1º Encontro com a
Filosofia[1]
Apresentação
«Progresso ou Barbaria?»
Coube-me abrir o 1º Encontro
com a Filosofia, ideia que em menos de dois meses conseguimos
materializar. É sem dúvida a primeira vez que em Torres Vedras se realiza um
encontro de trabalhadores da Filosofia. O que já temos são os importantes Encontros de História. De resto,
generalizando porventura demasiado, este género de eventos não são vulgares,
sobretudo fora das Universidades.
Posto isto, não pretendemos
sobrevalorizar este nosso Encontro, mas situá-lo no espaço e no tempo. Conforme
ele decorra hoje tentaremos repeti-lo daqui a dois ou três meses. Para vos
falar com toda a franqueza, ambiciono que estes Encontros sejam um primeiro
passo para a fundação a breve trecho de uma Universidade Popular nesta cidade
do Oeste. Julgo que conhecem as finalidades dessas associações. Uma
Universidade Popular ofereceria a toda a gente, sem exclusões ou seleções,
conferências e cursos com especialistas de diversas áreas do saber, do fazer e
da criação artística.
Comecemos, pois, por este
Encontro. Trata-se de propiciar um espaço de diálogo com, principalmente, professores
do ensino secundário. Queremos que no próximo Encontro colaborem outros trabalhadores da cultura, não exclusivamente
profissionais da área das filosofias. Entenda-se a Filosofia não apenas aquela
atividade e especialidade a que se dedicam alguns docentes dos ramos de ensino
superior e secundário. Entenda-se a Filosofia como estudo, investigação e
reflexão aprofundados sobre temas e problemas com que o nosso viver quotidiano
se confronta. Certamente que a filosofia não é o mero senso comum, o
conhecimento do primeiro género na classificação de Baruch Espinosa, ou mera
ideologia. Todavia, o filosofar é mais comum do que acaso se julga. Não podemos
passar o tempo a ler e a remoer as páginas da Crítica da Razão Pura ou da
Fenomenologia do Espírito. Inevitavelmente, pelo menos para muitos, somos
impelidos a decifrar os códigos em que a natureza e a realidade social se
gostam de disfarçar ou ocultar. E fazemo-lo de diversos modos. Somos impelidos
a dar resposta, a compreender os desafios, os choques, as preocupações que nos
assaltam no presente. Vamos ao passado, aos grandes filósofos, não por devaneios
livrescos, mas para encontrar neles uma possível origem e formação dos modos
como hoje pensamos e, porventura, um método razoável para explicar o presente.
Nessa medida todos os acontecimentos são do interesse dos filósofos. Sócrates
discutia, a crer pelos soberbos diálogos de Platão, os assuntos que
interessavam à polis, essa relativamente pequena cidade de Atenas,
infinitamente mais pequena que as nossas megapolis. Discutia tudo que achava
necessário, para clarificar ideias e forjar conceitos, pois que a vocação da
filosofia é produzir conceitos ou sobre eles trabalhar. Discutia tudo que
enformava as relações sociais na democracia, quase tudo convenhamos, porque o
esclavagismo que permitia o famoso ócio dos cidadãos livres não parece ter
interessado o nosso filósofo. Tendo a filosofia nascido pelas condições de um
regime infinitamente mais democrático, apesar de tudo, que os despotismos
orientais, julgou-se que a Filosofia somente se produz nesses regimes. É um
erro. Houve filosofia no império romano, nos reinos obscurantistas de uma
determinada Idade Média Feudal, e prosseguiu nas brutais ditaduras do século
passado, incluindo aquela que perdurou mais de quatro décadas em Portugal. E
temos de admitir, mesmo que a contragosto, que não era menos filosofia aquela
que emanava dos círculos conservadores do Portugal salazarista, ainda que não
fossem todas elas de pendor fascizante. Temos de admitir. Valoramos, porém,
aqueles pensadores que se colocaram em luta aberta com a ditadura, com as
ditaduras, devemos aqui generalizar. A história da filosofia não nos retrata
uma vocação desta para a consecução da Liberdade efetiva. Teríamos de nos
entender sobre o que é Liberdade. Pelas diversas conceções que importantes
filósofos dela nos deram, só podemos concluir que a Liberdade não é um conceito
inequívoco e consensual. E precisamente porque não é, nem pode ser, um conceito
científico, só pode ser aquilo que é: um conjunto diversificado de noções
gerais, umas mais idealistas do que outras. As quais dependem, ou variam, não
só da personalidade do filósofo em questão, como, eu diria principalmente, do
lugar que ele ocupa e do papel que ele desempenha numa determinada sociedade,
numa determinada classe ou estrato dessa sociedade, em condições
sócio-históricas bem concretas. Grandes pensadores contemporâneos um do outro,
como Platão e Demócrito, forjaram conceitos diferentes de Liberdade. Certamente
que alguns tentaram forjar noções disto e daquilo tão abstratas, ou tão
formais, que pudessem deste modo alcançar a universalidade consensual. Foi o
caso do Kant, como todos aqui sabemos. Na verdade a opção pelo formalismo
afigurou-se correntemente como a que melhor servia o rigor racionalista e,
portanto, a máxima universalidade. Como sucede com qualquer opção filosófica o
critério kantiano não se eximiu à crítica. No curso da prática política
caminhou-se no sentido de formalizarem-se as leis, os direitos, as liberdades,
porém procurando exprimir os seus conteúdos, os predicados das categorias, as
determinações concretas, para que se alcance o máximo de objetividade, de
universalidade e de possibilidades de efetivação. Já topamos isso na célebre
Declaração Universal dos Direitos do Homem que tem conseguido um consenso
indiscutível. Daria também o exemplo, se me permitem, da nossa Constituição da
República Portuguesa, na qual as liberdades políticas formais vêm acompanhadas
pela definição dos direitos económicos, sociais e culturais. Deste modo os
direitos e as liberdades deixam de ser meramente formais, ou abstratas se
preferirem.
É que em boa verdade os consensos
são muito difíceis.
Vejamos o que se passa com as
noções de Progresso e de Barbárie que dão o mote a este Encontro. Poderíamos
investigar da mesma maneira outras noções: em vez de Progresso, o Socialismo,
como preferiu Rosa Luxemburgo que cunhou a célebre consigna “Socialismo ou
Barbárie!”. Investigar a definição mais adequada à Razão, mais objetiva ou
correspondente com os dados factuais e históricos. Aqui a investigação
filosófica necessita do concurso das ciências ditas empíricas, a começar pela
História. Os dados acumulados pelos historiadores meticulosos fornecem
elementos preciosos para produzirmos uma visão larga e objetiva da formação e
percurso das ideias. É que as ideias possuem a sua própria autonomia, não se duvide
disso, contudo a sua história é muito dependente e condicionada pelas condições
sociais concretas do viver. Isto faz que o filósofo seja por vezes
simultaneamente historiador amador e se cruze com as ciências humanas e até, é
preciso dizê-lo, com as ciências da natureza. Como traçar o percurso da
humanidade ignorando sobranceiramente o que hoje sabemos ao certo da origem e
formação do universo e deste planeta que habitamos, da Vida, dos climas e da
geologia que permitiu, por destruição criativa, o sucesso de pequenos mamíferos
e destes a sucessão, ou coexistência, de diversos grupos de hominídeos até,
finalmente, sem plano e sem destino, surgir a nossa espécie? E por tudo isto e
o mais que fica por dizer podemos nós garantir que a Natureza, a Matéria, a
Energia, se moveu por qualquer intenção ou programa? De modo nenhum. Por ora
tudo indica que no universo e na vida as coisas acontecem por acasos e causas.
Acaso e Necessidade, nessa dialética que encontramos a cada passo.
Podemos, então, negar que a nossa
espécie se apresenta como um progresso nos desenvolvimentos múltiplos das
forças cegas naturais? Julgo que não. Julgo que as nossas caraterísticas
bio-psico-sociais constituíram um enorme progresso comparativamente, sobretudo,
com as inúmeras espécies malsucedidas que se extinguiram. Sem dúvida que a
nossa capacidade intelectiva é um extraordinário passo de gigante na evolução
da vida. Quem defende a ideia de evolução da espécie humana encontra aqui um
forte argumento. Mas talvez errem aqueles que pensam que nascemos totalmente
bons ou, pelo contrário, totalmente maus. Provavelmente nem uma coisa, nem
outra. Herdamos um sistema nervoso muito complexo, o que nos torna de uma
extrema fragilidade, ao mesmo tempo que nos dota de uma enorme plasticidade.
Tal constituição abala qualquer otimismo que creia que somos anjos que a
sociedade deforma ou perverte. E isto tem que ver com a violência e a
barbaridade de que a espécie tem dado sobejas provas. Lembremos os indivíduos
“normais”, pais carinhosos nos seus lares, que executaram friamente milhões de
judeus e outros seres humanos no Holocausto. Lembremos a extrema violência das
cruzadas na Idade Média, movidas pelo mais sincero sentimento cristão.
Lembremos as guerras sucessivas, onde a paz não ocupou quase nenhum tempo, dos
séculos XVI e XVII. Um período da história europeia em que, todavia, se
forjaram na teoria e na prática os Estados Modernos indiscutivelmente
progressivos relativamente à anarquia, brutalidade e ociosidade, dos senhores
feudais. E pegando nesta linha de reflexão lembremos as incontáveis atrocidades
decorridas na história humana associadas quantas vezes a progressos de diversa
índole, ou, como queria Hegel, encaremos antes os resultados que se afiguravam
para Hegel racionalmente progressistas. Por exemplo, um génio militar, bêbado,
rancoroso, assassino, chamado Alexandre, que, apesar disso ou por causa disso
mesmo, transformou a face do mundo, inegavelmente para melhor em vários
aspetos. Lembremos o colapso do império romano, o afundamento da luminosa
Antiguidade Clássica, o terrível período da Idade das Trevas que se lhe seguiu,
mas sem a qual não se formaria um novo modo de produção do viver humano,
porventura mais propício ao trabalho, ao surgimento dos burgos do artesanato e
do comércio. Encadeamento de acontecimentos completamente imprevisíveis para as
gerações antigas, mas que hoje dispomos de condições para melhor conhecer a sua
lógica causal, por baixo da sua irracionalidade.
Antes de prosseguir nestas linhas
de reflexão necessitamos distinguir barbárie de violência. Usualmente aplicamos
o primeiro termo à violência massiva, extremada e vemo-la nas guerras e
genocídios. A violência comum, digamos assim, vulgar no mundo rural e nas
práticas cavaleirescas, tem vindo a diminuir, desde o século XVII. A nossa
consciência mais evoluída e os meios de comunicação tornam-nos mais sensíveis e
informados, e tal já significa um progresso. Eu devo dizer que há violências
que pouca atenção suscitam nos media:
refiro-me ao desemprego massivo ou ao trabalho precário em países europeus como
Portugal e, em muitas regiões do globo, à mais bárbara escravatura, à extorsão
de recursos naturais a populações que assim são condenadas à fome, etc., etc.
Não sei se o que estamos presenciando neste mundo de capitalismo selvagem não é
de facto uma barbaridade, ou se, ao invés, somente devemos denominar barbárie o
terrorismo. E mais: serão terroristas apenas os que perpetram atentados na
Europa, ou também um sistema imperialista que está na origem de guerras
monstruosas?
Adiante. Vejamos, em uma enorme
contração do tempo histórico e de recursos de prova, a evolução da ideia de
Progresso. Traço apenas alguns momentos.
A Antiguidade Clássica não
possuía uma conceção de progresso contínuo, de perfetibilidade do ser humano e
da sociedade. A ideia de humanidade
restringia-se às classes livres do trabalho manual. “Bárbaros” eram os outros,
os que habitavam nas fronteiras. A Antiguidade Clássica, apesar das suas luzes
fulgurantes que a Idade das Trevas apagou, e apesar de possuir de si própria,
nos gregos e romanos, uma forte consciência do seu grandioso papel no mundo de
então, não formulou uma ideia de um futuro cada vez melhor, necessariamente
melhor, impelido pelos meios produzidos pelo homem. Platão seguramente que
formulou um modelo de sociedade mais perfeita, porém inspirada em Esparta e
numa rígida diferenciação de castas. Não se distingue em Aristóteles também uma
efetiva ideia de Progresso, marcha evolutiva para um futuro indefinido.
O cristianismo, que eliminou as
culturas endógenas (“bárbaras” ou “pagãs” no seu ponto de vista) assimilando-as
ou destruindo-as, impõe gradualmente a sua hegemonia absoluta servindo os seus
próprios fins ecuménicos e, mais tarde, as finalidades da formação do novo modo
de produção feudal. Através dessa crença universalizante e imperialista por
vocação, impõem-se novos valores não consentâneos com a antiga escravatura mas,
antes, com a servidão e as relações de vassalagem. O Providencialismo cristão
não contém a ideia de Progresso. Agostinho de Hipona forneceu a fórmula: o
homem, criatura do Deus transcendente, é mau por natureza, condenado a sofrer o
pecado original, a trabalhar e a morrer. Contudo, a condenação do trabalho duro
cabe a uns mas não a todos. Condenados em vida somente estes, que herdam dos
pais a mesma condição indefinidamente. Na crença do Juízo Final não há qualquer
ideia de Progresso. Todavia, essa conceção de uma história da humanidade que
caminha para um fim, onde não há progresso mas porventura decadência, servirá
para muito mais tarde de andaime para se construir, por negação, a ideia de
Progresso.
A ideia de Progresso está
realmente, a meu ver, associada à ideia de Modernidade.
Anatole France, o grande escritor
francês ao qual tanto devo da minha formação inicial, escreveu algures. “Que
devemos entender por essa palavra (Progresso)? Se a definirmos como bons
gramáticos, diremos que é um acréscimo de bem ou de mal; e estaremos assim a
representar o próprio avanço da humanidade. Mas se (…) dissermos que o
progresso é o movimento da humanidade que se aperfeiçoa sem cessar, estaremos a
dizer uma coisa que não corresponde à realidade. Esse movimento não se observa
na história, a qual só nos apresenta ma sucessão de catástrofes e de avanços
seguidos de retrocessos.”[2]
Com este pensamento, profundo mas
aparentemente tão banal, fico com a suspeita de que o tempo em que o autor
viveu, no período áureo da ideia de Progresso – o positivismo oitocentista – e
a eclosão da 1ª Guerra Mundial, teria fornecido as cores mais ou menos sombrias
do que acabo de citar. “Sucessão de catástrofes”, “avanços e retrocessos.” Sim,
é tal e qual o que observo. E, ainda assim, racionalista como me exijo a mim
mesmo, assalta-me a pergunta: Apesar disso, ou talvez por isso mesmo, não
existirá porventura uma lógica nisto tudo?
Os acontecimentos simultaneamente
grandiosos e terríveis da Revolução Francesa mostraram um quadro claríssimo de
lutas de classes, com os seus partidos e os seus programas. Hegel viu nele,
nesse quadro, a dialética das ideias, Marx a dialética da história, e ambos
converteram as categorias que lhes serviram para reproduzir os antagonismos da
sua época em categorias transhistóricas. Ou seja, a Lógica da História é uma
determinada dialética, fosse ela idealista, ou materialista.
A ideia de uma civilização – a
civilização ocidental é bom de ver – que contem em si uma abertura ilimitada,
um movimento em direção ao futuro, uma flecha do tempo projetada para diante e
que não aumenta a degradação, mas a criação do novo, um aperfeiçoamento
constante, tal ideia somente a vemos Na Modernidade, a bem dizer na transição
do século XVIII para o século seguinte. Formou-se com ritmos diferenciados:
devagar no século XVI, com saltos bruscos nos séculos seguintes. Não a vemos
exclusivamente nos textos de autores mas nos comportamentos dos grupos sociais.
No decurso dos séculos XVI, XVII, os homens dos burgos e das comunas que vinham
crescendo desde a última fase da Idade Média, enriquecidos pelo comércio, pelas
novas oficinas de artesãos que em breve seriam manufaturas que produziam bens
que os mercadores distribuíam, pela usura e pelos bancos, exibiam novos
interesses e novos valores, os quais contrariavam os valores senhoriais e
feudais. Sentiam a sua crescente importância, junto dos monarcas e nos órgãos
de poder das grandes cidades. A honra nos negócios substituía a honra
cavaleiresca, o gosto do luxo importava-se pouco com os pecados veniais. O
Progresso via-se materialmente nas novas técnicas de trabalho e produção, nos
servos que afluíam para as cidades, nos mercados onde o dinheiro ia
substituindo a troca-justa. Descartes
dera o impulso filosófico à valorização do espírito científico. Galileu abrira a estrada infinita do
conhecimento. Francis Bacon formulara
as bases do método experimental. O mecanicismo, expressão dos pensamentos
avulsos das classes médias, atraía já sectores da pequena e média aristocracia
entusiasmada com a nova Física. Os advogados das teorias do contrato social,
como John Locke, construíam um
programa político e económico de alianças consentâneas com os regimes
absolutistas que se vergavam já, a bem ou a mal, para o lado dos grandes
negócios da manufatura e do colonialismo.
E, assim, a ideia de Progresso
vai penetrando nas classes dinâmicas, nos capitães da indústria e nos
intelectuais. No século das Luzes essa ideia ainda não é clara e distinta.
Aflui aqui e acolá nos sentimentos, comportamentos, textos filosóficos e
literários. Rousseau começa por
exprimir aceradas dúvidas sobre a civilização do luxo, porém apresenta na
maturidade um autêntico programa político para as classes médias, “O Contrato
Social”. Diderot é porventura o mais
lúcido na forma como reconhece o fim de um mundo e o começo de um novo. Também Turgot, o pioneiro da economia clássica
sem o qual Condorcet não teria
escrito, provavelmente, o mais importante texto da Ilustração, Ensaio de um quadro histórico do progresso
do Espírito humano, de 1795. Um pouco mais de quatro décadas depois, já os
ideais do Progresso iluminista sofriam reveses e reviravoltas. Marx e Engels
escrevem num manifesto célebre que “A burguesia, onde ascendeu ao poder,
destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas.” E, mais adiante:
«Realizou maravilhas completamente diferentes das pirâmides egípcias, dos
aquedutos romanos e das catedrais góticas, levou a cabo expedições
completamente diferentes das antigas migrações de povos e das cruzadas.”[3]
Todavia, não se julgue por aqui que os autores tecem um cego elogio ao
Progresso e à Modernidade transportado pela classe que se preparava, de
revolução em revolução, para desalojar do poder absoluto definitivamente em
toda a parte, da Europas às Américas, os aristocratas e o antigo modo de
produção. Como causa e efeito, num encadeamento menos casual ou aleatório do
que parecia, os progressos económicos aos quais se somavam progressos
políticos, mentais, culturais, ocorriam com mais guerras de conquista e saque,
espoliações de terras, sobre-exploração e miséria de massas humanas que
definhavam nas novas fábricas.
Este quadro de antinomias
Progressos/ barbaridades (ou, se preferirmos, exploração, opressão, depauperamento)
não surgira pela primeira vez desenhado nesse famoso manifesto. Já muito antes,
nos primeiros tempos da Modernidade, desde o século XVI ao XVIII, lúcidos
escritores haviam denunciado os efeitos dos antagonismos sociais. Nem toda a
gente pintara a cor-de-rosa as transformações que observavam. Referi já
Rousseau, mas poderia referir muito antes dele Thomas More do qual se comemoram
este ano cinco séculos o seu livro “A Utopia”. Poderia referir as cautelas de
que se revestem, apesar da fé nas novas relações, os programas de Bacon ou de
Locke, como se sentíssemos nestes e em outros filósofos uma espécie de
excedente, de utopia, que não correspondia aos interesses reais da classe que
aspirava à hegemonia global. Os utopistas do século das Luzes constituem um bom
exemplo de como a Modernidade que então se via não era a Modernidade que eles
desejavam ver. Refiro-me aos abades Morelly
e Dom Deschamps, ao ex-padre Gabriel Bonnot de Mably. Refiro-me aos programas
utópicos da esquerda e extrema-esquerda na Revolução Francesa. Refiro-me a Thomas Paine.
O século XIX é o século da marcha
triunfal da revolução industrial, da fé na bondade da tecnociência, das
filosofias positivista e utilitarista, todas elas bandeiras do liberalismo. Entretanto, foi também o século das primeiras
contestações aos modos como ocorria a Modernidade, ao modo como a ideia de
Progresso se convertera na ideologia de uma classe social. Foi o século das
revoltas de escravos nas Américas, das barricadas populares nas ruas de Paris,
das doutrinas que reivindicavam o progresso, sim, mas para todas as classes, a
democracia e o socialismo do nosso José Félix Henriques Nogueira, de Marx, Proudhon
e Blanqui, da Internacional dos Trabalhadores.
O século passado foi o século no
qual se iniciou a decadência de uma ideia, um ideal, para alguns mesmo
decadência da própria civilização moderna erguida na Europa e exportada para os
quatro cantos do globo. Já Nietzsche, em suas perspetivas românticas, havia
semeado dúvidas pertinentes sobre a ideia de Modernidade; Weber, pelo seu lado,
vaticinara a hegemonia perniciosa de uma “razão instrumental” e de Estados mais
burocráticos que democráticos. Contudo, é com Walter Benjamim[4]
e a sua terrível alegoria do “Anjo da História”, com Horkheimer e Adorno, de
maneira geral todos os grandes mestres da Escola de Frankfurt e seus
discípulos, com exceção de Habermas, que a crítica negativa da Modernidade
conquista um lugar indeclinável na Filosofia contemporânea. As catástrofes das
duas guerras mundiais, mas não só, conduziram-nos à conclusão de que todos
esses males não se deviam a erros ou desvios do presente, mas que vinham de
muito longe, das próprias origens da ideologia do Progresso iluminista. Outros
houve que, vendo também a natureza destrutiva do capitalismo, não se deixaram
conduzir pelo mesmo olhar negativo de Horkheimer, Benjamim e Adorno, e antes
olharam para as potencialidades de novas sociedades alternativas contidas na
Modernidade contraditória: Lenine, Rosa Luxemburgo, Ernst Bloch, G. Lukács,
Gramsci, para citar apenas alguns da plêiade de escritores e dirigentes
políticos da 1ª metade do século passado, cujas ideias e ação (ação foi o que
faltou ao lúcido Adorno) desempenharam um papel fundamental no pensamento
político e nos revolucionamentos sociais.
Para terminar, pois já vai
demasiado longa esta apresentação, permiti que assinale, e assinale apenas,
mais dois ou três enunciados:
Um tem que ver com o Positivismo,
que julgo haver sido a filosofia mais representativa de um certo triunfalismo
burguês, da sua confiança na ciência e nas técnicas produtivistas no quadro do
individualismo burguês, no desprezo pelas metafísicas. Sejamos, contudo,
rigorosos com a verdade: o positivismo do seu fundador, Auguste Comte,
discípulo do socialista Saint-Simon, defendia a paz como condição sine qua non do progresso do
conhecimento e suas aplicações práticas. Na sua visão utópica burguesa o
militarismo iria terminar com a eliminação dos valores do feudalismo guerreiro.
Tal conceção pacifista, crente das virtudes da livre iniciativa das elites
conjugada ou mesmo regulada por Estados que protegiam os direitos dos cidadãos
e a propriedade adquirida pelo mérito e pela industrialização racional, haveria
de animar os nossos mentores intelectuais da 1ª República portuguesa.
Num breve parêntesis assinalo a
vertente utópica do liberalismo ou utilitarismo de Stuart Mill, na proposição
de que o novo regime, se bem regulado, haveria de produzir o máximo de
felicidade geral.[5]
Um outro enunciado prende-se com
a força quase consensual das ideias evolucionistas, derivadas pela formidável
teoria de Charles Darwin. Posso mesmo afirmar que sem o darwinismo a ideia de
Progresso, no sentido de evolução da espécie humana e da sua superioridade, a
ideia da seleção social, não teria obtido tamanha aceitação. As ciências
humanas e sociais pareciam oferecer sustentação à crença ideológica.
Finalmente, e abreviando ao
máximo, temos vindo a assistir desde os anos setenta ao descalabro das
filosofias otimistas da História. Os acontecimentos que o provocaram são de
diversa ordem: na política, os fracassos dos programas revolucionários dos
países que se libertaram do colonialismo (provocados por acesas lutas de
classes e algumas intervenções brutais do imperialismo), o colapso da 2ª
superpotência mundial, a URSS, e o espaço que forneceu à expansão global do
capitalismo. Disse otimistas mas não progressistas. Porque a crença nas
tendências e forças progressistas não morreu com a perda das ilusões otimistas.
Ilusões quantas vezes reduzidas a fórmulas de propaganda política da Guerra
Fria.
Pertenço ao número daqueles que
prescindindo do método dialético de investigação se sentem completamente
desarmados. Sem ele receio abandonar o espaço das lutas às correntes mais
reacionárias do pós-modernismo, aquelas que recusam validade à Razão, ao poder
desta formular juízos verdadeiros, objetivos e universais. Reconheço que temos
sofrido profundas transformações sociais, que já não podemos pensar com os
mesmos modelos de há cem ou mesmo cinquenta anos. Mas, ao alinhar com os
filósofos que nos últimos séculos, sobretudo no último, como Ernst Bloch, Theodor
Adorno, G. Lukács e outros, apontaram na natureza do capitalismo o cerne de
males que sem ele poderiam sarar, ainda que todos os males do mundo não
desaparecessem miraculosamente, ao encontrar neles fundamentos da crítica,
creio e julgo que o Progresso ainda é possível. Tenho consciência de que é uma
possibilidade, não uma destinação, uma possibilidade que depende não de um “motor
imanente” da História, sim da consciência e decisão das classes e minorias
sociais interessadas na paz, no conhecimento, na administração racional das
coisas. Uma possibilidade que reflete tendências objetivas das dinâmicas
sociais.
Torna-se mais difícil resolver
problemas teóricos quando estes são formulados como antinomias abstratas ou
especulativas. É certo que o iluminista alemão Kant conseguiu formular
antinomias racionais, porém não as resolveu no plano teórico. Aquele que as resolveu
à sua maneira foi Hegel com a sua lógica das contradições. Ponhamos o exemplo
da antinomia que dá o título a este Encontro: “Progresso ou Barbaria?”. Podemos
definir a ideia de Progresso que, decorridos séculos, emergiu clara e
triunfalmente no século XIX, mas teríamos que verificar a sua negação e, nessa
contraditoriedade, a superação.
Teríamos também de definir Barbaria, dizendo talvez que esta é o contrário do
movimento para a paz que esteve também
no conteúdo da ideia de Progresso. Portanto, uma contradição antagónica. A
ideia de Progresso necessita, sempre necessitou, do seu contrário para se
exprimir e tentar realizar-se objetiva e materialmente. Foi com violência (o “Terror”
na Revolução Francesa) que se alcançaram progressos políticos e sociais e foi
com violência desmedida que as contrarrevoluções executaram os seus programas
reacionários. Avanços e recuos. Aprende-se com a experiência. “Depois da casa
saqueada, trancas à porta.” A atitude mais sensata é a permanente vigilância. É
a consciência e a ação dos amantes da Paz, das forças sociais que não
necessitam da barbária para progredir em direção a mais felicidade.
Esperais, porventura, que eu cite
o aforismo célebre de António Gramsci: «Pessimismo da razão, otimismo da
vontade.” Ainda não derrapei para esse patamar. O pessimismo é uma forma
exacerbada do ceticismo. E o voluntarismo, só por si, é demasiado cego. Tende a
tornar-se moda um certo radicalismo utópico que balança entre o anarquismo
inconsequente e o catastrofismo. Um polémico filósofo alemão, já falecido,
Robert Kurz, na sua revista de ideias “Krisis”, resumia na fórmula “Razão
Sangrenta” a mais violenta crítica do Iluminismo e da Modernidade. Se a
Modernidade é, ou foi, toda ela, apenas destrutiva, então a pós-modernidade não
é a sua consciência superadora, mas, ao invés, a derrota da Razão.
Nozes Pires
Torres Vedras, 23 Janeiro 2016
Conferência de abertura do 1º
ENCONTRO COM A FILOSOFIA
[1]
Comunicação apresentada no 1º Encontro com a Filosofia, realizado em 23 de
Janeiro de 2016, em Torres Vedras.
[2] In “A
Vida em Flor”.
[3]
Marx-Engels, Obras Escolhidas, tomo 1, edições Avante!-edições
Progresso-Moscovo, 1982.
[4] Walter
Benjamin, O Anjo da História, Assírio & Alvim
[5] John
Stuart Mill, Sobre a Liberdade; Utilitarismo.
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