Razão e
Desrazão
A loucura, longe de ser uma anomalia, é a
condição normal humana. Não ter consciência dela, e ela não ser grande, é ser
homem normal. Não ter consciência dela e ela ser grande, é ser louco. Ter
consciência dela e ela ser pequena é ser desiludido. Ter consciência dela e ela
ser grande é ser génio.
Fernando
Pessoa
(Aforismos e
afins. São Paulo: Cia das
Letras, 2006. P. 12)
Homo sum, humani nihil a me alienum puto.
Terêncio
(Heauton Timorumenos, V. 77.)
1.
Sabe-se que a razão humana possui uma especificidade única que é a de visar
qualquer objeto muito para além das possibilidades reais daquilo que
perceciona. Todo o ser humano pensa em muitíssimas mais coisas do que aquelas
que pode experienciar empiricamente. Exemplificando de modo simples, ao dirigir
a minha atenção para esta mesa eu sei (só que não penso nisso no momento em que
dirijo a atenção para esta mesa) que ela engloba partes e pormenores que não
vejo nem sinto, mas possuo a crença de que elas existem de facto. Tenho razões
e evidências para acreditar que a mesa possui a parte de baixo do tampo, uma ou
outra perna que não diviso, etc. Não duvido, apesar disso, da existência da
mesa (nem tinha de o fazer). E parece ser assim com todas as pessoas, o que demonstra
a nossa natural crença verdadeira (supostamente) justificada acerca das entidades
fácticas.
2.
Mediante o corpo sei que me encontro num mundo físico, desde que consciente do
meu pensamento que me pensa e pensa os outros. Através do corpo concebo um
mundo com vários significados. É o aqui e
agora sempre constantes que me dizem igualmente que os outros estão
presentes e agem no mundo como eu. Sinto o outro em mim mesmo do mesmo modo que
pelo meu corpo me sinto a mim próprio. E como o outro não é apenas um momento
daquilo que me é próprio, também não o posso identificar com a consciência que
dele tenho, num solipsismo enganador.
3.
Os outros são o meu não-eu e nessa intropatia reconheço-os como objetos numa
comunidade da qual faço, irremediavelmente, parte integrante. Quando perco a
consciência perco-me de mim e do mundo. Neste hiato fenomenológico reside a génese daquilo que entendemos como
loucura. A loucura começa quando extravio a noção dessa intersubjetividade e
fico enclausurado, por exemplo, na alucinação, ou seja, ajo enquanto senhor de
um único mundo ou, que daqui resulta numa projeção maior, crio um ente supra
individual que me guia a ação, pairando absoluto, distinto e único, acima de
todos os sujeitos incluindo a minha pessoa. Quer dizer, não se alcança uma
adequação (para utilizarmos linguagem husserliana) entre a intenção do ato
consciente («objectivante», para a ciência) e as sínteses mais
acabadas/preenchidas da doação completa do objeto (Bedeutungserfüllung) – a questão central da fenomenologia. O
sujeito pode introjetar as qualidades sensíveis das coisas numa fantasia que as
traduz, virtualmente, num correlato do seu visado, não possuindo nem um aqui nem um ali. Enfim, a desrazão toma conta do meu ser no mundo.
4.
Não
querendo, de momento, explanar a conceção husserliana acerca do ideal de
adequação e seus vários graus, o que irremediavelmente nos levaria para a
relação sensibilidade/entendimento, admitimos que a loucura, ou desrazão, se desenvolve
segundo uma constante, a variação imaginária. Do mesmo modo que o imaginário
nos pode (re)colocar no real (mediante a criação, por exemplo) autoriza,
inclusive, e desafortunadamente, a alienar-nos de nós próprios e de acordo com
a sua maior ou menor frequência. A criança que possui um amigo imaginário é por
ele ajudada mediante as suas projeções no contexto social que habita. Em
contrapartida pode, também, sentir-se agredida pelo amigo – aqui, já a loucura produz um imaginário de alta frequência,
perigoso, excessivo, carecendo de eventual intervenção psicoterapêutica.
5.
Defendemos,
ainda, e sem grande originalidade, que
a loucura varia na proporção inversa da razão. Mas gostaríamos de chamar a esta
relação (usurpando um pouco da linguagem matemática) a constante filosófica LR. Para
seguirmos a analogia, diremos que se dobrarmos o valor inicial de L (loucura),
R (razão) terá o seu valor
correspondente dividido por dois e vice- versa. De outro modo, se R se triplica então L divide-se por três
e assim sucessivamente. Se uma grandeza cresce a outra decresce de forma
proporcional.
6.
Problemas:
O que é a razão? Que requisitos serão necessários para medir a constante LR?
Que medida é esta? Será de facto possível definir R pelo seu grau de
afastamento de L?
7.
Entendemos pela termo razão a
capacidade humana de pensar presumindo o cálculo lógico e a relação de um
sujeito com um objeto, mediante um discurso conceptual consciente e
intencional. Este termo, razão,
entrou na linguagem filosófica com Lucrécio e, mais tarde, com Cícero. Por seu
lado, o termo loucura, de
terminologia incerta, prefigura um significado apenas existente nas línguas
ibéricas (loco, louco). Não há grande
certeza sobre a sua etimologia. Sugere-se o árabe «lauqa» (tonto, bobo, tolo),
já que terá sido o Oriente árabe o primeiro a considerar a dignidade humana da
loucura, a atestar pelos «hospitais psiquiátricos» no Cairo do século XIII. Na
Europa, as primeiras instituições deste género surgirão em Espanha, no século
XV. Classicamente, a loucura foi considerada o outro da razão, contestando-a no
interior desta última. De modo contrário, na sua célebre meditação, Descartes
excluiu-a da ordem das razões. Consideremo-la então, «uma desordem e um
obstáculo à ordem», como diria Foucault. Enfim, uma desrazão que deveria ser
institucionalmente tratada mediante a clausura do louco – questão mais de ordem
ética do que epistemológica ou ontológica.
8.
Mas, apesar das várias formas grafadas da palavra razão e suas pequenas variações semânticas ao longo da história (ratio, dianoia, noesis, logos, etc.), assim como das suas multifacetadas
leituras (faculdade de conhecer; conhecimento natural; razão pura e prática;
razão divina; razão das coisas (objetiva); razão revelada; etc.) admite-se,
invariavelmente, uma matriz pela qual a razão se aciona, a saber, o discurso, a
palavra. Nesta medida, por mais atalhos que tomemos, por mais elucubrações que
façamos, não nos evadiremos da necessidade dos conceitos, dos sinais lógicos da
linguagem, das regras do discurso, enfim, não somos seres racionais na ausência
de palavras. Somos incapazes de raciocinar sem expressões verbais
correspondentes a conceitos mentais.
9.
Dada
a espontânea inevitabilidade das palavras para a sobrevivência de qualquer tipo
de razão e de loucura, é nelas que encontramos as condições transcendentais que
permitem decifrar esta dual convivência. As palavras estão vinculadas a uma necessidade
vital pois, sem elas, o homem seria incapaz de referir a sua vida mental e
material. São elas igualmente que medem o provável ou o improvável, enquanto
experienciamos o nosso eu-no-mundo. E
é aqui que o espírito da análise filosófica antecede a letra da técnica
psicológica. De que nos serve uma técnica se não possuirmos a arte? Esta arte é
a capacidade de não ser ignorante ou de ter tido a possibilidade de não o ser.
Em boa verdade, para conseguirmos apreender a ajuda do técnico é importante uma
clarificação prévia do nosso pensar imediato que, bastas vezes, se assemelha a
um amotinado remoinho de pensamentos e sensações e/ou emoções que nos podem sufocar. Pretendemos que
a filosofia nos ensina o seguinte: a própria psiquiatria não será mais de que
uma pretensa neurologia determinista se evitar o face a face com a psicologia.
10.
Aceitamos, ainda, que as emoções (primárias e secundárias) são fundamentais para
a habilidade de sobrevivência e convivência na nossa espécie. No entanto, por
si sós, não nos proporcionam o adequado equilíbrio do eu-no-mundo-dos-outros. Dito de outro modo, a razão apenas se
desenvolve na heteronomia, na relação com as razões dos outros significantes,
daqueles que nos ensinaram a falar e a pensar, daqueles que pensam falando
connosco. Caso contrário, o eu seria um nada (se bem que ainda) no mundo
humano. E quando dizemos que a constante filosófica LR mede o grau de loucura, pretendemos falar de quantidade no sentido metafísico
em que uma essência se predica ou realiza, ou determina, num homem particular.
‘Este homem é/está louco’ – tal expressão significa que nesse homem se quantificou uma essência, já que
realizou no seu ser-no-mundo uma disposição
da sua natureza. A loucura está na natureza do ser humano, dela faz parte, e apenas quando circunscrita se poderá transformar em objeto de
estudo. Por isso, e parafraseando Oscar Wilde, afirmamos que a loucura pode
curar-se, não a imbecilidade.
11.
Também é conhecida a tese de que da filosofia se originou a psicologia. Bastas
vezes, inclusive, a primeira consegue substituir a segunda. A filosofia é a
antecâmara do estudo da mente e do corpo. As ciências psicológicas e
psiquiátricas (que, historicamente surgiram pela assunção (clássica) do
conceito de doença mental ou loucura) revestem-se de uma importância grande
para a compreensão do comportamento emotivo-intelectual (diário) do homem atual
e de todas as eras. Estas ciências tratam de modos possíveis de se ser humano. Para
evocar um exemplo maior, perguntemos se se poderia interpretar a condição do
portador de esquizofrenia enquanto um seu modo de ser homem ou mulher?! Pode
defender-se que o portador de esquizofrenia não deva eximir-se aos
psicotrópicos, internamentos, etc. desconsiderando que mesmo estes pacientes
possuem uma história vivencial, uma narrativa cujo estudo permitirá não a
tornar completamente ininteligível e estranha à natureza humana dita normal? Será
possível descobrir algo na esquizofrenia que seja mediatizável, uma vez que se
trata duma enfermidade cuja etiologia não é ainda completamente conhecida? Dos muitos
casos em que («famosos») portadores de esquizofrenia conviveram com a doença, não
se encontraram neles alguns outros modos de se ser humano? Entre muitos exemplos,
lembremos o de John Nash, ao afirmar que teria saído da sua «irracionalidade»,
numa última fase, sem recurso a medicamentos... E também não é verdade que as
pessoas ditas normais continuam a acreditar numa série de coisas estranhas?! Sabe-se
que o problema continua a ser estudado, mas avança no sentido de se concluir
que o isolamento/autismo é responsável pelo desenvolvimento negativo desse bizarro
padecimento humano[1].
E ainda os nossos delírios íntimos, não poderão eles ser negociados, compreendidos
pelo diálogo numa base de confiança interpessoal? Humani nihil alienum.
12.
Possui,
então, a loucura uma radical determinação genética e, nesse caso, somos vítimas
permanentes de um incontornável, fatídico e impessoal ADN, ou a genética apenas nos condiciona? E em que
situações (existenciais…) poderá essa regulação ser menorizada ou alterada pela
biologia química, pela quimioterapia? E não será o resultado o mesmo, a saber,
a desrazão?! Ora, presumindo que a loucura dispõe intrinsecamente de uma causa
genética, devemos descurar a influência do conjunto de estímulos extrínsecos
que, por sua vez, provocarão, eventualmente, potenciais respostas biológicas?
Não será o meio sócio cultural outra face da mesma moeda? Não deriva o pensar
do demente também de uma aprendizagem social que (embora marque somaticamente o
córtex que o antecede, e bastas vezes alterando a massa cerebral), não se
esgota nessa realidade, nessa armadilha com que a natureza nos confunde? Admitindo
que se encontrarão, num futuro próximo, os genes da loucura, será a manipulação
genética a resposta?
13.
Chegou a altura da seguinte questão: é a filosofia (nomeadamente, a partir de
uma abordagem fenomenológica) que impede os surtos
de loucura (a criminal, por exemplo) no comportamento do ser humano? Na
verdade, se assim fosse, nenhum filósofo teria padecido do efeito de tais
fenómenos! Se bem que a loucura e a normalidade sempre possuem um significado
social, teremos de as entender no seu sentido positivo como algo humano,
confrontando os nossos mais bizarros tipos de imaginação com as coisas,
admitindo todas as perceções loucas do real - donde derivam, como sabemos hoje
em dia, heterodoxas mas significativas psicoterapias (artes, música, desporto,
etc.). Mesmo o louco violento ensina à razão como agir precocemente, não
excluindo (nem o conseguiríamos fazer) a reclusão, a farmacologia, a
neurologia, e outros processos lógicos/racionais de intervenções pontuais ou
sistemáticas. Entendemos pelo termo loucura,
o conjunto das formas arracionais de resposta ao sofrimento que a realidade
provoca no sujeito, deformando o incontornável real empírico e ameaçando a
inteligência. E nesta medida, seremos todos loucos?!
No entanto, a consciencialização/descrição dos nossos estados íntimos é,
tão-só, realizada pela compreensão filosófica do real quotidiano com os outros,
seja pela filosofia, seja pela psicologia, mediante uma distância reflexiva que
habitua e obriga o sujeito a despersonalizar-se para melhor se pensar enquanto
objeto preenchendo, assim, o hiato que medeia entre o visado desejante e os
dados reais da consciência que se surpreende num mundo empírico. O louco
desarrazoado age como num sonho, perdido que está o seu ser-no-mundo. De modo não consciente converte a função psíquica do
real numa função psíquica do irreal. Abortada, agora, a reflexão (filosófica),
o louco é incapaz da descrição do seu estado de espírito mas interpreta-o,
erroneamente, enquanto real efetivo. Assim se evade da realidade que o agride,
arquitetando um refúgio de inércia intelectual, para mal de si e dos outros,
num patológico devaneio quase-passivo que (re)constrói com as armas da sua
penosa alienação. E, de modo similar, assim também se poderão iniciar as guerras
entre as nações (as justas, as preventivas, as económicas e outras). E
para terminarmos com um exemplo, mas que abre nova discussão (e apelando a um
pensamento de Nietzsche que lembra que nos indivíduos a loucura é algo raro - mas
nos grupos, nos partidos, nos povos, nas épocas, é regra), diremos
que a loucura sanguinária que está de regresso às nossas vidas nestas primeiras
décadas do século XXI, começará a encontrar a sua cura (já que esta sempre surge por acréscimo) a partir do momento
em que a razão filosófica se exprima livremente pelo treino conceptual, pela
pura descrição dos atos intencionais da consciência e, sobretudo, pelo regresso
às Humanidades, ao espírito livre e criador de riqueza intelectual e emocional.
Nenhum facto histórico demonstrou que as ideias se derrotam com bombas! Mesmo
no extermínio étnico sobra a memória! A constante LR ajuda a mostrar que só a
razão integrada no real (desde que o real, considerado de um modo geral, seja
realizado de modo menos agressivo/frustrante para a sobrevivência individual,
logo da espécie) afasta a loucura da ideologia religiosa, nacionalista,
imperialista, económica, ou qualquer outra desrazão. Não poderá a filosofia
defender que a loucura do fanático se combate, a montante, com a revolução das
idiossincrasias e não, apenas, com bombas? Devemos vender mais livros e menos
armas?!
14. Em
suma, somos forçados a suportar a efetividade, enquanto meros mortais, que a
consciência humana abre, involuntariamente, mais possibilidades do que aquelas
que consegue encerrar. É nesse hiato que se realiza, no sujeito, o fenómeno (phainomenon) da
frustração/loucura/desrazão e/ou da compreensão/razão. A arte de não
enlouquecer está, precisamente, na análise crítica destas conjunções e destas disjunções.
Joaquim
Carlos Araújo
Dezembro de 2015.
[1] Conferir
com, por exemplo, o VIII Colóquio Internacional de Esquizofrenia do Porto, 17
de Junho de 2011.
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