domingo, 7 de fevereiro de 2016

COMUNICAÇÃO DE LUÍSA NOGUEIRA



ENCONTROS DE FILOSOFIA
23 de janeiro de 2016

Civilização ou Barbárie – inquietações da escola
                           Luísa Nogueira

O que trago aqui é fruto refletido do que me tem ocupado – a educação, o ensino, a filosofia. Mais especificamente da investigação que realizei sobre a história da disciplina de filosofia e, particularmente, sobre a educação e o ensino no Estado Novo.  Com essas referências presentes, proponho uma leitura dos dias que vivemos e das inquietações que ela suscita relativamente à escola.
Apresentarei numa primeira parte um conjunto de 5 ideias que, seguidamente, passarei a questionar.

I.
1. A inevitabilidade da educação – da educação à escola
O homem é a única criatura que tem de ser educada. Por educação entende-se, com efeito, os cuidados, a disciplina e a instrução juntamente com a formação
Kant

É deste modo que Kant inicia as suas Reflexões sobre a Educação[1] e é com esta referência que escolhemos iniciar a nossa comunicação.
1ª IDEIA – A educação é tarefa humanizadora e começa na Família. Esclareçamos, ter de ser educado tem como correlato ter de educar. Completemos o significado através da ideia de que ter de educar e ter de ser educado não constituem uma opção, mas uma condição. Ter de educar é tarefa à qual a geração adulta não se pode eximir – faça o que fizer, educará sempre. Ter de ser educado é uma necessidade do neófito, do seu estado prematuro, à qual não pode escapar. Dela depende a sua sobrevivência e a sua humanidade.
2ª IDEIA – Há uma dimensão ética e social na educação. O processo educativo abrangerá todos os aspetos do desenvolvimento do ser humano, físicos, cognitivos, psicológicos, sociais, morais… incluindo neste processo o ensino-aprendizagem de conhecimentos e de técnicas. A história da educação mostra-nos que em cada momento histórico a educação forma o homem de acordo com modelos, explícitos ou não, que respondem às necessidades da sociedade. É assim que se distingue a educação do homem medieval da educação renascentista, por exemplo.
3ª IDEIA – A escola é uma instituição social e política, um direito do cidadão e um dever do Estado. O desenvolvimento das sociedades e as suas exigências de educação e de ensino fazem com que, a partir de determinado momento, apareçam lugares próprios para a transmissão do saber. A escola passará a ser a instituição à qual incumbe a tarefa de ensino e de educação e a sua ação decorrerá em espaços próprios para o efeito. Doravante a escola passará a ser a instituição onde decorrem o ensino e as práticas educativas reconhecidas pela sociedade como úteis e boas. O desenvolvimento da escola como instituição associada a uma política educativa e a um sistema organizacional de ensino assume particular significado a partir do século XVIII com os ideais iluministas, por um lado, e com a Revolução Industrial associada à necessidade de mão de obra minimamente qualificada, por outro. Paralelamente desenvolve-se a ideia de Educação como um dever do Estado para com os cidadãos. O Estado vai tomando para si o encargo de um sistema público universal de educação e de ensino. A ação de Condorcet, em finais do século XVIII, na França, constitui uma referência.
4ª IDEIA –A escola é um lugar de transmissão formal de conhecimentos. A educação que se processa na família e na sociedade de modo informal prolonga-se na escola. A esta incumbe cumprir os objetivos oficialmente estabelecidos articulando o desenvolvimento da personalidade individual nos seus múltiplos aspetos com o ensino-aprendizagem de conhecimentos socialmente reconhecidos e escolarmente institucionalizados. No âmbito do que se considera o papel educativo da escola podemos distinguir uma função socializadora que completa a vivência na família, uma função cívica e política que capacita para o exercício da cidadania e uma função de transmissão de saber que introduz a criança e o jovem no universo do conhecimento dotando-o de um conjunto de conhecimentos reconhecidos como úteis e bons (que constituem o que se designa vulgarmente como as «matérias das disciplinas») e desenvolve as suas capacidades intelectuais. Será esta a função mais específica da escola como instituição, que a diferencia, que lhe confere uma identidade e que a torna praticamente insubstituível. A escola é o lugar onde o património cognitivo de uma cultura se transmite. As disciplinas escolares são, na sua maioria, as representantes de um saber que se constituiu há muito e que encontra na escola o se lugar de transmissão e a sua possibilidade de perpetuação.
5ª IDEIA – Toda a educação é educação para o futuro. No discurso educativo, uma das tendências tem sido a de delinear um futuro, «a futura sociedade», «o futuro homem» e a partir dessa idealização construir um projeto educativo que sustentasse o processo de formação. Consideramos que esta tendência entronca num modelo que fazemos remontar à obra A República de Platão. De acordo com este modelo, o processo de educação e de ensino constitui uma unidade juntamente com outros processos, todos ancorados na ideia de uma sociedade idealizada que eles permitirão concretizar e perpetuar. É um modelo fechado e monolítico. Os princípios e valores que suportam e direcionam a educação e o ensino tendem, neste modelo, a ser tomados como certos e únicos. Quando um modelo deste tipo é assumido por um projeto político que acede ao poder ele irá exprimir-se nos discursos oficiais sobre a educação e o ensino, nas decisões de política educativa, na legislação de educação e ensino, na organização dos currículos (cursos, disciplinas…), obedecendo a um plano de unidade. A escola e o saber que nela se ensina farão parte de um projeto político mais amplo. A educação e o ensino no Estado Novo, por exemplo, constituem um caso concreto de aplicação de um modelo deste tipo em que a dimensão social e política de toda a educação tenderá a confundir-se com processos de doutrinação político-ideológica. No entanto, a dimensão política do ato educativo e o facto de se direcionar ao futuro, não tem que se confundir com ensino doutrinário e com processos de instrumentalização do saber. É possível conciliar política e educação, educação e ensino, política e liberdade.

II.
1.     A família e a escola – tarefa educativa comum?
Como é que a escola, hoje, prolonga a ação educativa da família? Há cinquenta anos essa ação parecia ser de continuidade. A estabilidade do universo familiar e social, a existência de um conjunto de valores largamente partilhados fornecia um quadro de referências comum que facilitava toda a tarefa educativa. A política do Estado Novo, aliás, utilizou essa estabilidade para construir sobre ela um imaginário simbólico a fim de criar, sedimentar e perpetuar um ideal de «português» e de lusitanidade. A «Família» é, não só ponto de referência explícito do discurso político (todos nos lembramos da tríade Deus-Pátria-Família), como também se constitui, de modo consequente, enquanto conceito nuclear operante, desdobrando-se a vários níveis do discurso e da ação. A nível educativo, deverá organizar o aluno de um ponto de vista principalmente psicológico e afetivo nas idades mais tenras, preparando-o, psicológica e mentalmente, para uma conceptualização filosófica e política mais complexa nos níveis superiores. No «Livro da Segunda Classe», livro único desde os anos 40, logo num texto inicial intitulado «A Família», é fácil verificar a imagem do pai, enquanto trabalhador provendo ao sustento do lar, e a da mãe, que zela pela casa e bem-estar familiar, acrescentando-se, à exaltação da Família, a dos valores religiosos e patrióticos e a associação, não metafórica, entre Família e Nação. É este modelo da família cristã católica que é reproduzido de diversos modos, consoante os públicos visados, de acordo com a estratégia mais eficaz para garantir o processo psicológico de interiorização dos valores axiais da nova política.
 A «Família» é um dos principais núcleos semânticos aglutinadores de um movimento centrípeto e em espiral que se reforça em cada grau de ensino. Neste contexto, o saber ensinável nos graus de ensino superiores é também convocado. Quem prosseguisse estudos encontraria mesmo na disciplina de Filosofia a conceptualização e fundamentação dos diferentes papéis da mulher e do homem, supostamente já interiorizados, colocados agora em termos de dever ou obrigação e de virtude, no âmbito do capítulo programático da Moral. O discurso filosófico assume, frequentemente, neste âmbito, um cariz doutrinário, apologético, moralizante, sem sinais de racionalidade demonstrativa ou argumentativa. Transcrevemos, por exemplo, do compêndio oficialmente aprovado de Eugénio Aresta, Noções de Filosofia, de 1940, o seguinte excerto:
Como dona de casa a mulher deverá tomar as obrigações que como tal lhe incumbem, não como uma necessidade humilhante à qual tem de submeter-se ou como uma obrigação tristonha e aborrecida, mas como um dever que se cumpre com gosto. O arranjo e governo da sua casa, do seu lar, deverão constituir para a mulher um dever agradável. No seu desempenho há lugar para o exercício de nobres e delicadas virtudes.
A política de educação e ensino do Estado Novo representa de modo exemplar um modelo de intervenção política e estatal na escola – na sua organização curricular, na orientação e nos seus conteúdos de ensino, nos seus manuais escolares – que a instrumentaliza e que faz dela um braço do poder político.
O modelo tradicional de família já não existe, porque esse mundo em que ela estava ancorada também não existe. Os modelos informais de educação estão fragmentados e, em alguns casos, inexistentes, na ausência de figuras parentais de referência ou fragilizadas. No entanto, as crianças estão aí e precisam de ser educadas. E, hoje, vão todas à escola. De elite, o ensino e a escola passou a ser um ensino de massas. Perante as alterações ocorridas na estrutura da família e nas suas condições de existência, a tarefa educativa tem-se vindo a deslocar cada vez mais para a escola. Perante a diversidade de modelos de família, perante a pluralidade de situações com os quais desde muito cedo a criança se vê confrontada, a tarefa da escola não está facilitada.
Mas para a criança nada se passa que não seja através da mediação do adulto; as dificuldades na educação não são outra coisa senão as dificuldades do adulto no desempenho do seu papel em contextos também alterados. E qual é o seu papel? «Fazer crescer»… assumir a sua autoridade educativa. A palavra «autoridade» significa etimologicamente «fazer crescer». É principalmente com esse sentido fundamental que aqui usaremos a palavra «autoridade». No modelo tradicional, chamemos-lhe assim, a autoridade dos pais estava estabelecida muito para além deles e a autoridade dos professores prolongava naturalmente a autoridade vivida na esfera familiar. Não havia muito que pensar sobre isso. Os problemas de autoridade eram normalmente entendidos no sentido derivado, de dificuldade em fazer respeitar a disciplina, e não adquiriam relevância de maior. Todos, pais e professores, dispunham de mecanismos de ação considerados eficazes e socialmente aceitáveis. Hoje, pais e educadores sentem-se inseguros e isso apresenta-se como dificuldade em assumir perante a criança a responsabilidade de a ajudar a crescer… como se pudéssemos fugir a essa tarefa, como se pudéssemos, atirados ao mar, não ter de nadar… A verdade é que já não sabemos muito bem, pais, professores, em que direção educamos, para que mundo educamos. Quando o mundo em que vivemos nos aparece como incerto a tarefa de educar é mais difícil. E, no entanto, educar é necessário. Assumir perante o outro a responsabilidade pelo mundo.  Como refere Hanna Arendt, «a competência do professor consiste em conhecer o mundo e em ser capaz de transmitir esse conhecimento aos outros. Mas a sua autoridade funda-se no seu papel de responsável pelo mundo»[2].
Abdicar desta responsabilidade, desistir de educar é permitir que tudo o resto o faça por nós – a televisão, as redes, os grupos… na falta da presença do adulto/ de quem educa, a criança e os jovens ficam abandonados a todas as forças que o cercam sem pontos de referência para poderem fazer as suas escolhas e adquirirem autonomia. Educar, neste sentido, é principalmente estar presente e próximo e, através dessa referência, dessa proximidade não invasiva poder ser aquele que gera a confiança sem a qual ninguém cresce. E creio que, embora isto seja mais relevante nas idades mais tenras, é sempre uma necessidade do ato educativo.

2. Educação ética, cívica e política na escola?  
Porque sentimos tanta dificuldade em lidar com a vertente formativa do ensino, particularmente na sua dimensão moral/ética e cívica/política?
Para os educadores mais velhos, a ideia de uma educação «moral» não parece apelativa…faz lembrar a educação moral e religiosa, obrigatória no ensino antes da Revolução de 25 de abril de 1974; a educação cívica remete para a doutrinação política realizada muito especialmente com a disciplina de OPAN, normalmente de má memória…
Para os educadores mais novos, a moral e o civismo parecem ser qualquer coisa que vai surgindo espontaneamente sem que alguém tenha de se preocupar com isso. Quer num caso, quer noutro, estamos perante uma atitude de desvalorização dessa dimensão do ensino, aceitando que o facto de andar na escola, por si mesmo, acabe por desempenhar esse papel.
Embora não possamos considerar que nada tem sido feito, ou esteja a ser feito nesse sentido, os sucessivos avanços e recuos parecem revelar a dificuldade de pensar esta vertente educativa.
 A pergunta que surge é a de saber o que se deve entender por educação ética, cívica e política hoje e de que modo é que a escola pode contribuir para a esta formação. Na verdade, o Estado Novo sabia bem o que era a educação moral e a educação política. Toda a educação que segue um modelo fechado sabe o que fazer para educar moral, cívica e politicamente.
Às vezes, parece ainda perpassar em algumas mentes uma certa nostalgia desse tempo em que a ordem, a disciplina e a autoridade davam grande comodidade à ação educativa nas escolas. Mas isso não era senão um epifenómeno de uma ação que decorria quer de modo evidente, quer de modo mais oculto a outros níveis. Toda a ação educativa do Estado Novo decorre na rejeição da política como ação livre que se realiza entre os homens e no enfraquecimento do espaço público como espaço de debate, de discussão, de desenvolvimento e de manifestação de opinião crítica. 
No entanto, a rejeição daquele modelo do Estado Novo não implica abandonar qualquer um, ou escamotear a importância de uma educação ética e política, que é o que parece ter vindo a acontecer, porque
…é na escola que se aprende a discutir, a aceitar a opinião divergente, a combater com argumentos em vez de ser com insultos[3].
Uma educação democrática, aberta e plural não deve ser por isso, menos interessada naquilo que constitui a humanidade do homem – a capacidade de se relacionar com os outros e consigo mesmo e a de construir um mundo habitável para si e para todos os outros. A questão é esta - como educar para um mundo onde todos temos que viver?
3. A Escola é uma instituição social e política. Um direito dos cidadãos?
Para o que gostaria aqui de chamar à atenção é para a ideia de que há uma dimensão política da educação escolar que lhe advém simplesmente do facto da escola ser uma instituição que é alvo de decisões políticas que afetam, positiva ou negativamente, a sua capacidade de responder à tarefa de ensino e de educação. Também isso não pode ser escamoteado. A falta de investimento no ensino, o facto de ter sido aí que se têm realizado as maiores reduções na despesa não é neutro para as condições nas quais se tem vindo a concretizar o ensino e a educação. É preciso recuperar ou, pelo menos, não deixar cair no esquecimento que o direito ao ensino e à educação é uma conquista civilizacional e reconhecidamente um bem que queremos preservar. Permitindo ultrapassar as deficiências do meio familiar e social de origem, a escola deverá continuar a ser o meio para a realização do indivíduo como pessoa, como ser social, como cidadão.  Se ela hoje não é, como no passado, meio seguro de ascensão social, de onde lhe advinha também o seu prestígio e valorização sociais, ela não deixa de ser o lugar onde se educa, onde se ensina e se aprende. Continua a ser nela que, na ausência de background familiar, o jovem pode contactar com o mundo do pensamento, o mundo da ciência, da filosofia ou das artes. Continua a ser a escola que oferece a oportunidade de encantamento com tudo aquilo que tem feito a humanidade, apesar de tudo, ser o que é hoje. Abandonar a ideia de escola como direito dos cidadãos e dever do Estado é também abandonar cada um à sua sorte na «lotaria social» (na expressão de J. Rawls).

4. A escola é lugar de transmissão de saber. Que saber?
De que conhecimento, de que saber falamos quando nos referimos à vertente do ensino na escola? A escola ensina o quê e para quê? Segundo que critérios se determina o ensinável no espaço da escola? Que intervenientes são legítimos na definição dos princípios educativos, na organização do sistema de ensino, na organização dos currículos e dos programas? A quem deve ser atribuída responsabilidade para gerir a conflitualidade de diversos interesses e definir as opções educativas, curriculares, programáticas? Seja qual for a resposta ela seguirá sempre determinados critérios. E não há aí neutralidade. O que se passou durante o Estado Novo é a esse respeito exemplar. Em legislação de 1932, relativamente ao ensino da História, lemos:
[…] O Estado, sem se arrogar a posse exclusiva duma verdade absoluta, pode e deve definir a verdade nacional, quer dizer, a verdade que convém à Nação[4].
A «verdade nacional», a verdade dos e para os portugueses, a «verdade portuguesa», no dizer de Eduardo Lourenço[5], definida em relação ao superior critério da portugalidade ou da lusitanidade é aplicada ao ensino e à educação. Todas as disciplinas escolares cujos conteúdos de ensino se liguem de modo mais próximo aos aspetos formadores do ensino sofrerão a pressão deste critério.
Estamos longe deste quadro? Estamos. Mas os mecanismos utilizados naqueles processos não são exclusivos de uma época. São os mecanismos do poder sempre em aberto. O que no Estado Novo é levado ao seu máximo expoente permite evidenciar a ideia de que o saber ensinado na escola, não está imune a interesses, enquadra-se sempre numa determinada orientação de ensino (não necessariamente explícita e enunciada) que determina o currículo e os critérios de organização curricular.
Hoje, por exemplo, não consideramos um acaso o facto de a disciplina de filosofia, nos dois anos em que é ministrada no ensino secundário, se encontrar, na maioria das escolas, no último lugar do currículo, segundo o critério da carga horária semanal atribuída. Na história da constituição da disciplina no ensino secundário, que remonta a 1836 com a criação dos Liceus por Passos Manuel, esta situação só tem paralelo em 1905 com um currículo de pendor positivista.  E percorrendo a história do ensino secundário em Portugal a partir de 1860, com a primeira Reforma que estipula o número de aulas semanais num plano curricular, não se encontra um desfasamento tão grande, como o que nos é dado constatar hoje, entre as cargas horárias das disciplinas com menor peso e das disciplinas com maior peso curricular.

5. Educar para o futuro. Que futuro?
Numa época sem utopias, numa época em que o discurso político dominante difunde a crença de que a realidade é uma entidade substancial e autónoma que se impõe opaca e intransponível, como se a realidade de que se fala, a realidade económica, social e política não fosse obra dos homens, da sua ação e dos seus projetos coletivos, numa época como a nossa, cumpre perguntar que papel pode ter ainda a educação.  Que referência de futuro?
Educar é educar para…, educa-se sempre para o porvir, mas nenhum projeto educativo se constitui sem referências do passado -  já que não é possível educar para o futuro sem saber o que fazer com o passado de que se dispõe e com o presente que se vive. O que nos importa é compreender como é que o presente incorpora tanto o passado como o futuro. Como é que na escola, que Inclui práticas formativas e processos de transmissão de saber, se prepara o futuro e que futuro.  Todo o projeto educativo e a escola que o corporiza situam-se na confluência e na tensão entre o passado, que se constitui como um conjunto de referências conceptuais, valorativas e vivenciais partilhadas pela comunidade dos adultos, o presente vivido e o futuro.
O confronto tensional entre passado e futuro constitui um aspeto da dialética do ato educativo. Na ação educativa convergem o passado e o futuro – o primeiro confere-lhe consistência porque a integra numa experiência partilhada, o segundo dá-lhe a dimensão criativa e inovadora… É deste encontro tensional entre tradição e utopia que a ação educativa retira a sua dinâmica, a sua consistência e a sua possibilidade de realização. Sem tradição a educação é vazia, sem utopia é exercício cínico e gratuito. A utopia que aqui tomo como um dos pólos da educação não se refere a um futuro sonhado à imagem do presente ou sequer de UM futuro. A utopia é tomada no seu significado etimológico de «não-lugar» e assim sempre se deverá manter: abertura, possibilidade. A educação que tem como pólo a utopia parte de um compromisso ético com o presente no sentido de não permitir que este feche as possibilidades do futuro.  Sem esse horizonte, a escola nunca deixará de ser mera reprodutora das relações sociais e de poder existentes na sociedade.
Hoje em dia, parece-nos haver alguma dificuldade em aceitar e assumir uma educação para o futuro. Ou porque é que esse futuro é cabotinamente reduzido a um futuro de muito curto prazo, ao tempo de um «emprego» e as questões da educação e do ensino reduzidas a um utilitarismo estreito que pretende sujeitar a educação aos interesses de uma sociedade de mercado. Quando é o futuro para o qual se educa? Não estamos a pensar na recuperação de um qualquer modelo de futuro. Mas na necessidade de uma visão, um horizonte, um conjunto de referências que apontem um caminho. A um conceito de futuro que seja mais do que o imediato, o supostamente útil, a camisola para vestir no dia seguinte.
O desafio hoje é o de saber manter esta dimensão de abertura perante um mundo que se tornou, mais do que em qualquer outra época histórica, incerto. Perante possibilidades de futuro que, pela primeira vez na história, contêm um cenário de destruição total. Os sinais são inquietantes e aquilo que a civilização ocidental conquistou ao longo de séculos, de um momento para o outro, assemelha-se a quase nada. Mas esse quase nada é tudo o que somos, é tudo o que temos, é tudo o que podemos deixar. Esse quase nada é tudo o que fomos capazes no plano da ciência, da filosofia, da educação, dos direitos humanos… tudo o que fomos capazes a partir da inquietação das primeiras perguntas, da curiosidade pelo mundo e por nós próprios e da confiança na racionalidade que examina, que investiga, que constrói e que destrói. É esse o património que a escola tem de preservar e transmitir: juntamente com a transmissão do saber, o entusiasmo simbólico na feliz expressão de Savater[6]; juntamente com a transmissão do saber, aquilo que nele o fez saber - a curiosidade, a interrogação, a investigação racional crítica, o pensar. É esse património de curiosidade intelectual que se materializou em conteúdos de conhecimento que pode ser estimulante, porque todo o saber está ainda por cumprir. É essa a tarefa que cabe aos que chegam de novo. É para esse futuro em aberto que a educação aponta e que cada professor assume como sua responsabilidade. E ao lugar que o futuro deixa em aberto só pode ser dado o nome de esperança.





[1] Kant, Réflexions sur l´éducation, trad. de Alexis Philonenko, Vrin, Paris, 1993.
[2] Hanna Arendt, «A Crise na Educação», in Quatro Textos Excêntricos, Lisboa, Relógio D’Àgua, 2000, p. 43.
[3] Eduardo Lourenço, 3º Encontro Presente no Futuro: à procura da Liberdade, Fundação Francisco Manuel dos Santos, realizado entre os dias 3 e 4 de out. de 2014, transcrição a partir da intervenção oral, debate final. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LcGpo8nnP8k. Acesso em 16 de abril, 2015.
[4] Decreto n.º 21 103, datado de 07 de abril e publicado a 15 de abril de 1932.
[5]Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1978, p. 31.
[6] Savater, O Valor de Educar, Lisboa, ed. Presença, 1997, p.104

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