O EURO DA ALEMANHA
Afirmar que «o euro foi o maior bónus que
a Europa podia oferecer à Alemanha» (o primeiro ministro em entrevista, 24/03/
2019) e não admitir que a moeda única, nessas circunstâncias, veio prejudicar
Portugal mais do que beneficiar, e veio regular a economia por critérios
monetaristas sob tutela de Bruxelas, é querer andar à chuva sem se molhar. A
crise de 2007/8 deixou sequelas (uma dívida pública insustentável, que, na
realidade, se deveu mais aos privados, aos Bancos); aliás, permanece a crise
geral do próprio sistema capitalista (as crises de sobreprodução e subconsumo
são endémicas ao capitalismo), agravadas pelo modelo neoliberal ao gosto do
capital financeiro que domina na Europa. Não se trata para nós de querer sair à
pressa e sozinhos; trata-se de afirmar a nossa autonomia nas políticas
económicas internas, de discutir as condições do pagamento da dívida para assim
aumentar os investimentos públicos. O “pragmatismo” de determinados políticos
(senão mesmo dos partidos ditos socialistas) disfarça mal a falta de propostas
corajosas na arena internacional em defesa dos Estados sociais (em termos de
reformas, é o mínimo que se pode exigir). O discurso populista das
extremas-direitas contra a União não tem nada que ver com as críticas da
Esquerda a esta União Europeia de moeda única. Denunciar consequências
negativas desta União sobre os trabalhadores europeus não faz de um fascista um
socialista.
Existem alguns países na Europa
onde se alcançam os mais altos índices de qualidade de vida do planeta
(Holanda, Suíça, Noruega), a Europa centro-norte de modo geral, nem todos eles
são membros plenos da União Europeia (alguns não quiseram ser membros efectivos
desta União). Dir-se-á que é devido a esta União Europeia do Euro que esses
países gozam de prosperidade suficiente comparativamente (não esquecer as
desigualdades profundas). Tê-la-iam provavelmente sem esta União, porque
beneficiam de acordos comerciais multilaterais ou de um mercado que já era
interligado. Quem tem beneficiado largamente é o gigantismo dos Bancos e a
ganância capitalista por lucros quase isentos de impostos em alguns desses
pequenos países.
Algumas melhorias na vida das
populações (a mobilidade sobretudo) têm resultado inegavelmente de leis
aprovadas no Parlamento europeu. Por isso é necessário participar nas próximas
eleições, votando naqueles partidos da Europa que se propõem um papel
progressista e reivindicativo no interesse dos trabalhadores e dos povos e que,
para isso, desejam serviços sociais melhores, paz e cooperação entre os países
membros.
A aspiração a uma Europa de Paz é
antiga, verdadeiramente desde que a Europa começou com a Modernidade. O
primeiro século da nova Era foi terrível. A Paz de Vestefália (1660) veio pôr
tréguas, relativamente longas, às guerras internas entre os impérios
continentais. O século XIX foi, sobretudo, o século das revoluções demoliberais
na Europa e dos impérios coloniais. O século seguinte, esse sim, foi o século
da mais profunda oposição: o século das revoluções socialistas contra o
capitalismo das crises económicas devastadoras, das guerras mundiais, do jugo
colonial. Competição feroz intercapitalista sob a forma de nacionalismos
agressivos. Ou seja, o imperialismo contemporâneo.
Entre as duas guerras mundiais
surgiram várias propostas para organizar cartéis do carvão e do aço, algumas das
principais causas das cobiças nacionalistas. Talvez o primeiro projeto
publicado para a paz tenha sido o de R. Condenhove-Kalugi, PARA A EUROPA, em
1922, a partir do qual se formou um importante movimento pró-europeu, sem a
inclusão da Rússia – União Soviética (por ser em parte não-europeia) e do Reino
Unido, pois, assim, diziam, evitava-se a ameaça do domínio do exército
vermelho, por um lado e, por outro, o domínio económico dos EUA e do então império
britânico. Constitui-se uma União
Pan-Europeia (1923) de que foi Presidente o Aristide Briand, Prémio Nobel
da Paz e foi tal a fé na cooperação pacífica entre estados soberanos que conquistou
a mente de grandes intelectuais europeus: Thomas Mann, Einstein, Picasso,
Appolinaire, Rilke, Saint John Perse. Em 29 Briand adiantou-se: quis essa
Europa em moldes federais com um mercado comum e políticas comuns
(comunicações, emprego, cooperação intelectual) mas, porque recebeu o apoio de
poderosas empresas, o projecto não teve pernas para andar num período cujas
divisões políticas esquerda-direita eram demasiado profundas (algo confusas,
diga-se). A Esquerda recusou. Em 1941 surgiu um Movimento federalista Europeu,
expressão da resistência à ocupação dos exércitos alemães, que advogava um
federalismo democrático para encerrar de vez a pré-história dos impérios e dos
nacionalismos na Europa. Chega o fim da guerra e os Aliados propõem-se organizar
uma união federal mas já com o principal propósito de encostarem “ao Muro” os
países socialistas da «Cortina de Ferro». A famosa expressão de Churchill, que
ambicionava tomar o comando europeu e que foi, de facto, o grande obreiro da “Guerra
Fria” (na opinião dele devia ser “quente” e esmagar a União Soviética).
O federalismo foi uma ideia
promovida por Proudhon (1809-1865) e um projecto utópico levado a sério pelos
socialistas do mutualismo e do cooperativismo, e pelas correntes anarquistas
muitíssimo influentes nos países meridionais. O nosso conterrâneo José Félix
Henriques Nogueira, o introdutor das ideias socialistas em Portugal por volta
de 1850, fora já então adepto de uma união ibérica e uma dezena de anos depois
o socialista Antero de Quental simpatizou com esse projecto de uma união
pacifista, naturalmente sem a hegemonia do grande capital.
Em Maio de 1948 reúne-se o
Congresso Federalista de Haia, com o propósito, entre outros, de contrariar os
planos da CIA e dos serviços secretos britânicos para financiarem a criação de
uma moeda única europeia, sob tutela, evidentemente, dos EUA, que financiaram a
reconstrução dos países (da Alemanha sobretudo) no pós-guerra. Será esse Plano
Marshall que irá ditar os rumos da Europa: quem é nosso amigo e quem é nosso
inimigo. Em 1949 é organizada a OTAN e o terror de uma terceira guerra
instala-se de novo em todos os lares.
Em 25 de Março de 1957 o Tratado
de Roma cria a Comunidade Económica Europeia. O político J.J. Servan-Schreiber
promoveu o mito de que a CEE seria «a resposta europeia ao desafio americano».
Um simples mito de propaganda, porque, na verdade, a CEE não se formaria se os
EUA não a quisessem. Chegara a fase do capitalismo financeiro, nos anos 80, do
neoliberalismo, já sob o impulso decisivo da “Grande Alemanha”, recomposta após
o colapso da RDA nos anos 90. O pior estaria para vir depois do Tratado de
1992: cerca de cinco anos depois estabelece-se o Pacto de Estabilidade e
Crescimento, o tal que submete as políticas dos estados membros a severos
critérios monetaristas de contabilidade de merceeiro, com o fito mal enviesado
de destruir todos os avanços sociais. Desistiram da Constituição europeia
porque os povos recusaram, porém existem de facto várias instituições
supranacionais e federais e um determinado ordenamento jurídico, no qual, no
meio de aspectos positivos, os interesses do grande capital estão bem protegidos,
como se viu, entre outros exemplos, pela legitimação das exigências que
acompanharam os empréstimos à Grécia e a Portugal.
Leis e direito internacional? As
instituições internacionais da indústria, do comércio, das finanças e do
crédito, estão mas mãos de supercapitalistas e seus gerentes mediáticos: o
Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização de
Cooperação e Desenvolvimento (OCDE), a organização Mundial do Comércio, etc. O
Banco federal alemão almoça à mesma mesa com o Banco Central europeu, que gere
o euro.
Claro que o inferno está cheio de
boas intenções: O Tratado de Maastricht proclama que «a comunidade e os estados
membros terão por objectivos a promoção do emprego, a melhoria das condições de
vida e de trabalho, uma protecção social adequada, etc.». Vimos isto sob o
consulado PSD-CDS-Troika entre nós, não vimos? Vimos na política financeira de
auxílio aos banqueiros com o dinheiro dos trabalhadores, não vimos? Na redução
brutal do investimento público no SNS, nas privatizações, etc. não vimos?
Em 2017 um quarto (23,3%) da
população portuguesa estava em risco de cair na pobreza (na União Europeia a
percentagem era de 22,5). O número de empregos precários (sem contratos, sem
direitos) foi crescendo cá e lá e é por isso que governantes e patrões proclamam
a “extraordinária” descida do desemprego…
Há uma parte da social-democracia
que, embora julgue que é melhor estar-se com o euro do que sem ele, advoga
reformas para harmonizar o crescimento entre o norte e o sul e outras medidas
progressistas, mas é como esperar que a raposa se torne vegetariana. A Alemanha
ganhou tudo com o euro e apenas admitirá as mudanças que convierem aos seus
bancos e empresas. A União de 28 países é hoje a concentração e centralização
do grande capital nas economias mais ricas do centro e norte, explorando as
economias do sul, sufocando-as, incapaz de se afirmar no mundo como potência
não imperialista, com uma economia fortemente social.
J. NOZES PIRES
Publicado no semanário regional BADALADAS, Abril 2019
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