quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

 

CRÍTICA DA RAZÃO CONSENSUAL- Fascismo versus comunismo

Capítulo I- O Pavilhão da Mentira

«Somente duas coisas são infinitas: o Universo e a estupidez humana. E não estou seguro quanto à primeira.» Albert Einstein

    Celebramos o centenário da Grande Revolução Socialista Soviética. Sociedade sonhada de mil maneiras pelos oprimidos de sempre nos cânticos de trabalho servil, nos romances utópicos, nas revoltas camponesas, nas grandes revoluções da Modernidade, nas experiências sociais de visionários, nas insurreições dos escravos nas Américas, na Comuna de Paris, no potencial subversivo do génio artístico. Contra esse acontecimento pioneiro na história da Humanidade assistimos a velhas e redobradas campanhas da Direita neoliberal. Assistimos à reinvenção de velhas mentiras contra o Acontecimento que rompeu com milhares de anos de História e marcou de forma indelével o mundo nos cem anos que se seguiram.

Os comunistas são alvos constantes de calúnias, desde logo no decurso das vidas admiráveis de Karl Marx e Friedrich Engels. Alvos da fúria assassina do nazi-fascismo, alvos na “Guerra Fria” promovida pelos EUA e seus aliados, continuamente até ao período presente. Perseguidos e caluniados inclusivamente todos aqueles democratas que apenas manifestaram alguma simpatia e compreensão com os comunistas, como se verificou no período de a “caça às bruxas” do macarthismo, na ditadura de Salazar-Caetano e no Chile sob a ditadura de Pinochet. A “Guerra Fria” não foi senão o curso de sucessivas “guerras quentes”, desde a Coreia ao Vietnam e ao Médio Oriente, da África à América Latina, sem esquecermos a nossa Revolução dos Cravos.

Não é somente a extrema-direita que odeia os movimentos, partidos e governos que se reivindicam do projeto socialista e comunista, são todas as formações políticas pró-capitalistas, qualquer que seja o seu nome. Os nomes são palavras; com estas tanto se diz a verdade como se mente. Nacional-Socialismo, Estado Corporativo, Estado Novo, democracia orgânica, Frente Nacional, democracia…tudo são palavras para disfarçar uma finalidade principal: a acumulação de capital e a taxa de lucro conveniente.

O ódio, a difamação, a mentira, não têm limites. A “moral” da Política é, sobretudo, a política da Economia. Quem quer que queira honestamente conhecer a verdade pode somar os milhões de mortos de todas as guerras contra o socialismo e o comunismo. Compreenderá facilmente que o principal inimigo, o alvo e a vítima, desde há quase duzentos anos, do Capital, são os trabalhadores e os povos que dele se querem libertar.

Um jornalista da televisão pública que destila notícias distorcidas na mente dos portugueses que pagam a dita é também romancista. Dá pelo nome de José Rodrigues dos Santos. Lamentavelmente, vende bem a má mercadoria.

Obriga-nos a prestar-lhe atenção, quando, como escritor, não perderíamos com ele um minuto sequer. Trata-se dos seus últimos livros, “As Flores de Lótus” e «O Pavilhão Púrpura». E ameaça-nos com uma trilogia…

O livro narra as deambulações de quatro personagens distintas, na China, Japão, Ucrânia e Portugal, nos anos trinta do século passado, década que antecedeu a Segunda Guerra Mundial.

O romance carece de envergadura literária e não permanecerá na história da literatura mais tempo que outras novelas de “aeroporto” igualmente de grande sucesso comercial. Contudo não me ocuparei a demonstrar a técnica astuta que caracteriza essa literatura comercial vulgar: o uso abundante de clichés, o arranjo de personagens estereotipadas, a esperteza de provocar sentimentos mórbidos, os diálogos postiços.

Os acontecimentos (a guerra civil na China, a ascensão do fascismo no Japão, a coletivização da agricultura na União Soviética) são narrados com o artifício da simplificação e com o recurso ao velho esquema novelesco dos “bons” e dos “vilões”, maldade pura e pura inocência. A subjetividade é o ingrediente fundamental de um escritor: narra conforme ele sente e julga. Mas, no caso que me importa, é um juízo de valor apriorístico que distorce deliberadamente os factos objetivos.

Qual é, então, a mensagem política que nos obriga a desmentir categoricamente?

A seguinte: o nazi-fascismo tem origens no marxismo! Se o leitor à partida repudia o nazi-fascismo, então que ele saiba que mais diabólica é a doutrina que o gerou. Nem mais.

J. R. dos Santos deita mão do truque do narrador iluminado que descreve a maldade de uma “monstruosa” doutrina e suas vítimas (gente angelical sem preconceitos, ideologias, contradições).

De Salazar compõe-se o retrato de um estadista “maquiavélico” mas com um sentido positivo: astuto mas desinteressado. No livro, em um diálogo com um militar que mostra antipatizar com a fação do «Nacional-sindicalismo», Salazar explica-lhe que a Mocidade Portuguesa e outras organizações servem apenas para apaziguar os adeptos fascistas de Rolão Preto; e que se inspirou na Carta del Lavoro de Mussolini porque é preciso “concentrarmo-nos no que essas correntes têm de meritório”. O ditador é tratado por presumida vox populi como o “Toninho”. Uma ternura.

Em declarações públicas J.R. dos Santos em sua defesa recorre aos chamados «historiadores revisionistas» como se estes tivessem sido autoridades científicas indiscutíveis, quando, na verdade, têm sido desmentidos e mesmo em alguns casos ridicularizados pelos seus pares.

 O pensamento de J.R. dos Santos é uma amálgama de contradições e juízos falaciosos: o fascismo (refere-se ao italiano? ao nazismo?) “é uma das revisões do marxismo”. O que sobra então do original? Nada, porque, segundo ele, na realidade o fascismo é a origem do marxismo. É marxista o nacionalismo e o “socialismo” do Nacional-socialismo, o partido de Hitler. «Até que ponto um revisionismo ainda é marxista?», pergunta a criatura; pois, essa é a questão a que ele devia responder. Enfim, diz ele, «as origens…são em geral, múltiplas e variadas». Pois são. Provavelmente do próprio liberalismo…Do pensamento de Marx é que não há sinal nenhum.

 J.R. dos Santos vai buscar apoio em Georges Sorel e Otto Bauer.

Capítulo II- Sorel e Bauer

O pensamento de Georges Sorel (1847-1922) percorreu várias fases muito distintas. Inicialmente adepto do chamado “determinismo científico” (essa espécie de “marxismo” sem Marx) passou-se rapidamente para a versão, sempre revisionista, do marxismo como uma “doutrina ética”, ao modo de Bernstein e dos neo-kantianos. Do determinismo para o reformismo, estes paradoxos são bem conhecidos pelos marxistas. Novo trânsito: do reformismo para o voluntarismo do “sindicalismo revolucionário”. Embora um fruto das condições objetivas e subjetivas da época, à sua personalidade peculiar convinha esta escolha. Publica Réflexions sur la violence (1906), que o tornam célebre, onde advoga que na “guerra de classes” só os “mitos” possuem força suficiente para mobilizar as massas. Por conseguinte, as ideias apenas como mitos é que podem materializar-se com ímpeto revolucionário. A sociedade capitalista estava condenada, assistia-se ao seu declínio, porém ela somente seria derrubada por ações violentas, nomeadamente a “greve geral”. Desencantou-se, contudo, com o “sindicalismo revolucionário”, porque deste não brotou revolução alguma e… passou-se para a Direita. Tendo toda a vida enfatizado a “ação” voluntarista, acabou a admirar Mussolini! Sorel nunca foi realmente marxista; nem foi, é necessário dizê-lo, um fascista. Sendo certo que marcou profundamente o “sindicalismo revolucionário” e sendo certo também que o fascismo beneficiou muito com os seus livros.

Indiscutivelmente uma personalidade profundamente contraditória, dotada de enorme talento, com inegável influência num determinado período tumultuoso da história da Europa. O messianismo, os mitos e as utopias proliferavam em todos os quadrantes, na esquerda e na direita.

Nessa época o positivismo que fora predominante no pensamento burguês-liberal sofria já ataques e rejeições da intelectualidade. O “darwinismo social”, entrosado com filosofias dos “vitalismos”, impregnava as correntes ideológicas. Verificou-se isso em Portugal inclusivamente. Tanto na direita reacionária como em sectores da esquerda republicana. Conjugado com os nacionalismos fornecia um caldo favorável aos racismos. Desacreditado o racionalismo positivista, sem outro racionalismo burguês alternativo, abriu-se caminho a todo o tipo de irracionalismos. A “Destruição da Razão” (título de um livro célebre de G. Lukács) estava em marcha. As críticas à “Razão instrumental”, “manipuladora”, “burocrática”, advenientes de Max Weber, entre outros, encontram interpretações ideológico-políticas muito diferentes na Direita (Heidegger, Jünger, Klages) e na Esquerda (A Escola de Frankfurt- Horkheimer, Adorno), sendo que a receção e assimilação pelos públicos é confusa, isto é, parecendo que a Direita defende o mesmo que a Esquerda. A valorização dos mitos não é uma originalidade de Sorel, embora este houvesse sido o mais escritor mais influente à época, é um legado do Romantismo. Horkheimer e Adorno, muito depois de Sorel, demonstrariam a responsabilidade do Iluminismo e do liberalismo na produção dos novos mitos da Modernidade e, consequentemente, o fascismo não estava disso desligado. No nazismo expressa-se, por exemplo, nas expressões “sangue”, “terra”, “heroísmo”. Esses apelos constituem ingredientes fundamentais dos movimentos de massas na Alemanha nazi em políticas de “vida saudável” desportiva ou campesina, nos imponentes cenários que pareciam fascinar a juventude. E na guerra e na violência. Ao mesmo tempo que confluíam para as cidades contingentes de camponeses pobres, a intelectualidade dedicava-se a demolir o modo de vida “burguês”, acomodado e “normalizado”. Símbolo deste “burguês” era o Judeu…Os mitos confundem-se com os preconceitos.

 Sorel defendeu que a revolução teria de ser provocada por uma vanguarda com recurso à violência; porém, tal tática voluntarista já fora defendida muito antes por Louis-August Blanqui (1805-1881, o blanquismo foi muito influente na Comuna de Paris de 1871) e por Mikhail Bakunine (1814-1876, doutrinário anarquista adversário do marxismo). Marx, como é sabido, combateu com dureza as teses anarquistas de Bakunine. E não foi seguramente em Sorel que Lenine e os bolchevistas se inspiraram, mas nas condições concretas da Rússia no período entre Fevereiro e Novembro (Outubro) do ano transcendente de 1917.

Em suma: Georges Sorel foi um efeito da mentalidade da época e da crise da ideologia burguesa liberal, como foi, ele próprio, um catalisador dessa crise. Os seus escritos que, em rigor, em nada se sustentavam na Teoria Crítica de Marx, foram inegavelmente muito influentes no sindicalismo revolucionário anarquista que disputava a hegemonia com a doutrina marxista-leninista no espaço ideológico e político dos movimentos operários europeus nos anos anteriores à Segunda Guerra Mundial.

Otto Bauer – 1881-1938

 Foi, numa primeira fase da sua vida, um notável filósofo austríaco. Colaborou com o teórico reformista Karl Kautsky (1854-1938) na revista que este dirigia, Die Neue Zeit. Em 1907 publicou um estudo pioneiro no marxismo sobre a questão das nacionalidades e do nacionalismo, a pedido de Viktor Adler. Fundou com Karl Renner (importante estudioso do Direito burguês-liberal) a revista teórica do partido social-democrata Der Kampf. Em 1936 publicou um famoso estudo do fascismo. O chamado “austro marxismo”, o qual mais tarde influenciou a “Nova Esquerda” e o “eurocomunismo”, deveu-se a Bauer, Adler, Renner e Rudolph Hilferding e Friedrich Adler, todos eles destacados dirigentes do partido social-democrata (revisionista) da Áustria. Otto Bauer censuraria asperamente a Revolução dirigida pelo partido bolchevique, opondo-lhe uma “terceira via” não violenta, não dirigista e não burocrática, no seu entender; na prática, colaborou ativamente na repressão violenta das ações revolucionárias da classe operária. Bauer foi de facto um revisionista que municiou com argumentos os inimigos das revoluções socialistas dos trabalhadores.

Ainda assim, não é correto desprezar obras suas importantes na época, como, por exemplo, A Questão das Nacionalidades e a Social-Democracia. O problema das autonomias e independências nacionais era, de facto, um problema real e candente nas condições concretas daquela época antes da Primeira Guerra e durante o período entre as Guerras Mundiais. O nazi-fascismo interpretou-o a seu modo: chauvinismo militarista, expansionista e imperialista, racista e colonialista. A Áustria, pátria de Bauer, havia sido a cabeça de um império que ruiu com a Primeira Guerra, desencadeando-se, por consequência, tremendos problemas com as nacionalidades. Os respetivos partidos social-democratas dividiram-se por causa das “suas” nacionalidades, impregnando de nacionalismos a doutrina socialista (tal como se haviam oposto, uns, a favor, outros, da intervenção dos seus países na Primeira Grande Guerra). A atitude das social-democracias de oposição ativa às revoluções operárias, porque as achavam sempre de inspiração bolchevique (e russa), era usual, a sua marca distintiva digamos assim, mas nem por isso merecem de modo algum ser colocados numa frente unida com os nazi-fascismos. Otto Bauer defendeu que a “Nação” e o nacionalismo eram termos e temas que serviam melhor a mobilização das massas que a luta de classes, pensando evidentemente no seu próprio país. Em que é que esta tese é marxista, se não na mais espúria revisão? Por outro lado, no seu texto «O Fascismo», de 1936, um escrito notável e pioneiro sobre os movimentos de massas fascistas, Bauer sustentava então que a principal tarefa do nazi-fascismo era destruir o movimento operário, nomeadamente o reformismo.

 

Os «revisionistas históricos»

No fim dos anos oitenta alguns historiadores provocaram uma acesa polémica nos círculos académicos franceses e alemães. O assunto prendia-se com as comemorações do bicentenário da Grande Revolução Francesa (1989), porém, depressa alastrou para o real objetivo: atacar o socialismo e o projeto comunista e dar assim uma mão à destruição da URSS. Foi, de facto, uma manobra habilmente concertada. Surpreendeu e indignou historiadores probos o desrespeito pela prova documental e a revisão descaradamente ideológica de factos comprovados. No caso da Alemanha os “revisionistas históricos” serviram conscientemente os objetivos da campanha orquestrada pela coligação democrata-cristã que visava ganhar as eleições, tendo como pretexto a visita do presidente Reagan ao cemitério alemão em Bitburg, em 8 de Maio de 1985. 

A corrente do “revisionismo histórico”, iniciada nos anos 80, acusa as revoluções de todos os males, a começar pela própria Revolução Francesa, salvaguardando cuidadosamente a Revolução Americana que, aliás, lhe é anterior (pois esta não afetara os interesses dos latifundiários esclavagistas). Coloca na França, portanto, as origens das revoluções da época moderna, ou seja, socialistas, pois, segundo eles, foi a Revolução jacobina que transmitiu o vírus do “Terror” às revoluções comunistas.

O revisionismo histórico na sua vertente mais reacionária inculpa os comunistas de todos os males do mundo, não somente o chamado “estalinismo”, mas o próprio marxismo.

Deste modo encontram-se todos à mesma mesa: os críticos antiliberais reacionários do século dezanove que odiaram a Revolução Francesa e os “revisionistas históricos” neoliberais nossos contemporâneos. Sem contradições.

Ernst NOLTE

O caso de Ernst Nolte (1923-2016) é elucidativo. Esta figura principal do «revisionismo histórico» germânico foi aluno e, depois, amigo de M. Heidegger e de Eugen Fink, filósofos nazis como se sabe. Construiu a ficção de que o nazismo foi um movimento reativo ao bolchevismo e, daí, que os campos de extermínio tivessem sido uma repetição consequente à “política de extermínio” de Estaline na Ucrânia. O “genocídio de uma raça” correspondia ao “genocídio de uma classe” (os kulaques ou camponeses ricos). Gozando de prestígio intelectual provocou uma intensa querela afirmando que a Alemanha, o seu povo, necessitava de ser reabilitada da má imagem que o regime nazi lhe colara até à data (anos 80), e que merecia um novo nacionalismo. Afinal, a Alemanha (leia-se: o regime Nacional-Socialista) respondera com a guerra à ameaça da invasão dos “vermelhos”, uma espécie de política legítima e patriótica…Historiadores e filósofos reputados (Habermas, Benjamin Weber, Eberhard Jäckel) manifestaram publicamente a sua indignação, argumentando que estas teses mirabolantes serviam um propósito (voluntário ou involuntário): justificar os horrores perpetrados pelos nazis. Pelos vistos tais teses não desapareceram do arsenal anticomunista dos pequenos Rodrigues dos Santos deste pequeno mundo.

Robert CONQUEST

  Uma das figuras de proa dos «revisionistas históricos», o historiador britânico Robert Conquest (1917-2015), publicou alguns livros de grande sucesso nos círculos neoliberais, nomeadamente «O Grande Terror» (1968) e Harvest of Sorrow (1986), ambos largamente aproveitados em documentários para televisão e abundantemente citados pelos seus confrades. Deu um importante contributo para a reeleição de Reagan e para a corrida aos armamentos com o livro Que fazer quando os russos chegarem: um manual de sobrevivência, uma autêntica peça de terrorismo psicológico. Escreveu discursos para Margarete Thatcher e deu-se muito bem com a belicista Condoleeza Rice. Tudo bons amigos. Foi, evidentemente, galardoado com a “Medalha Presidencial da Liberdade” em 2015, por Georges W. Bush. Aderira ao Partido Comunista britânico em 1937, do qual, obviamente se afastou em 1945. Na realidade fora espião na Segunda Guerra Mundial. Manteve-se a trabalhar num departamento de contrainformação (IRD) dos serviços secretos ingleses. Quais foram as fontes principais dos seus livros sobre a coletivização e a fome na Ucrânia? Foi buscar informação e testemunhos aos antigos efetivos da divisão Waffen-SS Galitchina  e do “Exército Insurrecional Ucraniano” que a perpetraram a “limpeza étnica”!

Capítulo II- Elementos para uma história do Terror

A propaganda anticomunista procura instalar a convicção de que a violência está associada ao comunismo. Na realidade, a violência dos pobres e oprimidos foi sempre provocada pela opressão cruel e violenta que cria os pobres e os subjuga. A revolta dos escravos e da plebe na Antiga Roma, dos camponeses no feudalismo, do povo de Paris em 1789 e em 1871…Os jacobinos foram inegavelmente violentos. E o Antigo Regime? A Reacção restauracionista (após a derrota de Napoleão) não foi menos brutal que o governo pequeno burguês dos jacobinos. A guerra que o império inglês conduzira contra as colónias norte-americanas, antes da Revolução Francesa, não foi menos brutal. A reacção da Vendeia, durante a Revolução Francesa, fomentada pelos aristocratas foragidos conluiados com os britânicos, fez muitas mais mortes que todos os aristocratas guilhotinados pelos jacobinos.

A Primeira Guerra Mundial foi muitíssimo mais violenta (vinte milhões de mortos) que a insurreição bolchevique na Rússia de 1917 (com escassas vítimas). O regime dos czares foi uma longa história de opressão e brutalidade sem limites (a manifestação pacífica de 1905 foi esmagada a tiro e com cavalaria).

Os anarquistas começaram por aplicar a “ação direta” (recorrendo a táticas de violência) para mais tarde, depois da repressão dura dos seus efetivos, optarem pelo “sindicalismo revolucionário”, que acreditava preparar pela propaganda as massas para a greve geral que arruinaria o capitalismo. Alguns atos cometidos por grupos anarquistas radicais ou isolados das massas provocaram graves consequências. No entanto, o anarquismo em geral era e é pacifista (o anarquismo libertário proudhoniano, por exemplo). Como é sabido, não teve origem alguma na Teoria comunista de Karl Marx.

Nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, todos os países de regimes liberais reprimiram violentamente as associações populares e as greves operárias. A Grã-Bretanha, dita democracia exemplar, muito embora houvesse recorrido menos que outras nações à repressão violenta direta dos movimentos operários, usou-a desde o século dezanove. Lembre-se nomeadamente a extrema violência exercida sobre o povo colonizado da Irlanda.

Se a violência cometida pelos bolcheviques no fogo das guerras civis (guerra conduzida pelos contrarrevolucionários) está inscrita na matriz ideológica (a tal “ideia comunista”), segue-se logicamente que os crimes cometidos pelos liberais estão inscritos na “ideia liberal”; pelos sociais-democratas na “ideia social-democrata”; pelos cristãos das cruzadas, inquisição e conquistas ultramarinas, na “ideia cristã”; e assim por diante. O raciocínio perde todas as escalas de valores.

Distorcer o marxismo reduzindo-o a uma “Ideia” maligna é pura manobra ideológica. Explicar os conflitos sociais sob o esquema de “conflitos de ideias” é ela mesma uma explicação ideológica com a qual se disfarça e oculta as lutas de classes, a oposição irredutível dos interesses materiais das forças sociais em presença num determinado momento do processo histórico. Convertendo a contraditoriedade objetiva em puros discursos facilita-se qualquer interpretação arbitrária. O socialismo comunista de Marx-Engels não é uma “ideia” especulativa que se deve aferir exclusivamente por um julgamento moral. É a expressão dos interesses do proletariado moderno que luta por libertar-se das relações capitalistas objetivas que oprimem todas demais classes e camadas subordinadas. De certo modo, nem sequer é uma “ideia pura” o socialismo utópico de Étienne Cabet e outros sonhadores generosos.

É oportuno lembrar que os ideais de liberdade e de igualdade promovidos pelos intelectuais burgueses nunca foi do interesse prático da burguesia. O recurso à violência para se impedir a sua extensão e efetivação foi constante. A repressão sobre os “communards” de Paris de 1871 demonstra-o: mais de vinte mil foram fuzilados e milhares foram deportados para colónias infectas.

Basta lembrar o extermínio dos índios, a escravatura dos negros e a sua discriminação violenta até ao presente na dita pátria do liberalismo; o crudelíssimo colonialismo belga; a invasão da Coreia o apartheid pela minoria branca na África do Sul em moldes nazis; a invasão da Coreia e do Vietnam; a chacina de um milhão de comunistas na Indonésia apadrinhada pelos EU; os  mortos sem conta no Afeganistão desde o derrube do governo socialista até aos nossos dias; no Iraque; na Síria. O capitalismo é uma longa história de barbaridades. A finalidade do anticomunismo tem sido desviar a atenção dos crédulos.

Mais uma questão em que convém ver claro: a necessidade de substituir o Estado burguês por um Estado do proletariado (e seus aliados) implica a sua destruição e toda a destruição é violenta, como decorre da definição. Mas não significa de modo algum violência física, eliminação física das pessoas que nele se ocupam. Por mais violenta que tenha sido a resposta à reacção violenta da classe dominante, nenhuma revolução conhecida exterminou fisicamente os funcionários públicos…

A tática do terror

  Semear o terror através da violência e da disseminação de boatos foi a tática aplicada pelos nazis. Não foi indiscriminada, desprovida de finalidades (lembremos o incêndio do Reichstag). Em 1918 surgiram com a máxima brutalidade os Frei Korps, embrião do futuro partido nazi, unidades paramilitares de direita. É verdade que em determinado período verificaram-se alguns ataques violentos à propriedade por parte de grupúsculos anarquistas, censurada pelos dirigentes da esquerda marxista. A propaganda dos conservadores empolou esses atentados estendendo-os a toda a esquerda. O SPD (Partido Social-democrata) não se livrou da acusação: foi ilegalizado a seguir à tentativa de assassinato do imperador Guilherme I. Algumas organizações radicais de anarquistas eram constituídas por estudantes e pequenos homens de negócios frustrados, e aventureiros do lumpemproletariado, que ofereciam à polícia a justificação que esta desejava para reprimir a esquerda. É preciso que se diga que a grande maioria de anarquistas rejeitava o homicídio como modo de atuação política. Em Portugal os «carbonários» que assassinaram o rei, eram maçons e não anarquistas. Desde o século anterior que a propaganda conservadora aristocrática-burguesa apelidava de “terroristas” todo e qualquer anarquista, independentemente de serem realmente grupúsculos voluntaristas e isolados, ou de serem voluntariosos adeptos do cooperativismo pacífico e reformista. É certo que, como o dissemos, o “sindicalismo-revolucionário”, típico das primeiras décadas do século XX, muito forte na Itália e Espanha, propugnava derrubar a burguesia por meio da “greve geral” prolongada, e isso não sucederia sem alguma violência. Mas sem terror. A ala esquerda do SPD alemão, de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, fundadores da Liga Spartacus (1916), não advogaram nunca o recurso à violência que não fosse na insurreição revolucionária das massas operárias. Jamais ao terror.

Por conseguinte, a tática do terror não esteve, nem está, inscrita na matriz ideológica marxista, e nem mesmo anarquista. Foram os nazis que a utilizaram sobre o povo alemão, os judeus, os comunistas e outros democratas. Sob um clima de medo viveram os portugueses na ditadura mais longa da Europa.

No século vinte o povo de esquerda do Chile conheceu o terror da ditadura de Pinochet, o povo do Vietnam, do Laos e do Camboja, viveu e morreu sob o terror da invasão genocida dos EUA. Os britânicos massacraram o povo grego pró-comunista no pós-guerra, quem mais se lembra deste morticínio? E o que foi a “Guerra Fria” senão intermitentemente períodos de terror?

Em suma: a Teoria Crítica de Marx (nomeadamente expressa em termos de táticas em O Manifesto Comunista e A Guerra de Classes na França) não advoga o terrorismo. Quem o utilizou foi o nazi-fascismo. Quem a elas recorre frequentemente é a CIA e os Altos Comandos político-militares da administração norte-americana, armando e treinando os recentes terroristas neonazis do chamado ISIS.

A propaganda imperialista intoxica o povo americano há décadas continuamente com o espectro do chamado “Grande Terror”. A repressão política que se verificou no período que precedeu a agressão nazi não foi fruto de uma estratégia política deliberada, inscrita no projeto de construção do socialismo, mas precisamente devido às ameaças externas e às conspirações internas, ao medo e à suspeição. Não se negando de modo nenhum tais factos, brutais e excessivos, é necessário dizer que não foram fruto de uma ideologia. Esse foi o caso do regime nazi: desde o início toda a ideologia e todo o programa do partido de Hitler foi instaurar o terror interna e externamente para alcançar o poder absoluto e inocular nas massas ódio e desprezo por inimigos inventados. Tal se verificou também na sangrenta repressão do povo republicano-socialista; nas valas comuns cujo paradeiro ainda se desconhece ficou assinalado o ódio homicida dos fascistas espanhóis. Se o povo viveu sob o terror nos países do socialismo, porque não se assistiu à irrupção de um ódio coletivo e de uma vontade de justiça espontânea e violenta contra os dirigentes e os membros das polícias aquando da “queda do muro”? Quando se esperava uma guerra civil na Polónia (alguns a desejaram) - o povo “oprimido pelo comunismo” linchando nas ruas os tiranos- nada disto aconteceu. Nem na RDA.

Fala-se no terror revolucionário; porque não se fala no terror contrarrevolucionário?

Nozes Pires

 

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