O FILÓSOFO E A SUA SOMBRA
Crítica da Razão Consensual
Este ensaio
é uma continuação da crítica de um pensamento que ambiciona a hegemonia de todo
o pensar, seja valorizando determinadas ideias e excluindo outras, seja impondo
uma ideologia – o neo-liberalismo – que se apresenta como uma visão geral do
mundo, racional, realista, pragmática, não permitindo alternativas. Desde
centros académicos de renome até aos media, desde os discursos de governantes
até aos comentadores de serviço, desde os Tratados de alcance mundial até aos
documentos que realmente orientam a atual União Europeia, há mais de três
dezenas de anos que o mundo ocidental imperialista vem difundindo e impondo um
consenso com tantos e tais poderosos meios que consigam desacreditar uma oposta
visão do mundo e da vida mais racional, mais justa e mais humanista. Contudo,
não conseguiram nem conseguirão, apesar da enorme desproporção de meios e de
forças. É a própria via, isto é, a própria realidade, que vai minando a
hegemonia absoluta e demonstrando a irracionalidade que esse consenso universal
transporta. De facto, do que se trata é de uma ideologia, de uma modalidade de
pensamento, que revela e veicula com clareza bastante os interesses de domínio
de uma classe social. O que tem de ser feito e o que há suceder mais tarde ou
mais cedo é a derrota deste consenso imposto pela força, pela chantagem e pela
mentira. Não para substitui-lo por outro pensamento único, mas para converter a
igualdade e a liberdade na condição básica do viver, no modo adequado e racional do Todo se exprimir através das suas partes.
É nestes
termos inabituais e até insólitos para algumas correntes filosóficas
contemporâneas que apresento em seguida uma exposição das ideias de Bento
Espinosa da maneira como foram rececionadas e interpretadas por um abade
filósofo do século dezoito, Dom Deschamps, e, em um outro ensaio que, espero,
se seguirá, pelos filósofos materialistas das Luzes.
A
atualidade do pensamento de Espinosa, filho de portugueses e que falava a nossa
língua, só não é flagrante para o tal pensamento único imperialista. A sua
influência foi porventura mais profunda e duradoira do que qualquer filósofo da
Modernidade: verifica-se na filosofia inglesa – desde logo em J. Locke –
percorreu toda variegada filosofia das Luzes, emergiu na filosofia alemã
(incluindo escritores da envergadura de Goethe e de Schiller), com destaque
para F.-W. Hegel, o qual, por sua vez, marcou profundamente K. Marx, e
renovou-se no século passado com importantes estudos de G. Deleuze, entre
outros.
Esta
exposição constitui uma pequena parte da minha Tese de Doutoramento.
Dom
Deschamps : o filósofo e a sua sombra
«Não
é senão porque eu sou no fundo a verdade que ei-la desenvolvida, e não é senão
porque os meus semelhantes são-no tanto como eu, que aqueles, entre eles, capazes
de me ler e de me entender dirão depois de me haverem lido, e compreendido, é
ela, a coisa é evidente.»[1]
Introdução
Léger-Marie
Deschamps (1716-1774) foi um filósofo de origem francesa que interveio no
movimento cultural das Luzes com excepcional originalidade. Era membro
da ordem dos beneditinos. Na nossa tese de obtenção do grau de mestre, em 1997,
explanamos com largueza bastante o percurso intelectual de dom Deschamps,
membro de uma ordem regular poderosa ao tempo mas da qual não recebeu nunca
quaisquer benesses. Viveu metade da sua vida numa minúscula e esquecida abadia
da região de Poitiers, não muito distante do lugar onde nasceu René Descartes.
Ficou obscuro pela mediocridade das funções que exerceu em plena província, pelo
facto do seu sistema filosófico nunca ter sido publicado e, provavelmente,
ficaria de qualquer maneira marginalizado pela singularidade
extraordinariamente ousada do seu projecto. O estilo de redacção de dom
Deschamps é bastante duro, muito longe da mestria e modernidade de um Rousseau
ou de um Diderot. Apesar disso, lê-se hoje com menos dificuldade do que se lê o
discurso do então célebre barão d’Holbach e, menos ainda, do que a generalidade
dos escritos panfletários que abundantemente se publicavam na altura. A seguir
à sua morte ficou rapidamente remetido ao esquecimento; contudo, não foi uma
figura ignorada no seu tempo.
Tendo procurado as
luzes, permaneceu na sombra. No entanto, outros mais fizeram as sombras desse
século e desse movimento reformador que uma interpretação unilateral
classificou em bloco como utilitarista e anti-metafísico; mas foi certamente um
movimento que se julgou a si mesmo iluminado por uma Razão transparente que
anunciava uma Era de progressos ilimitados. Foi seguramente uma época de
conflitos e contrastes, de intensas batalhas ideológicas que exprimiam também
contraditórios interesses económicos e políticos que iriam confrontar-se
violentamente na última década do século. Foi certamente um Movimento de
sombras e contrastes, encruzilhadas e ciladas, debates semiclandestinos em
salões privados, nos cafés mundanos, de campanhas persecutórias, de espiões e
esbirros, de delatores e funcionários corruptos, de prisões sem culpa formada e
deportações apoiadas em simples calúnias.
A expressão «sombras» que utilizamos é aqui largamente
polissémica. Em primeiro lugar exprime a escassa divulgação e popularidade da
obra de dom Deschamps (apenas publicou dois opúsculos que obtiveram um muito
fraco acolhimento); em segundo lugar, exprime a posição ambivalente de
Deschamps relativamente ao Movimento das Luzes (alguns contemporâneos
tomaram-no simplesmente como um conservador); em terceiro lugar, exprime a presença disfarçada de Espinosa na
elaboração do seu pensamento.
Iremos demonstrar nesta dissertação que um beneditino, cuja obra foi
descoberta somente um século depois, que criou uma seita de iluminados que
pretendia rivalizar com os mações, teve uma intuição brilhante nos anos
cinquenta. Munido dessa intuição atreveu-se a substituir, integrando e
superando, todos os sistemas e todas as correntes de pensamento do seu tempo e,
por meio de um projecto utópico surpreendente, atreveu-se a solucionar todos os
problemas sociais e políticos de vez. Isto é, o sistema de dom Deschamps
ambiciona resolver e completar os destinos da Filosofia e da História.
Pretendeu, em primeiro lugar, fornecer ao conceito de Todo ou
Totalidade, que é uma noção nuclear das filosofias, uma nova formulação,
denunciando e resolvendo contradições em que outros filósofos, segundo ele, se
enredavam. O termo tout, ou grand tout, era recorrente nas
diversas correntes que compunham o Movimento das Luzes.
Com a chave de uma dialéctica
insólita mas que poderia vir a ser inovadora, dom Deschamps desafiava os seus
contemporâneos a admitir, por via rigorosamente lógica e até gramatical, uma
ideia não antropomórfica de Deus, uma concepção naturalista que harmonizasse o
homem com a natureza, em que a morte não fosse uma tragédia mas uma necessidade
da ordem natural das coisas, de uma ordem que ignora todo o bem e todo o mal.
Alcançada a Verdade, abria-se a possibilidade de uma existência individual e
colectiva permanentemente feliz. Ou seja: se desejarmos optar por uma forma de
existência radicalmente diferente – mais autêntica- necessitamos primeiramente
de modificar a perspectiva pela qual encaramos o mundo e a vida; dessa
nova perspectiva resulta uma outra atitude existencial. Este é conteúdo do seu
sistema. Por isso o designou de A Verdade, ou o Verdadeiro Sistema. É um
sistema eminentemente ético.
Em segundo lugar, atribuía, por
conseguinte, a tudo que existe uma ordem, um acordo interno e imanente entre
todos os seres, desde o homem a tudo mais, sem graus fixos de valor e de
hierarquia. O homem é um modo de ser da natureza, uma parte do todo universal.
A morte, por exemplo, não equivale ao nada absoluto ou ao grau zero da
existência, mas àquilo que ele chama “o menos da vida”.
Todas as coisas existem, entre o “mais” e o
“menos”, como modificações internas de um Ser constituído por uma profunda
contradição: é simultaneamente o todo material actual, positivo,
perfeito e pleno de realidade física, movendo-se na duração temporal e no
espaço, ou seja o universo ou natureza, e é o infinito, a eternidade, o
indeterminado, o nada.
Um ser, substância ou todo,
contraditório. Este é o núcleo duro do seu sistema. E porque o início explica o
fim, o Autor move-se em círculos concêntricos. Os muitos cadernos insistem,
repetem, regressam ao ponto de partida. Não se tratava de uma patológica obsessão,
mas de esclarecimentos incansavelmente retomados em relação à matriz do
sistema, a qual, a bem dizer, não sofreria modificações de relevo desde os anos
iniciais em que foi elaborado. O Verdadeiro Sistema, assim denominado,
foi a matriz, tudo o mais são registos de diálogos, textos que pretendia
publicar para preparar a edição principal, explicações a ilustres hóspedes do
seu amigo Marquês de Voyer, que residia nas proximidades da abadia de
Montreuil-Bellay, correspondência... As dificuldades de recepção que encontrava
nos seus interlocutores, obrigavam-no a repetir-se. Ele próprio queixa-se
disso, e manifesta alguma arrogância intelectual. O que é evidente para ele,
deveria sê-lo para todos os outros. A exposição, repetitiva, identifica-se,
porém, com uma exposição didáctica, no sentido do mestre que ensina e ilumina,
embora por vezes denuncie pouca paciência. Para nós, que expomos o seu sistema,
é muito difícil evitarmos a repetição, a ameaça do movimento em círculos vai
perseguir-nos seguramente.
Que sistema filosófico é esse? É um sistema aparentemente niilista,
relativista nos valores e manifestamente aberto à existência do Nada, que
impressionou os seus interlocutores, construído sobre a fórmula contraditória
de um Deus simultaneamente positivo e negativo, que parece ter sido bebido nas teologias negativas. No entanto, esse
Deus é apenas o mesmo nome com que ele designa uma coisa bem diferente: a
Natureza. Neste esforço julgava haver transcendido os conflitos das filosofias
e das ideologias políticas, mostrando como ora se afastavam, ora se aproximavam
mais daqueles princípios que solucionavam o enigma da Existência.
Julgava ele estar na posse da única filosofia genuína e absolutamente
metafísica, pois que a teologia cristã não a possuía afinal, nem os deísmos e
ateísmos que a esta se opunham. Um sistema de todos os sistemas, um dispositivo
inclassificável de uma supra-metafísica, de um meta-discurso.
Num século onde as metafísicas
estavam sendo alvo de ataques, do desprezo ou do silêncio de determinadas
elites, também ele não as defendeu, tal qual eram, dando-nos, porém, um
sistema, um dos mais metafísicos que se conhece, sobre o ser e o não-ser, que
parece propor um regresso às origens da filosofia ocidental (todavia, Hegel irá
retomá-lo). Crítico das correntes que abandonavam a metafísica, crítico do
sensualismo e do empirismo, mas inclusivamente dos mais importantes expoentes
das filosofias materialistas do seu século, integrou a metafísica como um
“momento” do seu Sistema, isto é não lhe concedeu o plano supremo. Encarar
metafisicamente os seres era entendê-los na reunião de um Todo material; porém,
o pensar não terminava aí.
Tentou superar as filosofias da
natureza em voga no seu tempo. Fique claro que o termo «natureza» exprime
aquilo que se quiser, ou aquilo que se descreve conforme um determinado ponto
de vista. Não lidavam então, nem ainda lidamos nós, com um referente unívoco,
objectivo, exterior, cuja realidade se refecte no pensamento. Encontrava-se em
pleno desenvolvimento uma atitude e uma concepção que se caracterizava por
separar o pensamento desse Objecto, tratando a natureza como a «Coisa» externa
que se podia conhecer e manipular por meio da técnica, subordinando-a aos fins
humanos. De modo muito claro dom Deschamps opunha-se a esta fractura e a esta
dominação, colocando os homens mais ao serviço da natureza do que o seu
contrário. Ou seja, a natureza humana coincidia com a Natureza, e tudo que
desta nos apartasse significa infelicidade. A civilização, por conseguinte, era
um mal necessário (Melhor dizendo: havia sido), que se deveria e poderia abolir
bastando para tanto que os homens optassem. O campo era bem melhor, e um
campesinato idealizado projectava-se como um ideal utópico. Uma espécie de
ecologia radical.
Distinguiu na especulação filosófica dois andamentos: por um lado, a
formulação do conceito de O Todo( Le Tout), a soma de tudo que é
realidade sensível e natural, e, por outro, a formulação de um conceito que se
apresenta como absolutamente contrário do primeiro: Tudo (Tout), que
equivale ao Nada. Este desdobramento do pensar especulativo em
dois momentos – tese/antítese- propõe-se como uma supra-metafísica
verdadeiramente original e ousada. Estranha aos figurinos da época. Embora não
o haja formulado assim, era como se o Autor ultrapassasse os limites da
metafísica para se alcandorar a uma ontologia. Uma metafísica do Todo e uma
ontologia terminal do Tudo.
Crítico tanto das religiões reveladas como das
doutrinas deístas e liberais, integrou todas as crenças, superando-as pela
revelação de uma moral sem normas, de um Deus-Existência que equivale ao Nada,
de uma Lei (natural) sem leis (humanas), de uma Felicidade gerada pela mais
extrema igualdade. A Contradição do Ser conduzia à conclusão da mais cerrada
Identidade. Um filósofo que se posicionava, de uma maneira extraordinariamente
moderna, para além de todo o Bem e de
todo o Mal.
Um dos eixos desta dissertação é demonstrar que dom Deschamps foi
profundamente tocado pelas ideias de Espinosa,
muito embora sob a forma, então corrente, de um espinosismo esquartejado por citações de segunda e terceira mão,
interpretado, contaminado pela sátira, pela calúnia, pelo silêncio temeroso.
Não foi Descartes, Malebranche ou Leibniz, Rousseau, d’Holbach, Diderot, ou
qualquer outro seu contemporâneo, que lhe permitiu a revelação, a intuição
original, nem foi, muito menos, a escolástica dos teólogos. Confrontou-se com
quase todos. Opôs-se também a Espinosa ou àquele espinosismo que circulava em
França, mas foi do autor da expressão Deus sive natura, do
criador da fórmula natura naturans/natura naturata, que ele mais
se aproximou. Daí a razão do título que demos a esta dissertação: Dom
Deschamps, o filósofo e a sua sombra. Quizémos sugerir, desde logo,
a presença denegada, e, por isso, bem mais visível, do genial autor da ÉTICA,
filho de judeus portugueses. Negou-o? Recusou-o? Sim, certamente, redigindo até
uma importante refutação, mas outro tanto fez com todos os demais, e
neste, em particular, o “filho” precisou de “matar o Pai”. E isto não apenas
por causa dos perigos que resultavam necessariamente de um parentesco com
Espinosa, porque, se assim fosse, não se compreenderia a ousadia do projecto
revolucionário de Deschamps. A sua utopia social era bem mais ousada que o
projecto político de Espinosa. A acusação de que foi alvo incomodava-o
sobretudo por ser acusado de discípulo de um filósofo que ele considerava
incongruente, inconsequente, e ser remetido ao mero estatuto de “seguidor”. Não
o satisfazia, sobretudo, a falta de uma moral, ou de uma boa moral, em
Espinosa, na opinião dele evidentemente. Tomava como correctas a acusação de
“ateu” que dirigiam a Espinosa, como, de resto, parecia repudiar veementemente
o “ateísmo” de d’Holbach. Porém, apresentou a sua própria teoria como o melhor
e mais perfeito “ateísmo esclarecido”.
Nesse tempo abundava uma literatura clandestina, circulavam panfletos e
opúsculos sobre e contra o espinosismo, por vezes por meio de um hábil disfarce
de concepções que se compreendiam, afinal, bem próximas de Espinosa. Na
verdade, nem aqueles que atacavam Benedito, nem muitos daqueles que
camufladamente o defendiam, conheceram realmente os textos do “príncipe dos
filósofos”, como o qualificou G. Deleuze. Também o próprio Deschamps não se
mostra leitor que dominasse todas as obras daquele. Talvez por isso, e
porque Deschamps constrói uma dialéctica negativa, é que, julgamos nós, o
emérito Professor André Robinet, de Poitiers, descura a influência de Espinosa
no pensador beneditino de Poitou, como se pode ler no seu livro Dom
Deschamps, le maître des maîtres du soupçon, aliás a melhor obra que
se escreveu, paralelamente aos dois Colóquios que desde 1974 se realizaram, em
um dos quais nós mesmos participámos (Léger-Marie Deschamps, un
philosophe entre lumières et l’oubli”, Paris, L’Harmattan, 2001). Dessa
comunicação, mantemos a tese, tal qual a defendemos nessa altura. O grande
sistema pelo qual Deschamps se confrontou com as filosofias do seu tempo, o
grande sistema contra o qual se confrontou, foi o sistema de Espinosa, ou melhor:
aquilo que, em boa verdade, ele tomou injustamente como todo o sistema
de Espinosa.
Pretendemos com esta dissertação
não apenas trazer ao conhecimento um filósofo da envergadura de dom Deschamps,
como, e principalmente, demonstrar que foi um dos mais importantes
neo-espinosistas do século dezoito francês, senão o mais congruente e radical.
Uma época crucial da civilização europeia, que o Movimento das Luzes marcou
indelevelmente.
Esta dissertação é composta por
duas partes: na primeira, expoe-se o sistema filosófico de dom Deschamps,
estabelecendo paralelos com o sistema de Bento Espinosa, sobretudo,
privilegiando a ÉTICA, e com aspectos que julgamos oportunos do pensamento de
algumas figuras marcantes do Movimento das Luzes; na segunda parte, procede-se
à análise do projecto utópico de dom Deschamps, inserindo-se este projecto em
uma reflexão sobre as utopias. O autor desta dissertação está convicto de que
as produções utópicas surgem ligadas a crenças mais ou menos poderosas, fluxos
ideológicos, motivações profundas e mobilizadoras de elites ou de classes e
outros grupos sociais. No contexto histórico do século XVIII e do Movimento das
Luzes, a relevância com que se manifestam as produções utópicas (e falamos
particularmente da sociedade francesa) surgem como expressão própria da crença
no Progresso. O Progresso não se limitava a uma mera esperança, realmente os
coevos observavam em muitos lados e de muitas formas manifestações palpáveis de
progressos nas técnicas, nas ciências, nos bens de consumo. Sendo possível
viver-se melhor, julgavam compreensivelmente que as ideias novas e os novos
meios ao dispor dos homens permitiriam reconstruir o mundo e a vida. Os
romances de viagens eram lidos com muito agrado; era deles que, em muitos
casos, se alimentavam as utopias. Novelas do coração, dramas de família,
diários de viagem, narrativas de lugares exóticos, projectos de reforma social,
crítica de costumes, de toda esta larga variedade de géneros, se despertavam
sentimentos e ideias. Grandes foram nessas áreas Montesquieu, Voltaire,
Rousseau, Diderot, Morelly, Mably...
O reconhecimento público do
sistema de dom Deschamps e o estudo crítico das suas ideias, contribuem, e já
contribuiram, para olharmos para o século das Luzes com outros olhos. Foi, na
verdade, um tempo de luzes e sombras, de contrastes e oposições, de
dissidências e hostilidades inernas a um movimento que, afinal, nunca foi
homogéneo. Já se conhecia bem a atitude “herética” de Rousseau, que se afastou
dos Philosophes e de colaborador da Enciclopédia, e por razões
bem distintas de outros que dela se afastaram por cautelas e temores. Há poucas
décadas atrás surgiu-nos a “emergência intempestiva de dom Deschamps”[2]que
vem tornar mais difícil ainda “a determinação de um curso das coisas e de uma
história das ideias”. Como compaginar um sistema tão absolutamente especulativo
e metafísico com a atitude empirista que parecia triunfar, com o elogio da
experimentação, com a grande física newtoniana, com uma ética liberal que vinha
anunciar uma era de revoluções? Na verdade, o abade Condillac e o matemático
D’Alembert não foram os únicos que entusiasmaram os espíritos progressistas,
também o conseguiram Rousseau, o pré-romântico, Diderot, o barão d’Holbach.
Quem precisamente terá mais marcado o Movimento terão sido os materialistas,
que se esforçavam por construir uma nova ontologia, bem longe dos projectos de
D’Alembert. Enfim, o século das Luzes foi também uma das épocas mais fecundas
em utopias sociais, projectos revolucionários, liberais uns, anti-liberais
outros. O chefe do “Movimento dos Iguais”, G. Babeuf, confessou-se discípulo de
Diderot, julgando-o o verdadeiro autor do Code de la nature, de Morelly.
A revelação da obra de dom
Deschamps contribuiu, e muito, para modificar o rosto do século dezoito,
através de uma “mensagem única da filosofia francesa”.[3]
Deste modo já não não surpreende
agora descobrirmos um abade completamente descrente, que advogava um “ateísmo
esclarecido”, um moralista generoso absolutamente convicto do seu ideário
comunista, para quem a Cultura e a civilização haviam chegado ao seu termo,
para cederem o lugar a uma sociedade onde a cultura, o Estado ea antiga moral,
eram perfeitamente dispensáveis.
Tout e le Tout
desigam o par de opostos que constituem o fundo da existência. Munido desta
fórmula dom Deschamps construiu um sistema notável e singular. A bem dizer
aquilo que o abade ambicionou, foi fortalecer o materialismo com uma nova
ontologia, ou seja, com aqueles “princípios” sem os quais não se poderia
deduzir e sustentar uma moral adequada à condição simultaneamente natural e
social do homem.
Toda a filosofia de Deschamps
explicita e desenvolve uma determinada intuição da existência pura, intuição a
partir da qual forja a ideia do negativo e do positivo, que apresenta como sendo
as nossas únicas ideias inatas. Bastaria este investimento numa determinada
forma de inatismo, para sermos confrontados com um enorme desafio. A evidência
primordial, o centro nuclear do sistema, é a intuição da unicidade fundamental
da realidade, que ele designa, com os dispositivos retóricos do seu tempo, de
“fin fond”.
Pois bem, o desafio que dedidimos
enfrentar foi, não apenas apresentar este autor, mas também demonstrar nele a
presença tutelar de um outro. A “sombra” a que fazemos referência no título, é
realmente o espinosismo.
Denis Diderot, que não ignorava o
espinosismo de modo algum, disse de dom Deschamps o seguinte, com aquele grande
estilo que lhe era peculiar:
«Um monge chamado Dom Deschmps
deu-me a ler uma das obras mais violentas e mais originais que eu conheço.»[4]
Não ignoramos que as metafísicas
de sistema sofreram profunda erosão desde o século XVIII, perdendo
credibilidade e prestígio na comparação com o progresso científico, mais útil,
mais técnico, mais irrefutável (aparentemente). O sistema de dom Deschamps não
escaparia à Crítica kantiana, e David Hume não o teria poupado. Contudo, o
sistema espinosano não apenas escapou e já beneficiou de várias ressurreições,
como marcou de muitos modos o desenvolvimento das filosofias materialistas (ou
naturalistas); e não apenas estas, porque sabemos a fortíssima presença de
Espinosa no pensamento de G. W. F. Hegel. Dom Deschamps está longe de possuir a
envergadura de Espinosa, mas demonstra, por um lado, a influência viva do
espinosismo no interior das filosofias materialistas, bem diversas de resto, e,
por outro, uma solução para o problema do Ser assaz interessante; tão
interessante que ainda hoje é lícito discutir-se se Deschamps foi, ou não, um
precursor de uma nova, e mais moderna portanto, dialéctica do Ser.
Vários outros aspectos do pensamento de dom Deschamps poderiam aqui ser
relevados, mas iremos fazê-lo no decurso desta dissertação. Refiram-se
rapidamente apenas mais dois tópicos: a intuição deveras promissora do que seja
a Ideologia (não somente a sua aparência de erro e ilusão, mas, e é isto que é
essencial, de efeito necessário de relações sociais de desigualdade e
dominação que, deste modo, permanecem ocultas), e a intuição de que a filosofia
é também linguagem, ou um puro
trabalho sobre a linguagem que exprime adequadamente a existência, derivando daí que a verdade do mundo e da vida se
encontre por meio de uma gramática. A
fórmula do mundo aloja-se já nas mais básicas locuções do senso-comum: o sim
e o não.
Biografia de Deschamps
Considerando que dom Deschamps é
um autor quase desconhecido em Portugal, sobretudo pela produção filosófica
nacional, achamos adequado inserir uma biografia, embora tal não seja usual em
dissertações de doutoramento.
Lèger-Marie Deschamps nasceu em 10 de janeiro de 1716, em Rennes,
o quinto de nove irmãos, oriundo de uma família relativamente modesta, que viu
a sua situação de algum desafogo ser atingida gravemente por um terrível
incêndio. Ingressa muito novo na ordem dos beneditinos, abadia de
Saint-Melaine, de Rennes, em 8 de Setembro de 1733, cidade que abandona em
1734. Ignora-se ao certo onde terá recebido formação teológica, provavelmente
nos mosteiros de Touraine e de Anjou, até 1743. Em 1745 o seu nome surge
incluído no pessoal da abadia de Saint-Julien ; antes, transitara pelo vale do
Loire onde se concentravam importantes mosteiros da ordem. Em Tours, colaborou
na elaboração de uma história da região de Touraine. A partir de 1762 é
destacado para o priorado de Montreuil-Bellay, perto de Saumur, na região de
Poitou, nomeado seu procurador. Morre, provavelmente de cirrose, em 19 de abril
de 1774.
Declara o próprio que começou a
elaborar o seu sistema filosófico a partir dos seus 25 anos, tendo-lhe dedicado
os dez anos seguintes. Todavia, tomando como testemunho fidedigno o relato de
dom Patert, seu companheiro de abadia e amigo sincero, O Verdadeiro
Sistema foi resuluado de um trabalho meditado durante mais de trinta anos,
sucessivamente revisto e carescentado com novas explicações. No entanto,
conforme declarações do próprio, o escopo principal – as Observations
métaphysiques e as Observations morales - estaria terminado no
início da década de cinquenta, tendo a obra sofrido posteriormente alterações
de pouca monta. O Verdadeiro Sistema é composto de duas partes: As Observações
metafísicas, e as Observações morais, todos os demais textos foram
redigidos nas duas décadas que levou ainda de vida.
Poucos anos de idade o separavam de Rousseau, Diderot, Helvétius,
d’Holbach. Todos alcançaram em vida uma notoriedade que ele jamais alcançou.
Apesar disso, dom Deschamps não foi em vida um ilustre desconhecido:
correspondeu-se com Helvétius, encontrou-se com Diderot, troucou algumas
missivas com Rousseau, Voltaire, d’Alembert.
Orirundo do povo, o monge que
nunca conquistou cargos importantes, viveu metade da sua vida no pequeno
mosteiro de Montreuil-Bellay, lado a lado com a iséria aflitiva dos camponeses
da região. Fisicamente era um dindivíduo corpulento, de temperamento impulsivo.
A amaizade que nasceu entre ele e o marquês de Voyer mudou de algum modo o
percurso e as ambições. O priemiro encontro verificou-se por volta de 1759. A
sua abadia confinava com as vastas terras dos Argenson. O marquês era filho de
um ministro da guerra de Luís XV e, por altura do primeiro encontro com
Deshamps, já havia feito uma brilhante carreira militar (ilustrou-se na batalha
de Fontenoy em 1745, e ascendera aos elevados cargos de governador real de
Vincennes, governador militar de Poitou, e outros. O marquês, homem culto e
amigo de Philosophes, serviu de intermediário entre Deschamps e alguns
dos mais célebres iluministas. O seu temperamento melancólico, que parecia
sofrer daquele “aborrecimento” existencial de que se queixaram tantos
intelectuais e nobres dessa época, terá seguramente inspirado algumas das
páginas mais visionárias do projecto utópico do seu amigo dom Deschamps, que
extinguiria de vez as condições da infelicidade. Por outro lado, a fama de
libertino não parece haver molestado qualquer escrúpulo moral do monge, o qual,
de resto, parece ter apreciado as mulheres e a bebida.
Dom Deschamps fala com compaixão
sincera em cartas trocadas com o seu amigo marquês, da brual miséria dos
camponesescujas filhas se prostituiam para matar a fome, e que o procuravam
constantemente para lhe solicitar auxílio, pedidos que ele remete
frequentemente para o marquês. A sua utopia social teve eco na personalidade
generosa, e algo atormentada, do grande aristocrata. Um dos seus descendentes
haveria de lançar fogo ao próprio castelo no dealbar da Revolução de 1789, e
protegeria um dos foragidos do decapitado Movimento dos iguais, o carbonário F.
Buonarotti...
Isolado na província, numa
minúscula abadia (com apenas dois abades), Deschamps estaria condenado a uma
vida completamente provinciana e obscura. Não foi o caso, muito embora se
possam atribuir-lhe, por via disso, alguns traços da sua obra e do seu
pensamento. Tem sido motivo de perplexidade que Deschamps haja enveredado pela
metafísica, com vocação de sistema. Não é de excluir a influência do seu modus
vivendi. Em nossa opinião é de relevar tais factos, não apenas pelas
dificuldades que encontrou, ou pela independência de que gozou, mas porque
devem ser tidos em devida conta para a compreensão de uma forte personalidade
que ambicionou afirmar-me num meio relativamente hostil, fora e contra os
grandes centros de cultura e de civilização, crítico da Cidade, dos novos
costumes, tendendo a considerar frívolos os debates de ideias, e inútil tudo
aquilo que respeitamos como Cultura. É legítimo interrogarmo-nos se dom
Deschamps não transfigurou o isolamento e as particularidades provincianas da
sua vida numa disciplina e orientação de pensamento, austero, ascético,
moralizante, numa espécie de ideal de sábio com vocação profética e
evangelizadora. Psicologicamente a sua teimada convicção de haver descoberto a
Verdade única e universal, prender-se-á de algum modo tanto com a sua formação
teológica e as suas meditações solitárias monásticas, como com a imagem que foi
forjando de si mesmo nas frequentes estadias no hospitaleiro castelo dos Ormes,
propriedade de notabilíssimos condes e marqueses de França, que o escutavam com
amizade e admiração. Os seus escritos e os seus comportamentos levam-nos a
conceber um indivíduo que, consciente e decididamente se conduziu como um
filósofo que transportava o significado último da existência, ao arrepio do
filósofo mundano que se populariza então, e que Diderot tão bem soube exprimir.
Até neste ponto a influência de Espinosa, que irei demonstrar, ter-se-á
manifestado. Espinosa legou para a posteridade essa imagem de sábio desprendido
dos bens mundanos. Temos que nos interrogar se nas similitudes com o grande
pensador de Haia, filho de judeus portugueses, não se encontraria a presença
viva de uma forte, mas bem dissimulada admiração.
Os beneditinos da Congregação de
Saint-Maur não eram muito inclinados para metafísicas modernas, na sua formação
pesavam sobretudo Platão e Aristóteles, Descartes estava ainda penetrando ao
tempo da adolescência de Dom Deschamps, na forma redutora conveniente da
escolástica. Espinosa havia sido silenciado pela reforma da ordem encetada por
Dom Lami. O afastamento de Espinosa ter-se-á devido com certeza ao opúsculo
crítico de Dom Lami, de 1696, intitulado Le nouvel athéisme renversé
ou Réfutation du système de Spinoza. É de reter, porque iremos debruçar-nos
sobre um texto de Deschamps de refutação do sistema de Espinosa.
Dom Deschamps foi marcado
profundamente pela sua amizade com o marquês de Voyer d’Argenson. O castelo
deste grande proprietário e grande senhor da corte de Luís XV, situado nas
proximidades da abadia de Montreuil-Bellay, constituía um notável centro da
vida literária da província. Servira de refúgio ao conde de Argenson, antigo
secretário de Estado da Guerra, caído em desgraça em 1757, e amigo dos Philosophes.
Diderot e d’Alembert dedicaram-lhe a Enciclopédia. A biblioteca do
castelo era famosa. A mansão da ilustre família de admirados intelectuais, era
apelidada como Academia dos Ormes.
Não foi com o velho conde que
Deschamps estabeleceu amizade, foi com o filho dele, Marc-René, marquês de
Voyer d’Argenson, distinto oficial militar de carreira que, até 1762, se havia
ilustrado em diversas campanhas militares; tendo alcançado o comando militar da
Alta-Alsácia e o cargo de governador de Vincennes é citado com elogios nas Memórias
de Frederico da Prússia. Homem de grande cultura, como, de resto, era tradição
na família: seu pai e seu tio haviam legado aos contemporâneos escritos de fina
inteligência, inclusivamente sobre Portugal. René, ferido numa campanha
militar, possuía uma personalidade inquieta e angustiada que dir-se-ia
neurótica, e que reflectia bem as perturbações da grande nobreza da sua época,
tocado profundamente pela desgraça política de seu pai, pela atmosfera de
revolta e ressentimento em que fora educado. É legítimo admitir que o projecto
deschampsiano utópico de uma sociedade feliz procurava solucionar também os
conflitos da personalidade do controverso marquês, alvo de maldizeres e
calúnias lançadas contra ela a partir de Paris, com origem nas invejas de uma
nobreza decadente e corrupta.
A correspondência de Deschamps
para o marquês inicia-se em 1763 e por ela vemos a sincera amizade que ligava
os dois homens. E isto é grandemente significativo, pois que a imagem que
fazemos do beneditino, homem grande e obeso, é a de um indivíduo tenaz, ousado,
corajoso, capaz de ímpetos apaixonados, inclinado a comportamentos que roçavam
a violência, implacável com os seus inimigos.
Montreuil-Bellay situava-se na
periferia de uma região na qual o mercado se expandia, e onde surgiam as
primeiras manufacturas. Os contrastes geográficos e económicos acentuavam-se
rapidamente. Os camponeses de Montreuil-Bellay encontravam-se extremamente
empobrecidos, a correspondência de Dom Deschamps relata casos de grande
miséria. Uma ambiência social que influencia enormemente a consciência do
beneditino. De um lado o vale do Loire, rico em belas vinhas, do outro as matas
de Mauges, com uma agricultura de subsistência. Por fim Montreuil que entra em
decadência, perdendo predominância com relação a Mauges, lentamente despovoada,
desprovida de qualquer núcleo burguês, onde vai morrendo a anterior actividade
industrial ligeira (curtumes, entre outras) a jusante do artesanato rural. O próprio comércio de vinhos e aguardentes
que percorria o rio que a atravessava, troca Montreuil por Saumur. A população
rural perde a única escola para os seus filhos, e não possui meios para pagar
os impostos, os rapazes emigram, as raparigas prostituem-se ou demandam os
conventos. Bandos de vagabundos pilham as redondezas. São estas misérias que
chocam profundamente o coração e o espírito de Dom Deschamps. Não se verifica
aqui uma ascensão do capitalismo, com o cortejo das suas misérias, mas, antes,
é a burguesia nascente que abandona Montreuil. Estes factos e uma leitura
atenta da utopia de Dom Deschamps proíbem-nos interpretações redutoras, do
género de que o Autor se opunha ao desenvolvimento do capitalismo, a favor de
um desenvolvimento sustentado nas estruturas senhoriais ou feudais. A utopia de
Deschamps é uma utopia camponesa, que se compreende melhor à luz desta
geografia social, afligida por irresolúveis contradições.
Bibliografia
A explanação e análise das obras
de dom Deschamps justificam-se, não só pelo facto do pouco conhecimento e
estudo de que ele goza entre nós, como pela razão de que o acervo completo das
suas obras somente foi publicado em França há poucos anos atrás. As obras de
dom Deschamps vêm identificadas nas notas reunidas no termo da dissertação, com
as seguintes siglas:
O .Ph. : œuvres Philosophiques, introduction, édition critique et annotation par
Bernard Delhaume, Avant-Propos de André Robinet, 2 tomos, Paris, Librairie
Philosophique J. Vrin,1993. Constitui a primeira edição completa das suas
obras.
La Voix : La Voix de la Raison contre la raison du temps, et particulièrement
contre celle de l’auteur du Système de la Nature, Par Demandes et Par Réponses.
Bruxelas, Georges Frick, 1770.
Em 1863 um académico de nome
Émile Beaussire, professor da Faculdade de Letras de Poitiers, descobriu e
exumou Le Vrai Système, obra composta por diversos cadernos, cuja
autoria se atribuía até então a dom Hugues Mazet, conservador da biblioteca
municipal, em 1792, quando, na verdade, este fora somente o copista, que salvou
a obra do mestre e mentor de uma minúscula seita da qual ele, dom Mazet, era
membro. Esta copia é composta de três tomos, sob o título de La Vérité, ou
le Vrai Système, datada de 1775, sem nome do autor. O tomo I, primeiro caderno, é composto pelos
textos intitulados « Le Mot de l’énigme métaphysique et morale », e,
no segundo caderno, « Précis en quatre thèses du mot de l’énigme
métaphysique et morale », e as « Additions »; o tomo II, ou 3º
caderno, contem « Le Mot de l’énigme métaphysique et morale, appliqué à la
théologie et à la philosophie du temps, par demandes et par réponses ». Os
dois volumes identificados por Beaussire constituíam na realidade apenas uma
parte da obra; a maior parte do que faltava foi descoberta por uma jovem
investigadora russa, quarenta e três anos mais tarde, Elena D. Zajceva (faleceu
em Moscovo em 1967. A sua tradução
do Vrai Système, revista e anotada por L.S.Gordon, foi somente publicada
em 1973, em Moscovo, por Boguslavski, Gordon e Porchenev) – vários cadernos
contendo as Observations métaphysiques, Observations Morales, Le Mot de
l’énigme métaphysique et morale, Préface, Refléxions métaphysiques
préliminaires, Chaîne des vérités dévelopées, Précis en quatre thèses du mot de
l’énigme métaphysique et morale.
Le Vrai
Système compõe-se de seis
cadernos.
De acordo com as pesquisas do
Professor B. Delhaume, podemos ficar certos de que Deschamps teria já
constituído Le Vrai Système aos 45 anos de idade. Depois disso
contactou com várias personalidades de relevo, como já fizémos referência, por
intermédio do marquês de Voyer, com a intenção de tactear as possibilidades de
publicação, sem sucesso porém.
Apenas uma parte da
correspondência está publicada nas Oeuvres Philosophiques. O Professor
da Universidade de Poitiers, Bernard Delhaume, já anunciou a publicação de toda
a correspondência para breve.
O Prefácio de O
Verdadeiro Sistema, foi corrigido depois de 1770, pois regista uma crítica
ao Système de la Nature, de d’Holbach, publicado em 1770, sob o nome de
Mirabaud.
Em 1771 uma descendente dos
Argenson, descobriu no castelo dos Ormes, uma obra intitulada La vérité
tirée du fond du puits, que veio a confirmar-se rapidamente ser de dom
Deschamps, que se encontra publicada nas Obras Filosóficas. B. Delhaume
mostra-se convencido de que este texto representa a forma prospectiva pela qual
Deschamps desejava sondar os seus eventuais leitores, para, em seguida,
transmitir a doutrina de O Verdadeiro Sistema.
Por conseguinte, dom Deschamps
pôde publicar apenas dois opúsculos, mas jamais O Verdadeiro Sistema, o
qual chegou ao conhecimento de um público muito restrito somente em plena
segunda metade do século XIX. Esta edição, a edição de E. Beaussire, é fiel aos
manuscritos, mas a introdução que deles faz é extremamente crítica. E.
Beaussire era um académico profundamente anti-hegeliano, e viu no sistema de
dom Deschamps um “antecedente” francês do hegelianismo, um precursor da
dialéctica do filósofo de Berlim, assunto a que iremos voltar com mais demora.
Foi, portanto, o hegelianismo que encontra e que o incomoda, e não Espinosa ou
o espinosismo.
Dom Deschamps redigiu um texto com o qual pretendeu afastar as suspeições
sobre um eventual compromisso com o espinosismo; na verdade fez quatro versões
dessa Réfutation courte et simple du système de Spinoza, que enviou ao
seu amigo marquês entre Março e Julho de 1766:«Songez que c’est à vous que je
dois l’idée de cette Réfutation, et que cette idée est la lus exquise
qui pût m’être suggérée pour faire tomber les armes des mains de tout croyant,
et pour donner aux mécréants ce qui leur manquait, la vraie raison de l’être,
ou, plutôt, pour les préparer à cette raison.»[5]
Rousseau, d’Alembert e outros
mais haviam encontrado o espinosismo nas peças do Système que Deschamps
lhes havia mostrado. A carta parece indicar que o próprio marquês necessitava
dessa refutação para aderir com mais confiança às ideias do monge. Refutar
Espinosa, ou sjea, o espinosismo, constituía para Deschamps, a partir de certa
altura (anos 66?) uma atitude indispensável e urgente para seduzir de todo o
seu amigo, os ilustres convivas que se hospedavam regularmente no castelo dos
Ormes, e desbravar caminho para a publicação da obra de uma vida.
Advertência
Optámos por dividir a nossa
exposição em duas partes. Na Parte I expomos a ontologia do sistema, na Parte
II procedemos à análise do seu projecto de uma utopia social. Na medida em que
o sistema é fechado, circular e consequente, não pudémos evitar realizar
algumas incursões nas ideias expostas na Parte II. Um dos eixos desta
dissertação – a presença tutelar do espinosismo- é explicitada principalmente
na Parte I. O mesmo sucede com a segunda intenção que foi colocar à reflexão o
problema do(s) materialismo(s) no século XVIII, século das Luzes, a apartir das
teses materialistas de dom Deschamps. Na medida em que os mais importantes
materialistas da época não ignoraram de modo algum o monismo espinosista, que
até teriam feito inflectir o espinosismo em direcção a um materialismo (os
“espinosistas modernos”, na famosa qualificação de Diderot) conforme o julgam
alguns intérpretes, julgamos nós que se justifica a relativamente extensa
análise da heterogeneidade de tal corrente filosófica, sem subtrairmos a
hipótese de existir nela um denominador comum.
O Verdadeiro Sistema
Parte I
Capítulo 1 – A Existência pura
Introdução
Numa época em que a vanguarda do pensamento
e da cultura se orientava para a experiência, para a observação dos fenómenos
naturais, para as ciências particulares, a linguagem e o corpo das ideias de
dom Deschamps apresenta-se como um acontecimento aparentemente retrógrado. Que
novidade poderia oferecer um sistema declaradamente fechado e definitivo, pelo
qual tudo ficava dito e depois do qual nada mais haveria para investigar?
No entanto, iremos verificar que o seu sistema não fora o último nem o
único na década de sessenta do século XVIII, embora haja sido o mais singular e
ousado.
É entre os Philosophes que Deschamps encontrará resistências
incontornáveis. O seu conceito de natureza, por exemplo, apresenta-se demasiado abstracto, generalista, quase a
contra-corrente, aos olhos dos seus contemporâneos, que já davam passos na
análise empírica e experimental. As especulações de Deschamps não suscitam
interesse num d’Alembert por exemplo, e Voltaire manifesta uma recepção algo
irónica e desprendida.
Dom Deschamps foi um metafísico
de sistema. Buscou um princípio, ou fundamento, e dele deduziu uma série lógica
de consequências.
O corpo principal das suas teses constitui o que ele intitulou La
Vérité, ou Le Vrai Système. O O programa anuncia-se desde logo no
título do primeiro caderno: a revelação de Le Mot de l’Énigme Métaphysique
et Morale.
Devemos, por conseguinte, iniciar
a nossa exposição pela definição primeira, pelo axioma fundamental na
organização do sistema.
Os termos designam-se por O Todo (Le Tout) e Tudo (Tout).
Tout e Le Tout são
os princípios do Ser e do pensar. Par de opostos, compõem o plano metafísico da
noção nuclear de Existência ( Existence). Le Tout é o Uno, a
Unidade, ser universal que une os entes e as coisas; é composto por “partes”,
isto é, particularidades finitas que ele classifica como nuances ou modificações
do todo. É o domínio da pura relatividade do devir. É o reino da relação
entre partes. Pelo contrário, Tout é a negação das relações e, portanto,
do devir. É assim que ele o classifica de Existência “em si”. Sem a negação não
haveria a firmação de Le Tout, que é a Natureza.
Para Deschamps existe apenas uma e somente uma substância: a Existência.
Pode ser apreendida sob o seu aspecto positivo. que é Le Tout, ou sob a
seu aspecto negativo, a que ele chama Tout. Muito embora ele fale em
dois seres, noutras fala num só. Porque então critica Espinosa, como iremos
verificar?
Escreve Espinosa: « Entendo por
substância o que existe em si e é concebido por si, isto é, aquilo cujo
conceito não carece do conceito de outra coisa pelo qual deva ser formado.»[6]
Numa primeira abordagem, esta definição não é respeitada por dom
Deschamps: «Tout, que de modo nenhum fala de partes, existe e é
inseparável de Le Tout universal, que fala de partes, e do qual ele é a
afirmação e a negação simultaneamente. Tout e Le Tout são os dois
nomes do enigma da Existência, nomes que o grito da verdade distinguiu
colocando-as na nossa linguagem.»[7]
Há que optar: ou a substância, em
rigor, apenas se aplica à Existência, ou ele admite duas.
«entendo por Tout, a existência em si, a existência por ela
mesma, isto é a existência considerada como fazendo um só e mesmo ser que não
se distingue mais então dos seres, como sendo o ser único, e,
consequentemente, sem relação, ou, como já o disse, sem existência por meio de
outra coisa senão por ela mesma. »[8]
A definição de Tout corresponde, nestes termos, à definição
clássica e rigorosa de substância, ou causa sui: aquilo que é em-si, sem
necessitar de outra coisa (ou substância) para existir. Neste sentido, equivale
à definição filosófica e teológica de Deus. Contudo, o problema situa-se entre
Descartes e Espinosa: o primeiro, como se sabe, recorre à ambiguidade, isto é,
à concepção “operatória” de duas, se não mesmo de três, substâncias: res
cogitans, res extensa, e a substância divina, dotada esta de
atributos especiais. Espinosa, garantidamente contra Descartes, afirma a
unicidade da substância. Uma única substância, porém, dotada de dois atributos
essenciais, entre outros: Pensamento e Extensão.
Parece, por conseguinte, que a única substância, para Deschamps, é a Existência,
que ele designa também por Tout : “Tout, ou o ser único”[9]
Entretanto, Le Tout é o “princípio », como ele
escreve : “De Le Tout, que é o princípio”[10]
Impõe-se, portanto, uma definição adequada e uma interpretação que
sobreleve outras. Dom Deschamps mostra conhecer muito bem a problemática que
envolve a definição de Substância. Malebranche era bem conhecido na ordem dos
beneditinos, o cartesianismo seguramente, Espinosa, em segunda mão pelo menos,
ou seja, já refutado. À sua maneira, com originalidade, encontra uma nova
solução: a tese dos “dois contrários”, dos “dois últimos extremos possíveis”. A
tese dos “dois pontos de vista”. O que seria para Espinosa a natura naturata,
é para ele Le Tout. Sendo contrários entre si, Le Tout e Tout,
tal solução “escapa” às “dificuldades” de Espinosa. Julgava ele.
Que entende Espinosa por
substância?
«Entendo por substância o que existe em si
e é concebido por si, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de
outra coisa pelo qual deva ser formado.»[11]
E por atributo?
«Entendo por atributo o que o
entendimento percebe da substância como constituindo a essência dela.»[12]
Não existe qualquer ambiguidade na exposição e na argumentação de
Espinosa: Não há duas substâncias com o mesmo atributo; não há duas ou mais
substâncias com atributos diferentes; um ser absolutamente infinito deve ser
necessariamente definido como um ser que é constituído por uma infinidade de
atributos, cada um dos quais exprime determinada essência eterna e infinita.
A nosso ver, a
inspiração mais fecunda vem do espinosismo. Apesar da fórmula dos contrários,
assumida como eixo fundamental do sistema.
Exposta assim
resumidamente a questão essencial, isto é, o problema da substância, erguem-se
numerosas interrogações. Deschamps atacou-as de frente, fosse por meio de
interlocutores, fosse por um notável esforço de exposição argumentativa. O
Verdadeiro Sistema contém as teses e os seus desenvolvimentos e
explicações, mas outros longos textos mais tardios apontam para a mesma
direcção, sem quebras e sem revisões de fundo: definir o conceito de totalidade
e deduzir as consequências. Às vezes com muita repetição, quase em círculo,
pois que, de certo modo, um sistema assim é comparável a um círculo.
Os cadernos
principais que consubstanciam o corpo e o cerne das suas ideias, intitulam-se La
Vérité, ou Le Vrai Système, o Tomo I – Le Mot de l’énigme métaphysique
et morale ; Epître à mês semblables les hommes ; Préface;
Réflexions métaphysiques préliminaires ; Chaîne des
vérités développées ; Précis en quatre thèses du mot de l’énigme
métaphysique et morale ; Additions à l’appui de ce qui précède.
O Tomo II – Le Mot de l’énigme métaphysique et moarale, appliqué à la
théologie et à la philosophie du temps, par demandes et par réponses.
O Tomo III –Observations morales . O Tomo IV – Observations
métaphysiques. O Tomo V – Tentatives sur quesques-uns de nos
philosophes, au sujet de la Vérité.
Deste modo, o essencial está contido nas Observações
metafísicas e nas Observações morais, sendo que estas contêm,
sobretudo, a solução utópica dos problemas existenciais dos homens.
No Prefácio, Deschamps alerta, desde logo, para que não o
confundam com as “nossas semi-luzes filosóficas, tão justamente encaradas como
perigosas, (porque) destroem sem estabelecer”, enquanto que a verdade do seu
sistema “estabelece incontestavelmente”.
Não basta a crítica destrutiva, pois esta é o que faz a
“filosofia reinante”, isto é, a filosofia das luzes na sua vertente mais
violentamente anticlerical, que ameaça conduzir-nos para uma “revolução”,
sempre a evitar como tão perigosa como inútil, pois “não impedirá o estado de
leis divinas e humanas de subsistir, e o mal moral, do qual este estado é a
causa, de existir com a mesma força, embora sob outros disfarces” [13]
O ateismo só tem de comum com O Verdadeiro Sistema,
o facto de rejeitarem ambos a religião, porém existe uma extrema diferença:” é
que O Verdadeiro Sistema ao negar a moral do teísmo afirma a metafísica,
donde extrai uma moral, enquanto que o ateísmo, porque não conhece princípio
algum, nega um e outra, e deixa-nos com uma moral arbitrária”.[14]
Porque a metafísica tem por objecto considerar os seres
“em grande, em geral, em total; considerá-los naquilo que eles possuem todos de
rigorosamente comum”[15].
Por conseguinte, Deschamps é rigorosamente um metafísico
de sistema, e procede em conformidade: buscou e encontrou um fundamento,
ou de acordo com as suas palavras: o fin fond da existência.
Na medida em que Deschamps organizou o seu sistema numa
intensa atmosfera espinosista, achamos adequado descrever essa atmosfera.
Afinal de contas, aquilo que pretendemos demonstrar é precisamente a presença
do espinosismo em dom Deschamps, muito embora não exclusivamente.
1. 1. O espinosismo no Século XVIII
Ninguém escapa incólume a mais de cinquenta anos de censuras, torções,
perseguição dos seus escritos, aleivosias sobre a sua vida e personalidade.
Nada adiantaríamos de novo se disséssemos que Espinosa sofreu de tudo em vida e
depois de morto. Muito poucos ombreiam com ele nessas histórias negras de que é
feita a história das ideias.
Quando dom Deschamps declara haver terminado o seu sistema, à entrada da
década de sessenta, já o próprio cartesianismo claudicava como fonte
inspiradora dos seus contemporâneos. Sem esta crise das metafísicas, é mais
difícil interpretar as ideias de dom Deschamps.
Os mais célebres Philosophes,
Voltaire, d’Alembert, Diderot, d’Holbach, haviam lido Espinosa. Todos eles
reagiram, de uma maneira ou doutra, ao ousado sistema do filho de portugueses.
O espinosismo, mal lido e
compreendido o mais das vezes, é instrumentalizado na luta contra o pensamento
mais conservador, e banido por este. Manuscritos clandestinos, bibliotecas
discretas, reuniões conspirativas contra a Igreja instalada no poder, tudo
serve, e o espinosismo é útil para o mais cerrado combate ao clericalismo.
«Espinosista, s.m. (Gram.),
partidário da filosofia de Espinosa. Convém não confundir os espinosistas
antigos com os espinosistas modernos. O princípio geral destes, é que a
matéria é sensível, o que eles demonstram pelo desenvolvimento do ovo, corpo
inerte, que, unicamente devido ao calor graduado, passa ao estado de ser
sensível e vivo, e pelo crescimento de tudo que é animal que, no seu princípio,
é apenas um ponto, e que, pela assimilação nutritiva das plantas, numa palavra,
de todas as substâncias que servem à nutrição, torna-se um grande corpo
sensível e vivo em um grande espaço. Desse facto concluem que somente existe a
matéria,e que ela basta para tudo explicar; no resto, seguem o antigo
espinosismo em todas as suas concequências.»[16]
Diderot, autor desta citação, por
um lado aceita sem reservas a ÉTICA, nas suas consequências, que são de monta,
e inseparáveis dos postulados, axiomas e definições, por outro, satiriza um
certo espinosismo no Jacques, le Fataliste. Terá lido na íntegra a ÉTICA,
e no original? Os especialistas duvidam profundamente. Julgamos nós que Diderot
satiriza, ou aponta-lhe os excessos, o fatalismo de d’Holbach, isto é, o
modo como este utiliza a herança espinosista. Mas esta sátira parece claudicar,
nas últimas palavras sentidas e elogiosas proferidas por Jacques relativamente
ao seu capitão fatalista...O melhor seria, segundo Diderot, actualizar Espinosa
com um novo vitalismo. O exemplo do “ovo”, que exprime o problema científico
capital, é elucidativo : trata-se da questão essencial, isto é, da criação, do
aparecimento da vida, da emergência do novo, qualitativamente novo, da
capacidade criadoramente fecunda da natureza. E isto remete-nos para as
apregoadas “dificuldades” do sistema de Espinosa, aparentes ou reais. Escutam-se
aqui os ecos da famosa crítica de Pierre Bayle, enviesada, ao sistema de
Espinosa: depois de haver caracterizado Espinosa como “um ateu de sistema”,
considera que não é nessária uma longa e complicada disputa com ele, porque
basta “refutar a proposição que está na base do seu sistema...:saber que Deus é
a única substância que existe no universo, e que todas as outras são
modificações desta substância»,« uma suposição tão estranha, que ela desloca a
maior parte das noções comuns que servem de regra nas discussões
filosóficas;...é a mais monstruosa hipótese que se possa imaginar, a mais
absurda e a mais diametralmente oposta às noções mais evidentes do nosso
espírito».[17]
Não é um dado adquirido que Bayle haja lido
Espinosa na totalidade, e sobram dúvidas sobre a interpretação de algumas das
suas teses. Retomaremos o célebre artigo de P. Bayle em altura que nos parece
mais oportuna.
A ideia, por exemplo, de que a
filosofia de Espinosa se assemelhava ao pensamento oriental, ou do extremo
oriente, seguira o seu caminho sem ninguém que se opusesse, o que é
verdadeiramente surpreendente e coloca a um historiador da filosofia graves
suspeitas sobre os modos como se fabricam os legados e os putativos herdeiros.
Desde Bayle e Malebranche, a Fénelon e ao Padre
Tournemine, mestre de Voltaire. Descobrir coincidências genéricas é uma coisa,
afirmar filiações é outra bem diversa.
À mistura com o pensamento
científico que tenta abrir caminho, sopram os ventos a favor de modas, de
mistérios, de superstições eruditas, de hilozoísmos antigos, de Giordano Bruno
e Campanella restaurados, de filosofias orientais, de Cabala. Na profusão dos
escritos mais medíocres ou mais ilustrados, Espinosa transforma-se numa espécie
de prêt-à-porter, que, quanto mais se utiliza, mais se degrada. E sempre
Bayle: a classificação da filosofia de Espinosa como puro panteísmo. Ate hoje,
porque ainda agora lemos e escutamos tal identificação, ou para denegrir, ou
para emprestar autoridade a novas utopias, ou simplesmente porque a tendência para
reduzir e “compactar” um pensamento complexo e um sistema em uma fórmula
cómoda, embora inútil e vazia, é recorrente.
Separar as águas, distinguir os
panteísmos renascentistas e orientais, do materialismo e, neste pé, recuperar
Espinosa, foi trabalho duro, mas minoritário, de alguns espinosistas do século
dezoito. Trabalho nem sempre isento de assimilações apressadas que torciam
convenientemente o pensamento espinosano. É justo, no entanto, reconhecer que
os mais importantes corifeus quer do materialismo, quer do naturalismo,
realizaram esforços notáveis para conservarem uma relação honesta com o
espinosismo, ou com aquilo que tomaram como sendo as verdadeiras teses de
Espinosa, rompendo com algumas delas sempre que as considerassem desadequadas
aos novos contextos. O materialismo (que é, aliás, bem diverso) do século
dezoito francês não é um puro espinosismo. O materialismo construiu os seus
próprios caminhos.
Introduzir o movimento na
matéria, por exemplo, eis a tarefa a que se dedicaram Diderot, d’Holbach,
Robinet, naturalistas vários, deístas, panteístas, ateus. Eram os passos
hesitantes das ciências da vida, lentamente sacudindo o lastro dos naturalismos
e dos panteísmos.
O alvo dos ataques de boa parte dos textos
publicados nesses anos, em edições anónimas ou com falsos nomes, é o antropomorfismo,
indo-se buscar apoio na crítica da concepção antropomórfica de Deus, a
Espinosa. No entanto, de Espinosa há pouco, e o que se faz tomar como
espinsosismo é contrário à atitude espinosana : este respeitava a Bíblia,
aqueles escritos não. São usuais as caricaturas de um Deus
« ciumento » e « colérico », insiste-se na convicção de que
a natureza não é imperfeita, pois que tudo decorre da Necessidade interna que
ela contém, que Deus é Natureza, e esta é a soma, ou o conjunto, de todos os
seres, de todas as propriedades e de todas as energias.
Certamente que Espinosa jamais
escreveu em parte alguma que Deus equivalia à pura materialidade, e
determinadas teses adulteravam gravemente o seu pensamento, revelando uma falta
de cuidado, que se explica menos pela displicência e superficialidade, e mais
pela intenção de forçar o caminho às ideias materialistas, mesmo que
inconsistentes e contaminadas por panteísmos. Também nos parece evidente que o
propósito principal, se não mesmo o único, destes escritos, era atacar a
religião oficial e a Igreja. É o anti-clericalismo que está em marcha. O
espinosismo, ou melhor, uma versão fraca e popular do espinosismo, foi
utilizada como uma eficaz ferramenta ideológica e política pelos mais
diferentes quadrantes ideológicos.
Queremos insistir neste ponto: as
entorses que o sistema de Espinosa sofreu, e as críticas de que foi alvo, não
se resumem àqueles, e foram muitos, que o recusaram e combateram, mas
igualmente procederam assim aqueles que, em certos aspectos, até por ele se
deixaram influenciar. Neste vasto grupo havemos de incluir o próprio
Malebranche, que foi um dos maître-à-penser, e Pierre Bayle
evidentemente. A tese Deus sive natura, propiciava as mais diversas
interpretações. Para Malebranche, por exemplo, e isto foi muito significativo e
carregado de consequências, a perfeição divina mostrava-se inconciliável com a
expressão de Espinosa: Deus havia de ser um ente diferente e superior ao mundo
por ele criado. Todas estas interrogações que temos vindo aqui a mencionar,
estão presentes nos textos de Dom Deschamps. Ele mostra conhecê-las
perfeitamente.
Pierre Bayle escreveu no Dicionário
( art. “Spinoza”): « Assim, no sistema de Espinosa, todos aqueles que
dizem : Os Alemães mataram dez mil Turcos, falam mal e falsamente,
a menos que eles queiram dizer que Deus modificado em Alemães tenha
morto Deus modificado em dez mil Turcos ; e é assim que todas as frases pelas quais se
exprime o que fazem os homens uns contra os outros só podem ter este sentido
verdadeiro : Deus odeia-se a si mesmo, pede graças a si mesmo, e a si
mesmo se recusa ; persegue-se, mata-se, come-se, caluinia-se, levanta-se
sobre o cadafalso»” [18]
Esta incompreensão de Deus
sive natura, gravou-se indelevelmente nos vindouros. Espinosa foi
convertido e reconvertido num panteísta. E num ateu puro e duro. Porém, quando
falamos de Bayle não devemos esquecer o seu método expositivo e o seu estilo
irónico, ou seja, não é inusitado admitir que ele, nesta frase, transmitia adequadamente
o pensamento de Espinosa, através de uma hábil caricatura e dissimulação: a
crítica espinosana do antropomorfismo não é veiculada?
A incompreensão revelada por
Fénelon, por exemplo, que apenas conseguiu ver em Espinosa uma identificação de
Deus com a totalidade das criaturas, é tanto mais curiosa quanto ele próprio
acaba por argumentar no terreno construído pelo próprio Espinosa: Deus ou o Ser
absoluto, infinito, não poderia ser composto de partes; o infinito de que fala,
ou o “infinito infinitamente infinito” de Malebranche, corresponde, afinal, à
substância em Espinosa e à anterioridade da substância relativamente às suas
afecções...
A questão da eternidade dos
modos, por um lado, e, por outro, da sua existência temporal, é outra face de
uma controvérsia que gerou muitas confusões. A confusão entre Deus e as coisas
não está presente de modo algum nas teses da ÉTICA, e todo o génio filosófico
de Espinosa foi precisamente no sentido de evitá-la. De outro modo não faria
qualquer sentido a figuração negativa que Espinosa construiu do indivíduo
alienado e esquecido. Ou seja, Deus é a totalidade infinita, a ordem necessária
e imanente, e não é, de modo algum, este ou aquele indivíduo, impelido pelo seu
conatus a perseverar na existência particular, muitas vzes de modo egocêntrico,
iludido pelo seu valor real, iludido pelo seu verdadeiro papel na ordem do
mundo, ou submetido, inerme, resignado e infeliz.
Aquilo que a teologia adversária
não queria, não poderia, aceitar, era a tese espinosana da necessidade. A todo
o custo, impunha-se para ela a inclusão do livre-arbítrio do Criador e, por
tabela, a distinção das criaturas relativamente ao Criador. É aqui que reside,
em nosso ver, o carácter irredutível das posições. Ora, neste ponto, não há
dúvidas : Espinosa orientou grande parte do seu esforço de argumentação contra
as crenças no livre-arbítrio. O que surpreende e choca muitos é precisamente a
arquitectura determinista, como usualmente se diz, do seu sistema. Uma natureza
autoprodutiva, autoregulada, alheia aos valores, que dispensa sacerdotes para a
descoberta da verdade, embora se tolerem para as questões de fé.
Foi também por estes caminhos de
receio e de ortodoxia, de recusa ou incompreensão, que se estabeleceu e
consolidou a fama de um Espinosa ateu, que realmente não o foi no rigor da
terminologia. Esta má fama perturbou o próprio Dom Deschamps, que considera
Espinosa como tal, e se esforça por livrar-se da mesma acusação. Em boa
verdade, fica-se com a convicção de que, dos dois, era Deschamps realmente o
ateu.
Pierre Bayle caracterizou, desde
logo, Espinosa como « um ateu de sistema ». Situou a crítica na
proposição da substância única, que se encontra na base do seu sistema, e
passou em seguida a refutá-la. Todos os contornos desta atitude perduraram
quase intactos até aos textos de refutação que Dom Deschamps irá redigir
décadas mais tarde. É uma autêntica tradição, uma herança. Não é a obra genuína
e íntegra do seu autor, não é o tratamento analítico e progressivo dos seus
textos, mesmo que em tradução fiável, é uma interpretação, que hoje não
recomendaríamos a ninguém, que perdura como uma instituição, uma verdade. Não é
Espinosa que circula, é uma outra versão.
P. Bayle expõe deste modo o pensamento de
Espinosa : «saber que Deus é a única substância que existe no universo, e
que todos os outros seres são modificações desta substância.» Corresponde quase
literalmente àquilo que Deschamps irá transcrever. E Bayle conclui: «uma
suposição tão estranha, que subverte a maior parte das noções comuns que servem
de regra nas discussões filosóficas; ...é a mais monstruosa hipótese que se
possa imaginar, a mais absurda e a mais diametralmente oposta às noções mais
evidentes do nosso espírito.»[19]
O que está escrito, ficou
escrito, a sua crítica e fez-se verdade de escola. Contudo, iríamos mal, se
acreditássemos nas aparências do estilo. Pierre Bayle aperfeiçoou um estilo tão
hábil que iria ser retomado vezes sem conta pelos bons espíritos do século
XVIII. Se o século dezoito tem alguma particularidade em atitudes de
interpretação, ela é, seguramente, este estilo fino, penetrante e irónico que
Voltaire e Diderot souberam aperfeiçoar a um nível insuperado. Quem ler
apressadamente toma a crítica como uma refutação cerrada sem margem para
compromissos, quando o que se passa na verdade, é uma hábil estratégia de
disssimulação. Os contemporâneos haveriam de saber ler entre linhas,
interpretar o elogio sob o disfarce da ironia aparentemente implacável, a
verdade sob o manto da retórica. Os tempos iam difíceis, e foram-se agravando
adentro do século. Cada um fazia o seu serviço: os chefes da Igreja, os autores
de panfletos anónimos, os espiões, os esbirros. Notar-se-á esse estilo, feito
de cuidados e alçapões, nos artigos da Enciclopédia, particularmente nesse
mestre que foi Diderot. O importante era sacudir a eventual acusação de
ateísmo. São as palavras de Bayle, as sucessivas repetições das suas palavras,
que atormentam dom Deschamps. Não é que ele receie, pelo menos nas páginas que
nunca publicou, defender o ateísmo, mas não deseja na sua consciência “dar o
flanco” às críticas consolidadas. Ele próprio admite a consistência destas. Ele
próprio se esforçou por “corrigir” o sistema de Espinosa. São estas razões da
razão pública e privada, que julgamos dever merecer a nossa atenção. Tentaremos
estabelecer, até ao termo desta dissertação, que dom Deschamps se apresenta tal
qual ele se confessa: um profeta iluminado por um “ateísmo esclarecido”, e que
o seu sistema somente se compreende completamente à luz do espinosismo. Isto é,
a metafísica de dom Deschamps, em pleno século, não se confronta com mais
nenhuma outra metafísica, se não com a sombra de Espinosa. Forjaram-se outras e
novas metafísicas, envolvidas por um naturalismo deísta, como a de
Jean-Baptiste Robinet por exemplo (onde, aliás, se perfilam sinais da presença
de espinosismo), mas aquela que poderia ser, do mesmo modo, classificada como a
“mais monstruosa hipótese” e a mais absurda, seria a de dom Deschamps, se
tivesse sido publicada na íntegra. Ele tinha consciência disso, e verificou-o
nos encontros que teve com os mais diversos interlocutores. No entanto, não são
de somenos importância as suas diferenças com as ideias expostas pelo próprio Espinosa.
Aquilo que o célebre P. Bayle
ensinou a quem o quis entender, foi um método de raciocinar sobre ideias
próprias e ideias de outros. O seu mérito não reside apenas nas informações que
prestou aos iniciados, mas, sobretudo, na atitude pedagógica exigente de
acreditarmos somente naquilo que a razão demonstra e esclarece. Se houvesse que
escolher um pioneiro das Luzes francesas, escolhê-lo-íamos. Foi este o legado
que Deschamps recolheu, e não os insultos, os gracejos, alguma ironia fácil, em
que outros, bem mais do que Bayle, se comprazeram. Pensar no interior do sistema
a refutar, não de fora, detectar-lhe as fragilidades, ambiguidades,
contradições, eis o essencial. E importa considerar que Deschamps não foi
seguidor, de modo algum do nominalismo de P. Bayle. Talvez por isso, pôde
assimilar melhor a ontologia de Espinosa. Uma determinada forma de Bayle ser
materialista, à maneira de Gassendi, restringia-lhe a ideia de extensão à
realidade divisível, bem diferente da extensão abstracta e indivisível de que
fala Espinosa, que categoriza esta como um atributo da substância infinita.
Iremos verificar que efeitos produzirá esta leitura redutora sobre as soluções
de Deschamps, originais mas não tanto como ele julga. Para Bayle, o sistema de
Espinosa encerra um problema da unicidade da substância; daí deriva a sua
objecção segundo a qual Espinosa tenta evitar a ideia refutável de um ser
composto, substituindo a palavra “parte” pela palavra “modificação”. Estas
aparentes fugas e contradições de Espinosa, serão encaradas por Deschamps como
reais, o qual utiliza ambos os termos: partes e modificações, mas aplicáveis
apenas ao todo físico e material, destacando, por isso mesmo, um outro todo
“absolutamente absoluto”: o infinito. Ao julgar que refuta Espinosa e, ao mesmo
tempo, descobre a solução melhor, atravessa para a outra margem através da
ponte que o próprio Espinosa construiu. A solução está longe de ser a mesma,
mas a diferenciação dos atributos encontra-se lá. O TUDO (Tout) é toda
a Existência. Não equivale liminarmente à soma das modificações, mas, pelo
contrário, à outra perspectiva com que se deve encarar a totalidade
ordenada dos seres.
Condillac refere Espinosa no seu Traité
des systèmes. O abade Condillac exerceu uma enorme influência nos rumos
novos do pensamento, em particular nos philosophes, num novo exercício
do pensar, que valoriza a experiência sensível e apouca as metafísicas de
sistema. É todo um nominalismo que está em marcha. Nesta nova atitude, o
sistema de Espinosa é um alvo especial da crítica das noções abstractas, sem
fundamento na experiência, produtos da imaginação. De uma banda, os teólogos,
de outra, os sensualistas, a perseguir os passos do empirismo inglês. Contudo,
o ponto de vista dos últimos é mais ajustado, independentemente de ser ou não
mais verdadeiro, queremos dizer que é uma crítica legítima vinda de quem leu
seguramente o próprio autor. Condillac traduziu a primeira parte da ÉTICA. Aqui
o trazemos para fornecer um elemento mais ao cenário ou ao meio no qual se
movimenta o nosso beneditino.
Este panorama dá-nos a sensação
de que Espinosa constitui um dos mais fascinantes enigmas da história das
ideias no ocidente, que nos abala certezas cómodas que tivéssemos sobre uma
pretensa autonomia integral das ideias relativamente aos outros fenómenos da
vida colectiva. Um filósofo que todos julgam conhecer, e pouco ou nada conhecem
em grande parte dos casos, cujas teses circulam o mais das vezes
clandestinamente, que, em rigor, não são dele, que parece estar presente nas,
ou sob, as novas concepções de naturalistas e materialistas, mas que quase
nenhum assume. Surpreendente.
A influência do espinosismo conservou-se por essa Europa fora[20],
mesmo que truncado e reduzido a uma caricatura, para se assistir, por fim, ao
seu renascimento no termo já do século dezoito na Alemanha de Jacobi. É um
longo e largo percurso que não podemos resumir neste capítulo. O que importa é
adiantar para o nosso projecto este dado que é talvez mais uma interrogação :
se admitirmos, como nós admitimos, que uma determinada corrente do materialismo
francês do Século XVIII, encabeçada sobretudo por d’Holbach, levou a cabo uma
separação relativamente ao espinosismo, sendo que esse corte lhe permitiu
apoiar o ateísmo em bases materialistas, não abandonando a tese de uma
substância única com diversos atributos ou propriedades gerais, não teria este
acto propiciado uma leitura de um Espinosa não ateu? Não é esta leitura que
iremos encontrar na filosofia alemã? E, enfim seria esta interpretação mais
conforme ao rigor do Texto espinosano, ou assistimos, ao invés, a novas
deturpações?
Seja como for, o que nos compete,
neste trabalho, é demonstrar que dom Deschamps não tentou recuperar o “teísmo”
de Espinosa; bem pelo contrário, tendo-o tomado definitivamente como um ateu,
tratou de construir um “ateísmo esclarecido”. Entre o seu propósito e o de
d’Holbach, ou de Diderot, não existem aqui divergências de fundo. As
divergências são outras.
Em seguida, ensaiamos um breve
resumo daquelas teses de Espinosa que mais úteis nos sejam para compreender as
teses de dom Deschamps. A intenção é, agora, não um espinosismo de segunda ou
terceira mão, mas tentar expor com o rigor que nos é possível as ideias
principais contidas na ÉTICA.[21]
1.2. Apresentação breve das ideias de Espinosa
Tem, por conseguinte, como
objectivo esta exposição resumida da filosofia de Bento Espinosa clarificar
aquelas teses e aqueles conceitos que mais se adequam ao nosso propósito de
estabelecermos um paralelismo com O Verdadeiro Sistema, de dom
Deschamps, de modo a que as semelhanças, e também naturalmente as diferenças,
ganhem relevo demonstrativo. Evidentemente que qualquer exposição denuncia o
ponto de vista de quem expõe, ainda que se baseie nos textos e na
correspondência do Autor, tanto mais quando se trata de um Autor, como
Espinosa, tão despojado de retórica autoreferente. Expomos, portanto, a nossa
interpretação não tanto daquilo que Espinosa tinha em mente, mas segundo aquilo
que ele efectivamente escreveu. Assim se evidenciarão, porventura, os acertos e
desacertos da Refutação que dom Deschamps lhe dirige, ora porque pressupõe
o conhecimento directo da obra, ora porque falha na medida em que simplesmente
refuta um Espinosa deturpado.
O seu autor foi alguém que quis fazer da sua vida um
projecto de máxima liberdade, sabendo que nunca a alcançaria nas condições que
os outros a determinam, e desejou partilhar esse projecto connosco, sem impor,
argumentando, definindo, analisando, desmontando muito daquilo que em nós
julgamos mais sólido. Lutou por uma sociedade democrática, onde se pode pensar
e dizer o mais livremente que ele julgava possível, mas percebeu perfeitamente
que esta sociedade só é melhor porque se permite um pensamento mais liberto do
simples obedecer – obedecer ao Estado, às regras consensuais-, muito embora
viver em sociedade significa, quer queiramos quer não, obedecer a regras
convencionais. As noções de mal e bem, de mérito e demérito, etc., exprimem
isso mesmo : simples ou complexas regras, respeito, piedade, obediência, pois
que todas estas noções adequam-se melhor ou pior à natureza humana e aos fins
sociais historicamente determinados.
A vida de Espinosa é uma imagem
positiva de afirmação e de amor à vida, que identifica com a alegria. Realizou
uma crítica implacável das atitudes que nutrem ódio à vida, que se rodeiam de
cultos da morte, do homem envergonhado, culpado, arrependido, invejoso,
ressentido, que sufoca a vida com leis, propriedades, deveres, impérios, às
quais Espinosa chama “traições” à vida, ao universo. O que há de pior no homem?
A invenção da morte interior, esse universo sado-masoquista do escravo-tirano.
Quanto de semelhante encontramos em dom Deschamps!
Qual é a tese teórica central do
espinosismo? Acreditamos ser esta: há uma só substância que possui uma
infinidade de atributos, Deus sive natura, sendo todos os seres apenas
modos destes atributos ou modificações desta substância. Embora os atributos
sejam infinitos, a inteligência limitada do homem só pode alcançar dois: a
extensão e o pensamento. E mesmo aqui, não conhece tudo, e é pouco até o que
conhece. Esforçar-se por conhecer é, portanto, uma paixão alegre, positiva.
Unir-se ao todo, perceber o encadeamento de todas as coisas, das causas e dos
efeitos, totalidade na qual tudo tem uma razão, um nexo, uma necessidade
imanente. Assim sendo, é rejeitada a existência efectiva de qualquer entidade
transcendente criadora e justiceira, remetem-se estas fantasmagorias para o
império do desejo e da imaginação, da mecânica psicológica do medo e da
servidão. Unicidade da substância, univocidade dos atributos, imanência
absoluta, identidade entre o material e o pensamento (dois atributos distintos
e paralelos da mesma substância). Como não ver aqui a tese de que tudo que
existe é natureza, sendo o pensamento uma dimensão, gozando de autonomia, da
mesma e única natureza? Espinosa passa páginas e páginas a recusar qualquer
verdade objectiva a um Deus antropomórfico, à criação extra-natura, ao
finalismo moral, ao dualismo, à transcendência. Como chegar, porém, a ser
consciente de si mesmo, de Deus e das coisas, quando a nossa consciência parece
inseparável das ilusões?
Como conseguir formar ideias
adequadas, promotoras de sentimentos activos, positivos, quando parecemos
condenados, pela nossa limitada natureza, a não ter senão ideias inadequadas?
Absoluta é só a substância una e única, infinitos, mas não
absolutos, são os seus atributos (infinitos no seu género); Deus exprime a
potência absoluta de existir e de agir, a potência absoluta de pensar e de
compreender – duas potências do absoluto que são iguais e não se confundem com
os atributos que conhecemos.
A acepção do conceito de Razão,
em Espinosa, tem ocupado muitos comentadores. De entre muitos, preferimos
seguir a análise desenvolvida por Maria Luísa Ribeiro Ferreira.[22] A “razão abrangente”, a “razão constitutiva”,
e citamos a autora, “sobreleva a representacional pois a categoria da
representação é desvalorizada em detrimento da identificação, da sintonia com o
Todo”[23]
A razão, para Espinosa, possui uma dimensão ontológica, é fundamento e causa.
Além destas acepções espinosanas
da razão, esta é ainda um modo da acção dos homens. “Mas, a verdadeira
capacidade de agir do homem, ou seja, a sua virtude é a própria Razão (pela
proposição 3 da Parte III), que o homem contempla clara e distintamente” [24]
Em dom Deschamps o termo “Razão”
é utilizado como equivalente a “Entendimento”, que é superior à mera
“inteligência” comum. Tal faculdade, do Entendimento, é plenamente potente,
como se evidencia no título do sistema do beneditino : “O Verdadeiro Sistema”,
ou seja, “A Verdade”. A Razão, que exprime a unidade do todo, exprime a outra
dimensão do todo : o Tudo que é a Existência. Não existem sinais em dom
Deschamps de que utilize a distinção espinosana entre razão e entendimento : no
livro IV da ÈTICA, o entendimento é identificado com a razão “Por conseguinte é
sumamente útil aperfeiçoar o entendimento ou a razão tanto quanto pudermos”; [25] porém, no livro II,
diz o seguinte : “De tudo o que acima foi dito, resulta claramente que nós
temos muitas percepções e formamos noções universais : 1º Das coisas
singulares que os sentidos representam mutiladas, confusas e sem ordem à
inteligência ; por esta razão, tomei o hábito de chamar a essas percepções conhecimento
pela experiência vaga.
2º Dos sinais, por exemplo, do
facto de termos ouvido ou lido certas palavras, nos redordamos das coisas e
delas formamos ideias semelhantes àquelas pelas quais imagibnamos as coisas.
Para o futuro, chamarei a essas duas maneiras de considerar as coisas : conhecimento
do primeiro género, opinião ou imaginação.
3º Finalmente, do facto de termos
noções comuns e ideias adequadas das propriedades das coisas. A este género,
darei o nome de Razão e conhecimento do segundo género.
Além destes dois géneros de
conhecimento, há ainda um terceiro como o mostrarei a seguir, a que chamaremos ciência
intuitiva. Este género de conhecimento procede da ideia adequada da
essência formal de certos atributos de Deus para o conhecimento adequado da
essência das coisas”[26].
Muito embora dom Deschamps não
persiga linearmente as formulações de Espinosa, ele forjou um par de categorias
com um papel decisivo no seu sistema: Tudo (Tout) e O Todo (Le Tout), ou, por
equivalência, o Nada (Le Rien) e o universo; porém, a realidade última e
verdadeira, o absolutamente absoluto como ele escreve por vezes, é a
Existência; ora, a Existência é única. No primeiro caso, no par de
contrários, temos um primeiro momento do desenvolvimento da verdade; mas esta
distinção tem que ser superada, isto é, a negação envolve a identidade. A
Existência é, ao mesmo tempo, uma coisa e o seu contrário. Este é um dos eixos principais da nossa
dissertação. Esta posição filosófica é monista; apenas numa leitura superficial
pode sugerir um dualismo. A Existência possui dois atributos ao alcance da
nossa compreensão humana: ora como natureza-mundo, ora como nadificação
absoluta. È a fórmula de Espinosa? Claro que não, de modo algum. E, no entanto,
é um monismo sem sombra de dúvidas, como se irá demonstrar nas muitas páginas
desta dissertação. Fala-se de uma realidade única, que pode ser encarada de
duas maneiras. No contexto filosófico e cultural em que se move dom Deschamps,
isto que fica dito, evoca necessariamente o espectro do espinosismo.
Que é o atributo, para Espinosa? É aquilo que o
entendimento percebe da substância como constituindo a sua essência; não é uma
maneira de ver entre outras possíveis, uma perspectiva, mas aquilo que é. Nem
é, tão pouco, uma “emanação” da substância, pois que esta não é superior aos
seus atributos. Cada atributo exprime uma determinada “essência”. Nem sequer o
atributo reside no entendimento (não pertence ao reino dos produtos sociais da
consciência); o atributo exprime-se e isto implica necessariamente um
entendimento que o perceba ( tudo é natureza, tudo é, em essência, o mesmo)..
Nós apenas conhecemos dois atributos, e entretanto sabemos que existe
uma infinidade. E porque sabemos? Sabemo-lo porque resulta necessariamente da
definição de infinito, da definição de uma substância autoprodutiva. Apenas
conhecemos dois porque só podemos conceber como infinitas as qualidades que
envolvem a nossa essência: o pensamento e a extensão, enquanto somos espírito e
corpo.
Sabemos que há uma infinidade de atributos, porque Deus é ele mesmo uma
potência absolutamente
infinita de existir, que não se deixa esgotar nem pelo pensamento nem pela
extensão.
A natureza é “natura naturans” e
“natura naturata”. Como natureza “naturans ”, é substância, ou Deus. É eterna,
e infinita, causa e efeito, essência e existência. Nesta “essência” há, ou
julgamos ver, um feixe (infinito?) de possibilidades, algo que nos obriga a
evocar o conceito de “potencialidade”, em Aristóteles, conceito tão rico que
hoje abre caminho de novo entre as ciências. Não transparece uma imagem fechada
do mundo e da vida, mas perfila-se um largo horizonte de possíveis e de
mudanças.
E há uma diferença entre essência e existência: nas coisas
separadas, passageiras e finitas, a essência não coincide com a sua existência,
mas na substância única, eterna e infinita, desprende-se necessariamente da sua
essência a sua existência.
Por isso a existência de Deus (ou
da substância) pode ser demonstrada, isto é, deduzida do conceito de essência
de Deus (a natureza).
O ser da substância é, ao mesmo
tempo, necessário e livre, já que não existe causa alguma que mova a substância
à acção que não seja da sua própria essência. A imagem de uma racionalidade
livre e socialmente ética revela-nos a imagem de um Deus livre, e não um Deus
determinado a agir por fatalidade: um tal comportamento corresponde melhor a
máquinas e a servos.
A coisa individual não se
desprende da substância como de sua causa próxima. Só pode derivar de outra
coisa finita. Por isso, não possui liberdade absoluta.
Os modos constituem o
conjunto das coisas finitas; modo é aquilo que não existe por si mesmo,
mas sim em outro, ou por outro. A substância é única, a sua essência exclui
toda a pluralidade. Pelo contrário, os modos são infinitos. Pontos de uma
recta. A natureza, como substância, existe em si mesma, por si mesma, com todas
as suas propriedades, com independência e à margem da mente. A mente infinita
poderia captar a substância – em todos os seus tipos e aspectos- como infinita.
A nossa mente, porém, não é infinita. Por essa razão percebe a essência da
substância como infinita somente em dois sentidos : primeiro, como extensão, e,
segundo, como pensamento.
O homem, como objecto do
conhecimento, não constitui excepção alguma na estrutura geral do mundo. Tudo
que é humano, pode submeter-se à análise tal como qualquer outro fenómeno da
natureza.
Daqui, Espinosa arranca para a
ética. Ciência que deduz as suas normas das leis objectivas dos actos humanos,
e não de valorações subjectivas. Naturaliza a ética, ao mesmo tempo que a
“socializa”.
Foi,
Bento Espinosa, um pioneiro entre os pioneiros, porque tratou a psicologia dos
actos humanos como um físico estuda os fenómenos, buscando leis, ou seja,
regularidades, reduções ao mais simples e fundamental, à “mecânica” (não no
sentido pejorativo, mas antes naquele sentido de “mecanismos” de que falou S.
Freud) das paixões ou afectos. Sublinhava com ênfase dois tipos : alegria e
tristeza. Qual a sua causa? A tendência de todas as coisas a conservar a sua
existência. Não nos guiamos sobretudo pela atracção do bem, nem pela rejeição
do mal, mas sim pela tendência à autoconservação e ao benefício próprio. A
virtude é exclusivamente potência humana, e esta é determinada somente pelo
esforço com que o homem deseja conservar a sua existência. Nega a independência
da vontade relativamente aos seus motivos, a nossa natureza é necessariamente
dependente das paixões e dos afectos.
A coisa que existe necessariamente (ou é
determinada) pode, ao mesmo tempo, ser livre se existe por necessidade somente
da sua própria natureza. Neste sentido, é livre, em primeiro lugar, a
substância Natureza, pois que a sua existência deve-se apenas à sua própria
essência. Em segundo lugar, neste sentido também é livre o homem, podendo
emancipar-se da escravidão, sob determinadas condições. Qualquer afecto pode
deixar de ser um estado
passivo, quando fazemos uma ideia clara e precisa dele, desde que o
conheçamos. A liberdade é, portanto, o conhecimento da necessidade.
Conhecer não significa abandonar todos os afectos,
permitir-se não sofrê-los. Tal como um mau hábito se cura adquirindo um outro
hábito mais forte, assim o conhecimento se torna um afecto (afecção). O que é o
afecto do amor? A alegria acompanhada pela ideia da sua causa exterior. E um
tipo particular de amor, é o amor pelo conhecimento. Estes afectos podem,
assim, lutar contra outros e vencê-los. A humanidade do homem é uma conquista,
e o homem um campo de batalhas. A nossa exposição faz pressupor em Espinosa uma
compreensão dialéctica de cada indivíduo na relação com os outros e consigo
mesmo.
A alegria (proporcionada pelo
conhecimento, por exemplo) pode, deste modo, conduzir-nos para uma máxima
liberdade (rodeando-nos sempre de cautelas, ou de sistemas de alarme) – nem a
inocência, nem a ingenuidade, cabem aqui, excepto nas crianças (que, por isso,
precisam de protecção e educação). Nesta batalha dos afectos, usamos um espécie
de linguagem bélica: repressão, astúcia, cautela, desconfiança. O homem é um
ser activo e a vida uma série de actos de dominação/libertação,
dependência/autonomia, criação/conservação.
Certamente que podemos considerar
o tipo ideal de vida, em Espinosa, demasiado redutor, ou seja, se for lido
deste modo: será livre somente o sábio que renunciou à vida material...
Contudo, é admirável a coerência da sua vida com o seu pensamento, numa época
em que os prazeres materiais eram já abundantes (sobretudo na Holanda
progressiva e burguesa), e nada na sua biografia demonstra que ele houvesse
aspirado aos negócios pelo seu lado lucrativo e aos rendimentos, contentando-se
com uma situação digna mas frugal É irreprimível uma aproximação com o
“cauteloso” Descartes, seu contemporâneo, que sempre foi um profundo
individualista cioso do seu isolamento e conforto (era frágil de saúde também),
pouco dado a cargos e honrarias, a amizades mundanas (que achava que eram perda
de tempo e um insulto à inteligência),
A imaginação desempenha um
importante papel na conduta humana, no entanto ocupa o último lugar, ou grau,
na escala do conhecimento. “Não somos nós quem afirma ou nega algo de uma
coisa, mas é ela própria que em nós afirma ou nega algo de si mesma”. “Ela”
quem? A alma...Ou seja, a ideia, quando o é (verdadeira), auto afirma-se, pois
que a verdade é necessidade, não é por simples vontade ou capricho que
escolhemos esta ou aquela como verdadeira, ela é evidente; ou ainda,
entendimento e vontade identificam-se no acto de conhecer; é absurdo que alguém
diga : essa ideia é verdadeira, mas eu quero que ela seja falsa!. Podemos fugir
da luz do dia, mas não eliminá-la. Não temos nós esta experiência de uma
verdade que nos persegue porque nos magoa? Quando se sublinha o carácter
necessário das coisas
(e das causas), perdemos em liberdade?
A descoberta das ideias (ou são
elas que nos descobrem a nós?) e a sua expressão, não acontece, no entanto, de
fora para dentro, porque elas não são entes, mas actos do entendimento e da
vontade; envolvem-se de consciência e de afectos.
São três os géneros de
conhecimento, e, a cada um deles, corresponde determinada forma de consciência
e determinados afectos. A equivocidade reina no primeiro género, o mais
inferior. Aqui, das coisas, temos apenas sinais, ou signos, frágeis indicações,
mais atmosféricas que os sinais de trânsito. Na Psicologia contemporânea
dizemos ícones, esquemas, estereótipos. Ideias inadequadas e afectos-paixões correspondentes.
O segundo género é composto de
noções comuns – ideias gerais. Ainda não são definições, porque estas cabem
apenas no terceiro género; nem são princípios, pela mesma razão. O termo “cavalo” não
explica, nem expõe a essência do animal ; os termos “amor”, “esperança”, etc.
Mas produzem, por associação e analogia, afectos De simpatia ou antipatia. O
primeiro género permite a sobrevivência; o segundo a integração e a convivência
(obedecer, desejar, conhecer por meio da ciência). Com os dois géneros conseguimos
alcançar certezas somente por mediações ; no terceiro, as ideias impõem-se pela evidência e precisão, por intuição. O
método é conhecer pelas causas. A causa adequada é o critério do
conhecimento verdadeiro. O conhecimento humano está sempre dependente do
conhecimento das causas que produzem os efeitos; só uma mente divina poderia
escapar a isto e “ver” o todo de uma só vez...Estamos condenados ao
“encadeamento”. Por definição conhecer o efeito é conhecer a causa. A mente é
suficientemente potente para vir a compreender que tudo é necessário, isto é,
que o que existe foi determinado a existir e a produzir efeitos por meio de uma
ligação infinita de causas. Apresenta-nos aqui uma atitude genética : a
descrição de um fenómeno passa pela sua explicação.
Os conceitos obedecem, por
conseguinte, a uma ordem genética de construção. Ambicionar captar a
ordem lógica das coisas, é ambicionar a construção de sínteses; quando são
adequadas, constituem o supremo acto da inteligência, e verifica-se nos produtos
mais conseguidos dos grandes espíritos. As melhores definições são as que
explicam a geração de uma coisa ( disse Hobbes, e Espinosa retoma). Que é um
círculo? A rotação de uma recta. Não existem critérios a priori,
extrínsecos à verdade e que permitiriam reconhecê-la ; é na medida que
conhecemos que os critérios se estabelecem, durante e não antes. Se para
forjar o ferro, os homens precisam de um martelo, este só se produz no acto de
forjar, e no processo se vai aperfeiçoando. O papel da prática assume assim,
em Espinosa, toda a sua importância. Atenção à génese, atenção ao processo,
atenção à prática – eis exemplos de teses admiráveis e percursoras. Construir,
progredir em acto, exprimir – tudo anúncios carregados de
modernidade. Adoptamos esta leitura do pensamento de Espinosa, contra outras.
Vemos Espinosa como um artesão, um operário, que foi, usando exemplos extraídos
da sua actividade, e não apenas buscados à geometria. Um espantoso espírito, um
príncipe dos filósofos, que, todavia (ou por isso mesmo), foi
operário-artesão...Manuseando coisas delicadas, polindo, construindo, percebeu
que aquilo que melhor define o homem é a produção, e, sem os produtores, não
existiria mundo humano. A dignidade do trabalho criador ( mesmo que rotineiro e
reprodutivo), a dignidade do trabalhador. Na organização de uma sociedade
pacífica, os homens actuam desencadeando paixões positivas que fomentam a
unidade do corpo social.
Há afectos que repugnam à razão – como a esperança e o
medo, a sobrestima e o despeito, a comiseração, a indignação, a humildade, a
tristeza, o arrependimento, o orgulho máximo. Mas há outras, como por exemplo o
favor, o contentamento de si, a glória, que a favorecem e cujo exercício
robustece as capacidades racionais. Devemos recorrer à imaginação para
aumentarmos a potência da mente. A mente é também o poder, e a necessidade, de
imaginar aquilo que aumenta a potência de agir do corpo. Ou seja, manipulemos
as nossas paixões, e as dos outros, de modo a que as condutas não repugnem
demasiado à razão. Valorizemos o conhecimento, mas saibamos que nenhum
conhecimento modifica a fragilidade da condição humana, essas naturezas
apaixonadas que vêm o melhor mas praticam o mal. Uma paixão só se combate com
uma paixão mais forte. A razão não deve criar ilusões excessivas
(apaixonadas...) sobre o seu poder de eliminar os afectos; ela própria deve,
para melhor combater os piores, transformar-se em paixão, em afecto.
O conhecimento só por si não leva à acção. Espinosa (na
ÉTICA) persegue um objectivo muito concreto: a procura da felicidade.
Valorização de tudo que nos contenta, daí o valor supremo da alegria, é o
desejo de ser feliz que comanda o processo ético. O mal não reside na Natureza,
mas na nossa imaginação e nos nossos afectos tristes. O ser, a essência da
Natureza é o bem; o ser e o dever ser coincidem.
O desejo diz respeito ao homem,
mas está presente em todas as coisas sob a designação de “conatus”. É um
esforço universal de perseverança e de resistência, e de apropriação, e é uma
determinação da Substância, visto que esta é eminentemente activa. “Potentia”
e “conatus” são equivalentes (“potentia sive conatus”).
Conservação e manutenção do ser próprio,
eis a essência de cada coisa. Em todo o real circula um desejo e uma afirmação
de ser.
Que nos ensina a filosofia? Que a
realidade última é infinita, que essa realidade tem de conter necessariamente
em si mesma todo o ser. Deus não pode estar fora do mundo.
Relativamente ao método, como
iremos verificar também em Deschamps, o que é mais importante não são os
dispositivos técnicos da geometria, mas a dedução lógica de proposições
extraídas de definições que expressam ideias claras e distintas e de axiomas
evidentes por si mesmos. Entre os sistemas do século XVIII francês,
naturalmente aqueles que conhecemos, o que mais se aproxima da exposição
tipicamente espinosana, é o de dom Deschamps, ainda que ele não use a
terminologia das “definições e axiomas”. É verdade que esta diferença, que não
é tão acessória como isso, basta para estabelecer diferenças entre os métodos
de ambos, contudo nem
o método expositivo-demonstrativo, ou dedutivo, de Deschamps é escolástico
(como já temos visto referir), nem a diferença mexe com o rigor lógico. De
resto, dom Deschamps afirma amiúde a necessidade de se estabelecer um bom “princípio”,
e quando critica os outros, o próprio Espinosa incluído, é o “princípio” deles,
ou a sua ausência.
Relativamente à substância
divina, em Espinosa, ela deve ser considerada como anterior tanto na ordem
ontológica como na ordem das ideias. Em Deschamps assiste-se à anterioridade da
categoria Tout. A Existência determina o nosso pensar, a nossa
existência natural, a nossa linguagem, mesmo a mais comum. Quando dizemos sim e
não, já intuimos o carácter contraditório da Existência. Pensamos nela porque
existimos. Somos infelizes porque não a compreendemos.
A substância, para Espinosa, é “causa de si mesma”:
explica-se por si mesma e não por meio de uma causa externa; a definição de
substância implica, portanto, que a esta é completamente dependente de si
mesma, não dependendo de nenhuma causa externa, nem para a sua existência nem
para a dos seus atributos e modificações. Dizer tal coisa é dizer que a sua
essência compreende a sua existência.
“Por ‘atributo’ entendo aquilo
que o entendimento percebe como constituindo a essência de uma substância.”[27]
Por conseguinte, segue-se que, se duas substâncias possuíssem os mesmos
atributos, possuiriam a mesma essência ; nesse caso não haveria razão para
falar delas como “duas”, porque não poderíamos distingui-las. Porém, se não
pode haver duas ou mais substâncias que possuam o mesmo atributo, a substância
não pode ser limitada ou finita. Tem, pois, que ser infinita. Situamo-nos no
âmago da Refutação do princípio de Espinosa, redigida por Deschamps, e
que iremos abordar com minúcia.
A substância infinita tem que
possuir infinitos atributos. “Quanta mais realidade ou ser possui uma coisa,
tantos mais atributos terá.” [28]
Cada atributo expressa uma essência eterna e infinita.
Em Espinosa, Deus não se
distingue da natureza; se se distinguisse, se existem outras substâncias que
não fossem Deus, Deus não seria infinito.
Em Deschamps, aquilo que ele
denomina Deus-não criador (Tout) distingue-se de Deus-criador (Le
Tout)? É por isso que ele fala em “dois seres”, refutando Espinosa? Ou, de
facto, Deus-criador e Deus-não criador não são mais do que as duas perspectivas
com que podemos falar da Existência? Esta é a questão.
Os conceitos e as questões que mais aproximam dom
Deschamps de Espinosa, parecem-nos ser o lugar determinante do conceito de
natureza, de uma natureza dotada de uma ordem racional e necessária; uma
concepção da totalidade contendo simultaneamente uma dimensão ontológica e
gnosiológica; a adequação, ou não - ou o acordo- do corpo e da mente e de cada
corpo com os demais, com esse todo; os dois atributos do todo: o
infinito-eternidade e o finito-duração; os três géneros de conhecimento e,
evidentemente, a possibilidade de transportar o conhecimento da substância
única para uma radical reorientação da nossa existência.
Pelo contrário, a crítica radical
da civilização e a consequente utopia da vida campesina, o mais absoluto
igualitarismo que dissolve a individualidade, em Deschamps, parecem-nos
distantes do pensamento espinosano; um projecto marcado pela especificidade
histórica de uma sociedade e de uma época e, naturalmente, pela biografia
concreta do monge filósofo.
Torna-se muito difícil aceitar
que Deschamps fosse de todo insensível à personalidade e ao modo de vida de
Espinosa: como é possível que não tenha visto nele um homem bom e sábio, cujas
virtudes e modo de existência tanto se aproximam das virtudes que ele próprio,
dom Deschamps, aconselha antes do estabelecimento da sociedade ideal - o
estado de costumes -, e que serão, afinal, traços fortes e colectivos da
moralidade que vingará nessa sociedade do porvir? Como não admitir que a
salvação e a beatitude de que fala Espinosa não ecoam estridentemente no
sistema de vida salvífico de dom Deschamps?
Além disso, Espinosa foi um perseguido pelos poderes dominantes, pelo dogmatismo e atté fanatismo religiosos, foi um excluído em vida e depois da morte. Espinosa teve de usar de cautela e os seus discípulos recorreram ao disfarce para transmitir as suas ideias, parecendo que as censuravam. É verdadeiramente improvável que tudo isto não tivesse Crítica da Razão Consensual
Espinosa, Dom Deschamps, Os Materialismos, as Luzes
Explicação
Biografia de Bento Espinosa
Biografia de Dom Deschamps
Deste modo, ao identificarmos um dos alvos mais relevantes
da crítica de Deschamps, temos de nos confrontar com uma tarefa decisiva, a
saber: professava Deschamps, afinal de contas, um materialismo filosófico, ou
não? Regra geral os comentadores do século vinte classificam dom Deschamps como
materialista.[29]
Começamos pelo fim: Deschamps
professava um materialismo metafísico que se julgava a si próprio acabado e
consequente. Por conseguinte, respeitando os propósitos desta dissertação,
afirmamos que Deschamps efetuou uma interpretação materialista do sistema de
Espinosa porque o sistema nos seus
Princípios e no seu todo congruente o permite.
O materialismo de Espinosa não está
consensualmente estabelecido. Sabe-se que Espinosa não se comprometeu com as
correntes materialistas do seu tempo, sobretudo com aqueles que eram
classificados como libertinos. Mas sabe-se também como a sua meditação
desenvolveu-se no confronto com a dimensão mecanicista do pensamento de Hobbes
e de Descartes, na revisitação do atomismo clássico, e não desprezou
seguramente a importância de Gassendi.
No interior das correntes
marxistas, correu com força dominante a classificação de Espinosa como um
filósofo materialista ou, pelo menos, que continha uma clara vertente
materialista. É isso que se lê numa obra que circulou amplamente, da
responsabilidade de três académicos da ex-URSS, respeitados internacionalmente
( Compêndio de História da Filosofia, de Iovchuk-Oizerman-Shchipanov,
Montevideo, Ediciones Pueblos Unidos,1969). Toda a exposição do pensamento
espinosano apresenta-o, quanto à substância única, quanto aos atributos, como
um materialista que avançou sobre o seu tempo, embora não seja classificado
aqui como “fundador do materialismo moderno”, como já sucedeu.
Em relação às atitudes perante o
Materialismo verifica-se a tendência para tomá-lo como um todo homogéneo,
apagando-se a sua diversidade, as intensas polémicas internas, a sua evolução.
É unilateral uma investigação que, embora constate e realce as diferenças entre
Espinosa e os libertinos no século XVII, não exprima, todavia, as intenções
comuns, e faça outro tanto no século seguinte, entre o materialismo de Diderot
e de d’Holbach. De resto os termos “materialismo” e “idealismo” só vieram a ser
cunhados nos finais do século dezassete (embora Henry More já houvesse
utilizado o termo “materialista”). “Materialista” foi sempre o epíteto dirigido
ao adversário, com mais ou menos preconceito e acinte, e de tal modo é assim
que somos levados a encarar o materialismo como o “outro”, o negativo, marginal
e silenciado. Em 1674 Robert Boyle, o célebre cientista, classificava como
“materialistas” aqueles que não tinham em conta o movimento da matéria; esta
atitude redutora, comum a outros, revela a associação que ainda se fazia entre
o “atomismo” antigo e as correntes materialistas posteriores, embora a opinião
de More fosse mais fina e menos “aristotélica”. O materialismo, numa
perspectiva fundada da história das ideias, aparece quase sempre como uma
filosofia escandalosa, que professa uma “moral para brutos”, se não mesmo
imoral, daí que fosse perseguida, desacreditada, deturpada. Como discurso-outro
que se via deste modo a si mesmo, exprimiu-se normalmente como um discurso
reactivo, de oposição, reconhecendo-se por meio dos seus adversários, muitas
vezes impiedosos, e evoluindo através dessa mediação. Este movimento e relação
dialécticos são incontornáveis se queremos entender a história das duas
correntes principais da filosofia. Vemos como o combate contra o Espinosa e o
espinosismo não se dissociava da repulsa pelo materialismo em geral. As teses
do monismo e da unidade material do mundo desafiavam uma longa e poderosa
tradição, hábitos e valores. E não é por acaso que tendemos a encarar o Tratado
Teológico-Político, de Espinosa, como um Prefácio da Ética. A separação das
águas passava pela questão religiosa, mas, enquanto muitos digladiavam-se no
interior dela, os materialistas do século dezassete redigiam tratados de
tolerância ou mesmo claramente ateístas.
Se admitirmos a opinião
estabelecida segundo a qual somente a partir do momento em que se estabeleceu
uma separação nítida entre a realidade pensante e a realidade não pensante
(para Descartes “extensa”), se pode falar de materialismo, nome que conviria, pois,
às doutrinas daqueles que afirmam que apenas existe um dos citados tipos de
realidade: a realidade material ou material-extensa[30],
torna-se tarefa difícil demonstrar que Espinosa foi um materialista tipificado.
O que é certo é que diversos materialistas interpretaram Espinosa da maneira
que mais lhes convinha, em alguns casos procederam a rupturas com o espinosismo
nos aspectos que consideravam metafísicos, como se verifica com o próprio
d’Holbach.
O reconhecimento da matéria como
única substância, à qual se vão acrescentando propriedades, algumas das quais
haviam sido anteriormente atributos exclusivos de Deus, exprime uma tese
fundamental das escolas materialistas. Diversas passagens do Texto espinosano
tanto conduzem uns a concluir que o pensamento realiza uma das formas da
existência da matéria corporal, como conduz outros a pôr em relevo o
paralelismo da alma e do corpo. De resto, pode dizer-se que a tese do
paralelismo, as questões da imortalidade da alma, Deus, dos dois atributos,
foram sempre temas de intensa polémica e exploradas de modos diversos as
ambiguidades, aparentes ou reais. O
espinosismo é um referencial ao qual ninguém seriamente se pode escusar, ou por
simpatia mais ou menos dissimulada, ou por repulsa visceral. Daí que os
projectos materialistas de La Mettrie, de d’Holbach, de Diderot, por exemplo,
tentem resolver as contradições, dissolver ambiguidades, eliminar as teses mais
metafísicas, expulsar o próprio nome de Deus e a compleza tese da imortalidade
da alma, buscar na evolução da matéria viva a génese do pensamento, em suma,
realizar o espinosismo, torná-lo mais consequente. Não foi outro o projecto de
Deschamps, embora por caminhos diferentes.
Se ainda hoje perdura a enorme
força crítica do Tratado Teológico-Político, e temos para nós que foi esta a obra que mais
influência exerceu ao longo dos séculos dezoito e dezanove, ela contém um
marcante exemplo da orientação crítica dos materialismos. Será essa, julgamos
nós, a mais visível e eficaz característica da vertente materialista do
iluminismo. Distingue-se, porém, esta consciência crítica do criticismo
anti-cristão do iluminismo deísta, isto é, não materialista (e até seu
irascível adversário). Ao contrário do que julga, e fez julgar, uma tradição
dominante até à data, as obras de La Mettrie e d’Holbach não fazem de Deus, da
religião e das Igrejas, o seu alvo exclusivo, nem utilizam o tom áspero e
chocarreiro com que muitos deístas, eles sim, se pronunciavam sobre esses
temas. É por isso que não interpretamos a censura de dom Deschamps em relação
àqueles que desprezavam a religião cristã, sem se aperceberem das razões da sua
vitalidade e do núcleo recuperável, dirigida apenas ao grupo de d’Holbach,
tanto mais porque as referências manifestas que Deschamps faz ao barão, são
posteriores à redacção do Verdadeiro Sistema. A profusão de literatura
anti-religiosa era suficientemente abundante, e não era toda ela seguramente
oriunda da escola materialista. Nada do que dissemos diminui o carácter
subversivo das filosofias materialistas, bem pelo contrário. Esse carácter
subversivo tanto poderia propor a substituição de um regime político por outro,
sem alteração profunda da sua natureza de classe, e assim terá sucedido com as
ideias políticas de Espinosa, como transitar para projectos antifeudalistas de
emancipação da burguesia, como nos parece ser o caso de importantes
espinosistas materialistas do século seguinte (independentemente da sua elevada
origem social, o barão d’Holbach advogava a República, coisa de que nunca se
atreveu a fazer o grande Voltaire). Dom Deschamps é um caso limite: advoga a
dissolução das classes sociais, homogeneizando todos numa massa indistinta de
camponeses sem propriedade.
Se a tese fundamental dos
materialismos é a de que a unidade do mundo consiste na sua materialidade,
então materialistas, embora com ritmos e traços específicos, foram-no La
Mettrie, d’Holbach, Diderot, para falar apenas destes. Mas foi-o também dom
Deschamps. A “matéria”, vista como noção inserida num sistema de negações e
oposições, que é o aspecto geral da história das ideias, é o que se opõe ao
pensamento ou ao espírito; é essa realidade que determina o pensamento, é o Ser
concebido na sua independência em relação a todo o pensamento. Se utilizarmos a
fórmula consabida da oposição materialismo/espiritualismo, o primeiro,
opunha-se a uma metafísica que reduzia toda a realidade a um princípio
espiritual. Então, neste caso, Deschamps é claramente materialista.
Característico daqueles que então se designavam espiritualistas e mais tarde
idealistas, era a crença em ideias de finalidade, isto é, numa teleologia; ora,
a tese do finalismo, em qualquer das suas formas, foi sempre recusada pelos
materialismos, incluindo evidentemente o Verdadeiro Sistema. Em
d’Holbach, por exemplo, poderia revelar-se um certo fatalismo (como denunciou o
próprio Diderot), apesar disso o famoso barão rejeita insistentemente qualquer
finalismo mesmo natural, quanto mais divino. Outro tanto sucedia com a crença
numa realidade inteligente e criadora que transcendia a composição física da
natureza. Tal entidade, transcendente e criadora, foi recusada por Espinosa e
pelos materialistas do século dezoito. A denúncia do antropomorfismo e a
crítica firme e decidida contra qualquer forma de transcendência e finalismo
natural, identificam a orientação materialista, e os seus adversários sabiam-no
muito bem. A finalidade é substituída pela ideia de uma ordem natural e
universal, um conceito largo e diversificado que se foi moldando sobre os
avanços das ciências, e que constituía, talvez, o tópico mais complicado e
obsessivo em autores tão diferentes como La Mettrie, Maupertuis, d’Holbach,
Diderot, Deschamps.
Dom Deschamps quando se refere ao
“princípio de Espinosa”, que ataca, não se refere ao “princípio materialista”,
aquele segundo o qual, parafraseando Leibniz, a matéria tem de assumir,
sucessivamente, todas as formas de que é capaz. Este princípio, que estaria
contido em Descartes, e que fica mais claro nos métodos de Hobbes e de
Espinosa, este princípio assume toda sua clareza nas escolas materialistas do
século dezoito. O acto de ruptura com Espinosa, de uma determinada ruptura, da
parte da escola de d’Holbach, uma atitude que pretendia abandonar toda a
metafísica, situa-se neste lugar preciso. Esta atitude, entendida ou não nesses
termos por Deschamps, está na origem das violentas censuras deste (que se
manifestam sobretudo nos opúsculos Lettres du siècle, e La Voix de la
Raison). A esta luz, faz sentido colocarmos a interrogação tão longe quanto
possível: indispôs-se dom Deschamps com o chefe-de-fila dos materialistas por
este haver rompido com o espinosismo consequente, isto é, metafísico, o
espinosismo que integrou o infinito no monismo e que, assim, tornou este
absoluto? Se a resposta for positiva, então perfilar-se-ia como o mais
espinosista de todos.
Assim como a filosofia de
Descartes, que não era materialista, teve efeitos materialistas (no famoso
pároco comunista J. Meslier, por exemplo, existem elementos de cartesianismo
juntamente com um certo espinosismo), assim Espinosa foi sobremaneira útil para
o desenvolvimento do materialismo, bem como Hobbes.
No plano gnosiológico o alvo
principal de Deschamps não é o materialismo, mas o empirismo, o sensualismo,
durante os anos de redacção do Verdadeiro Sistema[31];
o grupo de d’Holbach, Diderot, o pioneiro La Mettrie, não eram então
classificados como discípulos de Locke, ou do abade Condollac, ou do empirismo
de Voltaire, ainda que não se mostrassem imunes à influência da filosofia
inglesa; a corrente materialista distinguia-se do puro sensualismo, e se
atribuíam valor à experiência, não a reduziam à pura experiência sensível.
No plano metafísico o alvo
principal é o teísmo e o deísmo. No plano político e moral, passará a ser o
materialismo inconsequente que promove uma mera substituição das leis, isto é,
as leis ético-políticas vigentes e dominantes por outras, igualmente leis.
Dom Deschamps foi amigo de d’Holbach e de Diderot. Amigo que não se coíbe de
censurar as soluções e os projectos do círculo de d’Holbach. Outro tanto fez
Diderot, cuja obra é muitas vezes “dedicada” a algum amigo, istoé, tem como
objectivo a refutação. Este estilo é bem próprio dos filósofos, bons e
verdadeiros.
As posições firmes em que
Deschamps se apoia nos seus ataques não colidem com teses fundamentais do
materialismo. O resultado, todavia, parece algo híbrido; uma estranha
ambiguidade mostra-se naquela construção de uma unidade material do mundo –Le
Tout – que abre para a inquietante possibilidade de um nada absoluto. No
entanto, se encararmos este aparente “nulismo” como realmente aquilo que o
próprio autor formula, como o infinito e a eternidade, talvez então
compreendamos a intenção ética da construção. O nada não é um transcendente
criador (se evoca alguma coisa é um transcendental kantiano), mas, apesar
disso, produz valores, isto é, configura a única atitude sábia perante o
mundo e a vida. Face ao “grande todo” (expressão comum aos materialistas e até
aos naturalistas), ao “ser supremo” (a Natureza), cada um de nós é
insignificante, as nossas paixões valem nada. Por conseguinte, o que importa é
mudar de vida. Dom Deschamps assimila a mais perene lição de existência, que
percorre o estoicismo e o cristianismo. Nele, porém, é um Mundo, sem Alma é
certo, e também sem Deus. «Deus está morto», a bem dizer, para dom Deschamps.
Não mais funda os valores. Os valores que servia para fundar, ou legitimar,
estão definitivamente obsoletos. Esta atitude prevalece nos materialistas, e é
até o leit-motiv deles.
Em Deschamps, tal como em
Espinosa, a substância não é o princípio dos seus atributos, estes é que a
exprimem cada um segundo o seu género. A
correspondência estrita entre Le Tout e Tout, a sua unidade
contraditória, que serve para os distinguir no seu género, sem recurso a
qualquer entidade exterior e superior, evoca o chamado paralelismo espinosano.
O homem, “parte” do todo, ser movediço entre o mais e o menos, ligado a todos
os seres pela sua absoluta natureza, é um reflexo desse “modo finito”
espinosano, no meio do conjunto dos modos finitos; tal como em Espinosa, o
homem não é “um império dentro de um império” e tudo que ele projecta sobre
seres divinos, não são mais do que puras ficções antropomórficas. Jamais se
poderá libertar da ordem da natureza, conhecê-la e obedecer-lhe é que constitui
uma livre existência. Certamente que deduzimos ideias muito semelhantes em
materialistas como d’Holbach (e não será essa sua dívida maior para com o
espinosismo?) e Diderot, mas nunca como em Deschamps essa mensagem foi tão
afirmativa, coerente e proclamatória. A sua utopia atesta-o .Dom Deschamps,
neste sentido, foi sem dúvida o mais consequente espinosista do século dezoito
francês, senão na unicidade unívoca, pelo menos nas consequências.
O materialismo do século recolhe
o legado libertino visando o Deus criador e a alma imortal, argumentação a que
não foi imune o próprio Espinosa. Dom Deschamps e d’Holbach, este que parece
ser um inimigo fidagal, estão mais unidos do que parece, une-os posições-chave
comuns: a oposição tanto à teologia como ao deísmo, e ambos expõem uma ordem da
natureza que não prova a existência de Deus, bem pelo contrário, dispensa-a.. A
imortalidade da alma é por ambos liminarmente rejeitada. A ideia de que a
natureza possui um dinamismo próprio, um princípio de auto-organização, que
comunga com as concepções vitalistas que se desenvolviam por essa altura, e que
aos materialistas muito deve, é comum a ambos, embora com tonalidades
diferenciadas.
Estamos convictos que o Système de la nature, de d’Holbach,
pretendeu fundar o ateísmo sobre uma filosofia materialista, o mais conforme às
teorias científicas que a época permitia; reconhecendo nele, muito embora,
manifestas incorrecções que não escaparam ao ponto de vista crítico de Diderot,
o determinismo do Système de la nature não colidia com orientação que
caracterizou a ciência durante um longo período, sendo ela mesma determinista;
não se compreende, portanto, que se continue a desprezar o sistema de
d’Holbach, seja pelo seu determinismo, seja pelo seu ateísmo que não se limita
a negar a existência de Deus e a arremessar dardos contra a religião, mas, bem
pelo contrário, representa um admirável projecto da cultura ocidental, que
remonta a Epicuro. Um historiador probo da filosofia e da ciência não pode
ignorar as suas produções. Apesar das sua análise do iluminismo em geral e do
materialismo em particular demasiado redutora, e até, por vezes,
incompreensivelmente pouco justa, o mais eminente historiador das ideias,
Hegel, soube escolher d’Holbach como o materialista mais representativo do
século de que ele fez o balanço.
Ora, a verdade é que o sistema de
Deschamps insere-se no mesmo projecto. E a outra verdade que procuramos
demonstrar é que os dois sistemas tinham como referente comum o sistema de
Espinosa.
Nos cadernos que compõem as Observações
Metafísicas, e logo na parte primeira, Deschamps expõe com notável
contenção de palavras não só a substância do seu Sistema, mas diversos aspectos
parcelares que acabam por ser partes essenciais do sistema, entrosados com
admirável coerência. É assim que aí nos remete para os problemas da
causa/efeito, do movimento/repouso, de Deus e do Diabo, etc.Tentemos descobrir
a presença do espinosismo.
Deus foi fabricado conforme a
nossa imagem, como ser físico e como ser moral, mas também como ser metafísico
e sobrenatural, a partir de quê? Logicamente, a partir da ideia de Tout
e do Tout; durante demasiado tempo sem consciência disso, agora com o
auxílio de Deschamps torna-se possível a consciência. A esse Deus emprestamos
atributos positivos e negativos. Por conseguinte, o nosso pensar habituou-se
mais a um erro do que a uma pura falsidade, não tanto à negação da verdade, mas
a um errado exercício do entendimento, que se caracteriza pelo antropomorfismo
e por reunir num ser supremo atributos contraditórios. Dando a esse Deus
atributos morais, tornámo-lo incompreensível e objecto de fé. Ora, torna-se
muito mais compreensível entender Deus como os dois pontos de vista contrários
da Existência. A Deus demos os atributos morais positivos, ao Diabo
demos os negativos, em lugar de admitirmos que os atributos são realmente
opostos mas não são Figuras, pois que se Deus e o Diabo existem é apenas no
sentido unicamente de que eles são os dois extremos, ou opostos absolutos, que
são o mais e o menos metafísicos, o mais e o menos de perfeição, de ordem, de
bem, de realidade, de igualdade, de união, de beleza, de movimento, etc., menos
que, em relação ao bem, por exemplo; é o que nós apelidamos o mal,
porque o mal é o oposto do bem e não a sua negação, dado que se diz mais ou
menos de mal, como mais ou menos de bem. O bem e o mal são
uma espécie de “noções comuns”, que não são realidades naturais, mas traduzem,
no entanto, a realidade dos opostos; na medida em que o Todo natural é composto
de opostos, ou seja, de relações, o nosso pensamento, mesmo o mais comum,
exerce-se por oposições. Os elementos opostos não representam, de modo algum,
entes, coisas ou substâncias, isto é, não existem “seres” bons ou maus em si
mesmos, o que existe é um denominador comum, uma unidade, o bom vale tanto para
a natureza como o mau, tanto necessita daquilo que chamamos bom, como daquilo
que chamamos mau. Esta concepção da Natureza, tão vincada nos materialistas, e
em Deschamps, revela bem a presença do espinosismo.
O Todo – a Natureza -, é
simultaneamente a primeira causa e o primeiro efeito, causa e efeito
metafísicos donde derivam as causas e os efeitos físicos. Sempre nos habituámos
a pensar que os seres são efeitos do Ser, ou suas criaturas, mas jamais
pensámos que o Ser é o efeito dos seres, ou sua criatura; ora, esta verdade que
arruina radicalmente a base do nosso pensar, afasta liminarmente a crença de
que os seres são criaturas de um ser que os cria, mas que é incriado. A causa e
o efeito são duas coisas relativas que só podem ser uma pela outra.
Estas teses mostram com clareza
bastante que Deschamps utiliza habilmente o papel da dialéctica espinosana,
expressa no princípio de que toda a determinação é negação. E, embora de
maneira muito própria, estabelece a impossibilidade lógica da existência de um
ser incriado mas criador, uma causa sem causa. As teses de Espinosa,
particularmente a da causalidade imanente, são respeitadas.
Entre todos os seres vivos existe
um encadeamento, um entrosamento de causas e dos seus efeitos, de efeitos que
são causas, mesmo quando ignoramos a causa de um efeito. É a ignorância,
preguiça, que nos leva a imaginar uma primeira causa que não foi causada.
Porventura a « primeira causa » foi também causada. Seria mais justo
pensarmos que as causas possam ser efeitos dos seus efeitos, do que postularmos
um ser que não é causa nem efeito, isto é, que está acima da conexão
causa-efeito e que, apesar disso, é criador. Nada é mais espinosista do que
isto.
A primeira causa existe pelo primeiro efeito, como o primeiro efeito
pela primeira causa. É da essência, ou da existência, de qualquer causa ser
efeito de outras causas, como é de todo o efeito ser causa de outros efeitos.
Se assim não fosse, não haveria razão alguma para existirem, pois que a
primeira causa só pode ser primeira causa pelo primeiro efeito, e o primeiro
efeito pela primeira causa. O que faz a sua existência é a relação entre elas.
Esta lógica não surpreende tanto quanto isso num tempo em que a biologia, por
exemplo, ainda procedia de modo especulativo, com excepção de raros casos. O
que realçamos é a utilização em Deschamps de uma argumentação lógica que
pretende ir mais além, senão mesmo contra, a lógica marcada paradigmaticamente
pelos newtonianos, a qual encerrava o encadeamento dos raciocínios numa
primeira causa, isto é, num Deus criador, arquitecto ou relojoeiro. Uma causa
não produzida, uma causa que não de modo nenhum efeito, implica contradição. O
que é causa sob um ponto de vista é necessariamente efeito sob outro, e o que é
efeito é necessariamente causa. A causa primeira é o primeiro efeito, e o
primeiro efeito a causa primeira, e tudo o que deriva daí é mais ou menos
efeito do seu efeito, mais ou menos causa da sua causa. «porque é um princípio
de toda a verdade que não existe nada no Le Tout que não seja mais ou
menos relativamente a uma outra coisa o que esta outra coisa é mais ou menos
relativamente a ela (...) é Le Tout, então, que é causa e efeito das
suas partes, e que não é outra coisa senão isso sob todos os pontos de vista
opostos sob os quais as possamos considerar, como os de começo e de fim,
de bem e de mal, de pleno e de vazio, de extremo
passado e de extremo futuro, etc.” [32]
O começo ou o tempo é uma relação, aplica-se a
seres que existem na duração, que são causas e efeitos; sempre existiu o começo
ou o tempo; mas da eternidade, considerada negativamente, não dizemos mais ou
menos eterna. O tempo existe na, ou para toda a eternidade, mas dura mais ou
menos no interior de uma Natureza que é ela mesma submetida ao tempo.
A Terra é o nosso todo, a nossa
unidade, o nosso princípio, a nossa primeira causa e é o movimento geral dentro
do qual somos transportados; no entanto, por cima dos nossos olhos desenrola-se
um vasto todo, o firmamento, mais universal do que este pequeno planeta onde
vivemos; não é um todo ainda mais vasto que falta ao nosso olhar, é o nosso
olhar que lhe falta. Deschamps prefere utilizar termos como forças
“centrífugas” e “centrípetas”, propriedades ambas do Todo, “que é os dois
opostos metafísicos”. O pleno e o vazio são apenas o mais e o menos metafísico,
assim como o movimento e o repouso. Aspectos diferentes com que observamos o
Todo. É O Todo, no qual tudo é mais ou menos cheio e mais ou menos
vazio, ou, o que é a mesma coisa, no qual os corpos se unem e se condensam, se
desunem e se rarefazem mais ou menos. O vazio não é negação de matéria, isso
repugnaria, é o ar encerrado nesta máquina, do qual uma força violenta desuniu
as partes rarefazendo-as... Em suma, nem o pleno ou cheio, nem o vazio, são
coisas absolutas, mas existem como mais ou menos cheio, mais ou menos vazio. A
matéria é que é absoluta, isto é, absolutamente positiva. Que significa
«absolutamente positiva»? Significa uma única substância, que não necessita de
qualquer outra, e que é «absolutamente» real, natural, física, material.
Erradamente andámos à procura de
um primeiro homem, de um começo absoluto para cada espécie, pela ignorância que
mostramos ter de que todas as espécies se interpenetram, se encadeiam umas nas
outras, e têm como começo o universo, a matéria. Em vez de procurarmos no
geral, por via intelectual, procuramos no sensível, no particular, abstraindo,
por exemplo, erradamente, a espécie humana das demais. A origem de cada espécie
é puramente relativa, todas tiveram a sua origem num primeiro gérmen de todas
as espécies. « É a disposição, é a ordem actual que enfeita o mundo que tomamos
como objecto, sem o saber, e por isso se diz dele que ele começou e que ele
acabará : porque o mundo, ou O Todo, existe sempre o mesmo, muito
embora tudo comece e termine nele ;o mundo é o fundamento, a sua
disposição e as suas nuances.» [33].
Ou seja, interpretamos erradamente o movimento do mundo quando o encaramos com
o aspecto actual, sem que nele entendamos a sua transformação; numa palavra: a
sua evolução. Vale a pena reter esta ideia vinda de um pensador dos meados do
século dezoito.
Deschamps não entende como
« primeiro gérmen” um ser sensível, um organismo singular, mas o “primeiro
gérmen metafísico”, isto é, o mais geral de todos os colectivos gerais, O Todo
que gerou as primeiras formas de vida. Deschamps elimina a necessidade de um
Deus criador. A vida surgiu da matéria.
As espécies modificaram-se,
através do tempo, de metamorfose em metamorfose resultaram nas espécies que
observamos. «As esopécies sofrem ordinariamente a longo prazo alterações
consideráveis, e várias espécies de hoje não se assemelham em nada com aquelas
que existiam há cem milhões de anos, embora hajam saído delas»[34].
Evidencia-se aqui uma tese sobre a evolução das espécies, destacando-se o papel
decisivo que o a longa duração desempenhou neste processo. O tema era
apaixonadamente tratado por diversos publicistas e alguns notáveis
investigadores, como Maupertuis e Buffon; Robinet havia dado à luz um grosso
tratado sobre a natureza. Portanto, a tese de Deschamps alinha com as teses
mais avançadas do seu tempo, e por um círculo muito restrito de sábios. Importa
pô-las em relevo, tanto mais porque apresentam-se em perfeita congruência com a
sua crença materialista.
O necessitarismo do sistema não
elimina os possíveis. Não nos parece adequado utilizar com ele a expressão
«determinismo», pois que a sua crença não respeita a um universo estático. Como
tudo é relativo, o possível também o é: as coisas não são imutáveis. No
interior do Todo positivo, actual, muitos são os possíveis. Para a vida do
universo cem milhões de anos contam apenas como um instante; em milhares de séculos
foi acontecendo tudo o que uma gama larga de possiblidades podem ocasionar,
todos os grandes acidentes, seja pelo choque entre globos (planetas, astros)
que podem encontrar-se uns aos outros no seu curso, seja pelas erupções que
sucedem neles, seja por qualquer outra causa extraordinária; acidentes que
destruíram com certeza muitas espécies vivas e até em outros planetas as mesmas
que aqui existem. Outros planetas poderão ser habitados por seres nossos
semelhantes, porque não?
O impossível é somente aquilo que não é possível para nós,
no interior do universo não existe a impossibilidade absoluta.
È porque o homem aspira ao
impossível isto é, àquilo que é impossível para as suas forças, que ele tende a
ser o centro de todas as coisas, ao antropocentrismo diríamos nós: os seus
desejos são os de um deus, o seu poder o de um homem. Quer ser O Todo, quando é
somente uma parcela dele. No entanto, uma parcela capaz de aspirar a outros
possíveis, como é o caso da própria sociedade utópica de Deschamps, e aos impossíveis,
como certas quimeras. Foi também com base nesta aspiração ao impossível que se
fundaram as religiões. Deschamps não pretende fundar uma nova, mas fundar uma
sociedade que se encontra nos limites do possível. Em rigor, é mesmo a única
que respeita a dialéctica da necessidade e da possibilidade da natureza humana.
Os homens são o que são devido à
sua “conformação vantajosa”. O termo é utilizado com insistência e definição
suficientes para nos levar a admitir que é um conceito, e é um conceito extremamente
moderno. Não apenas revela uma concepção materialista, filosoficamente falando,
da vida e do mundo, como fornece um dispositivo teórico muito útil para a
ciência, ou que seria muito útil se houvesse sido divulgado. Não se encontra
nos seus textos matéria suficiente para afirmarmos que ele anunciava quer o
lamarckismo, quer o darwinismo, mas o termo e o contexto prepara o caminho. É
importante constatar que Deschamps localiza as vantagens do homem tanto nas
mãos, como no cérebro. Mãos, cérebro, linguagem. A sua organização em
sociedades, outro dado fundamental a ter em conta. Munidos destas vantagens,
anteriores a qualquer forma de autoconsciência evoluída, os homens começaram a
julgar-se superiores sobre o resto dos animais. A sua superioridade é meramente
aparente, isto é, quando muito foi bafejado com uma «conformação vantajosa».
Sentindo-se superiores, e ignorando a causa das vantagens, imaginaram possuir
uma alma da qual estariam privados os restantes animais. Daí todos os sistemas
filosóficos falarem em alma, e todos eles se enredarem em dificuldades
insolúveis. Na verdade possuímos uma “alma física e uma alma metafísica”. “A
alma física é a vida, é o encadeamento das engrenagens que constituem a máquina
do nosso corpo. A alma metafísica, esse ser que sempre se confundiu com a alma
física, e do qual sempre se falou tão absurdamente, é aquilo que nós temos de
rigorosamente comum com todos os seres, é a própria existência metafísica, “a
alma física é apenas um efeito do próprio corpo”[35].
Todos os animais possuem uma alma física. Todas as coisas naturais, dentro de O
Todo, possuem sentidos, diversos embora na forma, possuem sentimentos, possuem
vida. Estas ideias de Deschamps não repetem concepções a favor de uma “Alma do
mundo”, clássicas ou renascentistas; estão, antes, em sintonia, com as
correntes naturalistas do seu tempo; não fazem dele um regressivo, mas um
moderno; não fazem dele um pensador que despreza a ciência, mas, pelo
contrário, um intelectual bem atento e capaz de assimilar de maneira muito
pessoal o que somente alguns se atreviam a dizer. Chega a admitir que seres
vivos não animais, presumidamente vegetais, poderão possivelmente possuir
sentimentos... Os seres inanimados também possuem movimento, ainda que esse
movimento não seja por nós percepcionado. Se possuem movimento também hão de
possuir alguma sensibilidade. Repare-se que estas ideias são expostas nos
primeiros cadernos que ele redigiu, ainda na década de sessenta. Claro que é de
considerar que ele haja feito acrescentamentos e revisões. Seja como for, a
ideia de uma sensibilidade geral da matéria estava ainda a surgir entre os
naturalistas como Buffon, Maupertuis, o filósofo Diderot, e bastante mais
tarde, por d’Holbach. É uma concepção que reputamos de enorme importância, porque
caracteriza fortemente o naturalismo materialista da época, que serviu para
romper com o materialismo mecanicista, que permite a Diderot afirmar que isso
distingue os antigos espinosistas do novo espinosismo, conforme ele o diz no
famoso artigo da Enciclopédia, e que constitui uma contribuição notável para o
avanço das ciências da vida. Dom Deschamps situa-se, portanto, na vanguarda.
Por conseguinte, os vegetais e os
animais poderão possuir eventualmente sentimentos, pensamentos e memória, sem
semelhanças connosco. “O pensamento, o sentimento e a memória são modificações
do movimento”[36].
Estas faculdades nos animais não são distintas do corpo, são o seu efeito. A
diferença connosco deve-se a um mais: mais inteligência, mais memória,
mais sentimento, e, enfim, autoconsciência. Deschamps é um filósofo ao qual se
pode criticar tudo, menos falta de coerência.
Foi, e é, devido à nossa
ignorância que somos levados a julgarmo-nos superiores, “vício do nosso estado
social, vício nascido da nossa ignorância” que nos leva a excedermo-nos em
tudo; a nossa superioridade intelectual, porém, não nos trouxe mais
razoabilidade e felicidade em comparação com os animais. Deschamps era monge,
mas não se vislumbra aqui nenhuma repetição consabida do franciscanismo, ainda
que as lições do respeito pelos animais não estejam esquecidas. A atitude não é
a mesma.
Uma outra ideia é de reter: “ O
meu eu (le moi) é o todo do meu corpo”, nós podemos distinguir uma ou
outra parte do nosso corpo, sentir esta ou aquela, tomar consciência desta ou
daquela parte, mas é o nosso corpo, como um todo, que sente, dá conta, toma
consciência. Somos um todo, em suma, e é esse todo o meu eu que exprime,
que torna possível este eu. A neurologia e a psicologia dos nossos dias
não dirá o contrário.
«Temos buscado o homem fora do
homem, buscando-o fora da máquina do seu corpo»[37],
é esta totalidade orgânica, congruente e funcional, que nos faculta sentimentos
e acções. “As nossas ideias, as nossas sensações e os seus objectos são a mesma
coisa, não no sentido de que a ideia, por exemplo, que nós fazemos do sol seja
o próprio sol, mas no sentido de que ela tem (est) tudo o que o sol é
para nós”[38].
É absolutamente tentador aproximarmos estas afirmações dos escritos de
Espinosa...
“Ter a sensação de uma coisa, é ser
esta coisa proporcionalmente à sensação que dela temos, de maneira que vê-la
mais ou vê-la menos, julgá-la mais ou menos (...) é ser mais ou menos essa
coisa, e nada mais”[39].
O espinosismo de Deschamps é puxado até ao limite, dentro da coerência de um sistema
que não é de todo em todo o sistema de Espinosa. A ideia é esta: somos partes,
organizadas, de partes idênticas de que são feitos outros corpos, vegetais,
animais e até coisas inorgânicas. A diferença está, sobretudo, na complexidade,
na estrutura. A estrutura determina a função. A isto nada pode opor um
cientista de hoje, ou seja, que os elementos físicos, químicos, e biológicos,
estão disseminados por toda a natureza. Recusando-se um Deus criador e um alma
distinta e imortal, estamos mergulhados no mais puro materialismo filosófico. É
esta ideia de semelhança entre tudo que permite a Deschamps acreditar na utopia
de um naturalismo.
“Se nós pensássemos, apesar do eu
aparente que nos distingue dos outros seres, que somos compostos de tudo o que
existe de sensível, que nós estamos ligados a tudo, que estamos em unidade com
tudo, embora separados de tudo aparentemente, deixaríamos de nos ver como seres
inteiramente distintos uns dos outros, e de crer em consequência que nós e os
objectos fora de nós, que as nossas sensações e os seus objectos, não são
relativamente ao todo a mesma coisa “ [40].
Não nos deixa qualquer dúvida sobre a formidável coesão e harmonia do mundo.
Dom Deschamps, mais do que qualquer outro filósofo do século dezoito francês,
tanto quanto sabemos, levou o conceito de «o grande todo», conceito-chave do
século, à sua máxima amplitude. Nunca, ou muito raramente, se assiste a um
pensamento da totalidade tão metafísico, mais atrevidamente metafísico do que o
“grande todo” d’holbachiano, mais ousado até do que os ensaios magníficos de
Diderot, ainda que sem o esplendor que adquire nas páginas deste último. Um
conceito puramente materialista, ainda que puramente especulativo. Só
conhecemos um filósofo maior, que lhe antecede e que o supera na originalidade,
na absoluta singularidade com que se levanta até hoje em toda a história da
filosofia: Espinosa. E julgamos firmemente que Deschamps tinha disto perfeito
conhecimento.
“A necessidade de um
acontecimento não pode nunca existir senão depois que ele aconteceu; todo
acontecimento é sempre contingente mais ou menos antes que ele suceda (...)
seja qual for o modo como ele aconteça para os diferentes testemunhos, ele
aconteceu sempre necessariamente quando aconteceu; necessariamente desta
maneira para Pedro, e necessariamente doutra maneira para Paulo (...) Pode-se
dizer que tudo que aconteceu, acontece necessariamente pela necessidade
relativa primeira, porque estava no encadeamento das coisas que ele
acontecesse, contudo não é preciso concluir que devemos baixar a cabeça perante
o curso das coisas, pois que depende de nós, mais ou menos, necessitar ou não
dessas coisas no seu curso...”[41].
Como é possível resistir à aproximação imediata com Espinosa? Dir-se-á que
d’Holbach também desenvolve extensas considerações sobre o mesmo tema, mas isso
apenas confirmaria a influência do espinosismo também nele e, por outro lado, o
système de la nature é muito posterior a este escrito de Deschamps. De
resto, essa similitude explica a reacção violenta de Deschamps quando toma
conhecimento da obra de d’Holbach, onde, a par das críticas que lhe dirige, se
adivinha um profundo ressentimento. Afinal, já ele o tinha dito e disse-o
melhor, pensa ele, sem que merecesse a fama do outro. Por outro lado, há que
acrescentar que o pensamento de d’Holbach é mais determinista, com uma
tonalidade tal que os críticos seus contemporâneos o apelidaram de «fatalista»,
como se pode concluir da novela de Diderot, Jacques, le Fataliste.
André Robinet, o autor, como já
se referiu, de uma obra sobre Dom Deschamps publicada em 1974, escreve as
seguintes palavras :”Se um cogito materialista foi algum dia enunciado, foi bem
nestas páginas de Deschamps”, a propósito de uma teoria do conhecimento exposta
por Deschamps, por exemplo neste passo:” Ter a sensação de uma coisa, é ser
esta coisa proporcionalmente à sensação que dela se tem, de modo que vê-la mais
ou vê-la menos, julgá-la mais ou julgá-la menos, é ser mais ou menos ela e nada
mais”, que já havíamos citado acima. Tem inteiramente razão o ilustre
investigador especialista em Malebranche, pois trata-se efectivamente de uma
teoria gnosiológica, etapa de qualquer sistema que se preze. E é esta, em
concreto, uma teoria perfeitamente coerente com a arquitectura do sistema
deschampsiano, sem que nada tenha que ver com a teoria cartesiana. Apenas nos
atrevíamos a acrescentar ao douto professor de filosofia, que esta concepção
sobre a origem natureza das ideias, remete-nos para Espinosa, e parecem-nos
maiores as semelhanças do que as diferenças.
Assim é que Espinosa submete o
corpo à “ratio” de movimento e repouso, a morte resulta de uma alteração dessa
“ratio”( à qual Deschamps denomina do “mais” e “menos”). O corpo existe no
tempo, na duração, a mente exprime o corpo, sem ele nada seria. A Natureza é
encarada como um corpo, corpo de todos os corpos, Indivíduo de todos os
indivíduos que nele se unem em vida e dele se separam, apenas relativamente, na
morte. É pelo corpo que alcançamos o eu, ou as diversas formas, mais
conscientes ou menos, de autoconsciência. Pelo corpo percepcionamos, ou somos
afectados, pelos outros corpos. A dimensão corpórea é o primeiro degrau de
acesso ao real. Contudo, as ideias não se originam exclusivamente, e todas, a
partir das sensações, pois que intervém a linguagem (os signos), a memória, a
imaginação, até alcançarmos o degrau do conhecimento intuitivo ao qual não se
chega por via empírica. Cada corpo e todas as demais coisas só ganham sentido
vistas como partes de um Todo. “É o grau de integração cósmica que distingue os
corpos”, explica-nos Maria Luísa R. Ferreira[42]
«É este sentido cósmico de
simbiose da parte com o Todo que torna Espinosa tão próximo dos problemas
ecológicos contemporâneos, sendo o seu pensamento por vezes tomado como
possível fundamentação dos mesmos.»[43]
O pensamento de dom Deschamps
suscita-nos as mesmas considerações. O sistema espinosano pode ser,
eventualmente, o sistema de uma filósofo «embriegado de Deus», como o
classificou Novalis, e não de de um materialista ateu. O neo-espinosista do
século seguinte, dom Deschamps, foi integralmente autor de um sistema
materialista e ateu. Um materialista mais congruente e consequente –atrevemo-nos
a dizer: mais moderno – que o materialismo do chefe-de-fila dos materialistas,
d’Holbach. A harmonia cósmica que anunciou é bastante mais apelativa aos
leitores do nosso tempo, que a harmonia do «grande todo» d’holbachiano. Que
fonte os inspirou a ambos e a Diderot, para crerem em tal mundivisão?
Fontes diversas, sem dúvida, uma atmosfera cultural impregnada de valores
naturalistas, uma ideia de Natureza sem deus, toda ela generosa e pródiga,
simultaneamente geradora e destruidora; porém, nessa atmosfera, nesse ar do
tempo, nesse panteísmo que se insinuava nas élites bem-pensantes, a
fonte primeva foi o espinosismo.
Certamente que muitos extrairam
argumentos da filosofia da natureza de Espinosa, sem que quizessem, alguma vez,
romper com a crença em Deus; foram os deístas; não é menos certo que o
«materialismo vitalista», alimentado por argumentos espinosistas, resultou em
ateísmo nos casos de Diderot[44]
e outros. Certamente que o carácter individualista do pensamento de Espinosa, e
entendemos com esta expressão tão ambígua, a defesa de pensamento dos
indivíduos, foi «arma de guerra» de arautos do liberalismo, teoria que em
muitos casos se confunde com os interesses da Burguesia ascendente. Mas não é
menos verdade que a reivindicação espinosana das liberdades individuais contra
os Poderes (políticos, religiosos), podia ser encaminhado para a crítica de
qualquer forma de Estado político institucionalizado, regido por normas e leis,
a bem dizer soberano. Foi precisamente este o caminho que dom Deschamps percorreu,
como iremos constatar na segunda parte desta dissertação. Porque «não é de
maneira nenhuma a moral, é a política que constitui o fundo dos nossos
costumes»[45]
Daí que os cadernos que se
intitulam »Observações Morais» constituem um autêntico Tratado Político. Um
projecto de reforma que não se apresenta como mera hipótese de um diletante,
pois que resulta como necessidade (lógica, ontológica e gnosiológica) de um
articulado de princípios e postulados intuídos pela razão.
Certamente que o par contraditório –Le Tout e Tout – não
corresponde às definições espinosanas da substância única e unívoca; no
entanto, a tese deschampsiana de que «não existe nada de negativo na natureza»[46],
corresponde a uma ideia central do pensamento de Espinosa.
Não é menos certo que não encontramos nos textos de dom Deschamps o
termo tão vincadamente espinosano de «conatus», nem uma definição que se
aproxime desse impulso vital que explica que «Cada coisa enquanto está em seu
poder esforça-se por perseverar no seu ser»[47];
no entanto, sendo que «Numa perspectiva física, o «conatus» define-se
por uma certa proporção de repouso e movimento»[48],
como não aproximar desta ideia a exposição que fizémos da teoria deschampsiana
do «repouso e movimento»?
Em suma: nunca esteve nos nossos
propósitos apresentar dom como um
neo-espinosista que perseguiu, em jeito de aluno sem ideias próprias, as
definições e os axiomas de Bento Espinosa. Procurámos demonstrar, isso sim, a
presença luminosa do ilustre filho de judeus portugueses tanto nos Philosophes
materialistas, como, muito em particular, num monge filósofo, ateu e
materialista, desconhecido do público português. E não se poderia fornecer
melhor exemplo de filosofia enquanto esforço de evolução e superação, dizendo
melhor: de integração e superação, porque como advertia I. Kant,« [De
mim]
não aprendereis pensamentos para repetir, mas antes como pensar».
Julgamos nós que encontrámos
sobejos indícios da forte presença do espinosismo no pensamento deschampsiano
sobre a Natureza, a interligação dos corpos, a impossiblidade de uma alma
separada do corpo e imortal, da rejeição da falsa crença num eu sem
mediações, e de uma natureza humana que transcende tanto o corpo vital como as
relações sociais; pelo contrário, a cosmovisão deuma humanidade integrada no
todo, que obriga-nos a conhecer a ordem deste, as suas leis endógenas, e nos
aconselh a viver em harmonia connosco e com o todo. Dom Deschamps utiliza
abundantemente o termo «parte(s)», que pareceu incomodar alguns interlocutores;
a verdade é que Espinosa utilizou esse termo, e basta citá-lo uma vez:«
Padecemos enquanto somos uma parte da Natureza que não pode conceber-se por si
sem as outras [partes]».«É
impossível que o homem não seja uma parte da Natureza e não possa sofrer outras
mudanças que não sejam as que se podem unicamente conhecer pela sua natureza e
das quais é causa adequada»[49]
«O Filósofo e a sua Sombra»,
recorde-se o título da nossa dissertação. A «Sombra» se não é, em rigor, o
próprio Espinosa da ÉTICA, é, pelo menos, o espinosismo tal como chegou às mãos
de dom Deschamps. Essa «sombra» foi, de resto, detectada por praticamente todos
aqueles que leram obras do beneditino. Esta constatação soava como denúncia,
alerta para os esbirros dos poderes político e religiosos. Era de esperar que
Deschamps refutasse, tanto mais depressa quanto pudesse, o sistema de Espinosa.
Assim procedeu, mas menos por receio do que pela necessidade de se afirmar com
um pensamento autónomo. Pensar autónomo que, pensando do interior das teses
espinosanas da substância única, «descolava» delas exactamente na medida em que
julgava, com ou sem justeza, que elas encerravam uma contradição.
É dessa Contradição que dom Deschamps arranca para a antevisão de uma
sociedade igualitária. Todavia, a Existência é Tudo, é única e a mesma. O Nada,
ou Infinito, recobre com o manto diáfano da eternidade um mundo todo ele
material, que exprime uma ordem que transcende os desejos apaixonados da
espécie humana, os seus egoísmos e as suas invejas, que apela para uma harmonia
possível, necessária e desejável, perfeitamente racional, ao alcance do
conhecimento humano, e capaz de extirpar de vez as raízes da melancolia.
[1] «Ce n’est que parce que je suis au fond
la vérité que la voilà développée, et ce n’est que parce que mes semblables la
sont ainsi que moi, que ceux d’entre d’eux capables de me lire e de me
comprendre diront apès m’avoir lu, et compris, c’est elle, la chose est
évidente.», Léger-Marie Deschamps, Œuvres
Philosophiques, Observations Métaphisiques, Conclusion, t.2, p.402, edição organizada por Bernard
Delhaume, Paris, J. Vrin, 1993.
[2] Jacques D’Hondt, « Dom Deschamps et
sa métaphysique, Religion et contestation au XVIII siècle, Avant-Propos, Paris,
Presses Universitaires de France, 1974
[3] André Robinet, Œuvres Philosophiques
de Léger-Marie Deschamps, Avant-Propos, Paris, Vrin, 1993
[4] «Un moine appelé Dom Deschamps m’a fait
lire un des ouvrages les plus violents et les plus originaux que je
connaisse. » Diderot em carta a Sophie Volland, Correspondance générale,
éd.Roth, Minuit, Paris, 1963, vol.IX, pp. 245-246.
[5]
Carta de Deschamps ao marquês, de 18 de Abril de 1766.
[6]
Per substantia intelligo id, quod in se est,& per se concipitur: hoc est
id, cujus conceptus non indiget conceptu alterius rei, à quo formari
debeat », Ethica, I, def. III, in Spinoza Opera, ed. de Carl Gebhardt,
Heidelberg/Carl Winters, ETHICES, Pars
Prima, De Deo, Definitiones, III, Spinoza Opera, Heidelberg/Carl Winters
[7] « Tout, qui ne dit point de
parties, existe et est inséparable du Tout universel, qui dit des
parties, et dont il est l’affirmation et la négation tout à la fois. Tout
et Le Tout sont les deux mots de l’énigme de l’Existence, mots
que le cri de la vértité a distingués en les mettant dans notre langage. »
Précis en Quatre Thèses, Thèse IV, t. 1, p.133
[8]« j’entends par Tout,
l’existence en soi, l’existence par elle-même, c’est-à-dire l’existence
considérée comme ne faisant qu’un seul et même être qu’on ne distingue plus
alors des êtres, comme étant l’être unique, et, conséquemment, sans
rapport, ou, comme je l’ai dit, sans existence par autre chose que par
elle-même. » La Vérité, ou Le Vrai Système, Préface, t. 1,p.91
[9] « Tout, ou l’être unique »,
La Vérité, ou Le Vrai Système, Préface, t.1,p.91
[10]
“Du Tout, qui est le principe.” idem, ibidem.
[11] «Per substantiam intelligo id, quod in se
est, & per se concipitur : hoc est id, cujus conceptus non indiget
conceptu alterius rei, à quo formari debeat.» Ethica 1Def3, Spinoza
Opera, Heidelberg/C.Winters,45/14-16.
[12]
«Per attributum intelligo id, quod intellectus de substantiâ percipit, tanquam
ejusdem essentiam constituens.», E1Def4,G,II,15/17-19.
[13] “car cette revolution, toujours à éviter
comme aussi dangereuse qu’inutile, n’empêcherait pas l’état de lois divines et
humaines de subsister, et le mal moral, dont cet état est la cause, d’exister
avec la même force, quoique sous d’autres nuances. », Préface, p.83
[14] “L’extrême difference qu’il y a entre Le
Vrai Système et l’athéisme, c’est que Le Vrai Système en niant le
moral du théisme en affirme le métaphysique, d’où il conclut au moral, et que
l’athéisme, qui ne connaît point de principe, nie l’un et l’autre, et ne nous
laisse, quoi qu’il en puisse dire, qu’une morale arbitraire. », Préface,
p.89
[15] « Le métaphysique, loin d’avoir pour
objet l’homme en particulier, autrement que pour l’éclairer sur lui-même, n’a
et ne peut avoir pour objet que de considérer les êtres en grand, en général,
en total ; que de les considérer dans ce qu’ils ont tous de rigoureusement
commun(…)», Œuvres Philosophiques, t.1, Réflexions Métaphysiques
Préliminaires, p. 95, Paris, J. Vrin, 1993.
[16] «Spinosiste, s.m. (Gram.), sectateur de
la philosophie de Spinoza. Il ne faut pas confondre les spinosistes
anciens avec les spinosistes modernes. Le principe général de ceux-ci,
c’est que la matière est sensible, ce qu’ils démontrent par le développement de
l’ouef, corps inerte, qui, par le seul instrument de la chaleur graduée, passe
à l’état d’être sentant et vivant, et par l’accroissement de tout animal qui,
dans son principe, n’est qu’un point, et qui, par l’assimilation nutritive des
plantes, en un mot, de toutes les substances qui servent à la nutrition,
devient un grand corps sentant et vivant dans un grand espace. De là ils concluent
qu’il n’y a que la matière, et qu’elle suffit pour tout expliquer ; du
reste, ils suivent l’ancien spinosisme dans toutes ses conséquences.», Diderot,
artº «Spinosiste», Encyclopédie, Bordas, 1985.
[17] Bayle, P., Dictionnaire historique et
critique (publicado de 1695 a 1697, em 2 vols.), , artº « Spinoza ».
[18] « Ainsi, dans le système de Spinoza,
tous qui dizent : Les Allemands ont tué dix mille Turcs, parlente
mal et faussement, à moins qu’ils n’entendent : Dieu modifié en
Allemands a tué Dieu Dieu modifié en dix mille Turcs ; et ainsi
toutes les phrases par laquelles on exprime ce que font les hommes les uns
contre les autres n’ont point d’autres sens véritable que celui-ci : Dieu
se hait lui-même, il se demande des grâces à lui-même, et se refuse, il se
persécutent, il se tue, il se mange, il se calomnie, il s’envoie sur
l’échafaud, etc.», Bayle, P., Dictionnaire, note N, IV, fin.
[19] «savoir que Dieu est la seule substance
qu’il y ait dans l’univers, et que tous les autres êtres sont des modifications
de cette substance.» «une supposition si étrange, qu’elle ranverse la plupart
des notions communes qui sercent de règle dans les discussions
philosophiques ;…c’est la plus monstueuse hypotèse qui se puisse imaginer,
la plus absurde et la plus diamétralement opposé aux notions les plus évidentes
de notre esprit.». idem
[20]
No excelente livro do cientista português António Damásio – “Ao Encontro de
Espinosa”, Lisboa, Europa-América, 2003 Europa - que possui a dupla vantagem de constituir uma
boa oportunidade para um vasto público tomar conhecimento, através de uma ópima
exposição, da vida e obra de Espinosa, e de confirmar cientificamente algumas
das suas teses, pode-se constatar a enorme influência do espinosismo no decurso
do século XVIII :” [Jonathan] Israel [ in Radical Enlightenment : Philosophy
and the Making of Modernity 1650-1750 (Oxford University Press, 2001)] oferece
provas contra a ideia de que o trabalho de John Locke dominou o debate desde as
fases iniciais das Luzes. Por exemplo, uma das publicações centrais das Luzes,
a Encyclopédie de Diderot e d’Alembert dedicou a Espinosa um espaço
cinco vezes maior do que aquele que dedicou a Locke, embora o elogio de Locke
seja mais pronunciado, o que Israel interpreta como uma “manobra de diversão”.
Israel mostra também que no Grosses Universal Lexicon, que Johann
Heinrich Zedler publicou em 1750 – a maior enciclopédia do século XVIII -, os
artigos sobre “Espinosa” e “espinosismo” eram bem maiores do que o modesto
artigo sobre Locke. A fama de Locke aparece mais tarde.”, Damásio, ob. Cit.,
p.287.
[21]
Expôr o pensamento, o sistema de Espinosa, em 7 páginas, é completamente
impossível, embora circulem muitos compêndios que o pretendam fazer. O nosso
projecto não é esse, de modo nenhum, mas destacar apenas aquilo que tem que ver
directamente com teses principais de Deschamps, a nosso ver é claro, sobretudo
com o texto de Deschamps «Refutação [de Espinosa]».
[22]
A Dinâmica da Razão na Filosofia de Espinosa, dissertação de doutoramento,
Lisboa, 1993.
[23]
P.220.
[24]
“At vera hominis agendi potentia, seu virtus est opsa ratio (per Prop.3.p.3.),
quam homo clarè, & distinctè contemplatur (per Prop.40. & 43.p.2),
Spinoza Opera, obra cit., p.249, Ethica, P. IV, P. LII. Dem.
[25]
“In vitâ itaque apprimè utile est, intellectum seu rationem, quantùm possumus,
perficere, & in hoc uno summa hominis felicitas, seu beatitudo
consisti ; » Et., IV, Appendix, caput IV, G. II., p.267
[26]
“Ex omnibus suprà dictis clarè apparet, nos multa percipere, & notiones
universalis formare Iº. Ex singularibus, nobis per sensûs mutilatè, confusè,
& fine ordine ad intellectum repraesentatis: & idèo tales perceptiones
cognitionem ab experientiâ vagâ vocare consuevi. IIº Ex signis, ex. gr. Ex eo,
quòd auditis, aut lectis quibusdam verbis rerum recordemur, & earum quasdam
ideas formemus similes iis, per quas res imaginamur. Utrumque hunc res
contemplandi modum cognitionem primi generis, opiniomem, vel imaginationem in
posterum vocabo. IIIº.
Denique ex eo, quòd notiones comunes, rerumque proprietatum ideas adaequatas
habemus; atque hunc ratonem, & secundi generis cognitionem vocabo. Praeter
haec duo cognitionis genera datur, ut in sequentibus ostendam, aliud tertium,
quod scientiam intuitivam vocabimus. Atque hoc cognoscendi genus procedit ab
adaequatam cognitionem essendiae rerum.”, Et., P.II,Prop.XL.,Esc.II,p.122.
[27]
“Per attributum intelligo id, quod intellectus de substantiâ percipit, tanquam
ejusdem essentiam constituens.”, Eth., P. I, De Deo, Definitiones, Spinoza
Opera
[28]
“Quò plus realitatis, aut esse unaquaeque res habet, eò plura attributa ipsi
competunt.”, Eth. P. I, Prop. IX,
o. cit. P.51
[29] «Dom Deschamps, que bajo sus
hábitos ocultaba una prática filosófica defensora del materialismo y del
comunismo», lê-se no livro de J.M.Bermudo Ávila, Helvétius y D’Holbach,
Barcelona, Ed.Horsori, 1987.,p.119.
[30]
V. Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, Barcelona, Edhasa, 1976.
[31] «Le métaphysique, loin d’avoir pour objet
l’homme en particulier, autrement que pour l’éclairer sur lui-même, n’a et ne
peut avoir pour objet que de considérer les êtres en grand, en général, en
total», este enunciado dirigia-se particularmente a Condillac e aos
sensualistas-empiristas- in O .Ph., p.95.
[32] «car c’est un principe de toute vérité
qu’il n’est rien dans Le Tout qui ne soit plus ou moins à l’égard d’une
autre chose ce que cette autre chose est plus ou moins à son égard.[…] c’est Le Tout, alors, qui est cause et effet de ses parties, et qui
n’est jamais que cela sous tous les points de vues opposés sous lesquels on
peut les considérer, comme ceux de commencement et de fin, de bien
et de mal, de plein et de vide, d’extrême passé et
d’extrême futur, etc.», O .Ph., p. 336.
[33] O . Ph., p. 374
[34]
idem, p. 375.
[35]
O .Ph., p.376.
[36]
idem, p. 378.
[37]
O . Ph. P.384, incluindo as citações imediatamente anteriores.
[38]
Idem.
[39]
Idem, p. 385
[40]
idem, p. 384.
[41]
Idem, p.346.
[42]
in «A Dinâmica da Razão na filosofia de Espinosa», F. Calouste Gulbenkian,
Lisboa, 1997, p. 536.
[43]
M. Luísa Ferreira, idem, p. 534.
[44] Lettre sur les Aveugles, 1748.
[45] «Ce n’est point la morale, c’est la
politique qui constitue le fond de nos mœurs», O .Ph., p.270.
[46] «il n’est rien de négatif dans la
nature», O .Ph., p.231.
[47] «Unaquaeque res, quantùm in se est, in
suo esse perseverare conatur», Et.,III, prop. VI, G.II,p. 146.
[48]
In M. Luísa R. Ferreira, Op. cit., p.447.
[49] «Nos eatenus patimur, quatenus Naturae
sumus pars, quae per se absque aliis non potest concipi».
Et. IV, prop. II, G. II., p.212.
«Fieri non
potest, ut homo non sit Naturae pars, et ut nullas possit pati mutationes, nisi
quae per solam suam naturam possint intelligi, quarunque adequata sit causa».
Et.IV,
prop. IV, G.II,p.212.
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