ENCONTROS
DE FILOSOFIA
23 de janeiro de 2016
23 de janeiro de 2016
Civilização
ou Barbárie – inquietações da escola
Luísa Nogueira
O que trago aqui é fruto refletido do que me tem ocupado – a
educação, o ensino, a filosofia. Mais especificamente da investigação que
realizei sobre a história da disciplina de filosofia e, particularmente, sobre
a educação e o ensino no Estado Novo.
Com essas referências presentes, proponho uma leitura dos dias que
vivemos e das inquietações que ela suscita relativamente à escola.
Apresentarei numa primeira parte um conjunto de 5 ideias
que, seguidamente, passarei a questionar.
I.
1.
A inevitabilidade da educação – da educação à escola
O homem é a única criatura que tem de ser educada. Por
educação entende-se, com efeito, os cuidados, a disciplina e a instrução
juntamente com a formação
Kant
É deste modo
que Kant inicia as suas Reflexões sobre a
Educação[1] e é com esta referência que
escolhemos iniciar a nossa comunicação.
1ª IDEIA – A educação é tarefa
humanizadora e começa na Família. Esclareçamos, ter de
ser educado tem como correlato ter de
educar. Completemos o significado através da ideia de que ter de educar e ter de ser educado não constituem uma opção, mas uma condição. Ter
de educar é tarefa à qual a geração adulta não se pode eximir – faça o que
fizer, educará sempre. Ter de ser educado é uma necessidade do neófito, do seu
estado prematuro, à qual não pode escapar. Dela depende a sua sobrevivência e a
sua humanidade.
2ª IDEIA – Há uma dimensão ética e
social na educação. O
processo educativo abrangerá todos os aspetos do desenvolvimento do ser humano,
físicos, cognitivos, psicológicos, sociais, morais… incluindo neste processo o
ensino-aprendizagem de conhecimentos e de técnicas. A história da educação
mostra-nos que em cada momento histórico a educação forma o homem de acordo com
modelos, explícitos ou não, que respondem às necessidades da sociedade. É assim
que se distingue a educação do homem medieval da educação renascentista, por
exemplo.
3ª IDEIA – A escola é uma instituição
social e política, um direito do cidadão e um dever do Estado. O desenvolvimento das sociedades e as
suas exigências de educação e de ensino fazem com que, a partir de determinado
momento, apareçam lugares próprios para a transmissão do saber. A escola
passará a ser a instituição à qual incumbe a tarefa de ensino e de educação e a
sua ação decorrerá em espaços próprios para o efeito. Doravante a escola
passará a ser a instituição onde decorrem o ensino e as práticas educativas
reconhecidas pela sociedade como úteis e boas. O desenvolvimento da escola como
instituição associada a uma política educativa e a um sistema organizacional de
ensino assume particular significado a partir do século XVIII com os ideais
iluministas, por um lado, e com a Revolução Industrial associada à necessidade
de mão de obra minimamente qualificada, por outro. Paralelamente desenvolve-se
a ideia de Educação como um dever do Estado para com os cidadãos. O Estado vai
tomando para si o encargo de um sistema público universal de educação e de
ensino. A ação de Condorcet, em finais do século XVIII, na França, constitui
uma referência.
4ª IDEIA –A escola é um lugar de
transmissão formal de conhecimentos. A educação que se processa na família e na sociedade de modo
informal prolonga-se na escola. A esta incumbe cumprir os objetivos
oficialmente estabelecidos articulando o desenvolvimento da personalidade
individual nos seus múltiplos aspetos com o ensino-aprendizagem de
conhecimentos socialmente reconhecidos e escolarmente institucionalizados. No
âmbito do que se considera o papel educativo da escola podemos distinguir uma
função socializadora que completa a vivência na família, uma função cívica e
política que capacita para o exercício da cidadania e uma função de transmissão
de saber que introduz a criança e o jovem no universo do conhecimento dotando-o
de um conjunto de conhecimentos reconhecidos como úteis e bons (que constituem
o que se designa vulgarmente como as «matérias das disciplinas») e desenvolve as
suas capacidades intelectuais. Será esta a função mais específica da escola
como instituição, que a diferencia, que lhe confere uma identidade e que a
torna praticamente insubstituível. A escola é o lugar onde o património
cognitivo de uma cultura se transmite. As disciplinas escolares são, na sua
maioria, as representantes de um saber que se constituiu há muito e que
encontra na escola o se lugar de transmissão e a sua possibilidade de
perpetuação.
5ª IDEIA – Toda a educação é educação
para o futuro. No
discurso educativo, uma das tendências tem sido a de delinear um futuro, «a
futura sociedade», «o futuro homem» e a partir dessa idealização construir um
projeto educativo que sustentasse o processo de formação. Consideramos que esta
tendência entronca num modelo que fazemos remontar à obra A República de Platão. De acordo com este modelo, o processo de
educação e de ensino constitui uma unidade juntamente com outros processos,
todos ancorados na ideia de uma sociedade idealizada que eles permitirão
concretizar e perpetuar. É um modelo fechado e monolítico. Os princípios e valores
que suportam e direcionam a educação e o ensino tendem, neste modelo, a ser
tomados como certos e únicos. Quando um modelo deste tipo é assumido por um
projeto político que acede ao poder ele irá exprimir-se nos discursos oficiais
sobre a educação e o ensino, nas decisões de política educativa, na legislação
de educação e ensino, na organização dos currículos (cursos, disciplinas…),
obedecendo a um plano de unidade. A escola e o saber que nela se ensina farão
parte de um projeto político mais amplo. A educação e o ensino no Estado Novo,
por exemplo, constituem um caso concreto de aplicação de um modelo deste tipo
em que a dimensão social e política de toda a educação tenderá a confundir-se
com processos de doutrinação político-ideológica. No entanto, a dimensão
política do ato educativo e o facto de se direcionar ao futuro, não tem que se
confundir com ensino doutrinário e com processos de instrumentalização do
saber. É possível conciliar política e educação, educação e ensino, política e
liberdade.
II.
1.
A família e a escola – tarefa
educativa comum?
Como é que a escola, hoje, prolonga a
ação educativa da família? Há cinquenta anos essa ação parecia ser de
continuidade. A estabilidade do universo familiar e social, a existência de um
conjunto de valores largamente partilhados fornecia um quadro de referências
comum que facilitava toda a tarefa educativa. A política do Estado Novo, aliás,
utilizou essa estabilidade para construir sobre ela um imaginário simbólico a
fim de criar, sedimentar e perpetuar um ideal de «português» e de lusitanidade.
A «Família»
é, não só ponto de referência explícito do discurso político (todos nos
lembramos da tríade Deus-Pátria-Família), como também se constitui, de modo
consequente, enquanto conceito nuclear operante, desdobrando-se a vários níveis
do discurso e da ação. A nível
educativo, deverá organizar o aluno de um ponto de vista principalmente
psicológico e afetivo nas idades mais tenras, preparando-o, psicológica e
mentalmente, para uma conceptualização filosófica e política mais complexa nos
níveis superiores. No «Livro da Segunda Classe», livro único desde os
anos 40, logo num texto inicial intitulado «A Família», é fácil verificar a
imagem do pai, enquanto trabalhador provendo ao sustento do lar, e a da mãe,
que zela pela casa e bem-estar familiar, acrescentando-se, à exaltação da
Família, a dos valores religiosos e patrióticos e a associação, não metafórica,
entre Família e Nação. É este modelo da família cristã católica que é
reproduzido de diversos modos, consoante os públicos visados, de acordo com a
estratégia mais eficaz para garantir o processo psicológico de interiorização
dos valores axiais da nova política.
A «Família» é um dos principais núcleos
semânticos aglutinadores de um movimento centrípeto e em espiral que se reforça
em cada grau de ensino. Neste contexto, o saber ensinável nos graus de ensino
superiores é também convocado. Quem prosseguisse estudos encontraria mesmo na
disciplina de Filosofia a conceptualização e fundamentação dos diferentes
papéis da mulher e do homem, supostamente já interiorizados, colocados agora em
termos de dever ou obrigação e de virtude, no âmbito do capítulo programático da Moral. O discurso
filosófico assume, frequentemente, neste âmbito, um cariz doutrinário,
apologético, moralizante, sem sinais de racionalidade demonstrativa ou
argumentativa. Transcrevemos, por exemplo, do compêndio oficialmente aprovado de
Eugénio Aresta, Noções de Filosofia,
de 1940, o seguinte excerto:
Como
dona de casa a mulher deverá tomar as obrigações que como tal lhe incumbem, não
como uma necessidade humilhante à qual tem de submeter-se ou como uma obrigação
tristonha e aborrecida, mas como um dever que se cumpre com gosto. O arranjo e
governo da sua casa, do seu lar, deverão constituir para a mulher um dever
agradável. No seu desempenho há lugar para o exercício de nobres e delicadas
virtudes.
A política de educação
e ensino do Estado Novo representa de modo exemplar um modelo de intervenção
política e estatal na escola – na sua organização curricular, na orientação e
nos seus conteúdos de ensino, nos seus manuais escolares – que a
instrumentaliza e que faz dela um braço do poder político.
O modelo tradicional
de família já não existe, porque esse mundo em que ela estava ancorada também
não existe. Os modelos informais de educação estão fragmentados e, em alguns
casos, inexistentes, na ausência de figuras parentais de referência ou
fragilizadas. No entanto, as crianças estão aí e precisam de ser educadas. E,
hoje, vão todas à escola. De elite, o ensino e a escola passou a ser um ensino
de massas. Perante as alterações ocorridas na estrutura da família e nas suas
condições de existência, a tarefa educativa tem-se vindo a deslocar cada vez
mais para a escola. Perante a diversidade de modelos de família, perante a pluralidade
de situações com os quais desde muito cedo a criança se vê confrontada, a
tarefa da escola não está facilitada.
Mas para a criança
nada se passa que não seja através da mediação do adulto; as dificuldades na educação
não são outra coisa senão as dificuldades do adulto no desempenho do seu papel
em contextos também alterados. E qual é o seu papel? «Fazer crescer»… assumir a
sua autoridade educativa. A palavra «autoridade» significa etimologicamente
«fazer crescer». É principalmente com esse sentido fundamental que aqui
usaremos a palavra «autoridade». No modelo tradicional, chamemos-lhe assim, a
autoridade dos pais estava estabelecida muito para além deles e a autoridade
dos professores prolongava naturalmente a autoridade vivida na esfera familiar.
Não havia muito que pensar sobre isso. Os problemas de autoridade eram
normalmente entendidos no sentido derivado, de dificuldade em fazer respeitar a
disciplina, e não adquiriam relevância de maior. Todos, pais e professores,
dispunham de mecanismos de ação considerados eficazes e socialmente aceitáveis.
Hoje, pais e educadores sentem-se inseguros e isso apresenta-se como
dificuldade em assumir perante a criança a responsabilidade de a ajudar a
crescer… como se pudéssemos fugir a essa tarefa, como se pudéssemos, atirados
ao mar, não ter de nadar… A verdade é que já não sabemos muito bem, pais,
professores, em que direção educamos, para que mundo educamos. Quando o mundo
em que vivemos nos aparece como incerto a tarefa de educar é mais difícil. E,
no entanto, educar é necessário. Assumir perante o outro a responsabilidade
pelo mundo. Como refere Hanna Arendt, «a
competência do professor consiste em conhecer o mundo e em ser capaz de
transmitir esse conhecimento aos outros. Mas a sua autoridade funda-se no seu
papel de responsável pelo mundo»[2].
Abdicar desta
responsabilidade, desistir de educar é permitir que tudo o resto o faça por nós
– a televisão, as redes, os grupos… na falta da presença do adulto/ de quem
educa, a criança e os jovens ficam abandonados a todas as forças que o cercam
sem pontos de referência para poderem fazer as suas escolhas e adquirirem
autonomia. Educar, neste sentido, é principalmente estar presente e próximo e,
através dessa referência, dessa proximidade não invasiva poder ser aquele que
gera a confiança sem a qual ninguém cresce. E creio que, embora isto seja mais
relevante nas idades mais tenras, é sempre uma necessidade do ato educativo.
2. Educação ética, cívica e política
na escola?
Porque
sentimos tanta dificuldade em lidar com a vertente formativa do ensino,
particularmente na sua dimensão moral/ética e cívica/política?
Para os educadores mais velhos, a ideia
de uma educação «moral» não parece apelativa…faz lembrar a educação moral e religiosa,
obrigatória no ensino antes da Revolução de 25 de abril de 1974; a educação cívica
remete para a doutrinação política realizada muito especialmente com a
disciplina de OPAN, normalmente de má memória…
Para os educadores mais novos, a
moral e o civismo parecem ser qualquer coisa que vai surgindo espontaneamente
sem que alguém tenha de se preocupar com isso. Quer num caso, quer noutro,
estamos perante uma atitude de desvalorização dessa dimensão do ensino,
aceitando que o facto de andar na escola, por si mesmo, acabe por desempenhar
esse papel.
Embora não possamos considerar que
nada tem sido feito, ou esteja a ser feito nesse sentido, os sucessivos avanços
e recuos parecem revelar a dificuldade de pensar esta vertente educativa.
A pergunta que surge é a de saber o que se deve
entender por educação ética, cívica e política hoje e de que modo é que a
escola pode contribuir para a esta formação. Na verdade, o Estado Novo sabia
bem o que era a educação moral e a educação política. Toda a educação que segue
um modelo fechado sabe o que fazer para educar moral, cívica e politicamente.
Às vezes, parece ainda perpassar em algumas mentes uma certa
nostalgia desse tempo em que a ordem, a disciplina e a autoridade davam grande
comodidade à ação educativa nas escolas. Mas isso não era senão um epifenómeno
de uma ação que decorria quer de modo evidente, quer de modo mais oculto a
outros níveis. Toda a ação educativa do Estado Novo decorre na rejeição da
política como ação livre que se realiza entre os homens e no enfraquecimento do
espaço público como espaço de debate, de discussão, de desenvolvimento e de
manifestação de opinião crítica.
No entanto, a rejeição
daquele modelo do Estado Novo não implica abandonar qualquer um, ou escamotear
a importância de uma educação ética e política, que é o que parece ter vindo a
acontecer, porque
…é na escola que se aprende a
discutir, a aceitar a opinião divergente, a combater com argumentos em vez de
ser com insultos[3].
Uma educação democrática,
aberta e plural não deve ser por isso, menos interessada naquilo que constitui
a humanidade do homem – a capacidade de se relacionar com os outros e consigo
mesmo e a de construir um mundo habitável para si e para todos os outros. A
questão é só esta - como educar para
um mundo onde todos temos que viver?
3. A Escola é uma instituição social
e política. Um direito dos cidadãos?
Para o que
gostaria aqui de chamar à atenção é para a ideia de que há uma dimensão
política da educação escolar que lhe advém simplesmente do facto da escola ser
uma instituição que é alvo de decisões políticas que afetam, positiva ou
negativamente, a sua capacidade de responder à tarefa de ensino e de educação.
Também isso não pode ser escamoteado. A falta de investimento no ensino, o
facto de ter sido aí que se têm realizado as maiores reduções na despesa não é
neutro para as condições nas quais se tem vindo a concretizar o ensino e a
educação. É preciso recuperar ou, pelo menos, não deixar cair no esquecimento que
o direito ao ensino e à educação é uma conquista civilizacional e
reconhecidamente um bem que queremos preservar. Permitindo ultrapassar as
deficiências do meio familiar e social de origem, a escola deverá continuar a
ser o meio para a realização do indivíduo como pessoa, como ser social, como
cidadão. Se ela hoje não é, como no
passado, meio seguro de ascensão social, de onde lhe advinha também o seu
prestígio e valorização sociais, ela não deixa de ser o lugar onde se educa,
onde se ensina e se aprende. Continua a ser nela que, na ausência de background familiar, o jovem pode
contactar com o mundo do pensamento, o mundo da ciência, da filosofia ou das
artes. Continua a ser a escola que oferece a oportunidade de encantamento com
tudo aquilo que tem feito a humanidade, apesar de tudo, ser o que é hoje.
Abandonar a ideia de escola como direito dos cidadãos e dever do Estado é
também abandonar cada um à sua sorte na «lotaria social» (na expressão de J.
Rawls).
4. A escola
é lugar de transmissão de saber. Que saber?
De que conhecimento, de que saber falamos quando nos referimos à
vertente do ensino na escola? A escola ensina o quê e para quê? Segundo que
critérios se determina o ensinável no espaço da escola? Que intervenientes são
legítimos na definição dos princípios educativos, na organização do sistema de
ensino, na organização dos currículos e dos programas? A quem deve ser
atribuída responsabilidade para gerir a conflitualidade de diversos interesses
e definir as opções educativas, curriculares, programáticas? Seja qual for a
resposta ela seguirá sempre determinados critérios. E não há aí neutralidade. O
que se passou durante o Estado Novo é a esse respeito exemplar. Em legislação
de 1932, relativamente ao ensino da História, lemos:
[…] O Estado, sem se arrogar a posse
exclusiva duma verdade absoluta, pode e deve definir a verdade nacional, quer
dizer, a verdade que convém à Nação[4].
A «verdade nacional», a verdade dos
e para os portugueses, a «verdade portuguesa», no dizer de Eduardo Lourenço[5],
definida em relação ao superior critério da portugalidade ou da lusitanidade é aplicada
ao ensino e à educação. Todas as disciplinas escolares cujos conteúdos de
ensino se liguem de modo mais próximo aos aspetos formadores do ensino sofrerão
a pressão deste critério.
Estamos longe deste quadro? Estamos. Mas os mecanismos
utilizados naqueles processos não são exclusivos de uma época. São os mecanismos
do poder sempre em aberto. O que no Estado Novo é levado ao seu máximo expoente
permite evidenciar a ideia de que o saber ensinado na escola, não está imune a
interesses, enquadra-se sempre numa determinada orientação de ensino (não
necessariamente explícita e enunciada) que determina o currículo e os critérios
de organização curricular.
Hoje, por exemplo, não consideramos um acaso o facto de a
disciplina de filosofia, nos dois anos em que é ministrada no ensino
secundário, se encontrar, na maioria das escolas, no último lugar do currículo,
segundo o critério da carga horária semanal atribuída. Na história da
constituição da disciplina no ensino secundário, que remonta a 1836 com a
criação dos Liceus por Passos Manuel, esta situação só tem paralelo em 1905 com
um currículo de pendor positivista. E
percorrendo a história do ensino secundário em Portugal a partir de 1860, com a
primeira Reforma que estipula o número de aulas semanais num plano curricular, não
se encontra um desfasamento tão grande, como o que nos é dado constatar hoje,
entre as cargas horárias das disciplinas com menor peso e das disciplinas com
maior peso curricular.
5. Educar para o futuro. Que futuro?
Numa época sem utopias, numa época em que o discurso
político dominante difunde a crença de que a realidade é uma entidade
substancial e autónoma que se impõe opaca e intransponível, como se a realidade
de que se fala, a realidade económica, social e política não fosse obra dos
homens, da sua ação e dos seus projetos coletivos, numa época como a nossa,
cumpre perguntar que papel pode ter ainda a educação. Que referência de futuro?
Educar é
educar para…, educa-se sempre para o porvir, mas nenhum projeto educativo se
constitui sem referências do passado -
já que não é possível educar para o futuro sem saber o que fazer com o
passado de que se dispõe e com o presente que se vive. O que nos importa é
compreender como é que o presente incorpora tanto o passado como o futuro. Como
é que na escola, que Inclui práticas formativas e processos de transmissão de
saber, se prepara o futuro e que futuro.
Todo o projeto educativo e a escola que o corporiza situam-se na
confluência e na tensão entre o passado, que se constitui como um conjunto de
referências conceptuais, valorativas e vivenciais partilhadas pela comunidade
dos adultos, o presente vivido e o futuro.
O confronto
tensional entre passado e futuro constitui um aspeto da dialética do ato
educativo. Na ação educativa convergem o passado e o futuro – o
primeiro confere-lhe consistência porque a integra numa experiência partilhada,
o segundo dá-lhe a dimensão criativa e inovadora… É deste encontro tensional
entre tradição e utopia que a ação educativa retira a sua dinâmica, a sua
consistência e a sua possibilidade de realização. Sem tradição a educação é
vazia, sem utopia é exercício cínico e gratuito. A utopia que aqui tomo como um
dos pólos da educação não se refere a um futuro sonhado à imagem do presente ou
sequer de UM futuro. A utopia é tomada no seu significado etimológico de
«não-lugar» e assim sempre se deverá manter: abertura, possibilidade. A
educação que tem como pólo a utopia parte de um compromisso ético
com o presente no sentido de não permitir que este feche as
possibilidades do futuro. Sem esse
horizonte, a escola nunca deixará de ser mera reprodutora das relações sociais
e de poder existentes na sociedade.
Hoje em dia,
parece-nos haver alguma dificuldade em aceitar e assumir uma educação para o
futuro. Ou porque é que esse futuro é cabotinamente reduzido a um futuro de
muito curto prazo, ao tempo de um «emprego» e as questões da educação e do
ensino reduzidas a um utilitarismo estreito que pretende sujeitar a educação
aos interesses de uma sociedade de mercado. Quando
é o futuro para o qual se educa? Não estamos a pensar
na recuperação de um qualquer modelo de futuro. Mas na necessidade de uma
visão, um horizonte, um conjunto de referências que apontem um caminho. A um
conceito de futuro que seja mais do que o imediato, o supostamente útil, a
camisola para vestir no dia seguinte.
O
desafio hoje é o de saber manter esta dimensão de abertura perante um mundo que
se tornou, mais do que em qualquer outra época histórica, incerto. Perante
possibilidades de futuro que, pela primeira vez na história, contêm um cenário
de destruição total. Os sinais são inquietantes e aquilo que a civilização
ocidental conquistou ao longo de séculos, de um momento para o outro,
assemelha-se a quase nada. Mas esse quase nada é tudo o que somos, é tudo o que
temos, é tudo o que podemos deixar. Esse quase nada é tudo o que fomos capazes
no plano da ciência, da filosofia, da educação, dos direitos humanos… tudo o
que fomos capazes a partir da inquietação das primeiras perguntas, da
curiosidade pelo mundo e por nós próprios e da confiança na racionalidade que
examina, que investiga, que constrói e que destrói. É esse o património que a
escola tem de preservar e transmitir: juntamente com a transmissão do saber, o entusiasmo simbólico na feliz expressão
de Savater[6];
juntamente com a transmissão do saber, aquilo que nele o fez saber - a
curiosidade, a interrogação, a investigação racional crítica, o pensar. É esse
património de curiosidade intelectual que se materializou em conteúdos de
conhecimento que pode ser estimulante, porque todo o saber está ainda por
cumprir. É essa a tarefa que cabe aos que chegam de novo. É para esse futuro em
aberto que a educação aponta e que cada professor assume como sua
responsabilidade. E ao lugar que o futuro deixa em aberto só pode ser dado o
nome de esperança.
[2] Hanna Arendt, «A Crise na
Educação», in Quatro Textos Excêntricos,
Lisboa, Relógio D’Àgua, 2000, p. 43.
[3] Eduardo Lourenço, 3º Encontro Presente no Futuro: à procura da
Liberdade, Fundação Francisco Manuel dos Santos, realizado entre os dias 3
e 4 de out. de 2014, transcrição a partir da intervenção oral, debate final.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LcGpo8nnP8k. Acesso em 16 de abril, 2015.
[5]Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português,
Lisboa, Publicações D. Quixote, 1978, p. 31.
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