quinta-feira, 14 de abril de 2016







II ENCONTROS COM A FILOSOFIA





ESPAÇO PÚBLICO
CONTROLO E PRIVATIZAÇÃO






"ESPAÇO PÚBLICO E SOCIEDADE CIVIL
- DA SUA FORMAÇÃO AO PRESENTE"






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José Nogueira Rodrigues Ermitão








9 DE ABRIL DE 2006
TORRES VEDRAS - CENTRO DE DUCAÇÃO AMBIENTAL


Quando falamos de «espaço público» estamos a falar de quê e desde quando?

         1.
         O conceito de espaço público é de formulação relativamente recente e só mais re-centemente ainda passou a conceito operacional em termos de análise histórica, mas de forma pouco generalizada; isto é, ainda não faz parte do vocabulário de análise histórica corrente - apesar de, um tanto paradoxalmente, a sua definição ter partido da necessidade de caracterizar o que de radicalmente novo estava a acontecer na sociedade europeia durante o século XVIII, embora com acentuadas diferenças de país para país.
         O conceito foi definido pelo filósofo/sociólogo crítico alemão Jürgen Habermas em 1962 na obra cujo título da tradução francesa é «L'Espace public. Archéologie de la publicité comme dimension constitutive de la société bourgeoise», para significar "o processo no curso do qual o público constituído por indivíduos no uso da sua razão se apropriam da esfera pública controlada pela autoridade e a transformam numa esfera onde a crítica se exerce contra o poder do estado"[1]. Este processo ocorreu no referido século, um século de desenvolvimento das cidades (particularmente das capitais), de demarcação do espaço público do espaço privado, de afirmação da burguesia, de multiplicação dos salões, cafés,  teatros, academias, de expansão da maçonaria (espaço reservado clandestino mas de re-percussão pública) - locais estes de reunião, discussão, debates políticos e ideológicos crí-ticos, cuja divulgação era assegurada por intermédio de uma «publicidade» específica, co-mo a correspondência epistolar, a imprensa e os livros. O conceito de publicidade (hoje di-ríamos comunicação) é assim fulcral na formação do espaço público, como princípio de controlo do poder político e como dimensão constitutiva da sociedade burguesa[2].

         De notar a relação estreita, estabelecida por Habermas, entre (i) a emergência e afirmação de um espaço público, autónomo do privado (doméstico e íntimo) e dos poderes de tutela políticos e religiosos e do povo[3], (ii) a afirmação da burguesia - Habermas é ex-plícito na identificação de «esfera pública política» com «esfera pública burguesa» - (iii) a divulgação/publicidade das ideias político-sociais críticas dos poderes instituídos, de que aquela era portadora, e (iv) o papel da cidade como espaço constitutivo do conceito. Conceito que também é identificável com o de sociedade civil onde emerge uma opinião pública, ambas divergentes do domínio dos poderes.
         Hoje, é evidente, o espaço público já não é constituído nos mesmos termos do sé-culo XVIII - unicamente pela burguesia e elites sociais cultivadas - mas pela massa/con-junto da população, devido à extensão de múltiplos direitos sociais, da liberdade de opinião, da escolaridade e da expansão da democracia. Mas continua a ser um traço dominante e constitutivo deste espaço público a comunicação, hoje cada vez mais alargada e global nos seus meios - tanto que origina o fenómeno do aparecimento de um segundo espaço público, o mediatizado - e simultaneamente, objecto de crítica enquanto limitadora e manipuladora do próprio espaço público, humano ou mediatizado.
         Ou seja, uma ambivalência histórica, sociológica e política do papel da comunicação - de fomentadora do espaço público a manipuladora do mesmo - um processo sintomaticamente concomitante ao do alargamento do próprio espaço público, do campo e meios de comunicação, e com o objectivo de limitar alternativas críticas ao statu quo vigente, preenchendo-o maioritariamente com um pensamento único, com uma programação ba-seada no espectáculo/entretenimento e com a banalização de quotidianos explorados sentimental e emocionalmente, da vulgaridade e da mediocridade.
         Fora da definição que lhe é dada por Habermas, mas a propósito dela, convém sa-lientar que, em termos históricos, espaço público foi uma realidade que sempre existiu nas diversas civilizações quer em sentido funcional[4], quer identificado com os poderes constituídos/organizados e com a sua sede urbana - que dele fizeram o espaço próprio da sua representação - afirmação/ manifestação, exibição, aclamação e até da sua legitimação. Não têm outro significado, por exemplo, os espaços dos desfiles militares na Roma republicana e imperial depois das grandes vitórias, os anfiteatros, as plazas mayores das cidades espanholas e as idênticas existentes nas grandes cidades mundiais (como o Vaticano ou o Kremlin), os locais de peregrinação religiosa ou as procissões político-religiosas, co-mo a procissão no dia do Corpo de Deus em Lisboa ou o de aplicação pública dos castigos da Inquisição em Lisboa no tempo do absolutismo régio.

         Passo a exemplificar a introdução do conceito de «espaço público» e outros correlativos analisando enviesadamente (isto é, só sob este ponto de vista) duas obras de história[5], ambas publicadas sintomaticamente depois do ano 2000[6]. Mas antes quero referir o recente e adequado uso que António José Seguro fez da expressão, quando do lançamento do seu livro sobre a Reforma do Parlamento Português (no princípio de Março passado) ao afirmar que se tratava do "regresso ao espaço público", o que, explicou ele, não era o mesmo que regressar à vida política e partidária activa - era simplesmente o exercício do direito de cidadania.
        

         2.
         Como primeiro exemplo, o livro de História - Brasil: Uma Biografia[7]. Ou uma história do Brasil não convencional, de grande comunicabilidade, generalista, mas de forma alguma menos sugestiva ou interessante. Sem teorizações prévias, o conceito em referência está implícito no livro para traduzir o significado de alguns movimentos sociopolíticos, independentemente da sua diversidade. Analiso-o nesta prospectiva unicamente até ao final da década de 20 do século passado, período em que as autoras assinalam a emergência dos actores sociais já nossos contemporâneos.

         No capítulo 5, as autoras narram o conjunto de revoltas e de outros movimentos insurreccionais que ocorreram no Brasil colonial desde 1660, data da primeira revolta, até à proclamação da sua independência, em 7/9/1822. Revoltas resultantes de situações de insatisfação provocadas por actos do poder colonial que iam contra interesses locais ou regionais, em geral de natureza económica e fiscal, específicos de franjas possidentes da população (e que arrastavam outras consigo) ou, mais tarde (nos finais dos século XVIII), já resultantes da tomada de consciência por parte de algumas elites locais da necessidade de pôr fim ao estatuto colonial do Brasil pela proclamação da sua independência (como a Conjuração Mineira de 1789).
         Concluem as autoras (p. 152) que "Entre os séculos XVII e XVIII, os colonos co-meçaram a oferecer novos sentidos ao mundo em que viviam: declararam direitos, abriram... um espaço para o debate e as negociações políticas, enriqueceram o vocabulário da vida pública"[8], para além de revelarem"quanto o poder é vulnerável".
         Demonstra-se assim, em situações concretas de revolta, um antagonismo vincado entre o poder político e partes da sociedade sobre as quais ele incide. As autoras não uti-lizam as expressões «espaço público» ou «sociedade civil», mas a sua emergência está implícita para significar a existência de um espaço e de movimentos sociais independentes do poder instituído e que se organizaram contra ele.

         Na p. 206, a propósito da eclosão da revolução Liberal Portuguesa de 1820, notam as autoras que "Foi... nesses locais de reuniões e encontros clandestinos, notadamente nas sociedades maçónicas, que a conspiração tomou forma; sobretudo no Sinédrio, associação secreta formada no Porto em 22 de Janeiro de 1818 e composta majoritariamente de juristas." Ou seja, de novo a afirmação implícita da existência de um espaço ainda que clandestino e socialmente restrito (às elites)[9] antagónico ao poder político vigente - mas que se sai revolucionariamente vitorioso conta ele.

         Nas pp. 242-245, no subcapítulo que relata as movimentações que levaram à ab- dicação de D. Pedro, 1.º imperador do Brasil, em 7 de Abril de 1831, referem as autoras a importância, no facto, de um conjunto de pequenos conflitos (provocações, agressões, in-sultos) que puseram o Rio de Janeiro numa situação de "contínua tensão", da acção da imprensa, dos boatos na capital e províncias, da unidade das correntes políticas anti D. Pedro e de uma manifestação na capital. E rematam: "O Sete de Abril... consagrou o es-paço público como arena política... assim como suas práticas informais de cidadania."          Registe-se o uso da expressão «espaço público» identificado com arena política e  exercício de cidadania - ou seja, um espaço social onde se organiza a oposição ao poder instituído, fora do canais do seu exercício, e que funciona vitorioso contra o poder, dado que atingiu o seu objectivo: a abdicação do 1.º imperador brasileiro.
         No final do subcapítulo sobre a proclamação da república brasileira (em 15/11/ 1889), p. 320, referem as autoras que "O projecto republicano... vinha de encontro a uma ampliação importante do espaço público durante a década de 1880 que levou a acção política para fora do Parlamento." E neste espaço publico ampliado integram a opinião pública, a imprensa (que questionavam a monarquia), a renovação intelectual (divulgação do positivismo) e uma fracção significativa dos militares[10]  atacando todos em uníssono os suportes da monarquia (o monarca, a religião e o romantismo).
         Ou seja, a utilização do conceito de espaço público ampliado - traduzindo a emergência de novos actores sociais, como o exército e o movimento intelectual - como espaço de acção política não institucional e com capacidade suficiente para implantar um novo regime político.

         No capítulo 13 (intitulado A 1.ª República e o Povo nas Ruas) nas pp. 342- 355, último subcapítulo, ao falarem dos anos 20 do século passado, as autoras sublinham o que há então de novo: "Aí estavam novos actores que passaram a lutar por direitos e participação" - ou uma nova ampliação do espaço público. E referem explicitamente: o movimento dos tenentes - oficiais de baixa patente que agem na "cena pública" considerando-se como "legítimos mandatários do povo e que [pediam] a reversão da situação política e económica" (de natureza oligárquica)[11]; a emergência do proletariado urbano; o desenvolvimento da classe média e do funcionalismo público (grupos sociais também urbanos). Ou seja, a afirmação progressiva da "constituição de uma sociedade cidadã com modelos de participação" e a transformação do espaço da cidade "no lugar de uma cidadania activa".
         E na análise conclusiva sobre a experiência da 1.ª República brasileira - que vai de 1889 a 1930 -  acentuam que se tratou de um período "afirmativo na batalha por direitos, pela construção da distinção entre as esferas pública e privada[12], pela luta em busca do reconhecimento da cidadania". E referem quanto "a rua se converteu em local privilegiado" das manifestações sociais, nelas incluindo "a vida social, mas também os jornaleiros, os grevistas, as manifestações políticas e as expressões da cultura popular".
         Em suma, a emergência de novos actores sociais, de novas formas de participação e de exercício da cidadania, da luta pelo alargamento de direitos - numa relação estreita com as ruas e as cidade como espaços da sua manifestação.


         3.
         Como segundo exemplo, o livro de História - História da Vida Privada em Portugal, A Idade Moderna.[13]
         Enquanto que o primeiro livro é uma história geral do Brasil, este ocupa-se da his-tória da vida privada em Portugal no período entre finais do século XV e princípios do século XIX. Passo a analisar simplesmente o último subcapítulo final Novas formas: vida privada, sociabilidades culturais e emergência do espaço público, pp. 424-456, em que a autora, Maria Alexandre Lousada, procura exactamente captar as formas de surgimento do espaço público em geral na Europa do século XVIII e depois em Portugal, utilizando explicitamente (mas de forma incompleta) a abordagem de Habermas, citado quatro ve-zes no texto e seis vezes nas notas finais.

          A autora, no 1.º §, começa por referir que "parece legítimo… destacar a relação existente entre as Luzes, as formas específicas de sociabilidade que estiveram associadas à sua divulgação… e a afirmação do espaço público como categoria política historicamente localizada". Afirma que ao longo do século XVIII, com desfasamentos temporais, geográficos e sociológicos nos diversos países, ocorreu uma transformação na sociedade europeia caracterizada globalmente pela diferenciação entre a esfera privada (recatada, pessoal, familiar) e a esfera pública, socialmente exposta. Nesta esfera ou espaço inclui "o alargamento social dos círculos de convívio, a parcial autonomização das sociabilidades da aristocracia… e das da cultura letrada em relação à Corte, à Igreja e ao mecenato/patrocínio régio e aristocrático". Neste sentido, a circulação das notícias por via manuscrita (cartas) ou por via impressa (as gazetas), as academias de iniciativa não oficial/régia, a maçonaria (com estrutura formal organizada, socialmente restrita, secreta e mesmo clandestina), os salões, as livrarias e os cafés que "são considerados fundamentais na criação do espaço público moderno…".
         Estes espaços constituem, segundo a autora, o que Habermas designa como «o público de pessoas privadas fazendo uso da razão». De notar o aparecimento de uma dicotomia que se define na oposição entre o espaço público, dos indivíduos, e o espaço do poder, cuja fonte, no absolutismo ou no despotismo mais ou menos de direito divino ou iluminado, era a pessoa do rei, ainda que afirmado através de proto gabinetes ministeriais (secretarias/secretários de estado) - constituindo uma ilegalidade a discussão pública/ crí-tica dos actos do poder.
         Este espaço público assenta ainda em duas condições: o princípio da igualdade quanto ao uso da razão, que se sobrepõe às diferenças de estatuto social[14], e a partilha e circulação da informação fora dos circuitos tradicionais, devidamente controlados - como os colégios, universidades, academias reais, corte e meios diplomáticos - necessariamente ligados ao exercício do poder. E assenta numa exclusão dupla: a do povo[15] e a das mulheres[16]. Ou seja este novo espaço público assentava na parte esclarecida e culta da aristocracia e do clero e na burguesia capitalista, burocrática e cultural que (e a autora cita Roger Chartier) mantinham «uma relação distanciada e crítica com a autoridade… que se situam à distância do estado, excluem o vulgo, e implicam… todos os que participam na discussão pública» - traçando-se assim uma nova cultura política que mais tarde haveria de enformar as sociedades liberais.

         Em Portugal este espaço público das Luzes aparece refreadamente, devido ao pe-so e acção dos instrumentos repressivos do poder, como a Inquisição, a Real Mesa Censória, o Desembargo do Paço, a Intendência Geral da Polícia e o próprio despotismo pombalino, bem como devido ao "pouco peso numérico e social de uma elite letrada que protagonizasse… a formação do espaço público… dando lugar à emergência da esfera pública política" e mesmo a situação periférica do país. O que não quer dizer que não tenha emergido, e com alguma força, apresentando-o em quatro vertentes. Note-se que a do-cumentação e informação mais completa sobre a circulação de obras, tipografias e locais de reunião (academias, cafés e livrarias) são os documentos da Intendência Geral da Polícia em resultado do policiamento exercido sobre esses mesmos locais…

         1.ª vertente. A autora, com base em estudos recentes portugueses e brasileiros, refere o "cosmopolitismo culto e a afinação pelos padrões iluministas de além Pirenéus de um número considerável de intelectuais e elementos da nobreza, mulheres incluídas"[17] - intelectuais com produção científica cultural comprovada, com envolvimento em redes nacionais e internacionais de difusão cultural - que animaram "espaços de convívio e discussão intelectual em diversas cidades do país" onde se discutiam as ideias de autores  proibidos, como Voltaire, Helvetius, Diderot, Rousseau e outros, sobretudo no último de-cénio do século XVIII, correspondente ao fervilhar intelectual provocado pela Revolução Francesa (1789)[18]. Note-se que autora refere os intelectuais actuante no país e não os que se afirmaram fora dele, como é o caso conhecido de Ribeiro Sanches, médico e cientista de craveira internacional e que colaborou na Enciclopédia dirigida por Diderot.

         2.ª - As múltiplas academias de origem não régia, formadas por particulares, em cujas casas funcionavam, animadas por fidalgos letrados e eruditos, com uma estrutura informal de funcionamento e que surgiram em cerca de 20 cidades do país e no Brasil. O quadro seguinte indica de forma generalista as fases da sua criação e a sua localização:

Quadro 1 - Criação de academias de origem privada

Localização
1615-
1720
1721-
1755
1756-
1777
1778-
1807
Igno-
rada*
Total
Ignorada*
3
2
2
1
8
16
Lisboa
16
18
3
5
2
44
Outras cidades[19]
6
19
4
5
3
37
Brasil
-
3
2
2
-
7
Total
25
42
11
13
13
104
        
                                                 * Tanto a localização como o período de criação.

         Da sua análise conclui-se o período áureo da sua criação (1721-1755) correspondente ao período que vai da criação da Academia Real de História, em 1720, até 1755, quando o Marquês de Pombal inicia o período de mão firme na governação - momento em que o seu aparecimento declina, o que não é de estranhar considerando o que já antes foi referido sobre o despotismo pombalino como momento repressivo. Por outro lado, verifica-se que Lisboa é a cidade com o maior número de academias (42% ou 45%, se se considerar o território continental e excluirmos o Brasil[20].
         Embora os temas literários fossem nelas predominante e mantivessem mesmo re-lações de aproximação ao poder, até pelos seus elementos muitas vezes ligados a funções de natureza política, estas academias contribuíram "para a criação de um público idealmente autor e leitor em simultâneo, um público que interpreta, avalia e dá a conhecer o seu juízo". Aliás a academia Arcádia Lusitana (1756-1774), protegida pelo Marquês de Pombal, apresenta características inovadoras: espírito de igualdade entre todos os seus membros[21], o mérito pessoal e não genealógico como condição para a admissão, a su-pressão das precedências e o sorteio como meio de escolha para o exercício de funções burocráticas. Mais tarde foi criada a Nova Arcádia (1790-1795), de curta duração e grandes polémicas, e de que fez parte Manuel Maria Barbosa du Bocage, cujos poemas à liberdade não deixam dúvidas sobre aspectos desta academia.
         De origem e financiamento régio (D. João V), funciona a partir de 1720 a Academia Real de História que apresenta características excepcionais para a época: os livros adquiridos eram isentos de qualquer censura externa; os seus trabalhos, ainda que com a função glorificadora do país, contribuíram para uma visão secularizante da história portuguesa, assente em base documental e não na tradição. E pelas discussões nela havidas contribuíram, segundo a autora, "para a formação do público que constituirá a emergente esfera pública". Em 1779 foi criada, também por iniciativa régia, a Academia Real das Ci-ências[22], dedicada a problemas de natureza técnica, económica, histórica e documental (e cujas Memórias Económicas foram publicados há anos). Nela os poucos aristocratas eram unicamente sócios honorários, os membros do alto clero eram sócios correspondentes ou livres, sendo os seus membros activos constituídos por médicos, engenheiros militares, cientistas, professores universitários, magistrados e baixo ou médio clero. Os seus trabalhos na área da economia são de natureza pró-liberal e Pina Manique considerava-a «um antro de revolucionários que formavam uma rede perigosa».
         Em suma as academias particulares ou régias, na sua actividade, pelos seus membros, pelas polémicas em que se envolveram e que lhe deram repercussão social "concorreram para a consolidação e troca das redes de informação e de livros, para a prática da discussão crítica", abrindo assim o caminho para a emergência de um efectivo espaço pú-blico ao longo do século XVIII.

         3.ª - Os salões. Segundo o modelo francês/parisiense, assente na conjugação da discussão político-cultural com sociabilidade mundana, não parece terem existido generalizadamente no país; mas está comprovada a existência, particularmente em Lisboa, de reuniões, assembleias ou saraus, mais mundanos do que politizadas ou culturais, em casas particulares, e que o seu número aumentou à medida que o século XVIII foi progredindo. Contudo terá havido alguns salões de tipo francês animados ou por mulheres letradas, de que se destaca o da marquesa de Alorna, ou por aristocratas de elevada cultura, como o animado pelo duque de Lafões. Ainda que relativamente "escassos, terão concorrido para a existência de um público… sustentado por indivíduos privados, reunidos em lugares privados, fazendo uso público da razão" e significando igualmente a afirmação de novos tipos de sociabilidade, congruentes com a construção do espaço público. A sua politização é duvidosa (eram mais espaços mundanos ou literários) e "será verdadeiramente apenas com as invasões francesas e a revolução liberal que os espaços de sociabilidade cultural se politizarão."

         4.ª - Os cafés. De existência confirmada a partir de meados do século XVIII e em expansão nos seus últimos anos, pelo menos em Lisboa, os cafés e botequins, como lo-cais de tipo novo (diferente das casas de pasto, tabernas, tendas e outros estabelecimentos similares) tornaram-se "lugares de sociabilidade cultural frequentados por poetas, homens de letras e indivíduos das classes médias urbanas - negociantes, militares, funcionários públicos - que se apresentavam como alternativa às sociabilidades culturais cultivadas nas academias e nos salões. As polémicas literárias, até então acantonadas a um público… [de] espaços privados, extravasam esses círculos e passam a envolver indivíduos privados reunidos em lugares públicos. E foram poetas… como Bocage e José Agostinho de Macedo… quem trouxe a crítica para a rua, quem a difundiu nos cafés". Os cafés passaram a ser locais privilegiados dos «doutores» em novidades e, como escreve a autora, "Aí se liam as gazetas, cujas notícias comentam em voz alta juntamente com as que circulam nas praças. Quando se avista a polícia, os doutores saem prudentemente para evitar a prisão…" Aliás, e autora cita um ofício de Pina Manique em que este informa «que em alguns cafés, bilhares, casas de pasto e em algumas assembleias costumam ter ali as gazetas, correios, assim estrangeiros como portugueses, para se servirem e atrair gentes … mas isto, que à primeira vista parece não ter nada, serve de sensitivo e de abrir a porta a diversos discursos e combinações, e alguns pervertem o sentido literal das mesmas gazetas… Daqui… nasce a voz vaga em toda a parte, de que nos cafés se fala com liberdade…»[23].
         Continua a autora: "Os actos do governo são tornados públicos e comentados mais ou menos livremente por indivíduos… que usam criticamente a razão subvertendo a política do segredo de estado, ao actos ocultos do poder"[24]. A eclosão da Revolução Francesa teve ecos e aderentes em Portugal e os cafés são espaços propícios a isso. Pina Manique dá conta do facto, sendo presos em 1797 cinco indivíduos (um capitão, um ourives, um cirurgião, um bacharel e o governador nomeado para o Ceará) por «andarem em clubes com outros pela Praça do Comércio, onde se juntam todas as tardes pelos cafés, boticas e algumas lojas de mercadores, espalhando vozes ímpias e sediciosas, aproveitando os procedimentos dos franceses… proferindo liberdades temerárias e malquistando com impropérios os ministros e secretários de estado»[25].
                Ou seja, dos ofícios do Intendente geral da Polícia se conclui quanto os "cafés se tornaram um espaço de sociabilidade cultural que rapidamente se transformou em espaço de sociabilidade política" - enfim, em espaços públicos de veiculação de noticias e de discussão e difusão ideológica crítica dos poderes instituídos.


         4.
         A vertente ausente ou o ponto crítico do subcapítulo: a referência unicamente indirecta e sem mais desenvolvimentos, a propósito dos cafés, às gazetas; ou seja, a ausência da referência sistemática aos jornais, periódicos e demais publicações - e tanto mais estranha quanto constituem um vector que Habermas considera fundamental para a definição do espaço público: a publicidade/comunicação.
         Refiro[26], em síntese, as gazetas, periódicos e outras publicações criadoras desse mesmo espaço, pelo público que atingem e pelo que divulgam, sejam ligadas ao poder, sejam ligadas a correntes críticas do mesmo. De salientar a Gazeta de Lisboa, jornal oficial do governo, que no entanto publica crónicas de tom optimista da autoria do embaixador português em Paris, Sousa Coutinho, sobre as medidas da revolução francesa - até à prisão de Luís XVIII, momento depois do qual a publicação das mesmas foi proibida.
         Nos períodos das invasões francesas e posterior surge um conjunto inumerável de periódicos de diversa natureza, uns mais críticos do que outros, alguns fortemente críticos e publicados fora do país e nele proibidos, mas que circulavam quer em Lisboa quer pela província quer no Brasil - de que destaco O Português, O Correio Brasiliense, O Investigador Português e o Campeão Português, publicados em Londres, todos influentes na opinião pública letrada[27] pela crítica mais ou menos violenta que moviam contra os poderes vigentes e pela apologia que faziam de um governo de tipo liberal. Estes jornais foram um dos pilares da criação do novo espaço púbico completamente livre de tutelas do poder e que se exercitaram criticamente contra ele[28].
         Devo acrescentar que no período das invasões francesas e posterior, o poder tem consciência da existência de uma opinião pública como factor a ter em conta a nível das decisões políticas. Assim, Miguel Pereira Forjaz, Secretário dos Negócios da Guerra, invoca-a para, depois da guerra, reduzir os efectivos do exército, referindo mesmo que proceder em contrário seria uma atitude impolítica; por outro lado, Beresford, consciente de quanto a opinião púbica lhe era adversa, acusa o próprio governo de nada fazer contra is-so e insinua mesmo a sua responsabilidade no facto[29]. Acrescente-se que o afastamento da corte para Rio de Janeiro, a guerra prolongada obrigando a recrutamentos contínuos, a mobilização constante de recursos económicos (meios de transporte e outros) e financeiros para a guerra, a liberdade de comércio directa com o Brasil e o tratado comercial de 1810 favorável à Inglaterra e em detrimento da posição de Portugal, a elevação do Brasil a reino e o poder crescente concedido a Beresford levaram à politização crítica de camadas médias alargadas, com relevo para os fabricantes, comerciantes, burocratas, militares e outros - traduzindo-se num alargamento efectivo do espaço público e de que resultará a Revolução liberal de 1820.


         5.
         No século XIX, depois da instauração e consolidação da revolução liberal, o alargamento do espaço público no país já não tem limites, ou melhor, tem como limite - e não pequeno - o analfabetismo da maioria da população. Nas duas últimas décadas deste século, a industrialização e a divulgação progressiva do ideário republicano significam a entrada na cena do espaço público politizado de novos actores, como a pequena burguesia urbana, franjas cada vez mais alargadas de militares e o proletariado urbano. A instauração da República em 1910, com a separação entre o estado e a Igreja, liberta definitivamente os resíduos da tutela possível, pelo menos a nível legal e urbano, da Igreja sobre esse espaço, ainda que continue a permanecer evidente nos meios rurais.
         A instauração na década de 30 do século passado do Estado Novo[30] traduz-se num retrocesso ou na tutela do espaço público pela sua ocupação pelo poder do estado, de natureza fascista, e pela Igreja Católica, sendo relegada para os momentos eleitorais, li-mitados e fraudulentos, a demonstração da continuidade da existência de um espaço pú-blico de liberdade - que só com a Revolução de Abril de 1974 se  libertará completamente da clandestinidade e de que será um dos esteios do regime democrático instaurado. Mas com ameaças sérias, que se afirmam a partir dos anos 80 e 90 e que se acentuam no século presente - assunto que ainda focarei mas muito ao de leve e que penso que será tratado por outros intervenientes neste encontro.



         6.
         Em síntese, relacionado com a expressão/conceito «espaço público» verifica-se a existência de um conjunto de termos e expressões que lhe são conexos, decorrentes ou antagónicos, em termos históricos, sociológicos e políticos, e que formam como que um campo semântico, cujos termos ora se relacionam em termos de sinonímia, ora de antonímia, ora de interseccção, que traduz bem aspectos da nossa contemporaneidade, no-meadamente - e citando dos textos das obras abordadas e dos § 4 e 5: direitos, debate, negociação, vida pública/política, esfera pública, sociedade civil, opinião pública, autoridade, controlo estatal, poder, associações, conspiração, tensão, arena política, cidadania, parlamento, república, acção extraparlamentar, actores sociais, sociedade cidadã, cidadania activa, espaços públicos políticos, dicotomia público/privado, sociabilidade mundana/ cultural/política, publicidade/comunicação, laicização, razão, igualdade, público, secularização, censura, juízo crítico, burocracia, polémica, discussão crítica, rede de informação, dicotomia povo/burguesia, revolução, repressão policial, classes médias, urbano (cidade), liberdades, politização, tutelas, eleições e manifestação. Graficamente os termos e ex-pressões podem ser assim apresentados:


          relação de                                              área de                               relação de            
    SINONÍMIA
INTERSECÇÃO
            ANTONÍMIA
Espaço público
          debate, direitos
        esfera pública
         sociedade civil
     associações, cidadania
    igualdade, actores sociais
   sociedade cidadã
  cidadania activa
 sociabilidades, juízo crítico
laicização, razão
secularização, polémica
 público, liberdades
  discussão crítica
   acção extraparlamentar
    opinião pública
     conspiração, politização
      tensão, revolução
       eleições, comunicação
        negociação, manifestação
Cena política
regime politico
espaços públicos
Cena/arena pública
vida pública/política
rede informativa
urbano (cidade)
parlamento
              
                 Estado
                 censura
               autoridade
          controlo estatal
         repressão policial
             tutela política                                  tutela religiosa
            manipulação
       burocracia       
tu        
Poder












SOCIEDADE CIVIL: CONTROLO VS DEMOCRACIA OU DEMOCRACIA CONTROLADA?

            7.
         Considerando o tema do encontro e que o título inicial da comunicação (Espaço pú-blico e sociedade civil: passado e presente) não pôde ser cumprido por limite de tempo, não deixo contudo de apresentar algumas reflexões sobre os temas não desenvolvidos.
         Deixando declaradamente de lado as diversas conceptualizações da expressão so-ciedade civil que desde a Antiguidade Clássica filósofos e pensadores foram elaborando ao longo do tempo - tempo histórico que lhes serviu de contexto e de base de formulação - podem definir-se muito grosso modo 5 linhas de força diferentes nos múltiplos conceitos de sociedade civil: (i) como equivalente ao/identificado com o estado; (ii) como o espaço social sobre que se exerce o poder do estado; (iii) como a base do estado; (iv) como so-ciedade civilizada; e (v) como conjunto dos agentes individuais/sociais e das relações es-tabelecidas entre si e independente do poder do estado.
         A quinta linha de força representa praticamente o conceito de sociedade civil tal como é concebido na contemporaneidade: independente do estado e em situação de tensão com ele, apesar das relações de aproximação, de conjugação, de diálogo, de hegemonização - o que tanto depende da sociedade civil em si e da sua capacidade de afirmação/ mobilização frente ao poder do estado, como da natureza deste, que lhe pode ser mais ou menos permeável, das suas relações com o poder económico-financeiro dominante, das teorias económico-sociais subjacentes, da sua abordagem da conjuntura e do poder dos agentes de comunicação, praticamente em sintonia com os detentores do referido poder económico-financeiro.
         Historicamente, a moderna sociedade civil é posterior à constituição e progressivo alargamento do «espaço público» nas sociedades liberais/burguesas oitocentistas, podendo datar-se de meados do século XIX o momento da sua emergência pela criação de associações de socorros mútuos e de organizações operárias e rurais que visavam influenciar o poder político reclamando nomeadamente o direito de reunião e de associação e a extensão do sufrágio. Sem espaço público dificilmente seria concebível a existência de uma so-ciedade civil autónoma do poder político. De sublinhar, no entanto, que os regimes liberais até cerca da década de 80 do século XIX foram extremamente restritivos e fortemente re-pressivos dos movimentos/associações representativas dos interesses das camadas populares, em nome da liberdade de económica… 
         Só a partir dessa década, quando os detentores do poder político-económico começaram a perceber que a institucionalização destes movimentos podia constituir também, para além da repressão (e em conjugação com ela), uma forma de controlo das pressões das camadas populares operárias e outras - e até a sua integração no sistema político em termos que não pusessem em causa a sua hegemonia nele - é que possibilitaram o de-senvolvimento desses movimentos, que então se organizaram e expandiram livremente. Cabe aqui uma referência óbvia à organização de sindicatos e de partidos de base operária, bem como todo um conjunto de organizações dos mais diversos tipos e fins, como assistenciais, profissionais, cooperativos, recreativos, educativos/culturais e mesmo patro-nais ou políticos não partidários, demonstrativos da existência de uma solidariedade activa (entre trabalhadores)  ou de defesa de interesses (patronais).
         Actualmente, sobretudo desde a década de 80 do século XX - com o retorno das doutrinas liberais e das suas consequências imediatas em termos de restrição de direitos, da reafirmação do individualismo e do concomitante estilhaçar das solidariedades tradicionais, juntamente com a relevância do espaço público mediatizado e da alienação e fragmentação social que ele provoca - se se assiste a uma tendência de quebra dessas solidariedades estruturadas, como a pertença a sindicatos e partidos, verifica-se por outro lado o crescimento de movimentos de causas sociais específicas mais ou menos interclassistas, informais e de duração incerta, como os em torno da ecologia, dos direitos de minorias, da defesa do aborto, de direitos específicos, de protesto político específico e outros. Ao contrário, as organizações de defesa de interesses patronais continuam dispor da mesma vi-talidade e até aumentada.




         8.                                                    
         As questões maiores que se colocam ao espaço público e à sociedade civil são de quatro ordens: a sua relação com o poder, a progressiva relevância do espaço mediático, a do controlo versus democracia e a inexistência de um espaço económico público. Sobre estes problemas, algumas reflexões:

         1.ª - Que as classes sociais dominantes só abriram espaço ao desenvolvimento de uma sociedade civil autónoma, com as suas organizações próprias, quando perceberam que a mesma podia servir também de válvula de escape para as tensões sociais em crescendo e sobretudo como modo possível para o seu controlo e integração no sistema social vigente. Exemplo flagrante deste controlo e integração conseguidas foi a propagação da ideologia nacionalista na Alemanha kaiseriana, que conseguiu capturar os alemães para uma unanimidade em torno do poder vigente e da sua política belicista, de que haveria de resultar a 1.ª Guerra Mundial...
         Ou seja, paralelamente ao alargamento do espaço público e concomitante desenvolvimento de uma sociedade civil autónoma do poder - toda uma concepção de estratégias de consenso e envolvimento ideológico foram postas em prática por parte das elites, tanto no sentido de coarctar qualquer possibilidade da autonomia se transformar em contra poder, como mesmo no sentido de o legitimar. Este exemplo histórico é particularmente demonstrativo do modo todos como os poderes instituídos, mesmo os mais democráticos, procuram lidar com o espaço público/sociedade civil, controlando-o e utilizando todos os instrumentos ideológicos ao seu alcance, desde os aparelhos educativos às igrejas e aos meios de comunicação de que dispõem - e, no caso destes, tanto mais quanto eles se diversificam e atingem/capturam a sociedade no seu todo.  
         A sociedade é formalmente mais livre, mas na condição de admitir ou permanecer submetida à hegemonia das classes dominantes, e com tanta mais eficácia quanto mais inconsciente for o processo. Funcionando assim o sistema eleitoral democrático como instrumento da legitimação do seu poder. Contra prova desta afirmação: o processo de de-sintegração sistemática a que foram submetidos todos os estados e sociedades em que o processo eleitoral democrático funcionou ao contrário da perspectiva antes referida - como exemplo: o caso da Espanha republicana, do Chile de Allende e a organização Gládio existente na Itália para o caso de, por via de eleições, o poder cair em mãos indevidas
         A relação entre o poder e o espaço público e sociedade civil é assim ambivalente: se a sociedade civil funciona ou pode funcionar como instrumento de pressão sobre o po-der e de controlo do mesmo - também o poder político procura por todos os meios possíveis controlar, na perspectiva do que lhe é aceitável, a sociedade civil. Sem esquecer que movimentos como os partidos e os sindicatos, pelos seus objectivos, tanto são definíveis em termos de sociedade civil como de poder…

         2.ª - A supremacia actual do espaço mediatizado. O século XX herdou do passado a imprensa, os jornais e elevados níveis de analfabetismo; contudo, a escolarização progressiva nos países desenvolvidos e em vias de desenvolvimento conjuntamente com o acelerado progresso tecnológico alargaram extraordinariamente o campo das comunicações - primeiro o cinema e a rádio (em divulgação logo nos anos 20), depois a televisão nos anos 50 e posteriormente os telemóveis e a internet nos anos 90 e mais recentemente as redes sociais. O espaço público foi assim como que duplicado através da sua mediatização - desde logo usada para efeitos de controle total do espaço público/sociedade civil ou mesmo, nas ditaduras, para a sua captura total e anulação completa da própria sociedade civil. Exemplo flagrante é de novo a Alemanha, onde o partido nazi, na luta pelo po-der (anos 20 e princípios de 30) e depois de o tomar, fez um uso ilimitado da rádio e do cinema como meio de propaganda total, conjuntamente com uma repressão sem limites, para levar a efeito a consecução dos seus objectivos e uma 2.ª Guerra Mundial.
         Hoje, a omnipresença da televisão multicanal conjugada com a internet e as redes sociais só aparentemente globalizam e democratizam o espaço público; na realidade frag-mentam-no, atomizam-no, dessolidarizam-no já que o reduzem à soma dos indivíduos a ele ligados e ao mesmo tempo desligados da realidade concreta humana pelos conteúdos a que os sujeitam[31] - não esquecendo que são seus proprietários (repete-se e sublinha-se) as mesmas elites que dominam o poder político e económico… Também há exemplos convincentes de como podem ser e têm sido usados como contra poder e de forma eficaz. Exemplos convincentes mas minoritários contra a maré conformista dominante. De tal forma é o seu domínio alienante em liberdade, pelo menos na escolha de canal, que quase se pode dizer que se os anos 20 e 30 do século XX dispusessem dos meios de comunicação actuais - o fascismo não precisava de ter existido… O poder económico hoje já pode ser livremente exercido sem necessidade de recurso ao terrorismo de estado. Basta-lhe a televisão!


                                               3.ª - Espaço público: democracia ou controlo?
         Primeiro, tratando-se de democracia - democracia ou regime de mercado eleitoral e limitado? - há que indagar se não será puramente formal dado que os centros de decisão económico-financeiros, determinantes do processo sociopolítico, não estão sujeitos a su-frágio. Mais: integrados na União Europeia, há que indagar sobre que processo democrático mesmo formal presidiu ou não à sua construção e tem presidido, ou não, à tomada de decisões - neste campo parece que estamos sob o domínio de déspotas agora tecnocraticamente  iluminados…
         Finamente: democracia ou controlo? Sinteticamente: democracia mas controlada, vigiada, cada vez mais securitária e com os direitos sociais em retrocesso. Contudo, de-mocracia: apesar de formal, pelo que possibilita em termos de espaço público e de sociedade civil, é um imenso progresso em relação à não democracia. E nós, isto é, pelo menos os portugueses entrados na 3.ª idade, temos o conhecimento experienciado da diferença…

         4.ª - Uma última embora relevante questão: estranhamente (ou não), a constituição de um «espaço público económico» com o mesmo sentido do político não tem sido objecto de atenção e de reivindicação. E no entanto ele é absolutamente necessário como condição base para que a democracia deixe de ser formal, para que as decisões económico-financeiras não fiquem restritas aos seus detentores, que agem num mundo próprio - o deus mercado e de acumulação de capital - e perante os quais o cidadão não passa de indivíduo submetido, indefeso e portanto sem poder de intervenção: neste campo continua a ser um súbdito, como nos tempo de absolutismo, e não um sujeito como é suposto ser em democracia. E a revelação recente dos Panamá papers só vem dar força à necessidade da constituição de um espaço económico público - reconhecidamente de difícil consecução enquanto se mantiver a subordinação vincada da política à hegemonia do capital económico/financeiro. Ou, como afirmou o financeiro norte americano Warren Buffet (cito de memória pois a frase é inesquecível) - isto é a luta de classes e quem está a ganhá-la somos nós!...




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                                                                                                                                                                        8/4/2016


[1] Mas já utilizado por Kant e definido por Hannah Arendt, embora o seu impacto operativo nas ciências humanas se te-nha dado a partir da definição e obra citada de Habermas. O Dicionário das Ciências Humanas (trad.) coord. por Jean-François Dortier, Lisboa, Climepsi Ed., 2006, cuja edição francesa é de 2004, já tem a entrada «Espaço Público», pp. 166-167, embora pequena,  com referência à definição que lhe é dada por Habermas. Em Portugal o impacto operativo do conceito é posterior ao ano 2000.
[2]  Habermas utiliza o termo publicidade no seu sentido original: o de tornar pública, dar a conhecer publicamente in-formação. Observação: nos anos 50 e 60 do século passado as ciências da comunicação, como tal, ainda não estavam autonomizadas como disciplina própria, como hoje estão. Os filósofos/cientistas são muitas vezes tributários da linguagem do seu tempo mesmo quando a usam para expressar ideias novas. Utilizaria hoje Habermas o termo comunicação em lugar de  publicidade?
[3]  Público e povo funcionam como um par dicotómico, o primeiro identificado com a  burguesia e o segundo com a massa popular, considerada ignara, desinteressada e portanto excluída dos «bens e cultura» que o conceito de público comportam (ver adiante o ponto 3 e a nota 14).
[4]  Neste caso como espaços públicos, no plural, que incluem jardins, ruas e praças (onde de realizam feiras, mercados, festas e cerimónias religiosas) e, actualmente, centros comerciais e outros, como os espaços públicos religiosos. O conceito de espaço público político é diferente portanto do de espaços públicos funcionais.
[5]  Não deixo de referir também quanto a obra Les origines culturelles de la Révolution Française, de Roger Chartier, que incide sobre o século XVIII, é intencionalmente tributária da abordagem de Habermas.
[6]  O conceito de espaço público tem vindo a ser generalizado a outras ciências e práticas científicas como a sociologia urbana, sociopsicologia, antropologia, arquitectura, geografia e ciências da comunicação..
[7]  Brasil: Uma Biografia, de Lília Moritz Schwarcz e de Heloísa Murgel Starling.
[8]  Pela introdução de termos como revolta, revolução, motim, rebelião, sedição, conspiração, insurreição, tumulto  e outros similares.
[9]  No quadro do regime absolutista qualquer movimento social de oposição ou contestação ou tinha de ser clandestino ou era simplesmente objecto de repressão sangrenta imediata. No Brasil estes movimentos eram possíveis devido à extensão do espaço físico, que era um dos factores limitativos do exercício efectivo do poder colonial. Limitativo mas não impeditivo: as revoltas havidas foram todas dominadas.
[10]  Também influenciada pelo positivismo. Note-se que a frase inscrita na bandeira do Brasil - Ordem e Progresso -  é de natureza nitidamente positivista.
[11]  Neste movimento, as autoras incluem a coluna de Carlos Prestes que percorreu o Brasil de 1925 a 1927.
[12]  Uma referência implicita - interpretação pessoal - à separação entre o Estado e a Igreja.
[13]  A Idade Moderna, coord. de Nuno Gonçalo Monteiro, 2.º vol da História da Vida Privada em Portugal, dirigida por  José Matoso.
[14]  O que é evidente na Maçonaria.
[15]  Como escreveu Voltaire: «Numa nação há sempre um núcleo de pessoas que não tem contacto al-gum com a sociedade educada… É conveniente que essas pessoas sejam conduzidas mas não ensinadas, pois não são dignas de tal esforço… Não é o operário que devemos instruir, mas sim o bom burguês, o comerciante». Cit. em O Iluminismo, de Norman Hampson, pp. 158-159.
[16]  Ainda que com algumas excepções.
[17]  Como refere a autora, este cosmopolitismo decorria mais da recepção e leitura de obras do que de contactos pessoais ou de viagens.
[18]  De referir que algumas obras escritas por militares franceses que participaram nas invasões dão conta do seu espanto pelas número de bibliotecas e presença nela de autores franceses, que encontraram em muitas casas…
[19]  Sobretudo Évora (6), Santarém (6) Braga (5), Porto (3) e Coimbra (3); as restantes academias aparecem distribuídas por cidades de norte a sul do país.
[20]  Na p. 433, a autora apresenta um quadro analítico global do movimento de criação destas academias.
[21]  O que se concretizou na obrigação da escolha de um nome arcádico para todos os seus membros. Por exemplo, o poeta Cruz e Silva adoptou o nome de Elpino Nonacriense e Correia Garção o de Coridon Erimanteo.
[22] Animada pelo 2º Duque de Lafões e pelo Abade Correia da Serra.
[23]  ANTT, IGP, Secretarias, livro 3, ofício datado de 3/12/1792.
[24]  No absolutismo, os actos e deliberações do poder revestiam-se de segredo que só se desocultava quando ga-nhavam eficácia, tornando-se públicos unicamente a posteriori.
[25]  ANTT, IGP, Secretarias, livro 5, ofício datado de 1/10/1797.
[26]  Esclareço que a partir deste parágrafo até ao final do ponto 3, o texto  (de 3 §) é da minha total responsabilidade, já não tendo como referência  a autora e obra citada.
[27]  Isto é, que sabia ler, o que constituiria uma muito magra percentagem dos portugueses de então: os privilegiados (nobreza e clero) e a classe média de burocratas, bacharéis, oficiais militares e burgueses de diferentes proveniências económicas e formação diversa.
[28]  História da Imprensa Periódica Portuguesa, 2.ª ed., pp. 69-98.
[29]  Dei pessoalmente conta dos termos usados por Miguel Pereira Forjaz e por Beresford pela leitura de documentos realizada numa pesquisa em curso no Arquivo Histórico Militar sobre a deserção no período das invasões Francesas/Guerra Peninsular.
[30]  E também no Brasil, quando Getúlio Vargas assume o poder, denominando o regime ditatorial instaurado de «estado novo» -  ou "o nosso pequeno fascismo tupinambá" na expressão do escritor Graciliano Ramos, que sofreu bem nas suas prisões, conforme descreve no livro Memorias do Cárcere.
[31]  Neste ponto chamo a atenção para o livro Televisão: um perigo para a democracia de Karl Popper e John Condry. Nele afirma Popper:  «A democracia consiste em submeter o poder político a um controlo… Numa democracia não deveria haver nenhum poder político incontrolado. Ora, a televisão tornou-se hoje… um poder colossal; podemos mesmo dizer que é potencialmente o mais importante de todos, como se tivesse substituído a voz de Deus… Nenhuma democracia pode sobreviver se não pusermos cobro a esta omnipotência». E o livro data do início da década de 90 do século passado…  De relevar ainda o fenómeno da perda de importância dos temas políticos nos telejornais e dos programas de debate, conjugado para com o aumento da sua presença nos programas de entretenimento, de que resulta a progressiva transformação dos cidadãos em meros espectadores e a perda de importância do debate político. As últimas eleições presidenciais exemplificam já este fenómeno…

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