Sobre o direito à cidade,
cultura e política dos comuns (alguns tópicos)
O direito à cidade é muito mais do
que a liberdade individual e o acesso aos recursos urbanos, é o direito de nos
transformarmos a nós mesmos ao mesmo tempo que transformamos a cidade.
David Harvey[1]
O Estado não deve desempenhar funções
que pertencem aos indivíduos e à sociedade,
sobretudo quando se apropria de
atividades não para as fazer funcionar melhor, mas para aumentar o seu poder.
António Teixeira Fernandes[2]
Néon realizado por Lauren Bon / Metabolic Studio (2008).
As organizações e os
atores sociais comprometidos com a defesa de uma sociedade civil plenamente
desenvolvida onde predomine uma cidadania ativa, responsável e emancipada,
devem unir esforços no sentido de ampliar os mecanismos democráticos à escala
municipal, debatendo e propondo medidas que visem a revitalização da
participação política e cultural enquanto ação colectiva do direito à cidade.
1- Estas duas dimensões do urbanismo e da democracia
contemporânea - a do direito à cidade e a da política dos comuns- assumem hoje
uma importância redobrada dada a encruzilhada em que nos encontramos enquanto
cidadãos do mundo, mas acima de tudo enquanto cidadãos que habitam um
determinado território geográfico. A importância da cidade é historicamente
inestimável, pois não há política sem cidade, não há história sem a história da
cidade e, nesse sentido, a cidade é a maior forma política da história.
2- Afirmar o direito à cidade equivale a afirmar o direito à
cultura, o direito à participação e à construção da vida pública - fazer
cidade -, pois sem cidade não há cultura e vice-versa. Portanto é também
este binómio cidade-cultura que nos interessa particularmente, ou trinómio:
cidade-cultura-cérebro (consciência e processo de individuação colectiva e
psicológica), que aliás hoje tem de contar ainda com a esfera cibernética, isto
é, com o ambiente tecnológico em que estamos imersos e que nos afecta
constantemente na era da ubiquidade computacional – a este propósito não
esqueçamos o que dizia Marshal
Mchluan, que os media (as tecnologias de comunicação e
informação em geral) agem como extensões do nosso sistema nervoso central. O modelo
computacional das Smart Cities, é já hoje o paradigma da computação
urbana e do controlo dos fluxos de informação entre cidadãos-cyborg
e a Internet das coisas impregnada na cidade.
3- Dito isto, comecemos, em jeito de diagnóstico, por uma
afirmação de Edgar Morin:
«Quando um sistema é incapaz de tratar os seus problemas vitais, se degrada ou
se desintegra ou então é capaz de suscitar um meta-sistema capaz de lidar com
seus problemas: ele se metamorfoseia». Esta metáfora da “metamorfose”, é útil
para sublinhar a encruzilhada em que nos encontramos na atualidade, depois de
décadas de globalização financeira, económica e cultural, neoliberalismo,
privatizações, desregulamentação dos mercados, militarização, vigilância e
controlo biopolítico, despolitização em larga escala, crise&troika,
antropoceno, capitaloceno, alterações climáticas, TTIP, automatização e
desemprego galopante, terrorismo e Estados de excepção (que segundo Giorgio
Agamben é a forma moderna de Estado)...
4- Em suma, ou nos metamorfoseamos ou desaparecemos, ou seja,
ou nos rendemos à barbárie ou avançamos e mudamos de vida. Isto enquanto
diagnóstico global tem também, obviamente, implicações à escala urbana, pois o
“efeito borboleta” é bem real. Pergunta
Immanuel Wallerstein: «Quem vencerá esta batalha? Ninguém pode prever. O resultado
será determinado por uma infinidade de nano-ações, adotadas por uma infinidade
de nano-atores, numa infinidade de nano-momentos. Em algum ponto, a tensão
entre as duas soluções alternativas vai pender definitivamente em favor de uma
ou outra. É o que nos dá esperança. O que cada um de nós fizer a cada momento,
sobre cada assunto imediato, importa.» (A crise do
capitalismo e o efeito-borboleta.)
5 – Ou seja, o que cada um de nós conseguir fazer à sua
escala humana de interação – a escala urbana – é determinante para a
“metamorfose”. Aliás foi para isso que a cidade foi inventada, como espaço
relacional a Polis é antes de mais o colectivo dos seus cidadãos. Antes de ser
um aglomerado de casas e ruas, a cidade é uma unidade sociocultural e política.
Nesse sentido, a cidadania forma-se na vivência e na aprendizagem em conjunto,
ou seja, a partir daquilo que Aristóteles designou como synoikismus: a
sinergética e vital condição humana do viver em conjunto, a sua condição de Zoon
politikón, do homem enquanto animal político.
6- A cidade deveria ser então a mais complexa forma das
realizações humanas (no plural), permitindo a vitalidade e a diversidade
cultural, a formação de capital social, a valorização dos indivíduos, do
quotidiano e dos espaços públicos socialmente apropriados. E na realidade o
potencial existe, existem estruturas administrativas públicas, instituições e
serviços públicos, mas como construir projectos coletivos na e para a cidade no
actual contexto global, europeu, nacional e local? Pergunta o geógrafo João
Seixas (2012, A Cidade na
Encruzilhada, Edições Afrontamento): Que novas estratégias
adoptar para o aprofundamento das estruturas democráticas e das cidadanias?
David Harvey responde que é necessário um sentido metabólico de constante
construção social, exigindo culturas, estruturas democráticas e
comunicacionais, a que chamou «utopia dialética».
7 – Apesar do potencial existente, como é constituída a
realidade urbana actual? De acordo com Seixas, o diagnóstico coincide com
aquilo que muitos de nós intuem ou se confrontam na prática: «uma parte
considerável do poder local encontra-se aprisionada por aparelhos partidários
com estratégias laterais e parcelares muitas vezes distintas das que poderiam
prosseguir objectivos mais colectivos (…) um débil sentido de estratégia e de
planeamento pró-activo (…) o desinteresse no desenvolvimento de culturas
activas de cooperação e de subsidariedade, a considerável distância face aos
cidadãos e às suas formas de expressão cívica (…) a falta de espaços e de
processos de participação dos cidadãos na vida da sua cidade».
8- Como reflexo de uma democracia e poder local centrados na
figura do César local (presidente de Câmara), diz Manuel Villaverde Cabral: «os
portugueses têm "muito" ou "algum" receio de exprimir
publicamente uma opinião contrária à das autoridades políticas»[3].Todavia,
esse silêncio não deve ser interpretado prematuramente como sinal de harmonia e
paz social. Também neste contexto, diz Arnaldo Ribeiro – em estudo sobre Governância
Municipal – que «o panorama nacional não será portanto muito
animador neste domínio, com o recalcamento da participação dos cidadãos nos
assuntos da coisa pública.». De forma idêntica, a análise do think thank
DEMOS intitulada Everyday
Democracy Index, coloca Portugal no 21º lugar no contexto dos
vinte e cinco países da União Europeia. No conjunto dos indicadores utilizados,
aquele que mais contribui para esta fraca posição é o relativo à participação
cívica.
9- Do ponto de vista do poder, qual a essência da cidade?
Henri Lefebvre diz que pela óptica do poder, a cidade, «desde há um século,
fervilha de atividades suspeitas, de delinquências: é um centro de agitação. O
poder do Estado e os grandes interesses económicos só podem conceber uma
estratégia: desvalorizar, degradar, destruir a sociedade urbana.» (2012, O
Direito à Cidade, Lisboa: Letra Livre, p. 87)
10- Depois deste breve diagnóstico, o que fazer? Lefebvre é
muito explicito: «Trata-se, em primeiro lugar, de desfazer as estratégias e
ideologias dominantes na sociedade actual (…) O “urbano” é assim obra dos
citadinos e não algo que lhes seja imposto como um sistema: como um livro
concluído (…) É uma forma mental e social: a da simultaneidade, a da reunião,
da convergência, dos encontros, um conjunto de diferenças. É um campo de
relações.» (idem., p. 114)
11- Mas «as estratégias e ideologias dominantes» estão
entranhadas/ incorporadas nas instituições sociais, culturais e nos serviços
públicos - a inércia, o laissez faire laissez passer – o deixa andar
impregnado pela lógica mercantil - daí ser necessário uma estratégia de práticas
instituintes no seio das instituições, que provoquem a sua re-instituição
democrática de alta intensidade, recentradas na mobilização de recursos e
condições para o exercício pleno das cidadanias. É preciso pois fazer infletir
as instituições existentes, abrir uma brecha e reivindicar um horizonte de
novas exigências socioculturais.
12- As instituições políticas existentes precisam de ser
reconfiguradas de modo a satisfazer novos anseios populares, defende o
sociólogo António
Teixeira Fernandes, pois a «cada fase de desenvolvimento da
democracia deve corresponder, na verdade, a sua própria forma de organização».
As práticas
instituintes contra-hegemónicas, e em particular as práticas
artísticas têm uma relação necessária com a política, porque, ou contribuem
para a reprodução do consenso operacional que cristaliza uma determinada
hegemonia, ou o desestabiliza. As práticas artísticas críticas são aquelas que,
de várias maneiras, desempenham um papel no processo de desarticulação /
rearticulação que caracteriza a política contra-hegemónica. Uma política
contra-hegemónica pretende atingir as instituições que destilam e solidificam a
hegemonia dominante, a fim de provocar transformações profundas na forma como
elas funcionam. Uma estratégia de "guerra de posição" (Gramsci) é
composta por uma diversidade de práticas e intervenções que operam numa
multiplicidade de espaços: económicos, legislativos, políticos e culturais.
Neste contexto, afirma Chantal
Mouffe: «As práticas artísticas críticas não contribuem para a luta
contra-hegemónica abandonando o terreno institucional, mas apenas envolvendo-se
nele com o objetivo de fomentar a dissensão e criar uma multiplicidade de
espaços agonísticos, onde o consenso dominante é desafiado e onde novos modos
de identificação são disponibilizados (...) Na nossa atualidade pós-política,
em que o discurso dominante tenta obstruir a própria possibilidade de uma
alternativa à ordem atual, todas as práticas que possam contribuir para a
subversão e a desestabilização do consenso neoliberal hegemónico são
bem-vindas.».
13- Há muitos e excelentes exemplos no campo pragmático das
práticas culturais em geral, e artísticas em particular. Uma política
fundamentada como direito universal, como bem comum e como sector produtivo,
que antes de mais parte do reconhecimento da sua dimensão política, isto é, da
convicção de que a transformação cultural está intimamente ligada à
transformação do político, é um eixo fundamental da proposta do Podemos-cultura:
a arte e a cultura partilham com a política a capacidade de ampliar os
horizonte de possibilidade, permitemnos construir enquanto comunidade um
presente concreto para imaginar um futuro que não nos pode ser roubado.
Neste sentido, a cultura – enquanto matéria de política pública – é entendida
como capacidade activa de cidadania, ou seja, como conjunto de ferramentas
simbólicas e conceptuais que os membros de uma comunidade necessitam para lidar
com a realidade difusa do mundo contemporâneo e para elaborar novas estratégias
de vida colectiva.
14- Na esfera das artes contemporâneas, as estratégias
situacionistas de detournement dos Yes Men,
a variedade de lutas urbanas do coletivo Reclaimg The
Streets, o acampamento, a desobediência civil anti-troika de Núria
Güell, a ocupação do Museu Chiado e outras iniciativas de artivismo
promovidas por Rui Mourão
em Lisboa, entre exemplos possíveis, demonstram a implicação social e a
potência disruptiva de projectos artísticos comprometidos com a proposta de um
horizonte radicalmente democrático e emancipador, isto é, com a democratização
da democracia, o que não significa «a
queda na anarquia nem sequer no populismo, traduz antes o respeito pela
expansão dos direitos humanos e pela afirmação de uma cidadania ativa» (António
Teixeira Fernandes).
15 – A crise financeira de 2008, e os seus efeitos
subsequentes, para além dos problemas políticos e sociais, veio a confirmar as
teses de Negri e Hardt acerca da passagem do direito público nacional para o
sistema imperial, leia-se perda de soberania económica e política para as mãos
do Eurogrupo e FMI, e trouxe também o reforço da ideia de “multitude” e uma
visão da possibilidade da cidadania global.
16- A noção de Bens Comuns (commons), a par da noção
de Espaço Público (Esfera Pública Urbana e Comunicacional – Relacional), incide
sobre os bens que se revelam indispensáveis para a garantia da vida de todos –
água, ar, bioesfera, alimentação, habitação, – e os serviços públicos
necessários a uma vida digna. Este era um entendimento histórico
pré-capitalista, mas a sacralização capitalista da propriedade privada como
matriz da relação entre pessoas e as coisas, e a transformação de coisas e
pessoas em mercadorias potenciais levou à quase extinção da realidade dos bens
comuns em favor da sua apropriação privada. É essa a história do neoliberalismo
contemporâneo e do fascismo financeiro (Boaventura Sousa Santos), quando
se começou a apropriar dos bens e serviços essenciais à vida digna de todos: da
privatização da água às florestas, à educação e saúde...
17- Como se sabe os governos nacionais tem basicamente
servido de intermediários dos mercados financeiros na facilitação da
transferência de recursos do trabalho para o capital, na facilitação da
privatização de serviços públicos e na consequente diminuição da ação política
à mera gestão económica e burocrática
dos ditames de Bruxelas.
18- A resposta a este novo e mais intenso ataque neoliberal,
podemos encontrar no paradigma histórico-revolucionário da Primavera de Praga
(1968), vimos há pouco tempo como a Primavera Arábe (2010) reacendeu a luta
contra as ditaduras e a opressão dos povos nas praças Tahrir e Taksim,
seguiram-se os Indignados, o movimento 15M em Espanha (2011), depois os Occupy
nos EUA, as praças Syntagma na Grécia, movimentos que deslocaram peças centrais
nas engrenagens da máquina política e continuam a supreender aqueles que
pensavam que estes movimentos não iriam resultar em nada. O movimento Barcelona en Comú é,
por sua vez, expressão de um novo municipalismo radical que propõe o
fortalecimento da gestão comum da saúde, política de habitação, ocupação dos
espaços públicos, uma plataforma aberta e participativa que agregou a
multiplicidade cidadã presente na cidade e seu desejo de fazer política fazendo
a própria cidade, a produção de novas institucionalidades enraizadas na vida
quotidiana – o fazer-cidade como o fazer colectivo que produz a política desde
baixo. Em Portugal, o Habita - Colectivo pelo Direito à Habitação e à Cidade,
vem defendendo e agindo para que a habitação e o urbanismo sejam parte de uma
política pública verdadeiramente participada e que combata todas as formas de
especulação imobiliária.
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