Crítica da Razão Consensual- o Direito Burguês
«O Espaço Público: controlo e
privatização»[1]
I. O que é o Espaço Público?
Dizendo de uma maneira inicial e
genérica espaço público é tudo que
não é espaço privado, entendendo-se este como o espaço da vida familiar ou
individual. É discreto, em certos casos uma fortaleza de silêncio onde se
desenrolam dramas que a vizinhança ignora. O direito comum garante esta
privacidade. Até certo ponto.
Falamos em espaço não só físico,
mas social. Compreende o livre pensamento, a livre orientação filosófica,
religiosa, política, sexual. A vida privada. Contudo, sem a livre expressão no
espaço público não se realizaria, não falaríamos sequer de liberdade. Portanto,
as liberdades privadas, a sua realização, exigem o espaço público. Os direitos
individuais têm de ser garantidos e protegidos por normas públicas. Quando isso
não se verifica – por exemplo na ditadura fascista que foi derrubada em 25 de
Abril de 1974- os indivíduos revoltam-se legitimamente contra as forças que reprimem
o exercício dos seus direitos. O espaço público, portanto, não é pura
abstração: é o conjunto dinâmico e potencialmente conflitual de estamentos ou
classes sociais e das instituições económicas, políticas e ideológicas que o
controlam ou nele se digladiam. Os direitos e liberdades modernas constituem
conquistas civilizacionais, para as quais avulta o papel das lutas de classes.
Nas doutrinas liberais que conformaram os Estados modernos de Direito
distinguia-se a “sociedade civil” do Estado, não ficando claro se a “sociedade
civil” era, ou é, constituída apenas pelo espaço privado (o espaço das
atividades económicas) ou também pelo espaço público. Na realidade todo Estado,
ontem e hoje, intervém no espaço público, seja através de consensos, seja pela força.
Qualquer classe dominante tem necessitado até hoje de um poder administrativo
centralizado e um conjunto de aparelhos de coerção e persuasão. O espaço
público é, portanto, controlado por modos que se vão sofisticando e que
dependem em primeiro lugar da corelação de forças e dos interesses dos sectores
sociais que exercem a dominação. Se gozarem de força suficiente e se os seus
interesses estiverem em perigo no confronto de classes, recorrem à violência e
às ditaduras; se não, utilizam dispositivos menos coercivos, ou controladores
por outros modos, dispondo sempre do monopólio da força (militar, policial).
Entre esses dispositivos aquele
de que vos quero falar é o Direito. O Direito é uma criação do império romano.
Foi esquecido na Idade das Trevas e em grande parte da Idade Média. Foi
ressuscitado[2] no século
XVI para se adequar à nova “classe média”- a Burguesia- (caso da Holanda) e aos
Estados absolutos de alianças de classes (Inglaterra). Tentativa de submeter ou
organizar as sociedades à Lei, e não à tradição e à religião. Nesse afã o papel
dos filósofos foi relevante: Jean Bodin (1530-1596), Hugo Grócio (1583-1645),
Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704). O que estava subjacente eram
interesses económicos conflituantes expressos claramente como tal ou sob a
moldura categorial filosófica. As disputas teológicas que acabaram por se
confrontar em guerras prolongadas que alcançaram uma dimensão bárbara que
convém não olvidar, foram expressão desses interesses em conflito, económicos e
jurídicos. Na composição dos múltiplos adversários em confronto encontramos
burgueses e aristocratas, príncipes, monarcas e chefes religiosos, ou seja, não
existiram somente dois exércitos em presença: a burguesia e a nobreza feudal. A
alta burguesia comercial competia com a alta burguesia entre países ou impérios
diferentes, competia com a aristocracia feudal e com sectores da pequena e
média burguesia e com os camponeses e artesãos. A nobreza dividia-se entre o
sector que apoiava a centralização em monarquias absolutas e os grandes latifundiários
feudais. Os resultados que perduraram mais de dois séculos avaliam-se pela
correlação de forças: nuns casos monarquias absolutas que não facilitavam
sempre o pleno desenvolvimento do capitalismo (assim sucedeu em Portugal),
noutros casos parlamentos poderosos com influência burguesa (e alguns monarcas
excecionais), como no caso inglês. E foi nas repúblicas burguesas (Itália,
Holanda) e na Inglaterra que o Direito moderno mais depressa se constituiu. Os
juristas e filósofos burgueses (refiro-me às opções de classe que os escritos
deles refletiam) criaram as teorias e as normas que protegiam os interesses
moventes no espaço privado face ao poder estatal na época em que não detinham o
comando total. A partir da conquista deste passou-se à reorganização dos seus
aparelhos constituintes, incluindo o aparelho jurídico e legislativo.[3]
Os Estados Modernos (alianças entre as cortes e a
burguesia) estabeleceram, por conseguinte, a separação entre o Estado e a
“sociedade civil”. Dois planos de ação
com diferentes finalidades e regras de funcionamento que se consolidaram com a
hegemonia burguesa. No plano privado considerava-se que os indivíduos gozam de
liberdade de agir segundo sua vontade e interesse; no plano público, os
indivíduos, agora designados “cidadãos”, decidem de forma coletiva sobre
assuntos de interesse geral.
Se o interesse predominante na relação jurídica se
referir ao particular o domínio será do Direito Privado, se for público
refere-se ao Direito Público. O Direito Público é composto de normas
obrigatórias para todos; o Direito privado respeita a autonomia da vontade e os
interesses dos particulares (na realidade não é tanto assim: a proteção dos
direitos fundamentais é do Direito Público e não do Privado embora se referira
a interesses particulares e no Direito Privado verifica-se obrigatoriedade de
determinados contratos).
Esta incursão no Direito é útil porque nos permite
recordar que os termos “espaço público” e “espaço privado” exprimem realidades
objetivas de natureza social que adquiriram novos conteúdos a partir dos séculos
XVI e XVII sob a influência dos grandes juristas da época que defendiam a
constituição do Estado moderno, a centralização do poder nos monarcas contra os
poderes tradicionais dos grandes proprietários fundiários. Protegendo-as
protegiam os grandes negócios da expansão marítima, isto é, do colonialismo. Mais
depressa ou mais devagar consoante a correlação das forças em presença, a
práxis refletiu-se nas teorias jurídico-políticas e estas, logo que
estabelecidas, estimularam as práticas sociais, garantindo-as. Ou seja, não foi
o Direito que originariamente materializou as novas relações sociais – relações
de produção – mas o invés. O desenvolvimento da classe dos artesãos, a
libertação de jornaleiros relativamente às formas de servidão nos campos, a
migração de populações para as cidades sob o efeito da expropriação a que foram
sujeitos ou por outras razões, o desenvolvimento dos mercados, o fortalecimento
da classe dos comerciantes, a crescente utilização do dinheiro (o saque do oiro
e prata nas Américas), o comércio das especiarias e, em seguida, o tráfico de
escravos para as plantações nas Américas. Em suma, antes da Revolução
Industrial do século XIX, o capitalismo (comercial, bancário) já se encontrava
firmemente implantado e, por isso mesmo, se verificou esse revolucionamento
permanente das técnicas, a conversão dos artesãos e outros trabalhadores sem
meios de produção em proletariado. Os filósofos da política, da economia, do
direito, foram dando conta destes processos a que chamamos Modernidade. A
civilização burguesa.
A separação entre os novos Estados e a sociedade
civil, os interesses privados, foi um passo fundamental. À burguesia
interessava esta separação, a legalidade dos seus contratos privados, o direito
a constituírem negócio e a enriquecerem sem obrigações de pagamento de
determinados impostos a que eram obrigados nos latifúndios e desobrigados nas
cidades.
Foi a luta cada vez mais aguerrida, nalguns países
muito prolongada (como sucedeu entre nós), pela conquista dos direitos civis e
políticos da “classe média” europeia. Direitos que exprimiam os seus interesses
particulares mas que se apresentavam pelas fórmulas dos filósofos como
interesses universais, interesses da Razão. Interesses da esfera privada que
pouco a pouco se convertiam em interesses da esfera pública (Rés-pública). Entenda-se:
esfera (espaço) privada que ao Estado cabia proteger. Da conquista de uma
esfera privada (a dos negócios) passou-se para a luta pela conquista do “público”,
o Estado. A República – o Estado demoliberal- exprime esta reivindicação e
realiza-a. A Revolução Francesa, conduzida pela pequena burguesia, é a
expressão e realização do novo Direito. Então emancipador, então
revolucionário. Por pouco tempo.
Ora, o direito de produzir, comprar, vender,
distribuir, adquirir as fontes dos recursos, desde a criação de pastos e
ovelhas para a lã, das oficinas manufatureiras, até ao comércio de longo curso
e aos bancos, esse direito, dizia, exigia liberdades políticas: liberdade de
pensar de modo diferente da tradição, sobrepondo-se a esta, e de exprimir novos
valores (riqueza). E, sobretudo na fase em que a burguesia era ainda apenas a “classe
média” (“terceiro estado”), exigia a discussão livre das ideias (filósofos,
juristas), embora esta discussão “racional” não viesse a ser suficiente e a
solução violenta e revolucionária veio a impor-se. Sempre que era a pequena
burguesia democrática que conduzia a ação. A alta burguesia (comercial,
manufatureira, bancária) nunca realizou, liderou ou desejou, revoluções e
programas radicais em parte alguma. Quando se diz que «as revoluções costumam
devorar os seus próprios filhos» também significa que foi aquela burguesia que,
entretanto, enriqueceu, que eliminou os líderes radicais e esmagou a plebe.
Temos, assim, o século XVI de Lutero, Thomas More,
Erasmo, Calvino, Jean Bodin; o século XVII, de Thomas Hobbes, de Baruch
Espinosa, de John Locke, de Leibniz; o século XVIII, das Luzes ou da
Ilustração, de Montesquieu,Voltaire, Turgot, D´Alembert, Diderot, Rousseau,
Helvétius, no qual a influência inglesa foi determinante, isto é, de David
Hume, Adam Smith e outros filósofos escoceses. Teríamos entretanto os filósofos
da Revolução norte-americana, Thomas Jefferson e Thomas Paine. Tendo como
referência as Constituições Políticas norte-americana e francesa irrompem pela
América latina guerras de independência nacional. Na Europa difunde-se o código
civil napoleónico, esteio das leis civis contemporâneas.
II. A consciência privada
Na doutrina burguesa o espaço privado era, e é, o
domínio da subjetividade, do Eu, da vontade e da consciência.[4]
Esse algo inato ou apriorístico para as filosofias idealistas alemãs. Nas
filosofias empiristas inglesas (nomeadamente David Hume), nos fundadores do
liberalismo, a perspetiva era completamente diferente: a consciência mantem-se,
é claro, como sendo do domínio subjetivo e totalmente privado, porém a mente
era comparada a um papel em branco, ou um quadro preto escolar onde a
experiência – as sensações e perceções- iam inscrevendo as impressões, uma
espécie de tijolos das ideias. A experiência contra os apriorismos. Esta
diferença sempre me surpreendeu. Acaso Kant e Fichte não eram adeptos do
liberalismo burguês? Eram-no e contudo o idealismo germânico não se identifica
de modo algum com o empirismo e com o utilitarismo. No caso das filosofias
inglesas, que vão exercer uma profunda influência nos mais importantes
filósofos do Iluminismo francês, a consciência privada, digamos assim, é, em
grande parte, um produto social, dos hábitos e das experiências, tal como se
pode constatar no grande filósofo escocês David Hume (Edimburgo, 1711-1776) ou em
Helvétius (Paris,1715-1771).
Dizia eu que a subjetividade,
ou o indivíduo, é o eixo sobre o qual rola a doutrina liberal. E tal se nota em
particular em um dos seus mentores: John Stuart Mill (1806/1873).
Prazer/sofrimento, felicidade/infelicidade, eis os pares antinómicos em que se
apoia a sua doutrina. Um racionalismo que se tenta conjugar com sentimentos. Um
bem particular, individual, que dificilmente se concilia com o bem público,
fragilidade básica que sempre perseguiu o liberalismo. O útil remete-se à
esfera puramente da consciência individual ou possibilita uma definição
universal, um denominador comum? É a dificuldade, ou mesmo a contradição, em que
se envolve a doutrina de Mill e, de maneira geral, o utilitarismo burguês. Ou
resvala para o puro atomismo, individualismo quase associal ou, pelo menos,
adverso a toda a instituição estatal externa, ou é ainda possível uma moral coletiva,
o tal “bem comum” ou “rés publica” que pregavam os republicanos positivistas? O
filósofo norte-americano John Rawls (1921/2002), numa época de menos otimismo
que a de Mill, deu-se conta dessa dificuldade e tentou resolvê-la na sua
célebre obra “Uma Teoria da Justiça”, donde resultou uma social-democracia
mitigada à qual, segundo estudos recentes, se mostra favorável a maioria dos
norte-americanos. Enfim, dessa contradição nas teorias liberais entre a esfera
privada onde se movimenta o capital, e o Estado social, brotaram, no século
XIX, doutrinas alternativas conhecidas de modo geral por socialistas.
III. O liberalismo
Que importa esta deriva para o assunto que aqui nos
traz? Em primeiro lugar, para reafirmar o que se sabe: o liberalismo é uma
doutrina originalmente inglesa, fecundada num novo modo de produção – o
capitalismo- a que deu resposta e justificação; em segundo lugar, o sujeito (ou
a subjetividade) de que se fala aí é o sujeito
burguês, ainda que apresentado como universal e, sobretudo, natural. Este sujeito corresponderia à
“natureza humana”, essa ficção engendrada genialmente por David Hume e seu
amigo Adam Smith para fundar a suposta apetência natural pela mercadoria.
Sujeito dotado de direitos, direitos naturais.
Sendo, então, naturais, como se concilia esta tese com a descrição de uma mente
à partida em branco? Julgo que esta contradição nunca foi inteiramente
resolvida. Convinha aos filósofos intérpretes dos interesses burgueses, a
começar pelo grande John Locke, a ideia de que a experiência social nos informa
e forma, para combater as ficções das ideias inatas e outras substâncias, em
que sempre se apoiou a filosofia clerical-feudal. Abria-se assim um novo
caminho para legitimar a mudança social e os novos valores que a burguesia
transportava. Para conquistar o mundo era necessário que o mundo fosse
convertido à nova ideologia. Civilizações antiquíssimas foram literalmente
arrasadas. Relações comunitárias, eliminadas. O tráfico de dez milhões de
africanos tornou-se um negócio florescente, para o qual os portugueses
contribuíram com metade do total.
IV. O espaço privado
Ora, pois, convinha aos seguidores que os direitos
fossem de origem natural, portanto, legítimos e inalienáveis, fundados na
natureza. Qual natureza? A branca,
evidentemente, não a negra ou dos
nativos americanos. Quais direitos? Obviamente em primeiro lugar o direito à
livre iniciativa de utilizar a mercadoria- força de trabalho e, através dela,
apropriar-se do excedente, isto é, da mais-valia.[5]
O excedente é o tempo que excede as horas necessárias para o trabalhador saldar
a sua dívida: o salário, sem o qual não pode reproduzir indefinidamente a sua
força de trabalho. Por conseguinte, esse tempo, composto das duas frações, da
vida do trabalhador, é propriedade do capitalista, sob contrato de compra e
venda ou sem contrato nenhum. O tempo restante do trabalhador, o chamado “tempo
livre”, é o tempo do seu repouso e do consumo. Porém, não é inteiramente dele:
irá comprar no mercado os bens que outros trabalhadores produziram, amarrado a
esse círculo que lhe escapa da realização do capital. O seu tempo “livre” é,
assim em grande parte senão mesmo na sua totalidade, o tempo do consumo. Posta
a coisa em termos de liberdade, ele não é livre desde o começo até ao fim,
contudo, o próprio capitalista também não o é inteiramente. O capitalismo
tornou-se numa espécie de máquina gigantesca, abstrata, autónoma, que produz e
reproduz contradições que transcendem as intenções dos seus intervenientes.[6]
O espaço privado é, portanto, o espaço-tempo onde se exerceria
a livre escolha que deu substância ao liberalismo até aos nossos dias. Livre
escolha significa “vontade livre”. Decisão inteiramente pessoal onde nenhum
poder externo pode intervir (essa conceção ilusionista que o filósofo Kant tão
bem engendrou). Onde se manifesta politicamente? Nos processos eletivos.
Expressão da vontade do povo, no qual reside, em primeira instância, a
soberania. Sim, mas isso foi mais tarde. De início só votavam os burgueses e os
aristocratas. O verdadeiro Povo, o restante, era apenas escumalha. “Vontade
livre” sim, mas só burguesa.
V. O direito burguês
O que distingue
a teoria marxista das outras teorias e filosofias na resposta à pergunta «Qual
o fundamento do Direito?» é o seguinte: todo e qualquer direito possui uma
natureza de classe da qual derivam as respetivas normas. As formações
económico-sociais estando como sempre estiveram divididas em classes são
atravessadas por desigualdades e conflitos no decorrer dos quais uma classe
conquista o poder político, económico, cultural. Na formação capitalista a
burguesia domina os principais meios de produção e as correlativas
superestruturas. Domina a letra e a prática da Lei.[7]A
diversidade de normas entre países governados pelo modo capitalista de produção
pode ser relativamente grande e, nuns casos, serem elas mais progressistas do
que em muitos outros, que tal não altera o fundamento e a essência. De resto,
existem mais do que uma forma de direito em determinados regiões e países.[8]
A questão
fundamental que devemos colocar relativamente ao direito de classe é, por
conseguinte, caracterizar a sua função social (económica, política,
ideológica). Uma outra questão consequente é saber distinguir o direito burguês
fascista (ou com outro nome com que se disfarce), do direito burguês demoliberal.
Por fim, quando revolucionado o modo de produção capitalista, eliminada a
burguesia como classe possidente, se continuará a ser necessário o direito.
O direito é moldado conforme os interesses do
poder hegemónico capitalista. Esse poder terá de ser fundamentalmente
económico, podendo variar, dentro de certos limites, o regime ou a forma
política. O regime ditatorial fascista que foi derrubado pela violência em 25
de Abril de 1974 e pela revolução popular nos meses subsequentes foi uma forma
de regime capitalista que tinha o seu próprio direito, a sua própria
Constituição. Nela constava um conjunto de direitos e liberdades formais que
eram negados nos artigos seguintes. As polícias prendiam e os juízes julgavam
conforme as leis elaboradas e aprovadas pelas instituições fascistas. Algumas
leis eram meramente formais, de fachada, não se cumpriam; outras, eram
claramente de teor fascista e colonialista. Este exemplo, tão vívido ainda na
nossa memória, aplica-se ipsis verbis
a todas as ditaduras nazi-fascistas do século passado desde a Europa às
Américas e a outros continentes nos quais alcançaram tempo suficiente para se
consolidarem e se rodearem de «legitimidade». Os liberais gostam de classificar
o regime demoliberal de «Estado de Direito» para o distinguirem dos regimes
ditatoriais. Na realidade, todos os regimes apressam-se a dotarem-se de leis e
todas as leis são normas. As normas constituem o conteúdo do direito mas não o
seu verdadeiro fundamento. A classe ou o sector de classe que gozar da maior
força ou poder, impõe o direito que lhe convém. A vox populi, o senso
comum, sabe avaliar esta asserção, patente nos seus vitupérios contra os
«políticos» e os «ricos» com as suas leis talhadas à medida. A ditadura
fascista de Salazar e Caetano não foi de facto exclusivamente deles obviamente.
Já foram há muito identificados os capitalistas e latifundiários e outros
sectores sociais que com ela beneficiaram. Não só beneficiaram como foram os
artífices desse regime, forjando as suas leis e aplicando-as. Ao serviço deles
tiveram todos os professores de direito e juízes que precisaram. A minoria de
renitentes ou recalcitrantes era reprimida brutalmente. O país e os portugueses
sofreram uma experiência que, de tão longeva e terrorista, é um manancial de
lições básicas de política, economia, direito. Ou devia ser, se os tratados e
manuais propiciassem aos estudantes factos e, sobretudo, uma reflexão sobre os
factos. A natureza de classe do direito mostrar-se-ia com clareza; e é por isso
que, nas academias e nos tratados os factos são omissos, outros inventados ou
distorcidos, e um largo manto diáfano de abstrações neutraliza a potência
subversiva de uma clarividente reflexão.
O Direito parece
funcionar apenas na esfera da circulação do capital, de facto legaliza a
produção e possibilita-a. É essa a sua função. O Direito institui e legaliza a
propriedade privada no capitalismo, protege-a, justifica todas as ações
punitivas que atentem contra ela e consensualiza-a de tal modo que nem sequer
se discute como se fosse um direito natural.
O que se aprende desde os bancos da escola é a narrativa: “todo e qualquer
cidadão é livre de adquirir ou constituir a sua propriedade desde que cumpra os
requisitos estabelecidos e todos os cidadãos encontram-se em igualdade nesta
situação”.
Por conseguinte,
o direito intervém na esfera da produção. Ajuda a criar novas relações sociais
compatíveis com as relações de produção, ou pode contrariar caducas relações secundárias (no interior do próprio
capitalismo) para introduzir folgas no processo de exploração, aumentar os
meios de exploração, etc. A circulação, pelo seu lado, “realiza” a liberdade
individual, a propriedade e a igualdade, isto é, a ideologia jurídica do
capitalismo. A relação imaginária dos indivíduos com as relações sociais. É o
espaço da Mercadoria, do feitiço que desta emana, da Ideologia.
VI. A esfera da circulação
O que é a esfera
da circulação? É o lugar onde se realiza a troca. Todos os indivíduos que
trazem para este “lugar” as suas mercadorias são livres. Se fossem escravos não
possuiriam mercadorias. São, portanto, proprietários privados.
Os mercados
(feiras, centros comerciais, etc.) enquanto realidades físicas são públicos ou
privados. Cada vez mais o espaço é privatizado, as relações mercantis invadem
todos os nichos em busca do lucro.
É nos espaços públicos (praças, jardins,
feiras) ou privados (cafés, restaurantes, centros comerciais, bares, etc.) que
se organiza a “Opinião Pública”. Porém, não é aí que esta se funda. É nos meios
sociais onde a propaganda, os media e
as escolas, os legisladores do direito, fabricam a “Opinião Pública”. O lar,
através da televisão, tornou-se uma escola de formação da opinião pública
(política).
Qual é a relação
jurídica fundamental? A troca do equivalente entre dois sujeitos de direito. Onde se realiza e se exprime? Na esfera da
circulação. Aí somos todos equivalentes, valores de troca, valores iguais.
Reprodução tendencialmente infinita. Contudo, prenhe de contradições.
A ideologia jurídica é o corpo nuclear da
ideologia burguesa. Oculta, disfarça e mistifica a realidade da sua função
social: organizar, legalizar e legitimar a dominação sobre todas as esferas das
nossas vidas.
Qual é a noção
central da filosofia burguesa do direito? A noção de «homem». Isto é, «Homem»,
«Humanidade», «Indivíduo-cidadão livre». Portanto, direitos do cidadão livre ou
direitos do homem. Belo humanismo! Sob esta cobertura (abstrata, mistificadora)
reina o mercado, a exploração do homem pelo homem.
A fundamental
esfera da vida social não é a circulação (realização do capital), mas a
produção. É a produção de mais-valia que põe a nu a verdadeira essência das
relações entre o capital e o trabalho. A circulação é indispensável claro está,
mas sem produção não existiria a mais-valia (fonte do lucro) e, consequentemente,
nem produção nem circulação de mercadorias e capitais. As duas esferas são como
os dois planos numa cena de grandes filmes que fogem à regra: a mais próxima da
câmara não é a fundamental, mas a que está em segundo plano, desfocada. A esfera
da circulação aparenta e apresenta a esfera da produção, ao mesmo tempo que a
oculta e mistifica. É precisamente na esfera da circulação que se organiza o espaço
público.
VII. Espaço público
O espaço público
normalizado e, portanto, vigiado, que é necessário pagar para usufruir. Taxado
pelos municípios, capturado pelos centros comerciais e esplanadas, enxameado de
cartazes publicitários.[9]
Seria preciso
que as cidades fossem sujeitos de direito,
que o comum se tornasse sujeito de
direito e se disseminasse.
A partir do
século XVIII a expansão do espaço público está ligada ao alargamento da cidadania, às grandes praças e alamedas
urbanas modernas, aos cafés e esplanadas, à proliferação da imprensa escrita.
Organiza-se a separação dos espaços aristocráticos e burgueses, dos bairros
operários.
Esses espaços
públicos convertem-se em espaços físicos e ideológicos de encenação,
representação, palcos do teatro burguês. A muitos espaços públicos não era
permitido o acesso a negros, índios, orientais, ciganos. Nem às mulheres. A
permissão para todas estas classes e minorias de usufruírem dos espaços
públicos urbanos foi conquistada pelos próprios com sangue e lágrimas.
Perversamente, viria a tornar-se lucrativa para os negócios. Os direitos são direitos de mercado.
O direito
protege os indivíduos e os seus direitos que foram entretanto adquiridos, e não
apenas o direito à propriedade dos meios de produção e ao lucro. É a
contradição entre esses direitos e os direitos dos trabalhadores que estimula
as lutas de classes. Nesse sentido, as lutas de classes (sindicais e políticas)
desvelam a natureza de classe do direito.
O direito,
apesar da sua natureza de classe, não é, contudo, coisa descartável, nem mero
epifenómeno da infraestrutura, sem valor. Pode conter importantes conquistas
das classes trabalhadoras e, portanto, constituir um programa para
reivindicações sindicais, políticas, profissionais, de minorias, etc. É o caso
do Estado-providência ou Estado social. As lutas por regimes democráticos
contra os nazi-fascismos no século vinte, no mundo e em Portugal não foram
irrelevantes, muito pelo contrário. No programa dos comunistas a conquista da
democracia é, sempre foi, inseparável da luta pelo socialismo.
O direito é um
conjunto de técnicas para reduzir os antagonismos sociais. É assim apresentado
desde a Antiguidade clássica (a «prudência» aristotélica). Sempre foi
mistificador desde as primeiras civilizações com se verificou na ficção da
origem divina dos reis e faraós. O poder exclusivo da classe ou casta imperante
ficava, assim, disfarçado, o que explica porque o terror que os poderosos
inspiravam se misturava com a veneração.
Foram precisas
mudanças, umas vezes lentas, outras vezes revolucionárias, no modo de produzir
os bens, no regime de propriedade e, concomitantemente, nas formas de
distribuição (que está na raiz da definição clássica de justiça: dar a cada um
o que é seu, o que lhe é devido), para que as normas se alterassem e as velhas,
as antigas, se revelassem como injustas e baseadas em ficções ou mentiras.
Sempre assim sucedeu, por mais resistentes à mudança que tivessem sido as leis
e os costumes. O direito burguês rodeou-se das mesmas mistificações de que
acusava os privilégios feudais, forjando diferentes táticas e teorias. Foram
precisas as lutas das classes trabalhadoras e a produção teórica de Marx e
Engels para que o direito mistificado e mistificador fosse despido da sua aura.
Seguir-se-iam as revoluções socialistas e as lutas vitoriosas dos povos
colonizados que vieram alterar regras do direito em benefício dos povos e das
classes trabalhadoras. Em muitos casos direitos conquistados e logo perdidos.
Contudo, nunca perdidos definitivamente. Sempre lembrados, foram progressos da
consciência social, são património da cultura e armas para novos combates.
A superestrutura
não é um mero reflexo de espelho, não é isso (cópia, reprodução mecânica) que o
termo utilizado por Marx significa. Compreende-se que haja sido mal
interpretado (nos casos em que não houve má fé) o célebre Prefácio Para a Crítica da
Economia Política (1859).
Contudo, outros textos marxianos desfazem qualquer ambiguidade. A
infraestrutura não «segrega» as ideologias (e as ciências) como o fígado
segrega a bílis…A economia não “segrega” o Direito…Falemos antes de instâncias. (Instância
corresponde a um grau de jurisdição na hierarquia do Poder Judiciário.)[10]
O direito é uma instância superestrutural (não é uma relação de produção de
mercadorias), não haja aqui qualquer ambiguidade, porém goza de autonomia
relativamente às forças de produção e inclusivamente às outras instâncias (política,
ciência, moral). Pode dispor de grande força interventiva sobre todas as outras
instâncias (sobre a moral por exemplo) e sobre a própria infraestrutura (as
relações de produção). Pode tanto estimular como bloquear inovações
técnico-científicas com impacto sobre o desenvolvimento das forças produtivas. Se
assim não fosse não desempenhava o papel preponderante que desempenha
atualmente.[11] Essa
autonomia ativa fornece-lhe eficácia, capacidade de obter consensos e poder
“legítimo” de se fazer obedecer. Marx assim como não forneceu combustível para
as conceções deterministas (refiro-me a oportunismos de má fé e a economicismos
messiânicos), também não rejeitou o potencial de lutas de classe que o direito
comporta (por exemplo, a nossa Constituição, pesem embora e muito os cortes que
sofreu). Contudo, em parte alguma Marx considerou que o Direito deste ou
daquele país, pudesse conter normas universais (para todo o género humano) e
eternas, na prática. Por exemplo: os
direitos da Mulher são conquistas no interior do direito burguês, mas somente
na sociedade socialista serão efetivos (equidade com os homens) e muito mais avançados
(em normas jurídicas, políticas, éticas). Nas sociedades comunistas não fará
sentido falar em direitos. A liberdade individual e coletiva, a igualdade
concreta, serão como o ar limpo que então se respirará.
O direito
burguês assenta na ideia de igualdade jurídica. Por isso é burguês. Um direito
mais justo deveria assentar na ideia de desigualdade (K. Marx)[12].
Quando vier a assentar nesta ideia, o Direito será a garantia jurídica de
relações de produção socialistas, antecâmara do comunismo.
VIII. O Direito de Mercado
Porque é necessário que todos os indivíduos
sejam sujeitos de direito? Para instituir a supremacia absoluta das relações de
Mercado.
Para legitimar a
posse dos modernos atos de apropriação económica, foi necessário (continua a
ser pelo mundo fora) despossuir uma classe social para que a força de trabalho se
convertesse em mercadoria. Mas o operário (camponês despojado da terra) também
possui uma propriedade: a sua força de trabalho, o trabalho vivo. O capitalista
compra-a para consumir o valor de uso da capacidade de trabalho vivo e
apropriar-se legalmente da mais-valia (tempo excedentário no qual o trabalhador
produz valores de troca). Propriedade real e igualdade formal: coração e cabeça
do Direito burguês.
«Declarar que todos os homens são
sujeitos de direito livres e iguais não constitui um progresso em si, mas
tão-somente que o modo de produção da vida social mudou.[…] Não é «natural» que todos os homens
sejam sujeitos de direito. Isto é o efeito de uma estrutura social bem
determinada: a sociedade capitalista. Mas, então, porque é que isso é necessário
nesta sociedade? Precisamente para permitir a realização das trocas mercantis
generalizadas.» «O modo de produção capitalista supõe como condição do seu
funcionamento a «atomização», quer dizer, a representação ideológica da
sociedade como um conjunto de indivíduos separados e livres. No plano jurídico,
esta representação toma a forma de uma instituição: a do sujeito de direito.»
(Michel Miaille)[13]
Diz-se que o homem vem dotado de
livre-arbítrio por via natural. Embuste superlativo, sacralizado pelas teologias
e filosofias idealistas: supostamente livre para escolher conscientemente ser
operário ou capitalista, explorado ou explorador! O núcleo da ideologia
jurídica burguesa é uma fraude, uma impostura, uma mistificação. Uma noção
histórica (e geográfica) que tal como começou também pode acabar. Nem
universal, nem natural.
O Estado moderno
nasceu para impor (através do monopólio da força e de um reportório de técnicas
para obter consensos) e perpetuar as contradições fundamentais que separam e
opõem as classes trabalhadoras da classe capitalista.
Faça-se um
reparo às conceções instrumentalistas do Estado: o Estado não é um instrumento
passivo nas mãos dos capitalistas, particularmente nas ditaduras fascistas. As
instituições estatais gozam da sua própria autonomia (os três órgãos de poder,
uma complexa e larga gama de serviços e numerosos funcionários), às vezes
recuam e cedem perante as forças populares, gerem os interesses ferozmente
concorrentes dos capitalistas da indústria, da agricultura, do comércio, da
banca e dos serviços. Os governos eleitos do Estado podem ocasionalmente
oscilar mais para a direita ou para a esquerda (episodicamente para a esquerda
e por duração e medidas limitadas) conforme a correlação de forças e propósitos
táticos (eleitoralismo); porém, no fundamental, o Estado na formação
económico-social capitalista é o Estado da classe dominante. Prova-se a toda a
hora nas políticas do Trabalho e na legislação laboral. O Estado que serviu a
alta burguesia pode temporariamente ser ocupado por classes e camadas
pequeno-burguesas e operárias como sucedeu na República espanhola e nos países
que se libertaram dos impérios coloniais; nos casos em que não foi destruído e
substituído a derrota chegou depressa. Quando os marxistas por vezes afirmam
que o Estado é o quartel-general da classe dominante, tal afirmação não
significa que os direitos e liberdades democráticas não devam ser reivindicadas
ou defendidas no interesse dos trabalhadores; aliás, foram quase sempre, senão
sempre, conquistados pelo povo com enormes sacrifícios e contumazes recusas dos
capitalistas. Não cabe aqui contar e resumir o percurso ao longo dos séculos
XIX e XX dos avanços e recuos da democracia burguesa. Tem sucedido
recorrentemente (por períodos ou ciclos) que alguns dirigentes e militantes de
partidos comunistas abandonam o partido ou procuram alterar o programa e o nome
do respetivo partido, argumentando com as transformações dos Estados
capitalistas europeus; O Estado ter-se-ia levantado acima das classes e o
direito ter-se-ia transfigurado em coisa completamente independente e neutral.
Ou seja, o direito teria alcançado uma forma e uma prática justas. A tese que
eu exponho e defendo neste artigo não teriam deles a mínima concordância. Já
não seria necessário destruir o Estado (afinal, democrático) para enveredar
pelos caminhos violentos da construção de uma economia e de uma sociedade
socialista... O que a experiência tem demonstrado é que a teoria marxista-leninista
do Estado permanece atual (para além das ilusões oportunistas cíclicas) e que
os defensores da tese “democrática” acabaram habitualmente instalados em
lugares de prestígio ou de chefia da classe que, antes, havia combatido. O que
é grave não é que hajam desertado da luta política (cada um é livre de mudar de
opinião e de partido), o mais grave é procurarem convencer os antigos camaradas
de que a teoria marxista-leninista sobre o Estado se desatualizou completamente
e que eles é que são os verdadeiros comunistas.[14]
Com tais teorias prestaram, e prestam, um carinhoso serviço àqueles que
exploram os outrora camaradas operários. O que provavelmente já não incomoda a
muitos à sua nova consciência. Essas teorias não são recentes, no fundo. São um
eco, embora distante, de conceções que começaram a circular nos finais do
século dezanove. No livro, lamentavelmente esquecido, de F. Engels e K.
Kautsky, O Socialismo Jurídico,[15]
os autores criticam as teses reformistas que se iludem com as possibilidades de
reformas profundas do capitalismo e dos seus Estados por meio do subsistema
jurídico. A democracia é incompatível
com o capitalismo. As provas históricas são inúmeras.[16]
Os regimes democráticos são o palco de contínuas lutas de classes. Enquanto
perdurar e onde perdurar a legalidade da exploração da força de trabalho para obtenção
de um lucro privado a democracia está sempre ferida de morte.
IX. O Público privado
A propriedade
privada gerou a Lei, contudo o Direito não existiu sempre, como vimos: o
proprietário de escravos não era Senhor porque representasse um sistema normativo
igualitário obviamente; era-o pela força bruta que o costume vinha depois
justificar; o senhor feudal da Alta Idade Média não era obedecido por
camponeses «livres» através de um Direito, relação jurídica ou contrato.[17]
A sociedade feudal não reconhecia a separação do privado e do público, o senhor
era simultaneamente proprietário privado e autoridade pública. Somente no
capitalismo se estabeleceram contratos e vínculos normativos entre entidades
privadas (nas manufaturas e no comércio), distintas da esfera pública. As
sociedades comerciais que surgiram na Europa nos finais da Idade Média criaram
o Direito. O contrato é a marca distintiva do direito moderno, i. é, burguês.
No regime monárquico o Rei absoluto era o dono
do espaço público, o dono do país, que governava sobre vassalos os quais podiam
a cada momento perder os títulos e os privilégios (palavra esta que deriva de
privado). A sociedade era constituída por estamentos e os indivíduos possuíam
ou não status. A palavra Estado
deriva de status. O rei detinha o status supremo. Existiam portanto os
superiores e os inferiores. O direito burguês vem eliminar estas distinções
formalmente.
No feudalismo,
portanto, não existia propriamente falando direito público. Ou seja,
praticamente tudo era direito privado (as portagens nos caminhos, as pontes, os
cursos de água). A fundação das novas cidades, feiras e mercados, o crescimento
urbano, originou formas de um novo direito público que se desenvolve ao lado,
às vezes contra, a tutela senhorial. O direito público distinto do direito
privado foi, por conseguinte, uma conquista da burguesia. O Estado viu-se
encarregado de novos deveres e serviços (pagos pelos contribuintes) sociais,
públicos, cada vez mais abrangentes e complexos (até chegarmos ao Estado Social).
Entretanto, intervém cada vez mais na esfera da vida privada dos cidadãos, isto
é, nos espaços e nos tempos ditos “públicos”, enquanto, simultânea e recentemente,
privatiza, alargando o domínio privado, ao qual são entregues cada vez mais
deveres que eram do Estado (vigilância e segurança, prisões, etc.). Cada vez
mais o que é, ou era, comum, passa a ser pago, isto é, mercadoria (a água das
fontes engarrafada). A luta pelo que ainda é comum, pelo alargamento da esfera
(da propriedade) comum, pública, é uma frente atualíssima de luta nas cidades.
É, no fundo, o direito à cidade. E é isto que este ensaio pretende retratar.
A ideologia da classe dominante- a
burguesia – é uma ideologia jurídico-política.
«Alors, on peut dans l`idéologie du
droit […] que l`essentiel, ce sont les
échanges, et que les échanges réalizent l`Homme; que les formes juridiques
qu`impose la circulation sont les formes mêmes de la liberte et de l´égalité;
que la Forme Sujet déploie la réalité de ses déterminations dans une pratique
concerte: le contrat; que la circulation est un procès de sujets.» ( Bernard
Edelman)[18]
O Direito possibilita a produção
capitalista (as relações de produção), a formação da propriedade do tipo
capitalista e seu desenvolvimento histórico, a divisão do trabalho, as
hierarquias de comando e, ao mesmo tempo, oculta a expropriação e a exploração
que lhe está na base. Esta é a sua
verdadeira natureza, a sua única natureza (possibilitar e legalizar a extorsão
da mais-valia e o roubo dos territórios e recursos por todo o planeta), por
mais avanços e inflexões democrático-liberais que a letra e o conteúdo possam
vir a conter por força das derrotas, dos compromissos e dos interesses de
classe.
Na letra e na prática do ordenamento
jurídico e dos atos normativos (particularmente no que se refere às leis do
trabalho e aos benefícios fiscais ao grande capital) se vê a ideologia ou os
interesses reais dos partidos social-democratas ou da Direita.
Marx
demonstrou que os indivíduos estão confinados a determinadas classes sociais
que lhes determinam a posição nas relações sociais (capitalista ou trabalhador)
e não como declara enfaticamente a ideologia burguesa «cada um é um». Possuindo
muito embora cada um de nós caraterísticas que nos identificam, somente pelas
classes sociais se explica a política, o Direito, o Estado, a moral, etc. Até à
tomada do poder a burguesia dizia que a razão universal estava na cabeça e a
moralidade no coração de cada um. Hegel dizia que o Estado era a Razão objetiva
e realizada. Na realidade, eram as ficções que a burguesia engendrava pela
cabeça dos seus ideólogos eminentes. Pode um governante que tomou o poder
absoluto pela força armada ou pelo voto ter com isso afastado a burguesia do
poder e, apesar disso, governar mantendo intacto o poder efetivo da burguesia?
Pode, Marx demonstrou-o no seu livro O 18
de Brumário de Luís Bonaparte.
Pode até um regime político ser dos trabalhadores e todavia conservar-se a
sociedade capitalista…Não é o Estado que faz a sociedade, as relações de produção,
mas o invés. E isto não é determinismo nem economicismo. É a realidade
histórica. Para se construir uma sociedade socialista é necessário destruir o
Estado e construir uma outra forma de
administração das coisas (não
das pessoas!) adaptada à economia socialista que a defenda, legitime e
impulsione.
O direito à
greve é um direito das classes
trabalhadoras dentro do direito burguês. Não cai fora dele. Foi com certeza
absoluta uma conquista histórica (sempre em perigo) arrancada aos capitalistas
e é uma arma fundamental contra a exploração de que são vítimas. As autarquias
governadas por partidos comunistas são instituições democráticas insertas no
quadro normativo do direito que legitima o modo de produção capitalista e o
modo de sociabilidade dominante. Não caem fora dele. E todos os direitos são
passíveis de serem perdidos. Todas as conquistas de teor democrático são boas
no interesse dos trabalhadores. Não perder de vista, porém, que podem vir ao
encontro dos interesses do capital. Reza a História que determinadas
reivindicações de cunho democrático foram primeira e longamente reprimidas a
ferro e fogo pela grande burguesia; admitidas, por fim, converteram-se em meios
aproveitados por ela para seu exclusivo benefício. A classe dominante pode, inclusive,
permitir uma certa margem de folga aos trabalhadores (sindicatos, partidos,
etc.), ao trabalho vivo, para que
este melhor se reproduza, ande alienado e produza novos lucros.
X. O sujeito do direito
A qualidade (formal) do Direito burguês é a
subjetividade, isto é, baseia-se na noção de sujeito de direito, igualdade
de todos perante a lei universal e os chamados direitos universais inalienáveis
do Homem.[19]
Mas o Direito
não se reduz a uma mera mentira, ocultação e distorção: cria ou ajuda a criar relações
sociais e legaliza-as, funda instituições com os seus funcionários imbuídos de
poder, com hierarquias e rituais, e toda uma simbologia que não é meramente
formal ou virtual. É Poder.[20]
O trabalhador
produz-se a si próprio como capacidade de trabalho. Antes de ser absorvido pelo
capital (trabalho morto) o trabalho tem uma existência subjetiva, contra a qual
o capital se defronta para manter a sua valorização, capturá-lo e transformá-lo
em capacidade de trabalho (valor de troca). A força de trabalho é uma
propriedade do operário, fator de desassossego, bom para ser confinado aos
bairros operários, mais tarde aos bairros sociais, porém naqueles e nestes
sempre alfobre de rebeliões; melhor ainda se essa força estranha mas
indispensável estiver contida no interior do lar, encapsulada em centros
comerciais, novo espaço público.
Para o marxismo o núcleo central do direito
não é a norma mas o sujeito do direito[21]
(crítica de Pachukanis à ideologia do sistema normativo como centro do direito):
o modo como o sujeito, o indivíduo, se apresenta (voluntariamente) como
vendedor da sua mercadoria força de trabalho a um outro que está no seu direito
igual de lha comprar por um determinado preço estabelecido socialmente ou por
contrato. É o direito que permite que o indivíduo circule como mercadoria na
esfera da circulação das mercadorias. O direito é a forma própria do
capitalismo.
«Ao lado da propriedade mística do
valor, surge um fenómeno não menos enigmático: o direito. Ao mesmo tempo a
relação unitária e total [ou seja: as relações dos homens no
processo de produção] reveste dois aspetos abstratos e
fundamentais: um aspeto económico e um aspeto jurídico.» «O fetichismo da
mercadoria é completado pelo fetichismo jurídico» (Pachukanis)[22]
O direito não se
explica por si mesmo. Possui uma história dentro de outra história, teve um
território natal e um percurso sinuoso de quase cinco séculos.
As categorias
jurídicas do direito burguês são: sujeito de direito, norma jurídica, relação
jurídica, liberdade, igualdade, autonomia da vontade.
Para os juristas
burgueses (sobretudo positivistas da escola de Hans Kelsen[23])
o que importa é a validade da norma. De facto, houve um tempo em que para uma
classe média (burguesia) desejosa do poder, era vital libertar o Direito de
tutelas religiosas, morais «históricas» (isto é, das aristocracias). Daí ser
“progressista” a reivindicação por um Direito que a forma (lógica, racional)
validava e a política viria legitimar (pela revolução nalguns casos).
Os «direitos do
homem» podem-se ler hoje na fórmula «direitos humanos». Qual o fundamento? Na
ficção setecentista iluminista do direito natural, isto é, a-históricos? Ou
direitos que se impõem pela força (por quem possuir mais força), conforme a
tese de Kelsen? A Declaração Universal do Direitos do Homem (1948) funda-se
apenas na validade formal ou funda-se nas terríveis experiências da humanidade?
Sim, permanece letra morta quando o capitalismo explora selvaticamente a vida
humana. As interpretações dos direitos universais são diversas e não independem
dos negócios das multinacionais.
O direito
privado não se dirige apenas à proteção ou prossecução dos interesses
individuais, acrescem os valores coletivos (família, segurança coletiva, etc.),
o direito civil e o direito comercial. A autonomia
da vontade é o princípio em que se baseia o direito privado (liberdade,
consciência, responsabilidade); para o direito público é a legalidade no
sentido estrito. Na realidade, o desenvolvimento do direito dependeu sempre do
desenvolvimento e complexificação da divisão do trabalho.
O direito é um
«sistema de comunicação formulado em termos de normas para permitir a
realização de um sistema determinado de produção e de trocas económicas e
sociais» (Miaille)[24].
Este sistema é composto por três níveis: o nível ideológico, o institucional e
o prático. O nível ideológico reúne em uma conceção comum homens e coisas,
dando-lhes nomes, qualificando «precisamente os fenómenos, as instituições, os
mecanismos que se apresentam no jogo social»[25].
A Ideologia oculta os fundamentos materiais do direito. Podemos criticar o
direito burguês, denunciar os dois pesos e medidas que a sua aplicação revela,
e, contudo, não saímos do direito burguês e capitalista. Podemos lutar por
reformas democráticas e maior vigilância sobre os executores do direito, que
esses progressos não alteram a essência.
O jurista
bolchevique Evguiéni Pachukanis
considerava justamente que no socialismo a planificação e gestão pública e
cooperativa da economia, os novos regimes de propriedade e a participação de
todos na governação, substituiriam progressivamente o direito.
O direito
acompanhou (umas vezes na dianteira, outras, atrasado) as transformações das
economias capitalistas nestes cinco séculos da história europeia. Foi
reivindicativo, passou em seguida a conservador. Impulsionou o comércio e as
revoluções industriais, justificou (palavra adequada: persuadiu de que era
justíssima a destruição em nome do progresso e outras tretas) a destruição de
outros modos de produzir, outros modos de viver, ser feliz, comunicar. Se
conhecermos estas transformações na economia, na política, vemos com clareza as
articulações com as ideologias, as ciências, as filosofias, as morais, o
direito, e qual foram as funções que estas instâncias desempenharam, cada uma,
no interior da totalidade, i. é, da formação económico-social. Umas vezes em
sincronia, outras com contradições.
Um método para
compreender a natureza e as funções sociais do direito burguês é compará-lo com
o direito desenvolvido nos países que já foram revolucionários e socialistas,
ou naqueles que se conservam. Tendo em conta as grandes diferenças entre eles é
evidente um fundo comum do qual os regimes se reivindicam. «A figura do
processo social de vida, i. é, do processo material de produção, só se desfaz
do seu místico véu de nevoeiro quando estiver, como produto de homens
livremente socializados, sob o seu controlo consciente e planificado.» (MARX)[26]
XII. Da democracia burguesa
O valor da
“moeda” liberdade está na confiança que nós, cidadãos, lhe outorgamos. Não é
garantida por um depósito em ouro. Tal como as lotarias, o sistema bancário, os
políticos e as eleições, as marcas e modelos de consumo, é a confiança que
outorgamos. Quando essa confiança é na acumulação compulsiva de dinheiro é
fanatismo. Quando é dedicada à classe que nos explora, é alienação. Quando as
classes «de baixo» perdem a confiança nos «de cima» abre-se um período
revolucionário.
«É apenas a relação social
determinada entre os próprios homens que toma aqui para eles a forma
fantasmagórica de uma relação de coisas. Assim, para encontrarmos uma analogia
temos de nos escapar para a região nevoenta do mundo religioso. Aqui, os
produtos da cabeça humana parecem figuras autónomas, dotadas de vida própria e
estando em relação entre si próprias e com os homens. O mesmo se passa no mundo
das mercadorias com os produtos da mão humana. Chamo a isto feiticismo, que se
cola aos produtos de trabalho logo que eles são produzidos como mercadorias e
que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias.» (MARX)[27]
Como nos
atrevemos a afirmar que não somos realmente livres nestas sociedades com
liberdades de expressão e reunião, com eleições livres, com normas justas para
ambas as partes nos contratos voluntários e conscientes? A resposta a esta
questão deve interessar a todos os intelectuais, ideólogos, militantes, da
esquerda revolucionária anticapitalista. Responder com argumentos atuais e
factuais é prioritário nos exames com que avaliamos publicamente as sociedades
onde o capitalismo reina absolutamente através da economia e do direito. Na
verdade, reafirmamos o que se tem vindo a afirmar desde o século XIX: as
sociedades burguesas capitalistas trazem na boca a liberdade e a igualdade, e
na cabeça a ganância do sobrevalor arrancado aos trabalhadores que se submetem
porque não são livres para o recusar. Mas a falta de liberdade ( «o homem nasceu
livre e por toda a parte vive acorrentado», na celebérrima expressão de
Jean-Jacques Rousseau[28]),
começando na exploração económica do assalariado, vai mais longe, mais largo,
até cercar e envolver completamente o assalariado e o cidadão. Suga-lhe a
energia física e mental, o tempo e o salário, a vida toda até ao dia em que
deixa de ter qualquer valor de uso.
Os marxistas
prezam os valores da liberdade e os direitos humanos. Todavia, os valores não
brotam espontaneamente no céu dos passarinhos, mas sim de condições materiais
concretas, de interesses das classes sociais nas sociedades divididas. Parecem
sedutores os valores “altruístas” burgueses, porém de facto é o puro egoísmo
que se disfarça com máscaras pintadas como as dos comediantes. Sem cair no exagero
digo que os valores (éticos, jurídicos) possuem uma determinada cotação no mercado dos valores. E sob a capa dos
«direitos humanos» invadem-se países, massacram-se os povos.
Estamos
agarrados (o termo adequado) à cola do papel mata-moscas. Raciocinamos com um
modelo-padrão heurístico (a maneira de pensar) e um modelo-padrão hermenêutico
(formas de descodificar os códigos e os próprios códigos) que nos impingiram para
que víssemos a justiça onde está a exploração cínica, a igualdade onde está a
dominação de classe e o colonialismo. É a Ideologia no sentido marxiano
restrito da noção: relação imaginária dos indivíduos com o Estado e o modo de
produção. Ou seja: com a sociedade de mercado.
«Do ponto de
vista social, a classe operária é, portanto, mesmo fora do processo imediato de
trabalho, tanto um acessório do capital como o instrumento morto do trabalho.
Até mesmo o seu consumo individual, dentro de certos limites, é apenas um
momento do processo de reprodução do capital.» Marx[29]
O direito
burguês assenta na ideia de acordo. É a base do direito económico. O conceito
de vontade é, portanto, primacial. O
empresário (o ora chamado empreendedor) acorda com um operário (ora chamado
colaborador) sugá-lo até à medula. Os avanços e recuos do Direito do Trabalho
demonstram qual a substância do acordo.[30]
XIII. Conclusões
Destes capítulos
retiro as seguintes conclusões:
1ª- Os avanços
progressistas no Direito (nacional e internacional) exprimem conquistas
civilizacionais que opomos à barbária imperialista e às suas soluções supranacionais
ou neofascistas. Não é repudiando todo o direito porque ele na sua essência é
burguês que damos qualquer ajuda às lutas revolucionárias, pelo contrário. O
direito contem normas que são efetivamente universais (na Declaração Universal
dos Direitos Humanos), que podem permanecer numa sociedade socialista e que
hoje constituem motivo suficiente para as lutas de classe.
2ª As teses de
E. Pachukanis, pelo radicalismo com que foram expostas, conduziram-no a um beco
sem saída[31]: na
etapa socialista (a qual depende completamente das condições concretas de cada
país) não se deve construir um novo direito? E, portanto, um novo Estado? Como
se organizam os múltiplos poderes mais ou menos espontâneos, impedindo-se a
anarquia (que é o egoísmo à solta) e o caos? A que meios ofensivos-defensivos
recorrer para defender-se uma revolução democrática? Quais as normas para
regulamentar a autogestão nas fábricas e nas cooperativas? Como organizar os
processos eletivos em todas as esferas que não seja por normas universais e
fiscalizadas? Quem fornece serviços sociais gratuitos e universais? Da
compreensão destes problemas, na sua solução, depende em muito a aceitação hoje
do marxismo-leninismo como teoria justa do mundo e da vida, e a explicação do
porquê dos modelos adotados no passado. Uma coisa é incontornável no marxismo:
o Estado e o direito devem ir desaparecendo nas etapas que preparam as
sociedades comunistas. Portanto, a administração das pessoas é substituída pela
mera administração das coisas. O socialismo é incompatível com a ausência da
mais ampla e profunda democracia nas esferas pública e privada. Todo o Direito
é sempre burguês ou é possível e necessário um Direito socialista?[32]
Se bem interpreto o pensamento de Marx e Engels o direito é um instrumento
político decisivo da produção-reprodução do capital e o centro da ideologia
burguesa, o qual desaparecerá na transição do socialismo para o comunismo.
3ª A burguesia
teceu uma formidável armadilha com o Direito. Nela podemos cair facilmente.
“Marxistas erráticos”, “moderados”, “democráticos”, social-democratas, e outros
cidadãos mais ingénuos que aqueles fazem por ignorar os fundamentos do Direito que
se encontram nas relações sociais de produção e circulação mercantis, na para
mergulhar a pique nos braços maternais do capital. Devíamos proceder como
Montesquieu que em O Espírito das leis
(1748) analisa o pior dos regimes (no caso, o Despotismo) em vez de começar por
expor o melhor, como era usual. Claro que o direito burguês não poder ser mau
em tudo, pois que os burgueses também têm as suas reivindicações e o Mercado
tende a uniformizar mas necessidades, e a universalizá-las. O que beneficiou
grandemente o direito burguês foi o insucesso da URSS e aquela espécie de NEP
da pujante economia chinesa. A ideologia jurídica criou a convicção de que o
direito é suficientemente elástico para acolher todas as adaptações necessárias
e o máximo de civilização identifica-se com o máximo de Estado de Direito. Na
realidade, com os mesmos princípios jurídicos se rege o código penal e a
invasão de um país soberano inimigo. Com os mesmos princípios jurídicos se
condena um ministro corrupto e se ordena o diretório financeiro ditatorial da
União Europeia. A ideia de que a democracia burguesa – o direito- possui
válvulas de segurança e de escape para recorrer ao diálogo e à negociação é um
dos argumentos sacrossantos dos nossos liberais; esquecem-se graciosamente de
incluir as polícias de choque. Permite-se formas de participação das populações
através da difusão inegável de comunidades locais, mas jamais se permitiria um
efetivo controlo operário.
XIV. O papel mata-moscas e as moscas
Finalizemos
retomando o tópico do “feiticismo da mercadoria”. A produção de mercadorias
constitui uma relação social entre produtores, tal relação aparece aos produtores
(à sociedade em geral) como relação entre os produtos do seu trabalho e não
entre os próprios produtores das coisas[33].
Essa relação existe de facto, mas oculta a relação entre produtores. Há, pois,
uma dicotomia entre aparência e realidade (essência) ocultada. O feitiço, a
magia que emana das mercadorias, impregna então todas as relações, tanto quanto
o capitalismo se foi desenvolvendo como sociedade de mercado, de marketing. Como Midas, o capitalista de
tudo faz negócio e por todo o lado gera negociantes: nas religiões, nas artes,
nos lazeres, nos espaços públicos. A mercadoria e o dinheiro exercem essa
atração quase demoníaca, porém não monstruosa nem feia, mas de aparência
fascinante, que nos domina, que nos promete todas as felicidades, e que são a
matéria de que são feitos os sonhos despertos do comum dos cidadãos. Desejamos
ter e usar no espaço público. Pagamos pela coisa e pelo símbolo, pagamos pelo
real e pelo virtual. Pagamos para ser. Magia que reproduz a força primitiva dos
mitos, uma espécie de xamanismo moderno. “Ingerir” a mercadoria é ingerir a
poção mágica, simulacros das esplendorosas aventuras de Jasão e o Tosão d´oiro.
Platão está vivo na nova alegoria da Caverna onde se tomam as cópias pelas
únicas verdades. Os mitos ressurgem sob novas roupagens. Os filósofos e
cientistas sociais Horkheimer e Adorno demonstraram a seu tempo a criação de
novas mitologias a que tem procedido a Modernidade, particularmente o
Iluminismo (ou Esclarecimento) desde o século XVIII, mas sem a genuinidade das
antigas e com uma função sócio-ideológica agora depravada. [34]
«A burguesia, onde ascendeu ao poder, destruiu todas
as relações feudais, patriarcais, idílicas. Rasgou sem compunção todos os
variegados laços feudais que prendiam o homem aos seus superiores naturais e
não deixou outro laço entre homem e homem que não o do interesse nu, o do
insensível “pagamento em dinheiro”[…] Resolveu a dignidade pessoal no valor de
troca, e no lugar de um sem-número de liberdades legítimas e estatuídas colocou
a liberdade única, sem escrúpulos, do
comércio.», lê-se no Manifesto Comunista.[35]
O Manifesto
foi escrito em 1847. Nas obras que a seguir Marx escreveu ficou claro como e
porque a burguesia produziu uma poderosa alienação e um invisível véu de ocultação.
Que se viria a verificar terrivelmente eficaz. Ao lado da categoria de alienação[36]
do trabalhador descoberta na juventude consolidou cientificamente as categorias
de reificação e de feiticismo. Pensemos nesta hipótese de
trabalho: em que é que se distinguem determinadas crenças fideístas, desta nova
“religião” (Walter Benjamim) a que o feiticismo da mercadoria deu forma e
conteúdo, com os seus rituais que me trevo a classificar de esquizofrénicos ou
histéricos, “religião” que nos comanda e coloniza a vida, nos converte numa
espécie de Zômbis circulando no espaço público com o olhar nas montras e no
teclado de smartphones, em títeres do
Outro no nosso espaço privado, todos uniformizados, com idênticas compulsões de
apetites e desejos?[37]
Feiticismos antiquíssimos, submersos sob camadas de culturas extintas, que
ressurgem sob novas formas? Ou as duas
faces de Juno? O Capital que com uma face oculta a sua fonte que é a
apropriação legal da mais-valia; o
trabalho abstrato (o trabalho socialmente útil) que oculta a exploração do
trabalho vivo; e, com a outra face, enfeitiça com a mercadoria que oculta a
relação entre produtores concretos (isto é, pessoas), e o dinheiro que se
apresenta como um ídolo fantasmático e antropófago, que canibaliza todas as
relações humanas: estas categorias fundamentais constituem a dinâmica do
capitalismo. “A produção de valores de uso não é senão uma espécie de
consequência secundária, quase um mal necessário.”[38]
Tal e qual se aplica aos próprios trabalhadores: constituem quase um mal
necessário. A força de trabalho vivo possui um valor de uso distinto das outras
mercadorias porque produz um sobrevalor para o proprietário dos meios de
produção. Essa é a fonte da Lei, o Primeiro Mandamento da ideologia jurídica burguesa.
No acordo “livre”, “igualitário”, “voluntário”, e “democrático”, entre
explorados e exploradores, reside a primeira das armadilhas.
O feiticismo da mercadoria, a partir do lado abstrato
do trabalho e do lado abstrato do dinheiro, que Marx descobriu, oferece-nos o
caminho para chegarmos a compreender a transformação contemporânea do espaço público, controlado pelo Estado
e invadido pelo mercado. Ambos têm vindo a ocupar o espaço privado, isto é, a privacidade, a subjetividade, a vontade e
a consciência, essas categorias veneradas e venerandas do direito burguês. Reitero
a afirmação: a esfera preciosa e fundamental, a Consciência, reduto que os
filósofos iluministas resguardavam como inexpugnável, essa intimidade que Jean-Jacques
Rousseau projetou para a Modernidade e Consciência cidadã simultaneamente
singular e social, esse núcleo privado do sujeito de direito, foi capturada.
Contudo, o que é capturado também se pode libertar. Se
em O capital, Marx revela-nos o
veneno deletério do capital, as contra-tendências e as recuperações possíveis
deste, os seus encantos letais, também abriu caminhos de insurreição na trama
das contradições insanáveis.
J. A. NOZES PIRES
Torres Vedras, 9 de Abril 2016- 26 Abril 2018
BIBLIOGRAFIA
K. Marx,
Contribuição para a crítica da filosofia do
direito em Hegel: Introdução (1844). A questão da separação da sociedade
civil do Estado. Classes sociais e Estado.
Manuscritos Económico-filosóficos (1844)
Estes textos de juventude conservam uma enorme beleza, profundidade e
atualidade. Formulação genial da categoria de Alienação.
A Ideologia Alemã (1845-1846) com F.
Engels. (o direito é uma ideologia e uma forma de alienação do proletariado)
O 18 de Brumário de Luís Bonaparte
(1852) (ou como uma forma de governo pode submeter a burguesia e o
proletariado)
Crítica ao Programa de Gotha (ou como o
direito há de vir a ser “desigual”)
F. Engels,
A
origem da família, da propriedade privada e do estado (capítulo IX.
Barbárie e civilização)
Da Autoridade (neste mês de Maio em que
se recorda o MAIO de 68, vem bem a propósito este texto contra os disparates
anarquistas, como aquela idiota palavra de ordem: «É proibido proibir!»)
Anti-Dühring (livro fundamental de
exposição rigorosa do pensamento de Marx, com a contribuição do grande pensador
que foi F. Engels. Sem esta parceria de profunda amizade Marx não seria Marx.)
O Socialismo Jurídico (edição já
referida pela Editorial Boitempo, São Paulo)
Ernst Bloch, Derecho Natural y Dignidad Humana, editora Dykinson (clássicos
Dykinson), 2011.
P. I. Stutchka, Direito e luta de classes (1921), edição brasileira esgotada, julgo
eu.
Evguiéni B. Pachukanis, Teoria Geral do Direito e Marxismo, Ed. Académica, disponível
on-line; nova edição pela Boitempo, 2017, referida por mim no corpo do texto.
Andrej Vychinskij, The Law of the Soviet State (o autor ocupou altos cargos no período
da chefia de Estaline, tendo sido, por isso, artífice principal do direito
soviético; criticou as teses de Pachukanis o que contribuiu para a desgraça
deste)
Karl Renner, Les institutions du droit privé
Jürgen Habermas, Mudança estrutural da Esfera Pública
Bernard Edelman, Le droit saisi par la photographie, Editora Flammarion, Paris, 2001
(existe edição em castelhano); A
Legalização da Classe Operária, Editora Boitempo, São Paulo, 2016; textos
no blogue LavraPalavra.
Michel Miaille, Introdução Crítica ao Direito, Editorial Estampa, Lisboa,2005.
Boaventura de
Sousa Santos, A Crítica da Razão Indolente, 1º v., Edições Afrontamento, Porto, 2002.
Daniel Fabre, Marx e a tradição crítica do direito; artigos no blogue LavraPalavra.
China Miéville, Coerção e forma jurídica: política, direito (internacional) e o
Estado. Ambos os artigos encontram-se no blogue LavraPalavra.
Umberto Cerroni, Teoria Política e Socialismo, Publicações Europa-América, Lisboa, 1976
e ainda O Pensamento Jurídico Soviético. Cerroni está entre os mais argutos
críticos das teses de Pachukanis, que acusa de reduzir o direito à esfera da
circulação (da relação mercantil).
Alysson Mascaro, Filosofia do Direito, Editorial Boitempo, São Paulo, 2018.
Márcio
Bilharinho Naves, Marxismo e Direito,
um estudo sobre Pachukanis, Editorial Boitempo, São Paulo, 2000.
Sobre a
categoria de ALIENAÇÂO as duas obras mais fecundas contemporâneas, em minha
opinião, são:
Ontologie de l´être social, l´idéologie,
l´aliénation, de Georges LUKÁCS, Éditions Delga, Paris, 2012
Aliénation et émancipation, de Lucien SÈVE,
Éditions La Dispute, Paris 2012
[1] Este
artigo tem como base a comunicação proferida no 2º ENCONTRO COM A FILOSOFIA,
organizado pela Universidade Popular de Torres Vedras (UP), em 9 de Abril de
2016, sob o tema «Espaço Público: controlo e privatização»
[2] Na
realidade, o direito romano foi reanimado por volta entre os séculos XI e XII
tendo como centro irradiador a célebre Universidade de Bolonha, no corpo do
chamado direito canónico, o qual visou a defesa dos poderes da Igreja. O
renascimento do direito romano nos primórdios da Modernidade não eliminou
obviamente as formas do que alguns chamam direito feudal.
[3] «A
origem da divisão entre Direito Público e Direito Privado remonta ao Direito
Romano, sobretudo a partir da obra de Ulpiano (Digesto, 1.1.1.2.) no trecho: Publicum jus est quod ad statum rei
romanae spectat, privatum, quod ad singulorum utilitatem- (O direito
público diz respeito ao estado da coisa romana, à polis ou civitas, o privado à
utilidade dos particulares.) A divisão também resulta da separação entre a
esfera pública e a privada, do lugar da ação e do lugar do labor. In Wikipédia.
[4]«le droit
présente cette double fonction necessaire,
d´une part, de rendre efficaces les rapports de production, d´autre part, de refléter concrètement et sanctionner les idées que se font les
hommes de leurs rapports sociaux.», B. EDELMAN, Le Droit saisi par la Photographie, Champs Flammarion, Paris, 2001,
p. 13.
[5] Convém
não esquecer a teoria e a prática da escravatura que acompanhou o regime do
salariato.
[6] O que
não ilibe capitalistas com registo de nascimento e folha de serviços.
[7] «[…] o
vosso direito é apenas a vontade da vossa classe elevada a lei», Manifesto do Partido Comunista, in Obras Escolhidas, de Marx e Engels, tomo
1, Edições «Avante!»- Lisboa- Edições Progresso- Moscovo, 1982, p.121.
[8] Naqueles
casos onde coexistem direito capitalista e direito (s) tribais,
consuetudinários, estes usos e costumes não constituem Direito, por mais força
que possuam. Quando falamos de Direito, ele é burguês por definição. Enorme
conquista da Burguesia europeia sobre antigas formas de dominação, que foi
moldando o mundo à sua imagem, espalhando o fogo de conflitos em África, Médio
e Extremo Oriente…
[9][9]
A categoria do TEMPO é fundamental na análise do modo de produção capitalista
(taxa de exploração, jornadas de trabalho, etc.), tal como foi utilizada por
MARX na sua obra O capital. Contudo,
a categoria do ESPAÇO (económica, social, cultural) tem vindo a assumir um
papel cada vez mais relevante com a contemporânea mundialização do capital, as
novas tecnologias, o comércio mundial das terras, a cultura industrial, o
turismo, etc. O que é ESPAÇO PÚBLICO nestes tempos que atravessamos e como está
sendo matéria de lutas sociais e políticas, eis uma questão na ordem do dia da
luta de classes.
[10] A
autonomia do direito é equivalente à autonomia da filosofia: os conceitos ou
categorias –as normas- derivam umas das outras com a coerência lógica
necessária para lhes fornecer consistência e validade, tal como em Lógica os
elementos se organizam. É esta auto-organização das ideias e das estruturas
lógicas que conduzem os idealistas a crerem que é unicamente a mente a
progenitora. Não são poucos os teóricos do direito que julgam erradamente que
as categorias jurídicas são estruturas a
priori.
[11] O que
sucede atualmente no Brasil –um golpe de estado por meios judiciais- demonstra
à saciedade como o direito (leis, tribunais, juízes) é uma arma política do capital. O processo
histórico de contrarrevolução permanente do capital levou este a colocar o
direito na pura esfera da política e, assim, a instrumentalizá-lo. Ficou em
risco de ser perder uma vocação originária emancipadora do direito moderno, se
não se perdeu mesmo.
[12] «O
direito, pela sua natureza, só pode consistir na aplicação de uma escala igual;
mas, os indivíduos desiguais (e não seriam indivíduos diversos se não fossem
desiguais) só são medíveis por uma escala igual, desde que sejam colocados sob
um ponto de vista igual, desde que sejam apreendidos apenas por um lado determinado, por exemplo, no caso
presente, desde que sejam considerados como
trabalhadores apenas e que se não
veja neles nada mais, desde que se abstraia de tudo o resto. Além disso: um
trabalhador é casado, o outro não; um tem mais filhos do que o outro, etc.,
etc. Com um rendimento de trabalho igual- e, portanto, com uma participação
igual no fundo social de consumo – um recebe, pois, de facto, mais do que o
outro, um é mais rico do que o outro, etc. Para evitar todos estes
inconvenientes, o direito, em vez de igual, teria antes de ser desigual.» K.
MARX, Glosas marginais ao programa do Partido Operário Alemão,
Obras Escolhidas, Tomo 3, p. 16-17, Edições «Avante!», Lisboa, 1985.
[13]
MIAILLE, Michel, Introdução crítica ao
Direito, Lisboa, Editorial Estampa, 1988, págs. 117-118. O grande jurista
soviético Pachukanis demonstrou que
não é a norma ou sistema normativo que ocupa o centro, mas o sujeito de
direito. O modo como o indivíduo como comprador/vendedor de mercadorias, «o
Direito é a forma própria do capitalismo», Evguény B. Pachukanis (1891-1937), Teoria Geral do Direito e Marxismo (1926). A edição brasileira:
Editora Académica, São Paulo, está esgotada há muito, mas encontra-se
disponível na net. A Editora Boitempo editou a obra em 2017. A citação
corresponde à tese política que foi
repudiada pelo partido bolchevique (PCUS) que, posteriormente, necessitava
construir-se como um Estado dotado de uma Constituição e de um Direito.
[14] Se decapitarmos a teoria de Marx da categoria
teórico-práxica de revolução (conduzida pelo proletariado) e consequente substituição
da democracia do capital, que espécie de “Marx” é esse avatar? Entendamo-nos: 1º-
Engels e Lenine não excluíam, nenhum deles, vias pacíficas para tomar os
centros do poder, contudo insistiam na necessidade de substituir instituições
estatais que não servissem a participação das classes trabalhadoras, o que não
significa que tudo tenha de ser destruído independentemente das condições
concretas de cada país, dado que, em certos casos, algumas instituições e
departamentos do Estado são suficientemente flexíveis para se adaptarem a uma
economia não-capitalista. 2º- As revoluções do século XX não se copiaram umas
às outras; todavia, se a experiência e a práxis possuem algum valor político (o
marxismo é uma teoria da práxis que a práxis converte permanentemente em
teoria), as revoluções do século XX foram violentas porque o capitalismo
(nazi-fascista, imperialista, colonialista) não permitiu outra via e, assim
sendo, é muito provável que continue a reagir brutalmente a qualquer mudança
radical. 3º- Se um determinado modelo de socialismo, com a sua economia
estatizada e formas de centralização autoritária, foi generalizado, tal se
deveu em boa parte à reacção da burguesia nacional e internacional; a tática
contra-revolucionária do imperialismo sempre foi boicotar, cercar e provocar
respostas de autodefesa de isolamento económico e político, de gastos militares
incomportáveis, de autovigilância e organização vertical do poder.
[15] Friedrich
ENGELS e Karl KAUTSKY, O socialismo
jurídico, prefácio de Márcio Bilharinho Naves, Boitempo Editorial, São
Paulo, 1ª edição,2012. Foi publicado anonimamente na revista da
social-democracia alemã Die Neue Zeit
em 1887, escrito principalmente por Engels.
[16] Veja-se
a União Europeia e quem nela realmente manda não são os povos, nem os pequenos
países. Conta alguma coisa a democracia para o apetite insaciável do
imperialismo? Pelo contrário, onde houver ameaça de revolução democrática aí
temos os mísseis da NATO…
[17] Na
Rússia czarista o regime de servidão absoluta perdurou até a meio do século
dezanove.
[19] Não se
exagere a abrangência e, sobretudo, a aplicação da categoria da subjetividade
no direito. Na realidade, o direito converteu-se logo no início em instrumento
do Estado burguês. Ou seja: o direito é fundamentalmente estatal. Neste
sentido, é direito público que regula e protege o direito privado (as
privatizações, por exemplo). O próprio Estado-Providência alargou a esfera de
controlo público. A insegurança na Europa atual serve de pretexto para mais
controlo dos espaços públicos e da vida privada dos cidadãos. As novas
tecnologias de vigilância permitem aos Estados esmiuçar a vida de todos nós.
[20]
Explicar o Poder como prerrogativa dos Estados exclusivamente é a explicação
sempre dada pela teoria liberal clássica. O marxismo não tem esta posição
estrita e estreita. Entretanto, a obra de Michel Foucault veio abrir
perspetivas mais abrangentes das múltiplas formas disseminadas de poder nas
sociedades capitalistas. Os marxistas, embora não percam de vista o Estado como
o problema fundamental da revolução, admitem a realidade e a importância social
dos “micro poderes” que se geram ou se infiltram em todas as instituições
(partidos políticos, movimentos sociais, comunidades locais, etc.).
[21] E.
PACHUKANIS, no seu livro Teoria Geral do
Direito e Marxismo demonstrou que a forma mercadoria e a forma jurídica são
inseparáveis: «a superestrutura jurídica é uma consequência da superestrutura
política»; «o sujeito como portador e destinatário de todas as pretensões
possíveis, o universo de sujeitos ligados uns aos outros por pretensões
recíprocas, é que formam a estrutura jurídica fundamental que corresponde à
estrutura económica, isto é, às relações de produção de uma sociedade
alicerçada na divisão do trabalho e na troca», Pachukanis, cit. Por G.
Miekevicz, in ED-Revista Digital da UFSC, Universidade Federal de Santa
Catarina, Brasil.
[22] A
edição em castelhano da obra de Pachukanis encontra-se também, julgo eu,
esgotada há muito. A edição recente pela Boitempo, São Paulo, com tradução do
russo, acompanha-se com textos de importantes filósofos e juristas atuais.
Evguiéni B. Pachukanis, Teoria geral do
direito e marxismo, Editorial Boitempo, São Paulo, 2017.
[23] Hans
KELSEN (1881-1973), filósofo austríaco dos mais influentes das Teorias do
Direito.
[24]
MIAILLE, Michel, Introdução Crítica ao
Direito, Editorial Estampa, Lisboa, 2005,p.96.
[25] Idem, ibidem.
[26] MARX,
Karl, O CAPITAL, Livro Primeiro, Tomo I, cap. 4, p. 95, Edições «Avante!»
[27]
MARX. K., O CAPITAL, Livro
Primeiro, Tomo I, cap. 4, p. 88, Edições «Avante!», Lisboa, 1990.
[28] In O Contrato Social, início.
[29] MARX.
K., O CAPITAL, Livro Primeiro, Tomo III, 21º capítulo, p. 653, Editorial
«Avante!», Lisboa, 1997.
[30] O Direito
do Trabalho (nomeadamente as normas internacionais defendidas pela OIT)
constituem inclusões no Direito burguês, ainda que algumas das suas normas não
agradem ao capital (tanto ao grande, como ao pequeno!); os direitos do
trabalho, que o atual neoliberalismo recusa, não invalidam a tese geral.
[31]
Pachukanis caiu em desgraça não tanto pelas teses (mais certeiras que as do
bolchevique P. I. Stutchka (Direito e Luta de Classes, 1921)), mas pelas
consequências políticas. Todo o direito tem que ser, deve ser, apropriado pela política?
[32] A União
Soviética criou e aplicou uma categoria de direitos sociais que o direito
burguês não comportava e que só muito a custo foram sendo admitidos na Europa
(por força das Frentes Populares, das condições do pós-guerra, etc. Em Portugal
somente com a Revolução de Abril. A Constituição Política da República Socialista
de Cuba (China, Vietnam) é burguesa?
[33]
«Portanto, o misterioso da forma-mercadoria consiste simplesmente no facto de
ela refletir para os homens os caracteres sociais do seu próprio trabalho como
caracteres objetivos dos próprios produtos de trabalho, como qualidades
naturais sociais dessas coisas, e por isso também a relação social dos
produtores para com o trabalho total como uma relação social entre objetos
existentes fora deles.». «É apenas a relação social determinada entre os
próprios homens que toma aqui para eles a forma fantasmagórica de uma relação
de coisas.» MARX, Karl, O CAPITAL,
Livro Primeiro, Tomo I, Edições «Avante!», Lisboa, 1990, p.88.
[34]
Adorno/Horkheimer, Dialética do Esclarecimento,
Jorge Zahar Editor, 1985. Esta obra de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer,
escrita em 1944 e publicada em 1947, que constitui uma profunda crítica da
«indústria cultural», categoria filosófico-sociológica que eles próprios
forjaram, é pioneira em muitos aspetos na análise e categorização filosófica da
sociedade mercantil-capitalista hodierna.
[35]
MARX-ENGELS, Obras escolhidas, Edições
«Avante!» - Lisboa-Edições Progresso- Moscovo, Tomo 1, 1985, p.109.
[36] Alienação:
“No sentido que lhe é dado por Marx, ação pela qual (ou estado no qual) um
indivíduo, um grupo, uma instituição ou uma sociedade se tornam (ou permanecem)
alheios, estranhos, enfim, alienados (1) aos resultados ou produtos de sua
própria atividade (e à atividade ela mesma), e/ou (2) à natureza na qual vivem,
e/ou (3) a outros seres humanos, e - além de, e através de, [1], [2] e [3] também
(4) a si mesmos (às suas possibilidades humanas constituídas historicamente).
Assim concebida, a alienação é sempre alienação de si próprio ou autoalienação,
isto é, alienação do homem (ou de seu ser próprio) em relação a si mesmo (às
suas possibilidades humanas) através dele próprio (pela sua própria atividade).
E a alienação de si mesmo não é apenas uma entre outras formas de alienação,
mas a sua própria essência e estrutura básica. Por outro lado, a
“autoalienação” ou alienação de si mesmo não é apenas um conceito (descritivo),
mas também um apelo em favor de uma modificação revolucionária do mundo
(desalienação).” In Dicionário do Pensamento Marxista, editado por Tom
Bottomore, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1983,p.5, entrada: «alienação».
[37] Não se
trata de uma crítica ao chamado “consumismo” na linha do crítico conservador
Jean Baudrillard (A Sociedade de Consumo,
edições 70, Lisboa, 2007), o qual oculta a desigualdade social do consumo e
suas causas insertas no modo de produção capitalista.
[38] Anselm
Jaspe, O que é o fetichismo da
mercadoria? E pode acabar-se com ele?- prefácio ao livrinho Karl Marx, O Fetichismo da Mercadoria e o
seu segredo, Lisboa, Antígona, 2015. O fenómeno do chamado “fetichismo” tem
ultimamente entusiasmado críticos e leitores, e ainda bem quando nos remetemos
para os textos de Marx e não quando privilegiamos a esfera da circulação ou do
mercado, parecendo (?) que se descura por vezes a esfera fundamental da
produção.
J.A. NOZES PIRES
Torres Vedras, 2018
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