O DIREITO
O que distingue a teoria marxista das outras teorias e
filosofias na resposta à pergunta «Qual o fundamento do Direito?» é a afirmação
de que o Direito possui uma natureza de classe de que dependem as respetivas
normas. As formações económico-sociais estando como sempre estiveram divididas
em classes são atravessadas por desigualdades e conflitos no decorrer dos quais
uma classe conquista o poder político, económico, cultural. Na formação
capitalista a burguesia domina os principais meios de produção e as
correlativas superestruturas.
A questão fundamental que devemos colocar relativamente ao
Direito de classe é, por conseguinte, caracterizar a sua função social
(económica, política, ideológica). Uma outra questão consequente é saber
distinguir o direito burguês fascista (ou com outro nome com que se autonomeie),
do direito burguês demoliberal. Por fim, se quando revolucionado o modo de
produção capitalista, eliminada a burguesia como classe possidente, continuará
a ser necessário o Direito.
O direito é moldado
conforme os interesses do poder hegemónico capitalista. Esse poder terá de ser
fundamentalmente económico, podendo variar, dentro de certos limites, o regime
ou a forma política. O regime ditatorial fascista que foi derrubado pela
violência em 25 de Abril de 1974 e pela revolução popular nos meses
subsequentes foi uma forma de regime capitalista que tinha o seu próprio
direito, a sua própria Constituição. Nela constava um conjunto de direitos e
liberdades formais que eram negados nos artigos seguintes. As polícias prendiam
e os juízes julgavam conforme as leis elaboradas e aprovadas pelas instituições
fascistas. Algumas leis eram meramente formais, de fachada, não se cumpriam;
outras, eram claramente de teor fascista e colonialista. Este exemplo, tão
vívido ainda na nossa memória, aplica-se ipsis
verbis a todas as ditaduras nazi-fascistas do século passado desde a Europa
às Américas e a outros continentes nos quais alcançaram tempo suficiente para
se consolidarem e se rodearem de «legitimidade». Os liberais gostam de
classificar o regime demoliberal de «Estado de Direito» para o distinguirem dos
regimes ditatoriais. Na realidade, todos os regimes apressam-se a dotarem-se de
leis e todas as leis são normas. As normas constituem o conteúdo do direito mas
não o seu verdadeiro fundamento. A classe ou o sector de classe que gozar da
maior força ou poder, impõe o direito que lhe convém. A vox populi, o senso
comum, sabe avaliar esta asserção, patente nos seus vitupérios contra os
«políticos» e os «ricos» com as suas leis talhadas à medida. A ditadura
fascista de Salazar e Caetano não foi de facto exclusivamente deles obviamente.
Já foram há muito identificados os capitalistas e latifundiários e outros
sectores sociais que com ela beneficiaram. Não só beneficiaram como foram os
artífices desse regime, forjando as suas leis e aplicando-as. Ao serviço deles tiveram
todos os professores de direito e juízes que precisaram. A minoria de
renitentes ou recalcitrantes era reprimida brutalmente. O país e os portugueses
sofreram uma experiência que, de tão longeva e terrorista, é um manancial de
lições básicas de política, economia, direito. Ou devia ser, se os tratados e
manuais propiciassem aos estudantes factos e, sobretudo, uma reflexão sobre os
factos. A natureza de classe do direito mostrar-se-ia com clareza; e é por isso
que, nas academias e nos tratados os factos são omissos, outros inventados ou
distorcidos, e um largo manto diáfano de abstrações neutraliza a potência
subversiva de uma clarividente reflexão.
O Direito parece funcionar apenas na esfera da circulação do
capital, de facto legaliza a produção e possibilita-a. É essa a sua função. O
Direito institui e legaliza a propriedade privada no capitalismo, protege-a,
justifica todas as ações punitivas que atentem contra ela e consensualiza-a de
tal modo que nem sequer se discute como se fosse um direito natural. O que se aprende desde os
bancos da escola é a narrativa: “todo e qualquer cidadão é livre de adquirir ou
constituir a sua propriedade desde que cumpra os requisitos estabelecidos e
todos os cidadãos encontram-se em igualdade nesta situação”.
Por conseguinte, o direito intervém na esfera da produção.
Ajuda a criar novas relações sociais compatíveis com as relações de produção,
ou pode contrariar caducas relações secundárias
(no interior do próprio capitalismo) para introduzir folgas no processo de
exploração, aumentar os meios de exploração, etc. A circulação, pelo seu lado,
“realiza” a liberdade individual, a propriedade e a igualdade, isto é, a
ideologia jurídica do capitalismo. A relação imaginária dos indivíduos com as
relações sociais. É o espaço da Mercadoria, do feitiço que desta emana, da
Ideologia.
O que é a esfera da circulação? É o lugar onde se realiza a
troca. Todos os indivíduos que trazem para este “lugar” as suas mercadorias são
livres. Se fossem escravos não possuiriam mercadorias. São, portanto, proprietários
privados.
Os mercados (feiras, centros comerciais, etc.) enquanto
realidades físicas são públicos ou privados. Cada vez mais o espaço é
privatizado, as relações mercantis invadem todos os nichos em busca do lucro.
É nos espaços
públicos (praças, jardins, feiras) ou privados (cafés, restaurantes, centros
comerciais, bares, etc.) que se organiza a “Opinião Pública”. Porém, não é aí
que esta se funda. É nos meios sociais onde a propaganda, os media e as escolas, os legisladores do
direito, fabricam a “Opinião Pública”.
Qual é a relação jurídica fundamental? A troca do equivalente
entre dois sujeitos de direito. Onde se realiza e se exprime? Na esfera da
circulação. Aí somos todos equivalentes, valores de troca, valores iguais. Reprodução
tendencialmente infinita.
A ideologia jurídica é o corpo nuclear da ideologia burguesa.
Oculta, disfarça e mistifica a realidade da sua função social: organizar,
legalizar e legitimar a dominação sobre todas as esferas das nossas vidas.
Qual é a noção central da filosofia burguesa do direito? A
noção de «homem». Isto é, «Homem», «Humanidade», «Indivíduo-cidadão livre».
Portanto, direitos do cidadão livre ou direitos do homem. Sob esta cobertura (abstrata,
mistificadora) reina o mercado, a exploração dos trabalhadores, o imperialismo.
A fundamental esfera da vida social não é a circulação (realização
do capital), mas a produção. É a produção de mais-valia que põe a nu a
verdadeira essência das relações entre o capital e o trabalho. A circulação é
indispensável claro está, mas sem produção não existiria a mais-valia (fonte do
lucro) e, consequentemente, nem produção nem circulação de mercadorias e
capitais. As duas esferas são como os dois planos numa cena de grandes filmes
que fogem à regra: a mais próxima da câmara não é a fundamental, mas a que está
em segundo plano, desfocada. A esfera da circulação aparenta e apresenta a
esfera da produção, ao mesmo tempo que a oculta e mistifica. É precisamente na
esfera da circulação que se organiza o
Espaço público
O espaço público normalizado e, portanto, vigiado, que por
vezes é necessário pagar para usufruir. Taxado pelos municípios, capturado
pelos centros comerciais, enxameado de cartazes publicitários…
O que é preciso é que as cidades sejam sujeitos de direito,
que o comum se torne sujeito de
direito e se alargue e dissemine.
A partir do século XVIII a expansão do espaço público está
ligada ao alargamento da cidadania, às grandes praças e alamedas urbanas
modernas, aos cafés e esplanadas, à proliferação da imprensa escrita. É a
formação da opinião pública. Organiza-se a separação dos espaços aristocráticos
e burgueses, dos bairros operários.
Esses espaços públicos convertem-se em espaços físicos e
ideológicos de encenação, representação, palcos do teatro burguês. Aos negros (nos
EUA incluíam-se os imigrantes ditos «amarelos») não lhes era permitido o acesso,
nem às mulheres, aos pobres. A permissão para todas estas camadas sociais e
classes de usufruírem dos espaços públicos urbanos foi conquistada pelos
próprios com sangue e lágrimas. Perversamente, viria a tornar-se lucrativa para
os burgueses...
O Direito protege os indivíduos e os seus direitos que foram
entretanto adquiridos, e não apenas o direito à propriedade dos meios de
produção e ao lucro. É a contradição entre esses direitos e os direitos dos
trabalhadores que estimula as lutas de classes. Nesse sentido, as lutas de
classes (sindicais e políticas) desvelam a natureza de classe do direito.
O direito, apesar da sua natureza de classe, não é, contudo,
coisa descartável, nem mero epifenómeno da infraestrutura sem valor. Pode
conter importantes conquistas das classes trabalhadoras e, portanto, constituir
um programa para reivindicações sindicais, políticas, profissionais, de
minorias, etc. É o caso do Estado-providência ou Estado social. As lutas por
regimes democráticos contra os nazi-fascismos no século vinte, no mundo e em
Portugal não foram irrelevantes, muito pelo contrário. Para Marx e Engels a conquista
da democracia era inseparável da luta pelo socialismo e comunismo, como podemos
constatar nas belas palavras de O
Manifesto.
O direito é um conjunto de técnicas para reduzir os
antagonismos sociais. É assim apresentado desde a Antiguidade clássica (a
«prudência» aristotélica). Sempre foi mistificador desde as primeiras
civilizações com se verificou na ficção da origem divina dos reis e faraós. O
poder exclusivo da classe ou casta imperante ficava, assim, disfarçado, o que
explica porque o terror que os poderosos inspiravam se misturava com a
veneração.
Foram precisas mudanças, umas vezes lentas, outras vezes
revolucionárias, no modo de produzir os bens e conjuntamente nas formas de
distribuição (que está na raiz da definição clássica de justiça: dar a cada um
o que é seu, o que lhe é devido), para que as normas se alterassem e as velhas,
as antigas, se revelassem como injustas e baseadas em ficções (se não mesmo
puras mentiras). Sempre assim sucedeu, por mais resistentes à mudança que
tivessem sido as leis. O direito burguês rodeou-se das mesmas mistificações de
que acusava os costumes feudais, forjando diferentes táticas e teorias. Foram
precisas as lutas das classes trabalhadoras e a produção teórica de Marx e
Engels para que o direito mistificado e mistificador fosse despido da sua aura.
Seguir-se-iam as revoluções e as lutas vitoriosas dos povos colonizados que
vieram alterar regras do direito em benefício dos povos e das classes
trabalhadoras. Em muitos casos direitos conquistados e logo perdidos. Contudo,
nunca perdidos definitivamente. Lembrados, progressos da consciência social,
património da cultura, armas para novos combates.
A superestrutura não é um mero reflexo de espelho, não é
isso que o termo utilizado por Marx e Engels significa (cópia, espelho).
Compreenda-se que haja sido mal interpretado o célebre Prefácio Para a Crítica da
Economia Política (1859).
Contudo, outros textos desfazem qualquer ambiguidade. A infraestrutura não
«segrega» as ideologias (e as ciências) como o fígado segrega a bílis…A
economia não “segrega” o Direito…Falemos antes de instâncias. (Instância corresponde a um grau de jurisdição na hierarquia do Poder
Judiciário)
O direito é uma instância superestrutural (não é uma
relação de produção de mercadorias), não haja aqui qualquer ambiguidade
(presente em alguns marxistas), porém goza de autonomia relativamente às forças
de produção e inclusivamente às outras instâncias (política, ciência, moral). E
goza de grande capacidade criativa e interventiva sobre todas as outras
instâncias e sobre a própria infraestrutura (as relações de produção). Se assim
não fosse não desempenhava o papel preponderante que desempenha atualmente,
como se sabe. Essa autonomia ativa fornece-lhe eficácia, capacidade de obter
consensos e poder “legítimo” de se fazer obedecer. Marx assim como não forneceu
combustível para as conceções deterministas (refiro-me a oportunismos de má fé
e não a economicismos messiânicos ou utópicos), também não rejeitou o potencial
de lutas de classe que o direito comporta (por exemplo, a nossa Constituição, pesem
embora e muito os cortes que sofreu). Contudo, em parte alguma e momento algum
(que até agora se conheça) Marx considerou que o Direito (que é sempre burguês),
deste ou daquele país do seu tempo, pudesse conter normas universais (para todo
o género humano) e eternas. Por exemplo: os direitos da Mulher são conquistas
no interior do direito burguês, mas somente na sociedade socialista que prepara
o comunismo, serão efetivos (equidade com os homens) e muito mais avançados (em
normas jurídicas e nas relações sociais de produção, políticas, éticas, etc.).
Nas sociedades comunistas não fará sentido falar em direitos.
O direito burguês assenta na ideia de igualdade. Por isso é
burguês. Um direito mais justo deveria assentar na ideia de desigualdade (Marx, Crítica do Programa de Gotha). Quando vier a assentar nesta ideia,
o Direito será a garantia jurídica de relações de produção socialistas,
antecâmara do comunismo.
Porque é necessário
que todos os indivíduos sejam sujeitos de direito? Para instituir a supremacia
absoluta das relações de Mercado.
Para legitimar a posse dos modernos atos de apropriação
económica, foi necessário (continua a ser pelo mundo fora) despossuir uma
classe social para que a força de trabalho se convertesse em mercadoria. Mas o
operário (camponês despojado da terra) também possui uma propriedade: a sua
força de trabalho, o trabalho vivo. A propriedade burguesa está a montante (compra
para consumir o valor de uso da capacidade de trabalho e apropriar-se (saque
legal) da mais-valia (tempo excedentário no qual o trabalhador produz valores
de troca). Propriedade real e igualdade formal: coração e cabeça do Direito
burguês. Coração feroz, cabeça cínica e hipócrita.
«Declarar que
todos os homens são sujeitos de direito livres e iguais não constitui um
progresso em si, mas tão-somente que o modo de produção da vida social mudou.
Não é «natural» que todos os homens sejam sujeitos de direito. Isto é o efeito
de uma estrutura social bem determinada: a sociedade capitalista. Mas, então,
porque é que isso é necessário nesta sociedade? Precisamente para permitir a
realização das trocas mercantis generalizadas. O modo de produção capitalista
supõe como condição do seu funcionamento a representação ideológica da
sociedade como um conjunto de indivíduos separados e livres. No plano jurídico,
esta representação toma a forma de uma instituição: a do sujeito de direito.»
(Michel Miaille)
Diz-se que o homem
vem dotado de livre-arbítrio por via natural. Embuste superlativo, sacralizado
pelas teologias e filosofias idealistas: supostamente livre para escolher
conscientemente ser operário ou capitalista, explorado ou explorador! O núcleo
da ideologia jurídica burguesa é uma fraude, uma impostura, uma mistificação.
Uma noção histórica (e geográfica) que tal como começou também pode acabar. Nem
universal, nem natural.
O Estado nasceu para impor (através do monopólio da força e
de um reportório de técnicas para obter consensos) e perpetuar as contradições
fundamentais que separam e opõem as classes trabalhadoras da classe capitalista.
Faça-se um reparo às conceções instrumentalistas do Estado:
o Estado não é um instrumento passivo nas mãos dos capitalistas,
particularmente nas ditaduras fascistas. As instituições estatais (nomeadamente
nos Estados ditos Sociais) gozam da sua própria autonomia (os três órgãos de
poder, uma complexa e larga gama de serviços e numerosos funcionários), às
vezes recuam e cedem perante as forças populares, gerem os interesses ferozmente
concorrentes dos capitalistas da indústria, da agricultura, do comércio, da
banca e dos serviços. Os governos eleitos do Estado oscilam mais para a direita
ou para a esquerda (episodicamente para a esquerda e por duração e medidas limitadas)
conforme a correlação de forças e propósitos táticos; porém, no fundamental, o
Estado na formação económico-social capitalista é o Estado da classe dominante
(as Frentes Populares antes da 2ª Guerra atestam a tese geral, com exceção
honrosa e heroica da República revolucionária espanhola). Prova-se a toda a
hora nas políticas do Trabalho e na legislação laboral. Afirmar-se que o Estado
é uma máquina e o quartel-general da classe dominante não significa que os
direitos e liberdades democráticas não devam e não sejam do interesse dos
trabalhadores; foram quase sempre, senão sempre, conquistados pelo povo com
enormes sacrifícios e contumazes recusas dos capitalistas. Tem sucedido
recorrentemente (por períodos ou ciclos) que alguns dirigentes políticos de
partidos de esquerda, incluindo marxistas-leninistas, abandonam as fileiras ou
procuram mudar o respetivo partido, em nome das transformações que os Estados
capitalistas receberam nas últimas décadas, em nome dos regimes demoliberais; O
Estado ter-se-ia levantado acima das classes e o direito transfigurara-se em
coisa completamente independente e neutral. Ou seja, a forma do direito possuiria
um conteúdo objetivo, uma prática justa e um alcance universal. Já não seria
necessário destruir o Estado para enveredar pelos caminhos da construção de uma
economia e de uma sociedade socialista. O que a experiência tem demonstrado é
que a teoria marxista do Estado permanece atual (para além das ilusões
oportunistas cíclicas) e que esses democratas se instalaram em muitos casos em
lugares de chefia da classe que, antes, havia combatido. O que é grave não é
que hajam desertado da luta (cada um é livre de mudar de opinião), o mais grave
é procurarem convencer os antigos camaradas de que a teoria marxista-leninista
se desatualizou completamente. E com isso prestaram, e prestam, um excelente
serviço à classe capitalista e aos serviços de propaganda do imperialismo. O
que muito provavelmente já não incomoda à sua nova consciência.
Privado e público
A natureza histórica do Direito- o Direito não existiu
sempre- o senhor de escravos não o era porque obedecesse a uma ordem normativa,
mas era-o pela força brutal que o costume «legalizava»; o senhor feudal não era
«servido» por camponeses através de um Direito ou relação jurídica ou contrato.
A sociedade feudal não reconhecia a separação entre o privado e o público, o
senhor era simultaneamente proprietário privado e autoridade pública. Somente
no capitalismo se estabeleceram contratos, vínculos, normas, leis (escritas e
aprovadas pelos «representantes do povo»). As novas sociedades mercantis que
surgiram na Europa criaram o Direito.
No regime monárquico
o Rei absoluto era o dono do espaço público, o dono do país, o mais eram seus
vassalos que podiam a cada momento perder os títulos e os privilégios (palavra
que deriva de privado). A sociedade era constituída por estamentos e os indivíduos
possuíam ou não status. A palavra
Estado deriva de status. O rei
detinha o status supremo. Existiam
portanto os superiores e os inferiores. O direito burguês vem eliminar estas
distinções formalmente.
No feudalismo não existia propriamente falando direito
público. Ou seja, praticamente tudo era direito privado (as portagens nos
caminhos). A fundação das novas cidades, feiras e mercados, o crescimento
urbano, originou formas de um novo direito público que se desenvolve ao lado,
às vezes contra, a tutela senhorial. O direito público distinto do direito
privado é uma conquista da burguesia. O Estado viu-se encarregado de novos
deveres e serviços (pagos pelos contribuintes) sociais, públicos, cada vez mais
abrangentes e complexos (o Estado Social). Entretanto, intervém cada vez mais
na esfera da vida privada dos cidadãos, isto é, nos espaços e nos tempos ditos
“públicos”, enquanto, simultaneamente, ou recentemente, privatiza, alarga-se o
domínio privado…ao qual são entregues cada vez mais deveres do Estado
(vigilância e segurança, prisões, etc.). Cada vez mais o que é, ou era, comum,
passa a ser pago, isto é, mercadoria (a água das fontes engarrafada). A luta
pelo que ainda é comum, pelo alargamento da esfera (da propriedade) comum, é
uma frente atualíssima de luta nas cidades. É, no fundo, o direito à cidade. E
é isto que este ensaio trata realmente.
A ideologia da classe
dominante- a burguesia – é uma ideologia jurídico-política.
A questão pertinente que se deve colocar quando refletimos
sobre o Direito, a seguir à demonstração de que ele é burguês, é saber quais as
diferenças entre o direito instituído por um regime ditatorial (mas
Constitucional) nazi-fascista e o Direito democrático burguês.
«Alors, on
peut dans l`idéologie du droit […] que l`essentiel, ce sont les
échanges, et que les échanges réalizent l`Homme; que les formes juridiques
qu`impose la circulation sont les formes mêmes de la liberte et de l´égalité;
que la Forme Sujet déploie la réalité de ses déterminations dans une pratique
concerte: le contrat; que la circulation est un procès de sujets.» ( Bernard,
Edelman, Le Droit saisi par la photographie, 2001, p. 107
O Direito possibilita a produção capitalista (as relações de
produção), a formação da propriedade do tipo capitalista e seu desenvolvimento
histórico, e, ao mesmo tempo, oculta a expropriação e a exploração que lhe está
na base. Esta é a sua verdadeira
natureza, a sua única natureza (possibilitar e legalizar a extorsão da
mais-valia), por mais avanços e inflexões democrático-liberais que a letra e o
conteúdo possam vir a conter por força das derrotas, dos compromissos e dos
interesses de classe.
Na letra e na prática do ordenamento jurídico e dos atos
normativos (particularmente no que se refere às leis do trabalho e aos
benefícios fiscais ao grande capital) se vê a ideologia ou os interesses reais
dos partidos que legislam.
F. Engels e K.
Kautsky – O Socialismo Jurídico
Marx demonstrou que
os indivíduos estão confinados a determinadas classes sociais que lhes
determinam a posição nas relações sociais (capitalista ou trabalhador) e não
como declara enfaticamente a ideologia burguesa «cada um é um». Possuindo muito
embora cada um de nós caraterísticas que nos identificam, somente pelas classes
sociais se explica a política, o Direito, o Estado, a moral, etc. (Marx, Introdução à crítica da filosofia do
direito de Hegel). Até à tomada
do poder a burguesia dizia que a razão universal estava na cabeça e a
moralidade no coração de cada um. Hegel dizia que o Estado era a Razão objetiva
e realizada. Na realidade, eram as ficções que a burguesia engendrava pela
cabeça dos seus ideólogos eminentes. Pode um governante que tomou o poder
absoluto pela força armada ou pelo voto ter com isso afastado a burguesia do
poder e, apesar disso, governar mantendo intacto o poder efetivo da burguesia?
Pode, Marx demonstrou-o no seu livro O 18
de Brumário de Luís Bonaparte.
Pode até um regime político ser dos trabalhadores e todavia conservar-se a
sociedade capitalista…Não é o Estado que faz a sociedade, as relações de
produção, mas o invés. E isto não é determinismo nem economicismo. É a
realidade histórica. Para se construir uma sociedade socialista é necessário
destruir o Estado e construir uma outra
forma de administração adaptada à economia socialista que a defenda,
legitime e impulsione.
O direito à greve é um direito
das classes trabalhadoras dentro do direito burguês. Não cai fora dele. Foi
com certeza absoluta uma conquista histórica (sempre em perigo) arrancada aos
capitalistas e é uma arma fundamental contra a exploração de que são vítimas. As
autarquias governadas por partidos comunistas são instituições democráticas
insertas no quadro normativo do direito que legitima o modo de produção
capitalista e o modo de sociabilidade dominante. Não caem fora dele. E todos os
direitos são passíveis de serem perdidos. Todas as conquistas de teor
democrático são boas no interesse dos trabalhadores. Não perder de vista,
porém, que podem vir ao encontro dos interesses do capital. Reza a História que
determinadas reivindicações de cunho democrático foram primeira e longamente
reprimidas a ferro e fogo pela grande burguesia; admitidas, por fim,
converteram-se em meios aproveitados por ela para seu exclusivo benefício. A
classe dominante pode, inclusive, permitir uma certa margem de folga aos
trabalhadores (sindicatos, partidos, etc.), ao trabalho vivo, para que este melhor se reproduza, ande alienado e
produza novos lucros.
A qualidade (formal)
do Direito burguês é a subjetividade, isto é, baseia-se na noção de sujeito
de direito, igualdade de todos perante a lei universal e os chamados direitos
universais inalienáveis do Homem (que não passam de formalidades).
Mas o Direito não se reduz a uma mera mentira, ocultação e
distorção: cria ou ajuda a criar relações sociais e legaliza-as, funda
instituições com os seus funcionários imbuídos de poder, com hierarquias e
rituais, e toda uma simbologia que não é meramente formal ou virtual. É Poder.
O trabalhador produz-se a si próprio como capacidade de
trabalho. Antes de ser absorvido pelo capital (trabalho morto) o trabalho tem
uma existência subjetiva, contra a qual o capital se defronta para manter a sua
valorização, capturá-lo e transformá-lo em capacidade de trabalho (valor de
troca). A força de trabalho é uma propriedade do operário, fator de
desassossego, bom para ser confinado aos bairros operários, mais tarde aos
bairros sociais, porém naqueles e nestes sempre alfobre de rebeliões; melhor
ainda se essa força estranha mas indispensável estiver contida no interior do
lar, encapsulada em centros comerciais, novo espaço público.
Para o marxismo o
núcleo central do direito não é a norma mas o sujeito do direito (crítica à
ideologia do sistema normativo como centro do Direito por Pachukanis)NOTA : o
modo como o sujeito, o indivíduo, se apresenta (voluntariamente) como vendedor
da sua mercadoria força de trabalho a um outro que está no seu direito igual de
lha comprar por um determinado preço estabelecido socialmente ou por contrato.
É o Direito que permite que o indivíduo circule como mercadoria na esfera da
circulação das mercadorias. O Direito é a forma própria do capitalismo.
«Ao lado da
propriedade mística do valor, surge um fenómeno não menos enigmático: o
direito. Ao mesmo tempo a relação unitária e total [ou seja: as relações dos homens no processo de produção] reveste dois aspetos abstratos e fundamentais: um aspeto
económico e um aspeto jurídico.» «O fetichismo da mercadoria é completado pelo
fetichismo jurídico» ( Pashukanis, La teoria general del derecho y el marxismo)
citado por Adolfo Sánchez Vásquez «Pashukanis, Teoria Marxista del Derecho»
NOTA
O direito não se explica por si mesmo. Possui uma história
dentro de outra história, teve um território natal e um percurso sinuoso de
quase cinco séculos.
As categorias jurídicas são: sujeito de direito, norma
jurídica, relação jurídica, liberdade, igualdade, autonomia da vontade.
Para os juristas burgueses (sobretudo positivistas da escola
de Hans Kelsen) o que importa é a validade da norma. De facto, houve um tempo
em que para uma classe média (burguesia) desejosa do poder, era vital libertar
o Direito de tutelas religiosas, morais «históricas» (isto é, das
aristocracias). Daí ser “progressista” a reivindicação por um Direito que a
forma (lógica, racional) validava e a política viria legitimar (pela revolução
nalguns casos).
Os «direitos do homem» podem-se ler hoje na fórmula
«direitos humanos». Qual o fundamento? Na ficção setecentista iluminista do
direito natural, isto é, a-históricos? Ou direitos que se impõem pela força
(por quem possuir mais força), conforme a tese de Kelsen? A Declaração
Universal do Direitos do Homem (1948) funda-se apenas na validade formal? Sim,
se não obtiver poder político decidido a cumpri-los. Além disto as
interpretações são diversas e não escapam aos interesses da burguesia
imperialista.
O direito privado não se dirige apenas à proteção ou
prossecução dos interesses individuais, acrescem os valores coletivos (família,
segurança coletiva, etc.), o direito civil e o direito comercial. A autonomia
da vontade é o princípio em que se baseia o direito privado (liberdade,
consciência, responsabilidade); para o direito público é a legalidade no
sentido estrito.
O desenvolvimento do direito teve a ver com o
desenvolvimento da divisão do trabalho, das formas de apropriação e produção,
das trocas comerciais, das contradições no interior da formação
económico-social.
O Direito é um «sistema de comunicação formulado em termos
de normas para permitir a realização de um sistema determinado de produção e de
trocas económicas e sociais» ( NOTA Miaille). Este sistema é composto por três
níveis: o nível ideológico, o institucional e o prático. O nível ideológico
reúne em uma conceção comum homens e coisas, dando-lhes nomes, qualificando
«precisamente os fenómenos, as instituições, os mecanismos que se apresentam no
jogo social». A Ideologia oculta os fundamentos materiais do direito. Podemos
criticar o direito burguês, denunciar os dois pesos e medidas que a sua
aplicação revela, e, contudo, não saímos do direito burguês e capitalista.
Podemos lutar por reformas democráticas e maior vigilância sobre os executores
do direito, que esses progressos não alteram a essência.
O grande teórico marxista Evgeni Pachukanis considerava
justamente que no socialismo a planificação e gestão pública e cooperativa da
economia, os novos regimes de propriedade e a participação de todos na
governação, substituiriam progressivamente o direito.
O direito acompanhou (umas vezes na dianteira, outras,
atrasado) as transformações das economias capitalistas nestes cinco séculos da
história europeia. Foi reivindicativo, passou em seguida a conservador.
Impulsionou o comércio e as revoluções industriais, justificou (palavra
adequada: persuadiu de que era justíssima a destruição em nome do progresso e
outras tretas) a destruição de outros modos de produzir, outros modos de viver,
ser feliz, comunicar. Se conhecermos estas transformações na economia, na
política, vemos com clareza as articulações com as ideologias, as ciências, as
filosofias, as morais, o direito, e qual foram as funções que estas instâncias
desempenharam, cada uma, no interior da totalidade, i. é, da formação
económico-social. Umas vezes em sincronia, outras com contradições.
Um método para compreender a natureza e as funções sociais
do direito burguês é compará-lo com o direito desenvolvido nos países que já
foram revolucionários e socialistas, ou naqueles que se conservam. Tendo em
conta as grandes diferenças entre eles é evidente um fundo comum do qual os
regimes se reivindicam. «A figura do processo social de vida, i. é, do processo
material de produção, só se desfaz do seu místico véu de nevoeiro quando
estiver, como produto de homens livremente socializados, sob o seu controlo
consciente e planificado.» Marx, O CAPITAL, Livro Primeiro, Tomo I, cap. 4, p.
95. NOTA
O valor da “moeda” liberdade está na confiança que nós,
cidadãos, lhe outorgamos. Não é garantida por um depósito em ouro. Tal como as
lotarias, o sistema bancário, os políticos e as eleições, as marcas e modelos
de consumo, é a confiança que outorgamos. Quando essa confiança é na acumulação
compulsiva de dinheiro é fanatismo. Quando é dedicada à classe que nos explora,
é alienação. Quando as classes «de baixo» perdem a confiança nos «de cima»
abre-se um período revolucionário.
«É apenas a
relação social determinada entre os próprios homens que toma aqui para eles a
forma fantasmagórica de uma relação de coisas. Assim, para encontrarmos uma
analogia temos de nos escapar para a região nevoenta do mundo religioso. Aqui,
os produtos da cabeça humana parecem figuras autónomas, dotadas de vida própria
e estando em relação entre si próprias e com os homens. O mesmo se passa no
mundo das mercadorias com os produtos da mão humana. Chamo a isto feiticismo,
que se cola aos produtos de trabalho logo que eles são produzidos como
mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias.» Marx, O
CAPITAL, Livro Primeiro, Tomo I, cap. 4, p. 88, Edições Avante!, Lisboa, 1990
Como nos atrevemos a afirmar que não somos realmente livres
nestas sociedades com liberdades de expressão e reunião, com eleições livres,
com normas justas para ambas as partes nos contratos voluntários e conscientes?
A resposta a esta questão deve interessar a todos os intelectuais, ideólogos,
militantes, da esquerda revolucionária anticapitalista. Responder com
argumentos atuais e factuais é prioritário nos exames com que avaliamos
publicamente as sociedades onde o capitalismo reina absolutamente através da
economia e do direito. Na verdade, reafirmamos o que se tem vindo a firmar
desde o século XIX: as sociedades burguesas capitalistas trazem na boca a
liberdade e a igualdade, e na cabeça a ganância do sobre-valor arrancado aos
trabalhadores que se submetem porque não são livres para o recusar. Mas a falta
de liberdade, ou mesmo as «cadeias» de que falava Jean-Jacques Rousseau NOTA,
começando na exploração económica do assalariado, vai mais longe, mais largo,
até cercar e envolver completamente o assalariado e o cidadão. Suga-lhe a força
e a alma, o tempo, a vida toda até ao dia em que ele morre.
Os marxistas prezam os valores da liberdade e os direitos
humanos. Todavia, os valores não brotam espontaneamente no céu dos passarinhos,
mas sim de condições materiais concretas, de interesses egoístas que se
disfarçam com máscaras como os atores da antiga Grécia. Pode dizer-se que os
valores (éticos, jurídicos) têm uma determinada cotação no mercado.
Estamos agarrados (o termo adequado) à cola do papel
mata-moscas. Raciocinamos com um modelo-padrão heurístico (a maneira de pensar,
a pedagogia) e um modelo-padrão hermenêutico (descodificar os códigos) que nos
impingiram para que víssemos a justiça onde está a exploração cínica, a
igualdade onde está a dominação sobre classes e sobre povos. É a Ideologia no
sentido marxiano restrito da noção: relação imaginária dos indivíduos com o
Estado e o modo de produção.
«Do ponto de vista social, a classe operária é, portanto,
mesmo fora do processo imediato de trabalho, tanto um acessório do capital como
o instrumento morto do trabalho. Até mesmo o seu consumo individual, dentro de
certos limites, é apenas um momento do processo de reprodução do capital. »
Marx, O CAPITAL, Livro Primeiro, Tomo III, 21º capítulo, p. 653
O direito burguês assenta na ideia de acordo. É assim a base
do direito comercial. Nos modos de produção anteriores o produtor (agricultor,
Stucka (1921) A Função Revolucionária do Direito e do Estado
(trad. Brasileira: Direito e Luta de classes (Teoria Geral do Direito)
NOZES PIRES
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