quarta-feira, 15 de maio de 2019


O EURO DA ALEMANHA

     Afirmar que «o euro foi o maior bónus que a Europa podia oferecer à Alemanha» (o primeiro ministro em entrevista, 24/03/ 2019) e não admitir que a moeda única, nessas circunstâncias, veio prejudicar Portugal mais do que beneficiar, e veio regular a economia por critérios monetaristas sob tutela de Bruxelas, é querer andar à chuva sem se molhar. A crise de 2007/8 deixou sequelas (uma dívida pública insustentável, que, na realidade, se deveu mais aos privados, aos Bancos); aliás, permanece a crise geral do próprio sistema capitalista (as crises de sobreprodução e subconsumo são endémicas ao capitalismo), agravadas pelo modelo neoliberal ao gosto do capital financeiro que domina na Europa. Não se trata para nós de querer sair à pressa e sozinhos; trata-se de afirmar a nossa autonomia nas políticas económicas internas, de discutir as condições do pagamento da dívida para assim aumentar os investimentos públicos. O “pragmatismo” de determinados políticos (senão mesmo dos partidos ditos socialistas) disfarça mal a falta de propostas corajosas na arena internacional em defesa dos Estados sociais (em termos de reformas, é o mínimo que se pode exigir). O discurso populista das extremas-direitas contra a União não tem nada que ver com as críticas da Esquerda a esta União Europeia de moeda única. Denunciar consequências negativas desta União sobre os trabalhadores europeus não faz de um fascista um socialista.
Existem alguns países na Europa onde se alcançam os mais altos índices de qualidade de vida do planeta (Holanda, Suíça, Noruega), a Europa centro-norte de modo geral, nem todos eles são membros plenos da União Europeia (alguns não quiseram ser membros efectivos desta União). Dir-se-á que é devido a esta União Europeia do Euro que esses países gozam de prosperidade suficiente comparativamente (não esquecer as desigualdades profundas). Tê-la-iam provavelmente sem esta União, porque beneficiam de acordos comerciais multilaterais ou de um mercado que já era interligado. Quem tem beneficiado largamente é o gigantismo dos Bancos e a ganância capitalista por lucros quase isentos de impostos em alguns desses pequenos países.
Algumas melhorias na vida das populações (a mobilidade sobretudo) têm resultado inegavelmente de leis aprovadas no Parlamento europeu. Por isso é necessário participar nas próximas eleições, votando naqueles partidos da Europa que se propõem um papel progressista e reivindicativo no interesse dos trabalhadores e dos povos e que, para isso, desejam serviços sociais melhores, paz e cooperação entre os países membros.
A aspiração a uma Europa de Paz é antiga, verdadeiramente desde que a Europa começou com a Modernidade. O primeiro século da nova Era foi terrível. A Paz de Vestefália (1660) veio pôr tréguas, relativamente longas, às guerras internas entre os impérios continentais. O século XIX foi, sobretudo, o século das revoluções demoliberais na Europa e dos impérios coloniais. O século seguinte, esse sim, foi o século da mais profunda oposição: o século das revoluções socialistas contra o capitalismo das crises económicas devastadoras, das guerras mundiais, do jugo colonial. Competição feroz intercapitalista sob a forma de nacionalismos agressivos. Ou seja, o imperialismo contemporâneo.
Entre as duas guerras mundiais surgiram várias propostas para organizar cartéis do carvão e do aço, algumas das principais causas das cobiças nacionalistas. Talvez o primeiro projeto publicado para a paz tenha sido o de R. Condenhove-Kalugi, PARA A EUROPA, em 1922, a partir do qual se formou um importante movimento pró-europeu, sem a inclusão da Rússia – União Soviética (por ser em parte não-europeia) e do Reino Unido, pois, assim, diziam, evitava-se a ameaça do domínio do exército vermelho, por um lado e, por outro, o domínio económico dos EUA e do então império britânico. Constitui-se uma União Pan-Europeia (1923) de que foi Presidente o Aristide Briand, Prémio Nobel da Paz e foi tal a fé na cooperação pacífica entre estados soberanos que conquistou a mente de grandes intelectuais europeus: Thomas Mann, Einstein, Picasso, Appolinaire, Rilke, Saint John Perse. Em 29 Briand adiantou-se: quis essa Europa em moldes federais com um mercado comum e políticas comuns (comunicações, emprego, cooperação intelectual) mas, porque recebeu o apoio de poderosas empresas, o projecto não teve pernas para andar num período cujas divisões políticas esquerda-direita eram demasiado profundas (algo confusas, diga-se). A Esquerda recusou. Em 1941 surgiu um Movimento federalista Europeu, expressão da resistência à ocupação dos exércitos alemães, que advogava um federalismo democrático para encerrar de vez a pré-história dos impérios e dos nacionalismos na Europa. Chega o fim da guerra e os Aliados propõem-se organizar uma união federal mas já com o principal propósito de encostarem “ao Muro” os países socialistas da «Cortina de Ferro». A famosa expressão de Churchill, que ambicionava tomar o comando europeu e que foi, de facto, o grande obreiro da “Guerra Fria” (na opinião dele devia ser “quente” e esmagar a União Soviética).
O federalismo foi uma ideia promovida por Proudhon (1809-1865) e um projecto utópico levado a sério pelos socialistas do mutualismo e do cooperativismo, e pelas correntes anarquistas muitíssimo influentes nos países meridionais. O nosso conterrâneo José Félix Henriques Nogueira, o introdutor das ideias socialistas em Portugal por volta de 1850, fora já então adepto de uma união ibérica e uma dezena de anos depois o socialista Antero de Quental simpatizou com esse projecto de uma união pacifista, naturalmente sem a hegemonia do grande capital.
Em Maio de 1948 reúne-se o Congresso Federalista de Haia, com o propósito, entre outros, de contrariar os planos da CIA e dos serviços secretos britânicos para financiarem a criação de uma moeda única europeia, sob tutela, evidentemente, dos EUA, que financiaram a reconstrução dos países (da Alemanha sobretudo) no pós-guerra. Será esse Plano Marshall que irá ditar os rumos da Europa: quem é nosso amigo e quem é nosso inimigo. Em 1949 é organizada a OTAN e o terror de uma terceira guerra instala-se de novo em todos os lares.
Em 25 de Março de 1957 o Tratado de Roma cria a Comunidade Económica Europeia. O político J.J. Servan-Schreiber promoveu o mito de que a CEE seria «a resposta europeia ao desafio americano». Um simples mito de propaganda, porque, na verdade, a CEE não se formaria se os EUA não a quisessem. Chegara a fase do capitalismo financeiro, nos anos 80, do neoliberalismo, já sob o impulso decisivo da “Grande Alemanha”, recomposta após o colapso da RDA nos anos 90. O pior estaria para vir depois do Tratado de 1992: cerca de cinco anos depois estabelece-se o Pacto de Estabilidade e Crescimento, o tal que submete as políticas dos estados membros a severos critérios monetaristas de contabilidade de merceeiro, com o fito mal enviesado de destruir todos os avanços sociais. Desistiram da Constituição europeia porque os povos recusaram, porém existem de facto várias instituições supranacionais e federais e um determinado ordenamento jurídico, no qual, no meio de aspectos positivos, os interesses do grande capital estão bem protegidos, como se viu, entre outros exemplos, pela legitimação das exigências que acompanharam os empréstimos à Grécia e a Portugal.
Leis e direito internacional? As instituições internacionais da indústria, do comércio, das finanças e do crédito, estão mas mãos de supercapitalistas e seus gerentes mediáticos: o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização de Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), a organização Mundial do Comércio, etc. O Banco federal alemão almoça à mesma mesa com o Banco Central europeu, que gere o euro.
Claro que o inferno está cheio de boas intenções: O Tratado de Maastricht proclama que «a comunidade e os estados membros terão por objectivos a promoção do emprego, a melhoria das condições de vida e de trabalho, uma protecção social adequada, etc.». Vimos isto sob o consulado PSD-CDS-Troika entre nós, não vimos? Vimos na política financeira de auxílio aos banqueiros com o dinheiro dos trabalhadores, não vimos? Na redução brutal do investimento público no SNS, nas privatizações, etc. não vimos?
Em 2017 um quarto (23,3%) da população portuguesa estava em risco de cair na pobreza (na União Europeia a percentagem era de 22,5). O número de empregos precários (sem contratos, sem direitos) foi crescendo cá e lá e é por isso que governantes e patrões proclamam a “extraordinária” descida do desemprego…
Há uma parte da social-democracia que, embora julgue que é melhor estar-se com o euro do que sem ele, advoga reformas para harmonizar o crescimento entre o norte e o sul e outras medidas progressistas, mas é como esperar que a raposa se torne vegetariana. A Alemanha ganhou tudo com o euro e apenas admitirá as mudanças que convierem aos seus bancos e empresas. A União de 28 países é hoje a concentração e centralização do grande capital nas economias mais ricas do centro e norte, explorando as economias do sul, sufocando-as, incapaz de se afirmar no mundo como potência não imperialista, com uma economia fortemente social.

J. NOZES PIRES

Publicado no semanário regional BADALADAS, Abril 2019