domingo, 1 de dezembro de 2019


O DIREITO
O que distingue a teoria marxista das outras teorias e filosofias na resposta à pergunta «Qual o fundamento do Direito?» é a afirmação de que o Direito possui uma natureza de classe de que dependem as respetivas normas. As formações económico-sociais estando como sempre estiveram divididas em classes são atravessadas por desigualdades e conflitos no decorrer dos quais uma classe conquista o poder político, económico, cultural. Na formação capitalista a burguesia domina os principais meios de produção e as correlativas superestruturas.
A questão fundamental que devemos colocar relativamente ao Direito de classe é, por conseguinte, caracterizar a sua função social (económica, política, ideológica). Uma outra questão consequente é saber distinguir o direito burguês fascista (ou com outro nome com que se autonomeie), do direito burguês demoliberal. Por fim, se quando revolucionado o modo de produção capitalista, eliminada a burguesia como classe possidente, continuará a ser necessário o Direito.
 O direito é moldado conforme os interesses do poder hegemónico capitalista. Esse poder terá de ser fundamentalmente económico, podendo variar, dentro de certos limites, o regime ou a forma política. O regime ditatorial fascista que foi derrubado pela violência em 25 de Abril de 1974 e pela revolução popular nos meses subsequentes foi uma forma de regime capitalista que tinha o seu próprio direito, a sua própria Constituição. Nela constava um conjunto de direitos e liberdades formais que eram negados nos artigos seguintes. As polícias prendiam e os juízes julgavam conforme as leis elaboradas e aprovadas pelas instituições fascistas. Algumas leis eram meramente formais, de fachada, não se cumpriam; outras, eram claramente de teor fascista e colonialista. Este exemplo, tão vívido ainda na nossa memória, aplica-se ipsis verbis a todas as ditaduras nazi-fascistas do século passado desde a Europa às Américas e a outros continentes nos quais alcançaram tempo suficiente para se consolidarem e se rodearem de «legitimidade». Os liberais gostam de classificar o regime demoliberal de «Estado de Direito» para o distinguirem dos regimes ditatoriais. Na realidade, todos os regimes apressam-se a dotarem-se de leis e todas as leis são normas. As normas constituem o conteúdo do direito mas não o seu verdadeiro fundamento. A classe ou o sector de classe que gozar da maior força ou poder, impõe o direito que lhe convém. A vox populi, o senso comum, sabe avaliar esta asserção, patente nos seus vitupérios contra os «políticos» e os «ricos» com as suas leis talhadas à medida. A ditadura fascista de Salazar e Caetano não foi de facto exclusivamente deles obviamente. Já foram há muito identificados os capitalistas e latifundiários e outros sectores sociais que com ela beneficiaram. Não só beneficiaram como foram os artífices desse regime, forjando as suas leis e aplicando-as. Ao serviço deles tiveram todos os professores de direito e juízes que precisaram. A minoria de renitentes ou recalcitrantes era reprimida brutalmente. O país e os portugueses sofreram uma experiência que, de tão longeva e terrorista, é um manancial de lições básicas de política, economia, direito. Ou devia ser, se os tratados e manuais propiciassem aos estudantes factos e, sobretudo, uma reflexão sobre os factos. A natureza de classe do direito mostrar-se-ia com clareza; e é por isso que, nas academias e nos tratados os factos são omissos, outros inventados ou distorcidos, e um largo manto diáfano de abstrações neutraliza a potência subversiva de uma clarividente reflexão.
O Direito parece funcionar apenas na esfera da circulação do capital, de facto legaliza a produção e possibilita-a. É essa a sua função. O Direito institui e legaliza a propriedade privada no capitalismo, protege-a, justifica todas as ações punitivas que atentem contra ela e consensualiza-a de tal modo que nem sequer se discute como se fosse um direito natural. O que se aprende desde os bancos da escola é a narrativa: “todo e qualquer cidadão é livre de adquirir ou constituir a sua propriedade desde que cumpra os requisitos estabelecidos e todos os cidadãos encontram-se em igualdade nesta situação”.
Por conseguinte, o direito intervém na esfera da produção. Ajuda a criar novas relações sociais compatíveis com as relações de produção, ou pode contrariar caducas relações secundárias (no interior do próprio capitalismo) para introduzir folgas no processo de exploração, aumentar os meios de exploração, etc. A circulação, pelo seu lado, “realiza” a liberdade individual, a propriedade e a igualdade, isto é, a ideologia jurídica do capitalismo. A relação imaginária dos indivíduos com as relações sociais. É o espaço da Mercadoria, do feitiço que desta emana, da Ideologia.
O que é a esfera da circulação? É o lugar onde se realiza a troca. Todos os indivíduos que trazem para este “lugar” as suas mercadorias são livres. Se fossem escravos não possuiriam mercadorias. São, portanto, proprietários privados.
Os mercados (feiras, centros comerciais, etc.) enquanto realidades físicas são públicos ou privados. Cada vez mais o espaço é privatizado, as relações mercantis invadem todos os nichos em busca do lucro.
 É nos espaços públicos (praças, jardins, feiras) ou privados (cafés, restaurantes, centros comerciais, bares, etc.) que se organiza a “Opinião Pública”. Porém, não é aí que esta se funda. É nos meios sociais onde a propaganda, os media e as escolas, os legisladores do direito, fabricam a “Opinião Pública”.
Qual é a relação jurídica fundamental? A troca do equivalente entre dois sujeitos de direito. Onde se realiza e se exprime? Na esfera da circulação. Aí somos todos equivalentes, valores de troca, valores iguais. Reprodução tendencialmente infinita.
A ideologia jurídica é o corpo nuclear da ideologia burguesa. Oculta, disfarça e mistifica a realidade da sua função social: organizar, legalizar e legitimar a dominação sobre todas as esferas das nossas vidas.
Qual é a noção central da filosofia burguesa do direito? A noção de «homem». Isto é, «Homem», «Humanidade», «Indivíduo-cidadão livre». Portanto, direitos do cidadão livre ou direitos do homem. Sob esta cobertura (abstrata, mistificadora) reina o mercado, a exploração dos trabalhadores, o imperialismo.
A fundamental esfera da vida social não é a circulação (realização do capital), mas a produção. É a produção de mais-valia que põe a nu a verdadeira essência das relações entre o capital e o trabalho. A circulação é indispensável claro está, mas sem produção não existiria a mais-valia (fonte do lucro) e, consequentemente, nem produção nem circulação de mercadorias e capitais. As duas esferas são como os dois planos numa cena de grandes filmes que fogem à regra: a mais próxima da câmara não é a fundamental, mas a que está em segundo plano, desfocada. A esfera da circulação aparenta e apresenta a esfera da produção, ao mesmo tempo que a oculta e mistifica. É precisamente na esfera da circulação que se organiza o
Espaço público
O espaço público normalizado e, portanto, vigiado, que por vezes é necessário pagar para usufruir. Taxado pelos municípios, capturado pelos centros comerciais, enxameado de cartazes publicitários…
O que é preciso é que as cidades sejam sujeitos de direito, que o comum se torne sujeito de direito e se alargue e dissemine.
A partir do século XVIII a expansão do espaço público está ligada ao alargamento da cidadania, às grandes praças e alamedas urbanas modernas, aos cafés e esplanadas, à proliferação da imprensa escrita. É a formação da opinião pública. Organiza-se a separação dos espaços aristocráticos e burgueses, dos bairros operários.
Esses espaços públicos convertem-se em espaços físicos e ideológicos de encenação, representação, palcos do teatro burguês. Aos negros (nos EUA incluíam-se os imigrantes ditos «amarelos») não lhes era permitido o acesso, nem às mulheres, aos pobres. A permissão para todas estas camadas sociais e classes de usufruírem dos espaços públicos urbanos foi conquistada pelos próprios com sangue e lágrimas. Perversamente, viria a tornar-se lucrativa para os burgueses...
O Direito protege os indivíduos e os seus direitos que foram entretanto adquiridos, e não apenas o direito à propriedade dos meios de produção e ao lucro. É a contradição entre esses direitos e os direitos dos trabalhadores que estimula as lutas de classes. Nesse sentido, as lutas de classes (sindicais e políticas) desvelam a natureza de classe do direito.
O direito, apesar da sua natureza de classe, não é, contudo, coisa descartável, nem mero epifenómeno da infraestrutura sem valor. Pode conter importantes conquistas das classes trabalhadoras e, portanto, constituir um programa para reivindicações sindicais, políticas, profissionais, de minorias, etc. É o caso do Estado-providência ou Estado social. As lutas por regimes democráticos contra os nazi-fascismos no século vinte, no mundo e em Portugal não foram irrelevantes, muito pelo contrário. Para Marx e Engels a conquista da democracia era inseparável da luta pelo socialismo e comunismo, como podemos constatar nas belas palavras de O Manifesto.
O direito é um conjunto de técnicas para reduzir os antagonismos sociais. É assim apresentado desde a Antiguidade clássica (a «prudência» aristotélica). Sempre foi mistificador desde as primeiras civilizações com se verificou na ficção da origem divina dos reis e faraós. O poder exclusivo da classe ou casta imperante ficava, assim, disfarçado, o que explica porque o terror que os poderosos inspiravam se misturava com a veneração.
Foram precisas mudanças, umas vezes lentas, outras vezes revolucionárias, no modo de produzir os bens e conjuntamente nas formas de distribuição (que está na raiz da definição clássica de justiça: dar a cada um o que é seu, o que lhe é devido), para que as normas se alterassem e as velhas, as antigas, se revelassem como injustas e baseadas em ficções (se não mesmo puras mentiras). Sempre assim sucedeu, por mais resistentes à mudança que tivessem sido as leis. O direito burguês rodeou-se das mesmas mistificações de que acusava os costumes feudais, forjando diferentes táticas e teorias. Foram precisas as lutas das classes trabalhadoras e a produção teórica de Marx e Engels para que o direito mistificado e mistificador fosse despido da sua aura. Seguir-se-iam as revoluções e as lutas vitoriosas dos povos colonizados que vieram alterar regras do direito em benefício dos povos e das classes trabalhadoras. Em muitos casos direitos conquistados e logo perdidos. Contudo, nunca perdidos definitivamente. Lembrados, progressos da consciência social, património da cultura, armas para novos combates.
A superestrutura não é um mero reflexo de espelho, não é isso que o termo utilizado por Marx e Engels significa (cópia, espelho). Compreenda-se que haja sido mal interpretado o célebre Prefácio Para a Crítica da Economia Política (1859). Contudo, outros textos desfazem qualquer ambiguidade. A infraestrutura não «segrega» as ideologias (e as ciências) como o fígado segrega a bílis…A economia não “segrega” o Direito…Falemos antes de instâncias. (Instância corresponde a um grau de jurisdição na hierarquia do Poder Judiciário)
 O direito é uma instância superestrutural (não é uma relação de produção de mercadorias), não haja aqui qualquer ambiguidade (presente em alguns marxistas), porém goza de autonomia relativamente às forças de produção e inclusivamente às outras instâncias (política, ciência, moral). E goza de grande capacidade criativa e interventiva sobre todas as outras instâncias e sobre a própria infraestrutura (as relações de produção). Se assim não fosse não desempenhava o papel preponderante que desempenha atualmente, como se sabe. Essa autonomia ativa fornece-lhe eficácia, capacidade de obter consensos e poder “legítimo” de se fazer obedecer. Marx assim como não forneceu combustível para as conceções deterministas (refiro-me a oportunismos de má fé e não a economicismos messiânicos ou utópicos), também não rejeitou o potencial de lutas de classe que o direito comporta (por exemplo, a nossa Constituição, pesem embora e muito os cortes que sofreu). Contudo, em parte alguma e momento algum (que até agora se conheça) Marx considerou que o Direito (que é sempre burguês), deste ou daquele país do seu tempo, pudesse conter normas universais (para todo o género humano) e eternas. Por exemplo: os direitos da Mulher são conquistas no interior do direito burguês, mas somente na sociedade socialista que prepara o comunismo, serão efetivos (equidade com os homens) e muito mais avançados (em normas jurídicas e nas relações sociais de produção, políticas, éticas, etc.). Nas sociedades comunistas não fará sentido falar em direitos.
O direito burguês assenta na ideia de igualdade. Por isso é burguês. Um direito mais justo deveria assentar na ideia de desigualdade (Marx, Crítica do Programa de Gotha). Quando vier a assentar nesta ideia, o Direito será a garantia jurídica de relações de produção socialistas, antecâmara do comunismo.
Porque é necessário que todos os indivíduos sejam sujeitos de direito? Para instituir a supremacia absoluta das relações de Mercado.
Para legitimar a posse dos modernos atos de apropriação económica, foi necessário (continua a ser pelo mundo fora) despossuir uma classe social para que a força de trabalho se convertesse em mercadoria. Mas o operário (camponês despojado da terra) também possui uma propriedade: a sua força de trabalho, o trabalho vivo. A propriedade burguesa está a montante (compra para consumir o valor de uso da capacidade de trabalho e apropriar-se (saque legal) da mais-valia (tempo excedentário no qual o trabalhador produz valores de troca). Propriedade real e igualdade formal: coração e cabeça do Direito burguês. Coração feroz, cabeça cínica e hipócrita.
«Declarar que todos os homens são sujeitos de direito livres e iguais não constitui um progresso em si, mas tão-somente que o modo de produção da vida social mudou. Não é «natural» que todos os homens sejam sujeitos de direito. Isto é o efeito de uma estrutura social bem determinada: a sociedade capitalista. Mas, então, porque é que isso é necessário nesta sociedade? Precisamente para permitir a realização das trocas mercantis generalizadas. O modo de produção capitalista supõe como condição do seu funcionamento a representação ideológica da sociedade como um conjunto de indivíduos separados e livres. No plano jurídico, esta representação toma a forma de uma instituição: a do sujeito de direito.» (Michel Miaille)
 Diz-se que o homem vem dotado de livre-arbítrio por via natural. Embuste superlativo, sacralizado pelas teologias e filosofias idealistas: supostamente livre para escolher conscientemente ser operário ou capitalista, explorado ou explorador! O núcleo da ideologia jurídica burguesa é uma fraude, uma impostura, uma mistificação. Uma noção histórica (e geográfica) que tal como começou também pode acabar. Nem universal, nem natural.
O Estado nasceu para impor (através do monopólio da força e de um reportório de técnicas para obter consensos) e perpetuar as contradições fundamentais que separam e opõem as classes trabalhadoras da classe capitalista.
Faça-se um reparo às conceções instrumentalistas do Estado: o Estado não é um instrumento passivo nas mãos dos capitalistas, particularmente nas ditaduras fascistas. As instituições estatais (nomeadamente nos Estados ditos Sociais) gozam da sua própria autonomia (os três órgãos de poder, uma complexa e larga gama de serviços e numerosos funcionários), às vezes recuam e cedem perante as forças populares, gerem os interesses ferozmente concorrentes dos capitalistas da indústria, da agricultura, do comércio, da banca e dos serviços. Os governos eleitos do Estado oscilam mais para a direita ou para a esquerda (episodicamente para a esquerda e por duração e medidas limitadas) conforme a correlação de forças e propósitos táticos; porém, no fundamental, o Estado na formação económico-social capitalista é o Estado da classe dominante (as Frentes Populares antes da 2ª Guerra atestam a tese geral, com exceção honrosa e heroica da República revolucionária espanhola). Prova-se a toda a hora nas políticas do Trabalho e na legislação laboral. Afirmar-se que o Estado é uma máquina e o quartel-general da classe dominante não significa que os direitos e liberdades democráticas não devam e não sejam do interesse dos trabalhadores; foram quase sempre, senão sempre, conquistados pelo povo com enormes sacrifícios e contumazes recusas dos capitalistas. Tem sucedido recorrentemente (por períodos ou ciclos) que alguns dirigentes políticos de partidos de esquerda, incluindo marxistas-leninistas, abandonam as fileiras ou procuram mudar o respetivo partido, em nome das transformações que os Estados capitalistas receberam nas últimas décadas, em nome dos regimes demoliberais; O Estado ter-se-ia levantado acima das classes e o direito transfigurara-se em coisa completamente independente e neutral. Ou seja, a forma do direito possuiria um conteúdo objetivo, uma prática justa e um alcance universal. Já não seria necessário destruir o Estado para enveredar pelos caminhos da construção de uma economia e de uma sociedade socialista. O que a experiência tem demonstrado é que a teoria marxista do Estado permanece atual (para além das ilusões oportunistas cíclicas) e que esses democratas se instalaram em muitos casos em lugares de chefia da classe que, antes, havia combatido. O que é grave não é que hajam desertado da luta (cada um é livre de mudar de opinião), o mais grave é procurarem convencer os antigos camaradas de que a teoria marxista-leninista se desatualizou completamente. E com isso prestaram, e prestam, um excelente serviço à classe capitalista e aos serviços de propaganda do imperialismo. O que muito provavelmente já não incomoda à sua nova consciência.
Privado e público
A natureza histórica do Direito- o Direito não existiu sempre- o senhor de escravos não o era porque obedecesse a uma ordem normativa, mas era-o pela força brutal que o costume «legalizava»; o senhor feudal não era «servido» por camponeses através de um Direito ou relação jurídica ou contrato. A sociedade feudal não reconhecia a separação entre o privado e o público, o senhor era simultaneamente proprietário privado e autoridade pública. Somente no capitalismo se estabeleceram contratos, vínculos, normas, leis (escritas e aprovadas pelos «representantes do povo»). As novas sociedades mercantis que surgiram na Europa criaram o Direito.
 No regime monárquico o Rei absoluto era o dono do espaço público, o dono do país, o mais eram seus vassalos que podiam a cada momento perder os títulos e os privilégios (palavra que deriva de privado). A sociedade era constituída por estamentos e os indivíduos possuíam ou não status. A palavra Estado deriva de status. O rei detinha o status supremo. Existiam portanto os superiores e os inferiores. O direito burguês vem eliminar estas distinções formalmente.
No feudalismo não existia propriamente falando direito público. Ou seja, praticamente tudo era direito privado (as portagens nos caminhos). A fundação das novas cidades, feiras e mercados, o crescimento urbano, originou formas de um novo direito público que se desenvolve ao lado, às vezes contra, a tutela senhorial. O direito público distinto do direito privado é uma conquista da burguesia. O Estado viu-se encarregado de novos deveres e serviços (pagos pelos contribuintes) sociais, públicos, cada vez mais abrangentes e complexos (o Estado Social). Entretanto, intervém cada vez mais na esfera da vida privada dos cidadãos, isto é, nos espaços e nos tempos ditos “públicos”, enquanto, simultaneamente, ou recentemente, privatiza, alarga-se o domínio privado…ao qual são entregues cada vez mais deveres do Estado (vigilância e segurança, prisões, etc.). Cada vez mais o que é, ou era, comum, passa a ser pago, isto é, mercadoria (a água das fontes engarrafada). A luta pelo que ainda é comum, pelo alargamento da esfera (da propriedade) comum, é uma frente atualíssima de luta nas cidades. É, no fundo, o direito à cidade. E é isto que este ensaio trata realmente.
A ideologia da classe dominante- a burguesia – é uma ideologia jurídico-política.
A questão pertinente que se deve colocar quando refletimos sobre o Direito, a seguir à demonstração de que ele é burguês, é saber quais as diferenças entre o direito instituído por um regime ditatorial (mas Constitucional) nazi-fascista e o Direito democrático burguês.
«Alors, on peut dans l`idéologie du droit [] que l`essentiel, ce sont les échanges, et que les échanges réalizent l`Homme; que les formes juridiques qu`impose la circulation sont les formes mêmes de la liberte et de l´égalité; que la Forme Sujet déploie la réalité de ses déterminations dans une pratique concerte: le contrat; que la circulation est un procès de sujets.» ( Bernard, Edelman, Le Droit saisi par la photographie, 2001, p. 107
O Direito possibilita a produção capitalista (as relações de produção), a formação da propriedade do tipo capitalista e seu desenvolvimento histórico, e, ao mesmo tempo, oculta a expropriação e a exploração que lhe está na base. Esta é a sua verdadeira natureza, a sua única natureza (possibilitar e legalizar a extorsão da mais-valia), por mais avanços e inflexões democrático-liberais que a letra e o conteúdo possam vir a conter por força das derrotas, dos compromissos e dos interesses de classe.
Na letra e na prática do ordenamento jurídico e dos atos normativos (particularmente no que se refere às leis do trabalho e aos benefícios fiscais ao grande capital) se vê a ideologia ou os interesses reais dos partidos que legislam.
F. Engels e K. Kautsky – O Socialismo Jurídico
 Marx demonstrou que os indivíduos estão confinados a determinadas classes sociais que lhes determinam a posição nas relações sociais (capitalista ou trabalhador) e não como declara enfaticamente a ideologia burguesa «cada um é um». Possuindo muito embora cada um de nós caraterísticas que nos identificam, somente pelas classes sociais se explica a política, o Direito, o Estado, a moral, etc. (Marx, Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel). Até à tomada do poder a burguesia dizia que a razão universal estava na cabeça e a moralidade no coração de cada um. Hegel dizia que o Estado era a Razão objetiva e realizada. Na realidade, eram as ficções que a burguesia engendrava pela cabeça dos seus ideólogos eminentes. Pode um governante que tomou o poder absoluto pela força armada ou pelo voto ter com isso afastado a burguesia do poder e, apesar disso, governar mantendo intacto o poder efetivo da burguesia? Pode, Marx demonstrou-o no seu livro O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Pode até um regime político ser dos trabalhadores e todavia conservar-se a sociedade capitalista…Não é o Estado que faz a sociedade, as relações de produção, mas o invés. E isto não é determinismo nem economicismo. É a realidade histórica. Para se construir uma sociedade socialista é necessário destruir o Estado e construir uma outra forma de administração adaptada à economia socialista que a defenda, legitime e impulsione.
O direito à greve é um direito das classes trabalhadoras dentro do direito burguês. Não cai fora dele. Foi com certeza absoluta uma conquista histórica (sempre em perigo) arrancada aos capitalistas e é uma arma fundamental contra a exploração de que são vítimas. As autarquias governadas por partidos comunistas são instituições democráticas insertas no quadro normativo do direito que legitima o modo de produção capitalista e o modo de sociabilidade dominante. Não caem fora dele. E todos os direitos são passíveis de serem perdidos. Todas as conquistas de teor democrático são boas no interesse dos trabalhadores. Não perder de vista, porém, que podem vir ao encontro dos interesses do capital. Reza a História que determinadas reivindicações de cunho democrático foram primeira e longamente reprimidas a ferro e fogo pela grande burguesia; admitidas, por fim, converteram-se em meios aproveitados por ela para seu exclusivo benefício. A classe dominante pode, inclusive, permitir uma certa margem de folga aos trabalhadores (sindicatos, partidos, etc.), ao trabalho vivo, para que este melhor se reproduza, ande alienado e produza novos lucros.
A qualidade (formal) do Direito burguês é a subjetividade, isto é, baseia-se na noção de sujeito de direito, igualdade de todos perante a lei universal e os chamados direitos universais inalienáveis do Homem (que não passam de formalidades).
Mas o Direito não se reduz a uma mera mentira, ocultação e distorção: cria ou ajuda a criar relações sociais e legaliza-as, funda instituições com os seus funcionários imbuídos de poder, com hierarquias e rituais, e toda uma simbologia que não é meramente formal ou virtual. É Poder.
O trabalhador produz-se a si próprio como capacidade de trabalho. Antes de ser absorvido pelo capital (trabalho morto) o trabalho tem uma existência subjetiva, contra a qual o capital se defronta para manter a sua valorização, capturá-lo e transformá-lo em capacidade de trabalho (valor de troca). A força de trabalho é uma propriedade do operário, fator de desassossego, bom para ser confinado aos bairros operários, mais tarde aos bairros sociais, porém naqueles e nestes sempre alfobre de rebeliões; melhor ainda se essa força estranha mas indispensável estiver contida no interior do lar, encapsulada em centros comerciais, novo espaço público.
Para o marxismo o núcleo central do direito não é a norma mas o sujeito do direito (crítica à ideologia do sistema normativo como centro do Direito por Pachukanis)NOTA : o modo como o sujeito, o indivíduo, se apresenta (voluntariamente) como vendedor da sua mercadoria força de trabalho a um outro que está no seu direito igual de lha comprar por um determinado preço estabelecido socialmente ou por contrato. É o Direito que permite que o indivíduo circule como mercadoria na esfera da circulação das mercadorias. O Direito é a forma própria do capitalismo.
«Ao lado da propriedade mística do valor, surge um fenómeno não menos enigmático: o direito. Ao mesmo tempo a relação unitária e total [ou seja: as relações dos homens no processo de produção] reveste dois aspetos abstratos e fundamentais: um aspeto económico e um aspeto jurídico.» «O fetichismo da mercadoria é completado pelo fetichismo jurídico» ( Pashukanis, La teoria general del derecho y el marxismo) citado por Adolfo Sánchez Vásquez «Pashukanis, Teoria Marxista del Derecho» NOTA
O direito não se explica por si mesmo. Possui uma história dentro de outra história, teve um território natal e um percurso sinuoso de quase cinco séculos.
As categorias jurídicas são: sujeito de direito, norma jurídica, relação jurídica, liberdade, igualdade, autonomia da vontade.
Para os juristas burgueses (sobretudo positivistas da escola de Hans Kelsen) o que importa é a validade da norma. De facto, houve um tempo em que para uma classe média (burguesia) desejosa do poder, era vital libertar o Direito de tutelas religiosas, morais «históricas» (isto é, das aristocracias). Daí ser “progressista” a reivindicação por um Direito que a forma (lógica, racional) validava e a política viria legitimar (pela revolução nalguns casos).
Os «direitos do homem» podem-se ler hoje na fórmula «direitos humanos». Qual o fundamento? Na ficção setecentista iluminista do direito natural, isto é, a-históricos? Ou direitos que se impõem pela força (por quem possuir mais força), conforme a tese de Kelsen? A Declaração Universal do Direitos do Homem (1948) funda-se apenas na validade formal? Sim, se não obtiver poder político decidido a cumpri-los. Além disto as interpretações são diversas e não escapam aos interesses da burguesia imperialista.
O direito privado não se dirige apenas à proteção ou prossecução dos interesses individuais, acrescem os valores coletivos (família, segurança coletiva, etc.), o direito civil e o direito comercial. A autonomia da vontade é o princípio em que se baseia o direito privado (liberdade, consciência, responsabilidade); para o direito público é a legalidade no sentido estrito.
O desenvolvimento do direito teve a ver com o desenvolvimento da divisão do trabalho, das formas de apropriação e produção, das trocas comerciais, das contradições no interior da formação económico-social.
O Direito é um «sistema de comunicação formulado em termos de normas para permitir a realização de um sistema determinado de produção e de trocas económicas e sociais» ( NOTA Miaille). Este sistema é composto por três níveis: o nível ideológico, o institucional e o prático. O nível ideológico reúne em uma conceção comum homens e coisas, dando-lhes nomes, qualificando «precisamente os fenómenos, as instituições, os mecanismos que se apresentam no jogo social». A Ideologia oculta os fundamentos materiais do direito. Podemos criticar o direito burguês, denunciar os dois pesos e medidas que a sua aplicação revela, e, contudo, não saímos do direito burguês e capitalista. Podemos lutar por reformas democráticas e maior vigilância sobre os executores do direito, que esses progressos não alteram a essência.
O grande teórico marxista Evgeni Pachukanis considerava justamente que no socialismo a planificação e gestão pública e cooperativa da economia, os novos regimes de propriedade e a participação de todos na governação, substituiriam progressivamente o direito.
O direito acompanhou (umas vezes na dianteira, outras, atrasado) as transformações das economias capitalistas nestes cinco séculos da história europeia. Foi reivindicativo, passou em seguida a conservador. Impulsionou o comércio e as revoluções industriais, justificou (palavra adequada: persuadiu de que era justíssima a destruição em nome do progresso e outras tretas) a destruição de outros modos de produzir, outros modos de viver, ser feliz, comunicar. Se conhecermos estas transformações na economia, na política, vemos com clareza as articulações com as ideologias, as ciências, as filosofias, as morais, o direito, e qual foram as funções que estas instâncias desempenharam, cada uma, no interior da totalidade, i. é, da formação económico-social. Umas vezes em sincronia, outras com contradições.
Um método para compreender a natureza e as funções sociais do direito burguês é compará-lo com o direito desenvolvido nos países que já foram revolucionários e socialistas, ou naqueles que se conservam. Tendo em conta as grandes diferenças entre eles é evidente um fundo comum do qual os regimes se reivindicam. «A figura do processo social de vida, i. é, do processo material de produção, só se desfaz do seu místico véu de nevoeiro quando estiver, como produto de homens livremente socializados, sob o seu controlo consciente e planificado.» Marx, O CAPITAL, Livro Primeiro, Tomo I, cap. 4, p. 95. NOTA

O valor da “moeda” liberdade está na confiança que nós, cidadãos, lhe outorgamos. Não é garantida por um depósito em ouro. Tal como as lotarias, o sistema bancário, os políticos e as eleições, as marcas e modelos de consumo, é a confiança que outorgamos. Quando essa confiança é na acumulação compulsiva de dinheiro é fanatismo. Quando é dedicada à classe que nos explora, é alienação. Quando as classes «de baixo» perdem a confiança nos «de cima» abre-se um período revolucionário.
«É apenas a relação social determinada entre os próprios homens que toma aqui para eles a forma fantasmagórica de uma relação de coisas. Assim, para encontrarmos uma analogia temos de nos escapar para a região nevoenta do mundo religioso. Aqui, os produtos da cabeça humana parecem figuras autónomas, dotadas de vida própria e estando em relação entre si próprias e com os homens. O mesmo se passa no mundo das mercadorias com os produtos da mão humana. Chamo a isto feiticismo, que se cola aos produtos de trabalho logo que eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias.» Marx, O CAPITAL, Livro Primeiro, Tomo I, cap. 4, p. 88, Edições Avante!, Lisboa, 1990
Como nos atrevemos a afirmar que não somos realmente livres nestas sociedades com liberdades de expressão e reunião, com eleições livres, com normas justas para ambas as partes nos contratos voluntários e conscientes? A resposta a esta questão deve interessar a todos os intelectuais, ideólogos, militantes, da esquerda revolucionária anticapitalista. Responder com argumentos atuais e factuais é prioritário nos exames com que avaliamos publicamente as sociedades onde o capitalismo reina absolutamente através da economia e do direito. Na verdade, reafirmamos o que se tem vindo a firmar desde o século XIX: as sociedades burguesas capitalistas trazem na boca a liberdade e a igualdade, e na cabeça a ganância do sobre-valor arrancado aos trabalhadores que se submetem porque não são livres para o recusar. Mas a falta de liberdade, ou mesmo as «cadeias» de que falava Jean-Jacques Rousseau NOTA, começando na exploração económica do assalariado, vai mais longe, mais largo, até cercar e envolver completamente o assalariado e o cidadão. Suga-lhe a força e a alma, o tempo, a vida toda até ao dia em que ele morre.
Os marxistas prezam os valores da liberdade e os direitos humanos. Todavia, os valores não brotam espontaneamente no céu dos passarinhos, mas sim de condições materiais concretas, de interesses egoístas que se disfarçam com máscaras como os atores da antiga Grécia. Pode dizer-se que os valores (éticos, jurídicos) têm uma determinada cotação no mercado.
Estamos agarrados (o termo adequado) à cola do papel mata-moscas. Raciocinamos com um modelo-padrão heurístico (a maneira de pensar, a pedagogia) e um modelo-padrão hermenêutico (descodificar os códigos) que nos impingiram para que víssemos a justiça onde está a exploração cínica, a igualdade onde está a dominação sobre classes e sobre povos. É a Ideologia no sentido marxiano restrito da noção: relação imaginária dos indivíduos com o Estado e o modo de produção.

«Do ponto de vista social, a classe operária é, portanto, mesmo fora do processo imediato de trabalho, tanto um acessório do capital como o instrumento morto do trabalho. Até mesmo o seu consumo individual, dentro de certos limites, é apenas um momento do processo de reprodução do capital. » Marx, O CAPITAL, Livro Primeiro, Tomo III, 21º capítulo, p. 653
O direito burguês assenta na ideia de acordo. É assim a base do direito comercial. Nos modos de produção anteriores o produtor (agricultor,
Stucka (1921) A Função Revolucionária do Direito e do Estado (trad. Brasileira: Direito e Luta de classes (Teoria Geral do Direito)

NOZES PIRES




















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