhecida e atribuída. É ela o conteúdo essencial do reconhecimento: reconhecer alguém e ser reconhecido. Daí que segundo algumas correntes da Psicologia a noção de identidade seja uma das noções capitais, se não mesmo a noção capital. Para essas teorias o indivíduo deseja mais do que tudo o mais possuir (receber ou conquistar) uma determinada identidade social (à qual correspondem estatutos e papéis). Nesse contexto os grupos desempenham um importante papel. Trata-se de sentimentos de segurança, de auto-estima, que resultam dele se sentir integrado, aceito, pertencente a um grupo que ele estima. Excluído desse(s) grupo(s) sentir-se-á desamparado, à deriva sem raízes e afectos. Certamente que os efeitos dependem da personalidade e da força dos crenças que justificam o grau de valor atribuído a tal ou tal identidade perdida ou desejada.
É aqui que entra a questão do emprego-trabalho-actividade-, do estatuto, dos papéis, da orientação da personalidade (mais ou menos altruísta, por exemplo), das tradições, da convivialidade, sociabilidade, vizinhos, amigos, parentesco, dos poderes, dos meios e dos fins.
A divisão das sociedades não se reduz às hierarquias dos estatutos e dos papéis sociais, por mais que enfatizemos a contribuição dos estatutos na formação das identidades sociais. A divisão social é também, para não dizer sobretudo, a questão controversa da existência de classes sociais. Não nos referimos aos variados grupos sociais, grandes ou pequenos, mas aos maiores grupos compostos por indivíduos que ocupam lugares semelhantes nos processos de produção de bens materiais e imateriais. A classificação usual em «classes baixas, médias e altas» pode ser útil, mas ilude ou disfarça a natureza das semelhanças e das diferenças. A propriedade, noção decisiva nas doutrinas liberais ou anti-liberais dos séculos dezassete e dezoito (Desde Grotius a Locke, a pioneiros e discípulos), permanece nuclear no pensamento sociológico e políticos, quer se omita ou não. A posição social que cada indivíduo ocupa face à propriedade é de importância incontornável; por conseguinte, fornece um contributo incontestável na formação das identidades sociais. Não falamos de classe social no sentido de Sujeito consciente (colectivo): os operários podem não possuir -na sua maioria- «consciência de classe», que não deixam, por isso, de constituir um grupo social com características semelhantes, objectivamente oposto, isto é, diferente, dos proprietários do capital(ou de terras e outros meios e recursos). É incontestável (não há neo-logismos que o disfarcem) que os assalariados, por definição, trabalham para «superiores» (sejam patrões ou o patrão-Estado). É incontestável que a sua capacidade de trabalho (competências, chame-se-lhe o que se quiser) possui um preço (sujeito às flutuações económicas e políticas) do mercado, entra no processo global da formação da Mercadoria, ela mesma mercadoria. A propriedade decide quanto à diferença social. Ontologicamente, é a propriedade que decide quanto aos estatutos atribuídos socialmente. Certamente que entre os proprietários, assim como entre os os assalariados, os estatutos dos seus membros respectivos podem variar, e realmente variam (operário-manual/operário técnico altamente especializado; operários fabris/engenheiros assalariados; operário/cientista, professor, assalariados); porém, a posição que ocupam face à posse (e/ou controlo) do Capital (seja ele em forma de acções, de capital especulativo) aproxima-os objectivamente, ou diferencia-os da outra classe. Certamente que nem todos os operários fabris estão amarrados toda a vida à sua condição: podem «ascender» de classe ( ou «descer» no estatuto), a mobilidade nas sociedades modernas é uma possibilidade real. É muito mais raro que um grande capitalista se converta em mero operário têxtil...
O emprego, o desemprego, o enriquecimento ou o empobrecimento, apresentam-se, portanto, como componentes essenciais das identidades. Um individuo que enriqueceu (ou empobreceu) de um momento para o outro, vê a sua categoria social alterar-se substancialmente, para «baixo» ou para «cima». De uma forma geral, o Dinheiro é, empírica e simbolicamente falando, o conteúdo fundamental da identidade (posição ou lugar, estatuto e papéis). Todavia, o símbolo é também feitiço (fétiche): o Dinheiro é o equivalente universal de todos os bens (identifica-os), forma equivalente geral do Valor, na qual o valor das mercadorias aparece como puro valor de troca. O Símbolo-Dinheiro mascara a origem da Mercadoria, esta mascara a extorsão da mais-valia...A essência realizada do Dinheiro é o Capital; o processo: a acumulação do Capital; as estratégias: prolongamento da jornada de trabalho, preço da força de trabalho, divisão e especialização do Trabalho, submissão da força de trabalho, investimento em capital-fixo, Bolsa de valores...Neste modelo relacional Capital/Trabalho a Identidade fixa-se em cada um dos pólos da relação.
O triunfo da Fantasia
Grande parte das fantasias que os fazedores do consumo, dos fazedores do gosto e da opinião, propagam, é isso mesmo: fantasias, que em pouco se distinguem das antigas histórias de Cinderela e Aladdin. Casar com o príncipe ou esfregar a lamparina mágica em nada se distinguem estas ilusões e falsas esperanças da propaganda que converte cada consumidor num esquizofrénico. A Riqueza, o Poder, o Reconhecimento social, atribuídos pela exibição dos bens socialmente reconhecidos como dotados de enorme valor. O indivíduo alcança uma dupla gratificação: ser reconhecido por aqueles que invejava vir a ser «par» e ser invejado pelos «pares» que ambiciona abandonar. Eis um elemento psico-social importante na chamada «mobilidade social».
As doutrinas neo-liberais também pregam a «igualdade», numa revisão puramente mistificadora das doutrinas liberais clássicas, fórmula mágica da propaganda para o consumo. Todos somos consumidores, é verdade, contudo uns são mais do que outros, uns podem muitíssimo mais do que outros, uns possuem e controlam os recursos e os excedentes, outros somente consomem (compram) aqueles bens que eles próprios produziram (os assalariados, produtores, operários); na verdade, nem os bens que criaram conseguem comprar em muitos casos. Estas verdades objectivas são tão tão verdadeiras que surpreende a eficácia de certos disfarces que a ocultam. Inclino-me para a hipótese de que os indivíduos apercebem-se destas realidades, sem que esta percepção alcance o patamar da compreensão, ou da «consciência de classe». O que converte uma «classe» numa entidade dotada de subjectividade, é a auto-consciência dos seus membros, a soma das consciências individuais, a identidade colectiva. Reconhecem-se como um grupo na diferença e na oposição com outros grupos, em primeiríssimo lugar com a classe dos «patrões» e «capitalistas», porque verificam que a sua dependência possibilita a independência destes últimos indivíduos, a sua pobreza (seja relativa ou absoluta) subsiste na proporção inversa da riqueza de outros. Em suma: sem eles os últimos não seriam nem independentes, nem ricos.
O Eu e o Outro
O indivíduo é uma realidade objectiva: - na medida em que é percepcionado pelos outros como personalidade, carácter, comportamentos coerentes e previsíveis; - na medida em que ocupa um (ou mais) determinado lugar no modo de produção e nas relações correspondentes e desempenha um (ou mais) determinados papéis sociais. Neste caso, o «eu» é o «ele», «tu», que se identifica por determinados sinais (incluindo o nome); não é uma existência virtual ou fictícia, por mais que a sua identidade seja relativa e perecível. E é uma realidade objectiva para mim mesmo, porque me observo e me reconheço no presente (pelas áreas corticais específicas) e pelo passado (ainda que a minha história inclua um olhar subjectivo; mas inclui também as mensagens que os outros emitem para mim, ou sobre mim). A noção de objectividade não se aplica, evidentemente, apenas a coisas sólidas: o Estado é uma entidade objectiva e, no entanto, é em boa parte constituído por símbolos; a hierarquia numa tribo «selvagem» não é coisa sólida...mas é evidentemente objectiva.
É um dado comum nas ciências que estudam o desenvolvimento psicossocial dos indivíduos o fenómeno da formação de uma identidade pessoal, destacando-se o período da adolescência. Os adolescentes, de modo geral e em particular nas sociedades modernas ocidentais, sofrem uma (ou várias) crise de identidade. O facto relaciona-se principalmente com a diversidade de papéis que as hodiernas sociedades complexas distribuem. À semelhança de uma armazém de roupas prontas-a-vestir as posições e os papéis sociais são cobiçados, uns mais do que outros, e as experiências juvenis têm tudo a ver com essas escolhas. Por norma a identidade é atribuída (pelos familiares, sobretudo, mas intervêm outras instituições) e, em muitos casos, poderá vir a ser aquela que ele «veste», a gosto ou contragosto, pela vida fora. A actividade profissional constitui uma componente fundamental no conjunto dos papéis (mais ou menos conciliáveis) que irão compor a personalidade ou identidade do juvenil (casado/solteiro, pai/mãe, militante de um partido político, activista associativo, etc.). No fundo trata-se da aquisição de competências sócio-individuais para estabelecer compromissos (e cumpri-los com lealdade). A sociedade humana sempre exigiu algo em troca da passagem para as responsabilidades da vida adulta; porém, nas sociedades contemporâneas industrializadas, altamente fragmentadas, com uma larga divisão do trabalho (especialização cada vez mais fina), dificilmente se alcançaria uma identidade social sem alguma(s) competência(s) e bastantes deveres. Praticamente tudo isso está normalizado em regras e leis (códigos laborais, deontológicos ou funcionais, etc.).
As identidades são, pelas mesmas razões, coisas sociais, objectos e factos sociais. Colam-se à pele do indivíduo, são a sua segunda pele. A bem dizer, o seu exterior e interior, socialmente falando, é a sua identidade. Dai a importância do nome (para ele e para os outros). Quando pronunciam o seu nome, os afectos ou desafectos, os sentimentos em suma, e os estatutos (status), vêm atrelados. «Quem é?», «Ah, é fulano!». Certamente que a ideia que os outros fazem de mim varia de pessoa para pessoa, mas permanece um algo que é invariável, ou pouco: «Fulano é professor». Certamente que professores há muitos, este ou outro papel social não sinaliza concretamente a minha pessoa singular; porém, é este sinal conjugado com outros, numa especie de hierarquia, ou de classificação (do mais geral ao mais particular), que fornece indicações cada vez mais precisas sobre quem sou.
Pois bem: se as identidades forem tão resistentes como julgo que são, tão fundamentais para a auto-percepção do indivíduo, então devo concluir que a perda da minha identidade, ou de elementos importantes dela mesma, é suficiente para provocar em mim um abalo profundo. Exemplifiquemos com o trabalhador que perdeu o emprego (como agora é usual dizer:«demasiado velho para arranjar outro, demasiado novo para ser reformado»: não é somente a sua situação económica e material que vai ao fundo, mas também a sua saúde mental. Se, para piorar a situação, reside em prédios de apartamentos, ou bairros urbanos descaracterizados e desumanizados, o indivíduo há-de sentir-se, com a sua vida arruinada, um resto ou sobra, um falhado. Náufrago infeliz de um naufrágio terrível. Fazem falta estudos empíricos psico-sociológicos em Portugal sobre este tremendo fenómeno do desemprego.
Mas também estudos sobre as consequências do trabalho precário. Tem que ver este com a identidade social? Evidentemente que sim. A auto-percepção, o auto-reconhecimento e aquele reconhecimento público (dos familiares, amigos, vizinhos) pelo qual se estrutura o auto-reconhecimento, é afectado por um estatuto instável, gasoso - para usar um antónimo de sólido-, por um emprego que não merece confiança tanto ao próprio como aos demais, pelo facto da insegurança que o define.
A segurança é um dos bens mais desejados pelos povos. É normal que prefiram, em certos casos, a segurança à liberdade. É difícil estruturar uma identidade (individual, comunitária, nacional) sobre uma permanente insegurança (permanente pelo menos na percepção dos indivíduos). Os sentimentos de segurança constituem um cimento das comunidades e, por conseguinte, da auto-identidade comunitária (étnica, regional, nacional). Os estados modernos vieram trazer (ou prometeram) essa segurança contra os arbítrios dos senhores feudais. Não admira que os filósofos e doutrinadores dos séculos dezasseis e dezassete se houvessem preocupado tanto com este traço da psicologia popular, nos seus esforços para apoiarem ou promoverem a construção dos Estados modernos.
A ideia da identidade parece-nos mais adequada se ela se considerar produto social, e tal permite a compreensão dos diversos tipos de identidade, elementos relativamente estáveis da realidade social objectiva. Ligam-se aos fenómenos da pertença ao grupo, às representações sociais que lhes estão associadas e ao facto destes se inserirem num contexto mais alargado, num universo comum que diferencia os grupos através das suas posições relativas e de modalidades diferentes de identidade social. Contudo, a pertença aos grupos depende do que estes são, de qual a posição objectiva destes na organização social total. Por outro lado, é necessário analisar os conteúdos concretos da identidade.
Não adianta muito analisar as identidades sem as inscrever nos conteúdos da ideologia dominante, a começar pela diferenciação, relevando os estereótipos e preconceitos, os modelos e as imagens difundidas pelos media mercantis e políticos. Os comportamentos competitivos, ditos «agressivos» pela ideologia do Mercado, são mais próprios das sociedades ocidentais actualmente, e é por isso que certas interpretações de doutrinas ou perspectivas filosóficas são vulgarizadas, como, por exemplo, o individualismo (vulgatas da «afirmação individual» ou da «singularidade»). Esta componente da ideologia que ora se propaga é contraditória com uma outra que espelha os interesses dominantes: a teoria da «empresa familiar». Esta contradição demonstra claramente como e de que é feita a Ideologia. Para o combate por um bom emprego apela-se – exige-se- o egoísmo agressivo; na empresa apela-se para o compromisso colectivo, o sentido e o valor de pertença a um grupo (sem contradições) competitivo, a «Empresa». O indivíduo balança entre dois comportamentos distintos e actua como um pobre comediante que acredita naquilo que representa. Na Empresa submete-se obedientemente ao «espírito de família», partícula do formigueiro trabalha para conservar e merecer a identidade da empresa (não a sua identidade operária, por exemplo), motivado pelos prémios prometidos e pelos «sucessos» da «sua» empresa. Os empresários e outros grupos dominantes ou que fabricam a ideologia que convém aos primeiros (professores, jornalistas e outros ideólogos) adoptam para si próprios a parte da ideologia que exalta o individualismo (basta observar a imagem que os homens mais ricos do país adoptam em frente das câmaras) – eles são os «sujeitos»-, os demais adoptam a representação -a categoria- de indiferenciados, números, «objectos», cidadãos invisíveis, que invejam os «sujeitos» (como outrora as plebes invejavam os nobres) ou se autoflagelam, vítimas da famosa falta de auto-estima...
Em muitos casos as depressões passam por aqui. Também por aqui passam as sublevações nos bairros periféricos das metrópoles. Uns, mortificam-se porque se sentem «zeros», outros, protestam violentamente contra a discriminação e o desprezo a que são votados.
As utopias das comunidades
A solução utópica que alguns autores célebres propõem é a formação de comunidades, e esforçam-se por descortinar comunidades (ou a sua necessidade manifesta pelos grupos considerados) por todo o lado. «A Comunidade que vem», chegam a escrever com irrecusável convicção. Sem que neguemos de modo algum a existência de comunidades (étnicas, nacionais, regionais, etc.), e as suas finalidades estimadas pelos seres humanos ou desejadas como Terras Prometidas onde há-de correr o leite e o mel, parece-nos, todavia, que lidamos ainda aqui com utopias abstractas. Neste caso, com velhas utopias repescadas e retocadas. Por vezes uma fórmula astuta para rejeitar ou evitar os grandes conflitos sociais, principalmente as Revoluções...A formação de novas comunidades ou a preservação das antigas, só por si, não derrota a «globalização», isto é, o imperialismo...
Descendo ao local
Tópicos : Ruralidades versus urbanidades. As transformações rápidas e a mudança de mentalidades (lenta). A morte da tradição, dos ritos, dos laços, dos valores, dos estatutos, da aldeia. Os novos estatutos sociais. A exclusão social. A aculturação.
O Concelho de Torres Vedras foi quase completamente rural até à década de setenta, excepto, obviamente, a própria Vila (habitação, comércio, serviços públicos); na indústria destacava-se absolutamente a Fábrica Hipólito. Desta realidade inferem-se duas observações: Primeira - A mentalidade rural (onde sobressaíam o peso e as características tipificadas da pequena propriedade rústica) marcadamente conservadora, sem identidade regionalista, individualismo camponês mitigado pelas relações de vizinhança, taxa elevada de analfabetismo, índices muito fracos de literacia, inexistência de uma opinião pública e de instituições de associativismo popular (rudimentar, tutelado) que apenas com as mudanças revolucionárias do pós-25 de Abril provocou um largo e profundo dinamismo. Segunda – O operariado, concentrado sobretudo na célebre Casa Hipólito, constituía um núcleo consistente com uma forte consciência de classe; após o encerramento da empresa, nos anos oitenta, o operariado dispersou-se e perdeu-se a coesão e a identidade; contudo, ainda que vindo a adquirir alguns dos traços próprios de novas actividades, muitos conservam comportamentos desse operariado no sentido clássico ao qual pertenceram.
O crescimento da cidade e suas periferias, o desenvolvimento da generalidade das freguesias, as novas acessibilidades (a A8, sobretudo), a proximidade da Capital e a ligação relativamente rápida com outros centros urbanos em crescimento acelerado, o impacto dos novos media e do marketing de consumo (e das grandes superfícies comerciais e Centros), a liberalização dos costumes, o aumento da literacia, todos estes fenómenos provocaram alterações importantes nos grupos e identidades. Apesar disso, as populações, de modo geral, conservam ainda traços – como que sobrepostos aos novos- de uma mentalidade rural. A mudança não é tão profunda como poderia parecer (ou se esperaria que sucedesse). Sob a epiderme latejam atitudes tipicamente conservadoras das origens rurais, a iliteracia, o analfabetismo funcional, os baixos índices de produção e consumo do conhecimento e da cultura, a pequenez da Opinião Pública, os espaços públicos sem dinamismo, escassa participação cívica e política ...Em termos regionais não se verifica nenhuma identidade, embora se fale muito em «Oeste». Aliás, não existindo Regiões em termos políticos (ainda que geográfica e economicamente possam ser realidades objectivas já, algumas desde há muito, o que não é, de modo algum o caso do chamado 'Oeste'), a Região do Oeste não existe pura e simplesmente, é pouco mais que um mito para uso político caseiro (ou mistificação). O «oestino» é um mera ficção. Não há identidade que suporte tal designação. Os alentejanos possuem-na. De resto, a capital do Concelho não exibe identidade, falta aos seus habitantes (com motivos de sobra) orgulho de habitar uma cidade com elementos objectivos (e, portanto, simbólicos) que a identifiquem pela positiva (como a cidade de Évora, por exemplo). A mobilidade da população (profissional, a dependência em relação a Lisboa) urbana, a conversão de áreas do concelho em dormitórios, dificultam a formação de uma identidade( agravada no futuro pela provável transformação numa periferia da Grande Lisboa, pelos colapsos sucessivos da agricultura, pelo ascenso rápido do sector terciário, pela atracção de um turismo uniforme e elitista que está em marcha).
As elites culturais foram exíguas por décadas a fio (provavelmente caberiam todos no mesmo Café). As elites políticas outro tanto, ainda que, em ambos os casos, se assista a um crescimento quantitativo e qualitativo relativamente acentuado nos últimos anos. As identidades sociais arrumavam-se com considerável precisão conforme a posse a distribuição da propriedade privada (terras, fábricas, lojas), a profissão (funcionários públicos, por exemplo), os cargos políticos e religiosos. As identidades menos consideradas cabiam evidentemente aos trabalhadores manuais (operários, serventes, sem qualificação profissional, camponeses).
A s transformações operadas pela conquista da Democracia, particularmente pela autêntica Revolução que abalou o país salazarento e atrasado a todos os títulos, produziram alterações na composição das elites (ascensão das urbanas sobre os estratos dominantes fundiários), com a «oferta» de novos estatutos sociais e, portanto, novos papéis e posições no campo social. Trabalhadores anteriormente relativamente modestos passaram a atribuírem-se estatutos com importância social (os empregados bancários, por exemplo, entre outros; entretanto, perderam-no já em boa parte); ao mesmo tempo, e gradualmente, profissionais com relativamente elevado estatuto (consideração e prestígio social) foram despojados dele. O caso dos funcionários públicos em geral e dos professores muito em particular; estes, não apenas lhes sucedeu tal na razão directa do aumento da escolaridade das populações e, por consequência, do aumento exponencial de professores, da sua feminilização, etc., como, nos últimos anos, têm sido um dos alvos preferenciais das políticas neo-liberais e de «combate ao déficit das contas públicas». O Governo em exercício recorreu a estratégias de despromoção dos funcionários públicos, fomentando a inveja e o ressentimento de outros estratos profissionais e sociais de modo a conquistar a simpatia destes para as suas «reformas» de natureza economicista. Em consequência, os estatutos socais receberam uma profunda erosão, determinadas profissões (mais ou menos equivalentes a posições sociais no modo-de-produção dos bens materiais e simbólicos) oferecem menores expectativas e, portanto, as identidades sociais correspondentes são menos desejadas (e menos consideradas socialmente).
O território denominado 'Oeste' (indeterminado: é uma Associação de municípios (AMO) que o identifica? Um nado-morto como a COMURB? A clássica Extremadura?) assistiu em diversos Concelhos ao desabrochar de colectividades populares com fins altruístas, particulares ou comunitários. Desempenharam um importante papel, infelizmente de pouca duração. As tutelas governamentais e municipais, a subsídiodependência, a fraca preparação cultural de não poucas direcções associativas, e outras razões, atrofiaram a sua vitalidade e espontaneidade, reduziram-nas frequentemente a desmesurados edifícios onde quase só funciona o Café. Essa experiência poderia ter sido de enorme valia na preservação dos laços sociais e das tradições locais, escolas de participação democrática e autonómica, com intervenção activa nos projectos de desenvolvimento económico e cultural.
Existem razões para todos e quaisquer fenómenos e existe uma racionalidade que admite a modernização sem crítica, na proporção directa da satisfação dos seus interesses particulares. Contudo, mesmo nos mais bem instalados e satisfeitos permanece (ou recrudesce) uma certa nostalgia pelo passado; a auto-satisfação evolui em conflito com as recordações mais ou menos idealizadas; o gosto apaixonado pelas tradições populares, rurais sobretudo, não é de todo (nunca foi) inconciliável com atitudes conservadoras (neste caso a aceitação do actual movimento das coisas), podendo ser até um traço forte das doutrinas reaccionárias. Contudo, este traço (a veemente defesa da criatividade popular genuína) pertence igualmente às doutrinas revolucionárias (neste caso, contra a actual política neo-liberal).
Um outro projecto de desenvolvimento do território denominado 'Oeste' haverá de passar pela constituição de Regiões, governadas por cidadãos eleitos por sufrágio directo, com assento na Assembleia da República, ou em Câmara própria, obrigados a projectar e a cumprir programas de grande escala, que tragam os benefícios da modernidade sem os seus prejuízos. Uma Região Oeste assim concebida pode ou deve conciliar a participação democrática das populações na resolução dos seus problemas, na qualificação dos seus recursos materiais e simbólicos, na revitalização das suas comunidades locais, e corporizar uma Identidade forte.
Subamos novamente
De resto, o Concelho de T. V. não é excepção no conjunto dos países e regiões de um mundo convulsionado pela globalização financeira e mediática e pelas políticas neo-liberais que marcaram o fim do milénio e esta década, e que continuam a alterar profundamente o modo de vida, de existir, de biliões de indivíduos. O capitalismo pós-moderno caracteriza-se por se apresentar como uma estratégia global concertada para vencer as crises que o perturbaram nos anos setenta. Trata-se de uma nova arrumação das forças sociais em conflito, com a tentativa de retomada da hegemonia tão absoluta quanto possível do grande capital internacional, destacando-se neste contexto o imperialismo sob a batuta note-americana, agressivo, belicoso, que, enquanto tenta dominar as rebeldias do Médio-Oriente, procura vias de confronto ou de consenso proveitoso com a temível expansão da China e da Índia.
A globalização (capitalista), o neo-liberalismo, o imperialismo neo-colonialista, o imenso poder dos media, as novas formas de proletarização (ou os novos proletários, se se preferir) à escala mundial, a poderosa acção das multinacionais no controlo dos recursos e dos produtos, as novas divisões sociais do trabalho, a estratégia para impor o trabalho precário e aumentar a produtividade e a competitividade à custa dos salários e do aumento das jornadas de trabalho (ainda que também com o investimento em capital fixo), a constituição de «exércitos» de mãos-de-obra desempregada ou «flutuante», da exclusão social (a chamada «economia dos dois terços»), todos estes elementos, e outros mais, desenham um novo campo social. As posições relativas dos indivíduos nas novas arrumações sociais do modo-de-produção capitalista, os papéis sociais criados e impostos a bem ou a mal, os estatutos correlativos modificados, provocam importantes alterações nas identidades sociais.
De um modo geral poder-se-á dizer que os indivíduos naufragados nestas novidades andam sem rumo ou sem futuro certo, em busca de uma identidade que perderam ou de uma nova que se assemelha mais a uma alucinação no deserto. Por conseguinte, e tendo à frente o conjunto (ainda um bocado difuso) das características do capitalismo pós-moderno, a questão da Identidade converteu-se num problema crucial do nosso tempo. É assim que assistimos tanto aos ataques do grande capital com vista à conquista de mercados, de «nichos» de negócios, de novos modelos de exploração (o modelo da «empresa familiar» e do neo-taylorismo), como a movimentos reactivos, como se verifica com o nacionalismo de orientação religiosa fundamentalista (um pouco por todo o mundo onde predomina a religião muçulmana), com as lutas tribais e étnicas (em África particularmente) que, em determinados casos, disfarçam ou “justificam” intromissões neocolonialistas apoiando “senhores da guerra” .
Ou seja: as insubmissões, as insurreições armadas, os conflitos locais, regionais ou mundiais, reflectem também a vontade de conservar ou conquistar uma identidade (ou reconquistar uma identidade perdida ). A globalização do grande capital (ou das multinacionais) tende a arrasar como um cilindro as identidades que existem e resistem há séculos ou mesmo milhares de anos. A Identidade é uma questão cultural, como é evidente, tem a ver com culturas locais, regionais ou nacionais (sem que o estado-Nação absorva toda a nação; no caso do Islão, por exemplo). É a Cultura, portanto, que atravessa (e não se sabe até onde) uma gigantesca crise (à escala planetária). O comportamento psico-social dos indivíduos perde o norte. O terrorismo (em ambos os sentidos: imperialista e reactivo) grassa com um forte componente identitário, a sublevação popular nas periferias das metrópoles europeias tende a agravar-se com as políticas neo-liberais e os fenómenos migratórios.
«Quem somos?»
«Quem sou eu?» - perguntarão muitos indivíduos assolados por um mundo de existências indefinidas. «Quem somos nós?», perguntam-se os muitos grupos sociais que se sentem e se querem diferentes, livres, independentes e desejosos de viver ou à sua antiga maneira ou consumir as mercadorias que os media e o marketing capitalista «oferecem».
Do que fica dito percebe-se que desde o inicio até ao fim esta exposição fala de indivíduos concretos -de carne e osso- que pertencem ou desejam pertencer a determinados grupos, sucedendo que, em muitos casos, tal pertença não depende da sua livre escolha, e que se comportam enquanto inseridos em um grupo, no interior do quadro de relações intergrupos. Esses grupos, como já o dissemos, são mui diversos, dinâmicos e mutáveis, numa dada formação social composta de classes sociais desigualmente dispostas. Por conseguinte, a resposta à interrogação «Quem sou eu?», depende desses enlaces/desenlaces, das transformações ocorridas na formação social, e dos graus de consciência e de satisfação que cada um experimenta nas relações do(s) seu(s) grupo(s) e da importância reconhecida a esse(s) grupo(s) pela organização social total.
Começa a propagar-se novamente uma velha ideia que designaremos por «comunitarismo». A história desta Ideia remonta a muitos séculos atrás; por isso, percorre toda a História das Ideias. Conquistou larga adesão no século dezanove com o Romantismo e o Modernismo, as construções utópicas romanescas e ensaiadas na prática, as doutrinas políticas anti-liberais (os socialismos, relevando-se os «comunismos»). Os Estados-nação com os seus nacionalismos e identidades supra-regionais, constituem um exemplo marcante, tanto da sua realidade e eficácia, como da sua fragilidade naqueles acasos em que a identidade coletiva é anterior ou transcende o Estado-Nação moderno. Múltiplos fenómenos ocorridos no século passado poriam em relevo a aspiração – latente ou nova- dos indivíduos virem a pertencer a antigas (sendo algumas meras invenções para fins propagandísticos) ou novas comunidades: o sionismo israelita; os palestinos e os seus territórios milenares; o fenómeno passageiro mas intenso «hippie» nos anos sessenta (reactivo, inconformista, multicultural) que se entrosou com os «ecologismos» de índole vária, os pós-modernismos “woke”, as seitas que abrangem um vasto reportório (desde os religiosos fundamentalistas nas Américas, passando por mitologias ressurgidas “célticas” e da «New Age», etc.).
A crer em autores diversos o «comunitarismo» anuncia-se na sociedade em-rede. Como consequência ou oposição. A «globalização» gera o seu contrário: o desejo de comunidade. Contradição antagónica (e agónica) ou o par que se completa? Por enquanto é o fenómeno do terrorismo que mais perturba as populações europeias, ignorantes das suas causas. Seria de todo conveniente, porém, que este fenómeno não se circunscrevesse ao chamado «fundamentalismo islâmico» - reactivo, inscrito em doutrinas teocráticas- mas que incluísse as estratégias expansionistas do Capitalismo Global que utiliza o próprio terrorismo.
A Ideologia
Envolvendo todos os fenómenos que citámos neste ensaio a Ideologia revela a sua dupla face de Jano. O modo de ser de cada indivíduo está pré-definido num universo simbólico-ideológico. O modo de pensar, sentir e agir, dos indivíduos de carne-e-osso (capitalistas de vários graus de poder, trabalhadores de diversas camadas, profissionais, consumidores, homens-mulheres, etc.) depende da ideologia dominante ou hegemónica, a qual exprime os interesses materiais dos grupos mais poderosos. A subjectividade de cada um -a construção do Eu- depende de fenómenos objectivos e sociais. Pode submeter-se (por interesse próprio ou porque introjecta a sua dependência) ou pode insurgir-se contra as sociedades de controlo, os imperialismos financeiros ou mediáticos, o status que outros lhe impõem (a si e aos seus semelhantes), a exclusão e a descriminação, a exploração económica de que é vítima. Em suma: contra a identidade social que lhe atribuem. Se unir-se aos seus semelhantes é vontade de constituir ou preservar uma comunidade ameaçada, essa decisão passa pela consciência de classe.. Entendemos neste caso «classe social» enquanto noção abrangente que identifica grupos sociais que exploram o trabalho vivo de um grupo social mais numeroso e este mesmo grupo. Queremos dizer, portanto, que estas condições objectivas – explorar ou ser explorado- constituem a base objectiva e subjectiva da Identidade social. Basta supor uma sociedade onde não houvesse exploradores e explorados para que tenhamos de admitir que seria completamente diferente os géneros de identidade. De resto, basta-nos o conhecimento científico de outras formas de exploração e, portanto, outras identidades já extintas . Os rituais, as tradições, as religiões, podem conservar traços já extintos de um modo de produção (como na Índia das castas, por exemplo) .
Essa base não exclui a existência de outras fontes da Identidade, algumas das quais já referimos (a força das religiões, por exemplo, é suficientemente relevante). A divisão social do trabalho, que enfatizamos justamente, não é separável de um determinado modo de produção.
O Trabalho
Daqui concluímos que o Trabalho fornece Identidade. O indivíduo identifica-se pelo tipo de trabalho a que se dedica, auto-constitui-se, expõe a sua identidade aos outros e, em muitos casos, viabiliza a sua integração social. Adiantamos com clareza o enunciado segundo o qual a sua personalidade depende da sua actividade social. O trabalho é não apenas uma relação determinada com a natureza da qual ele extrai os recursos, mas também da sua relação com a propriedade (conforme é sua, ou é de outrem). Trabalho e Propriedade: o par da equação.
Exemplifiquemos com este caso normalizado (regulado): a aposentação. Um professor actualmente sente como uma espécie de libertação a proximidade da reforma; depois, sentirá alívio e vontade de, enfim, dedicar-se aos seus projectos sempre adiados (actividade criadora, viagens...); durante algum tempo entretém-se. Verificará depressa que as suas conversas e entretenimentos remetem para o trabalho a que dedicou quarenta anos da sua vida (dedicou-lhe mais tempo do que a qualquer outra finalidade, incluindo muitas vezes a sua própria família). Recordações e mais recordações. Escreverá eventualmente sobre «ensino», «educação», «juventude», “tecnologias” e temas correlativos às funções que desempenhou. Aquilo que ele foi, já não é, mas permanece. Não se revê noutra identidade senão nessa. Não é outra pessoa. É a mesma, embora já não o seja.
A Alienação
Avancemos mais. É necessário recorrermos a outro conceito. O conceito de alienação. Alienar algo é separar-se disso, vender, trocar, oferecer, perder. O indivíduo que produz penosamente bens sucessivamente, com intervalos para alimentar-se, cuidar da família, comprar os bens que necessita para a reprodução da sua força de trabalho, não produz para si mesmo nem produz numa actividade livre. O que produz não lhe pertence, entrega-o, ele os fabrica mas não lhe pertencem desde o início. Nem já a sua força física e mental lhe pertence: vendeu-a. Nem fabrica o produto como o escultor fabrica uma estátua: fabrica uma peça, comanda uma máquina segundo os ritmos desta. O que sai das suas mãos é uma coisa estranha, no fim do processo não se reconhece nela. A Obra e o Processo subjuga o Artista. O Autor ocupa os seus tempos no exterior para se evadir, julgando-se livre: o exterior da Empresa é o interior da Empresa: o Mercado é o Espaço Público; nele o indivíduo gasta o salário comprando os bens que outros igualmente fabricaram e igualmente não possuem; paga as distracções, as doenças, a educação dos filhos...
A sua identidade objectiva é a de um ser explorado e submetido; subjectivamente introjecta a dominação. É dominado pelas forças para ele obscuras do Mercado, mal-diz da sua 'sorte' e de todos os governos que ele próprio ajudou a eleger, escolhe adentro do quadro estrito do bi-partidarismo (o erro de que virá a arrepender-se exprime sempre uma esperança mil vezes ensaiada), 'distrai-se' no sentido literal do termo, consome compulsivamente, move-se como um autómato -máquina desejante sem consciência da lógica que o faz desejar-, fragmenta-se, dissolve-se num mero número sem singularidade na multidão de clones que é a 'maioria', resmunga mas obedece, julga-se livre quando consegue flutuar à superfície empurrado pela corrente que o subjuga. A individualidade, a diferença, a liberdade, pouco mais sendo, de facto, que meros refrões apelativos do Mercado dos cifrões, injecta a arrogância e a agressividade convenientes. Também as alucinações são frequentes na esquizofrenia...
A classificação que utilizámos:«trabalhador», é no sentido abrangente, porém conforme graus diferenciados de exploração, posição ou lugar, relação com a propriedade dos meios e dos fins. Falamos de força de trabalho com maior ou menor grau de poder no processo da mercantilização e acumulação do capital (os gerentes e técnicos exercem papéis de poder dentro das empresas ; enfim, os diretores), mas também no processo de produção de bens simbólicos (científicos, ideológicos, artísticos, etc.) os quais são eles mesmos mercadorias ou em vias de o serem. E queremos incluir no processo geral da alienação camadas sociais «médias» que não cabem na classificação clássica de «proletariado». De resto, todas as classes e sub-classes constituem potenciais vítimas da alienação, e o consumismo e a religião constituem duas das suas manifestações mais evidentes.
As comunidades em-rede
A «globalização» corresponde à expansão planetária do modo de produção capitalista. Traduz no plano económico, dito «material», a interligação do capital financeiro, a rapidez e as poupanças na circulação das mercadorias e dos capitais e, no plano simbólico Ideológico, psicossocial), à hegemonização de representações sociais, atitudes e comportamentos, à escala universal, conduzindo a uma crescente identidade comum, semelhança nos gostos, nas escolhas, nos desejos. As «comunidades e-rede», como lhes chamo, não reagem a este fenómeno subversivamente mas, sobretudo, como epifenómenos, investindo na comunicação virtual. Paralelamente com a constituição de modalidades comunicacionais de uma novidade absoluta (tanto no ponto de vista técnico, como na possibilidade impensável há décadas atrás de estabelecer intercâmbios interculturais e interpessoais), desenvolve-se com uma velocidade e uma amplidão que ultrapassam as distopias mais negativas, uma tendência para a similitude, para a fabricação ou modelagem de clones ou cópias . Com os mesmos meios (os media) circulam mensagens ideológicas de sinal contrário, umas tendente à dominação e ao controlo, e outras reagindo e opondo-se (as petições, os jornais, revistas, blogs, as palavras-de-ordem convocando para manifestações, foruns e outras formas de luta e discussão). A Burguesia continua a levar a sua «civilização» a todos os pontos do globo, mas também, pelos seus próprios meios, a Reacção que se lhe opõe. Os seus coveiros...Como diria o filósofo G.W.-F. Hegel, a História caminha sempre, porém pelo seu lado mau...Contudo, se Napoleão espalhou pela Europa o código civil moderno e a ideia de Liberdade na ponta das baionetas, se o seu império de sangue derrubou monarquias obsoletas, a Burguesia contemporânea não transporta para o Médio oriente e para os outros continentes uma nova ideia de Liberdade mais progressista: derruba nações e nacionalismos, culturas e tradições, comunidades e modos alternativos de viver a existência, independências e autonomias. O «cidadão» que ela hoje exporta é o indivíduo sem espírito, narcisista e esquizofrénico de matriz norte-americana, alvo fácil das multinacionais. O modelo é tão repulsivo e o modo de fabricá-lo é tão brutal e neo-colonialista, que não surpreendem as explosões reactivas que vão estalando pelo mundo fora.
Conclusões finais:
Qualquer perspectiva sobre a Identidade que não a encare no interior dos grupos sociais, nos contextos concretos de determinadas relações sociais e inter-grupais, recorrendo à dialéctica dos conflitos e dos consensos, gerados no modo de produzir e nos modos historicamente determinados de ser, não alcança o seu objectivo. As identidades são fenómenos históricos, estão aí e ao mesmo tempo já estão minadas pela toupeira. O presente é o momento do triunfo da «globalização». Mas é também do crescimento das forças reactivas (nomeadamente a formação dos chamados BRICs, uma Nova Ordem mundial) e o declínio da hegemonia norte-americana.
O conceito complementar e não necessariamente contrário de identidade é o da diferença. É através de semelhanças e comparações, de operações mentais e de observação empírica (com a intervenção inclusiva da ciência e da práxis política) que reconhecemos a identidade dos seres e das coisas (classes, grupos e conjuntos, géneros, espécies, etc.). A Declaração Universal dos Direitos do Homem é um exemplo da afirmação da nossa identidade comum. A sua negação ou incumprimento demonstra claramente que a Diferença é Contradição. Tornar concreto tudo aquilo que em abstrato a civilização tem reafirmado como idêntico, é um grande e inacabado programa de ação. É uma utopia em ação. Não colide de modo nenhum com a afirmação de que existem diferenças que devemos respeitar, sendo esta também uma enorme conquista da razão humana e da práxis política. O direito à diferença relativa não é somente importante para as minorias (étnicas, homossexuais, culturais), é decisivamente indispensável para uma sociedade regida por regras democráticas, pois que tratamos aqui dos direitos de oposição e de resistência, das liberdades individuais, do pluralismo, das liberdades de expressão e de organização. As associações populares (que podem exprimir os costumes locais) não colidem com o Estado, é este que deve respeitá-las na sua autonomia. Do mesmo modo o indivíduo pertence e gosta de pertencer a grupos, mas estes devem respeitar a sua autonomia.
O grande e grave problema do nosso tempo é a aplicação forçada ou perigosamente sedutora de uma uniformização global que exclui a autonomia dos povos e dos indivíduos.
Na arte a diferença manifesta-se na singularidade do objecto artístico.
Tanto na arte como na política e na vida em geral a diferença é muitas vezes a epifania do Novo. Este conceito – do Novo- é o conceito benjamim da filosofia.
(escrito em 2008, reescrito em 2025) José Augusto Nozes Pires