quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Henriques Nogueira.

 

A Utopia de José Félix Henriques Nogueira


José Félix Henriques Nogueira nasceu em 1825 no lugar da Buligueira, freguesia de S. Pedro de Dois Portos, concelho de Torres Vedras, de uma família distinta de proprietários rurais; aqui residiu com sua mãe, nunca havendo casado, sempre até à sua morte ocorrida em Lisboa, onde se deslocava frequentemente. Devotado à lavoura, dispondo de boas terras, a sua origem social ajuda-nos a compreender os contornos da sua ideologia política e social. Homem de carácter, ligado ao povo trabalhador, atento aos seus sofrimentos e aos ideais de progresso da justiça social, culto e viajado, o facto de habitar a província não o converteu num provinciano. Leitor de muitos livros, jornalista, ensaísta, escritor de bom estilo, observador penetrante das vantagens e desvantagens da revolução industrial nas potências europeias de então, comprometido com as causas sociais mais adiantadas do seu tempo, fez-se moralizador e pedagogo, agente político sem tibiezas e oportunismos pessoais, não servindo indivíduos mas ideias e princípios, nunca confundindo os interesses das classes possidentes e dominantes com os interesses da nação. Foi homem de amizades leais, teve entre os seus admiradores e amigos grandes personalidades do seu tempo. A sua morte súbita, ainda tão novo, provocada pela tuberculose, o seu funeral, provocaram comoção nas elites do país, sobretudo nos homens bons como ele fora.

Os seus ideais e a sua utopia social tinham raízes nas aspirações e no activismo político de uma pequena burguesia democrática e radical, que se opunha aos projectos da alta finança, dos novos proprietários rurais que se haviam apropriado das enormes propriedades que a Igreja detivera no Antigo Regime, ou seja, no regime monárquico-feudal. O seu programa político ia até mais longe do que essas camadas sociais para as quais o chamado liberalismo significava na prática a formação de monopólios mercantis, isto é, grandes negociatas como então se dizia,  grandes capitalistas que enriqueceram de um dia para o outro. Henriques Nogueira era implacável nas críticas que escrevia em jornais da época.

Proclamava-se contrário ao sistema capitalista tal como então vigorava, que lhe parecia atraiçoar os ideais das  grandes revoluções liberais, criticava vigorosamente o «despotismo do capital», almejava fazer cumprir as ideias «igualitárias» que apenas numa República e em uma República Democrática, lhe pareciam possíveis. Este seu programa de uma República Social correspondia ao Socialismo. Denunciava o estilo autoritário e demagógico da governação, que classifica de «Governo gasto, sofismador, estéril, corroído por interesses de bando, a sua conservação só se explica pelo mau fado que geralmente preside às nossas causas, e pela pasmosa indiferença a que uma série não interrompida de decepções nos tem levado». Eis uma reflexão que não perdeu actualidade. Estou a reduzir ao osso a mensagem que vos quero transmitir, e permitindo que os meus colegas caracterizem, se quiserem, os factos históricos e políticos da época.
A palavra-de-ordem do reformismo socialista de Henriques Nogueira, «regeneração física e moral da sociedade», condensa o projecto da chamada geração de 50, isto é, daquela pequena e média burguesia, como disse, que desejava uma via de desenvolvimento não-capitalista, julgando poder conciliar a apropriação capitalista com uma vasta área de cooperativas sem finalidade de apropriação privada dos lucros. Esta ideia de um desenvolvimento não-capitalista é de superlativa importância e não perdeu uma partícula de actualidade: todo o século xx e este têm sido laboratórios de experiências social-democratas e socialistas. Uma outra espécie de capitalismo, não monopolista e não latifundiário, em que o grande capital financeiro, especulativo e parasitário, seria controlado por um Estado Democrático eleito por sufrágio universal, apoiado numa base social organizada em associações populares, eis o essencial do seu programa. Não punha em causa, portanto, o direito de propriedade privada, que considerava «um dos estímulos mais poderosos do trabalho», isto é a iniciativa, o direito ao lucro pelo trabalho pessoal, uma economia mista vantajosas para os patrões e para os trabalhadores, para o progresso das regiões, coexistindo, assim, com pequenas oficinas de artesãos, com cooperativas e outras associações económicas e bancos populares (mutualistas) que protegessem os cooperantes, os accionistas e associados da concorrência dos grandes empresários nacionais e estrangeiros.
O Princípio que constitui o eixo central do ideário socialista de Henriques Nogueira era o associativismo operário e do pequeno produtor, e, sobre essas alavancas de progresso, a necessidade urgente de constituição de municípios autónomos associados em regiões. Enfim, associações, regiões, a nação inteira unir-se-ia a uma nova Espanha governada pelo mesmo Socialismo, compondo a Federação das Nações Ibéricas. O Federalismo Ibérico foi um dos ideais mais importantes e recorrentes nos doutrinadores republicanos e socialistas do século dezanove português e espanhol. No caso de Henriques Nogueira haveria de ser, só poderia ser, uma união fraterna de dois regimes socialistas verdadeiros.

As ideias que expus muito superficialmente revelavam-se utópicas. Digo-o porque não encontraram audiência então -nos anos cinquenta- nas classes sociais trabalhadoras: nos operários, artesãos, comerciantes, pequenos lavradores. O próprio Henriques Nogueira perdeu em eleições locais aqui mesmo, em Torres Vedras. As eleições, que não eram universais de todo, eram dominadas pelos caciques locais e pelas «chapeladas» (dizia-se assim), tráfico de influências, e em condições de corrupção e manipulação que ocorriam impunemente.

O facto do seu ideário filosófico, político, ser utópico, não significa que fosse impossível no futuro com outras condições. É verdade que existem utopias que constituem sonhos aéreos, abstractos e impossíveis de todo, embora nos deliciemos com a leitura dessas histórias extraordinárias nos bons escritores, por exemplo de ficção científica do século vinte. Eu confesso-me um leitor apaixonado, e desde muito jovem, pelas narrativas utópicas, que, desde Platão, filósofo da Grécia Antiga, têm sido escritas, passando pelo criador da palavra «utopia», o grande Tomás More, nos inícios do século dezasseis, que publicou uma história maravilhosa com esse mesmo título, ou seja, o nome que ele deu a uma Ilha governada pela mais absoluta justiça social, igualdade e comunidade. O seu livrinho genial teve continuadores até aos nossos dias, embora hoje os encontremos menos vezes ou mais dirigidos para a chamada ´ficção científica`.

Contudo, dizia eu, existem construções utópicas de sociedades mais perfeitas que nos fornecem uma imagem visual posso dizer, que oferecem abundante alimento à imaginação dos leitores, com que nos identificamos, que dão um corpo às nossas aspirações às vezes confusas, mas sinceras e generosas. São representações de desejos universais de justiça social, onde o trabalho é fonte de liberdade, de alegria, de criatividade, de realização pessoal e colectiva. Dizemos então que o impossível talvez um dia se torne possível.

Solucionar contradições que parecem insolúveis, conciliar opostos que parecem irremediavelmente irreconciliáveis para todo o sempre, dar um corpo a uma Terra Prometida que há-de vir no futuro e que já se anuncia no presente, são rumos que interessam aos pensadores utópicos. É preciso que se diga que este género literário ou filosófico não é exclusivo de ficcionistas, quer sejam escritores ou realizadores de filmes, porque as utopias, ou sonhos despertos, também se revelam em pintores, arquitectos, músicos, dramaturgos, encenadores e coreógrafos, nas artes de uma maneira geral. Esta saudade do futuro,esta aspiração a realizar o que aos mais conformistas parece impossível, está inclusivamente presente nos grandes construtores das ciências e das técnicas.

O associativismo, o cooperativismo, a democracia e as doutrinas socialistas, tiveram em Henriques Nogueira um notável precursor nesse pequeno e atrasado país que se chamava Portugal,nos longínquos anos de 1850.


   Nozes Pires
22 de Janeiro de 2007

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