As categorias fundamentais da Teoria de Marx
José A. Nozes Pires
«[…]sem
uma sólida fundamentação filosófica não há ciência da natureza nem
materialismo que possa suportar a luta contra a investida das ideias
burguesas e o restabelecimento da conceção burguesa do mundo. Para
sustentar essa luta e levá-la com pleno êxito até ao fim, o cientista
deve ser um materialista moderno, um partidário consciente daquele
materialismo que é representado por Marx, isto é, deve ser um
materialista dialético.», V. I. Lénine, O Materialismo Militante.
«Qualquer
crítica que contribua para tornar mais vigorosa e consciente nossa luta
de classe para a realização de nosso objetivo final merece nosso
agradecimento. Mas uma crítica procurando retroceder nosso movimento,
fazê-lo abandonar a luta de classe e o objetivo final – tal crítica,
longe de ser um fator de progresso, só seria um fermento de
decomposição.» Rosa Luxemburgo, Liberdade Crítica.
Engels sobre Marx:
«Das
muitas descobertas importantes com que Marx inscreveu o seu nome na
história da ciência, podemos pôr em evidência apenas duas.
A
primeira é o revolucionamento, por ele completado, em toda a conceção
da história mundial. Toda a visão da história até aqui repousava sobre a
representação de que era de procurar os fundamentos últimos de todas as
mudanças históricas nas ideias, que mudam, dos homens, e que, de todas
as mudanças históricas, de novo, as políticas seriam as mais
importantes, dominando toda a história. De onde vêm, porém aos homens as
ideias e quais são as causas motoras das mudanças políticas, por isso
nunca se tinha perguntado.» (…) «Ora, Marx demonstrou que toda a
história até aqui é uma história de luta de classes, que em todas as
múltiplas e complexas lutas políticas se trata apenas da dominação
social e política de classes da sociedade, da manutenção da dominação
pelo lado das classes mais antigas, da conquista da dominação pelo lado
das classes recentemente ascendentes. Mas, porque nascem e continuam a
existir estas classes?» (…) «A segunda descoberta importante de Marx é o
esclarecimento [Aufklärung]
definitivo da relação de capital e trabalho, por outras palavras, a
demonstração de como, na sociedade atual, no modo de produção
capitalista existente, se completa a exploração [Ausbeutung] do operário pelo capitalista.»
Engels, ainda, afirma,
na Introdução do seu livro «Do socialismo utópico ao socialismo
científico», que as duas grandes descobertas de Marx foram: o
materialismo histórico e a teoria científica da mais-valia. Ora, sabemos
bem como as suas opiniões eram corroboradas pelo seu amigo Karl Marx.
A mais importante descoberta científica de Marx é a do processo de acumulação do capital. Do Livro Primeiro de O Capital («a
apropriação da mais-valia») ao Livro Terceiro (a acumulação do ponto de
vista da DISTRIBUIÇÃO), passando pelo Livro Segundo (CIRCULAÇÃO DO
Capital), Marx expõe o processo de acumulação do capital. Este processo
faz toda a história do capitalismo.
Interpretar e rever
Marx
tem sido alvo de acusações que se tornaram rotineiras, sendo vulgar que
académicos adiantem as acusações sem sequer as desenvolver e comprovar.
São elas: os escritos marxianos incorrem em ambiguidades na formulação
das teses, de contradições lógicas, de economicismo, determinismo,
positivismo…um elogio enfático ao progresso civilizacional trazido pelo
capitalismo e até pelo colonialismo…Por outro lado, são-lhe colocados
regularmente outros problemas: Em que pé ficou a filosofia no Marx da
maturidade, qual o grau de autonomia da supra-estrutura (Estado,
Ideologias,etc.), e a interrogação a mais complexa na minha opinião: na
Teoria marxiana o que é realmente a dialética? É a hegeliana, embora
completamente invertida? É exclusivamente um método lógico de
investigação e exposição, ou traduz “leis” imanentes da natureza? Como
se constata, são acusações que são feitas igualmente a Engels, à sua
contribuição autónoma à fundação da Teoria.
Não
podemos tratar de todas estas questões num único artigo. Reservamo-nos
para um seguinte número disponível. Entretanto, fica o repto aos
investigadores portugueses, particularmente aos jovens que elaboram as
suas dissertações de mestrado, para que façam escolhas no alfobre destes
interrogações bem intencionadas e às acusações mal intencionadas.
Limitar-me-ei a responder por postulados: Marx não perfilha as teses do
positivismo da sua época, que foi uma ideologia do progresso contínuo e
sempre revolucionário da burguesia iluminista e capitalista, o qual cria
somente na ciência (tal como era então conhecida, atente-se!) e
rejeitava a filosofia; Marx não foi um determinista pelo que confiava no
papel revolucionário do proletariado para derrubar o capitalismo,
portanto, na práxis; Marx escreveu a sua obra-prima, O Capital, o que
não faz dele um economista, nem a importância que ele atribuiu às forças
de produção (economia e técnicas) fazem dele um economicismo que
tratasse as “superestruturas” como mero epifenómeno. Marx pode não ter
sido claro e cristalino em diversas ocasiões na sua vida tão
atribulada,porém aqueles que querem encontrar nele esse defeitos
encontra-los-ão de certeza, porque nas antigas estalagens espanholas os
viajantes também encontravam sempre o que levavam…
Com
que critérios inquestionáveis podemos afirmar que a nossa interpretação
do marxismo é a única verdadeira? Poderemos eventualmente convencer
outrem de que a nossa interpretação não é falsa, contudo como podemos
afirmar que é a única e a última? Todas as teorias, sobretudo após o
desaparecimento dos seus autores legítimos, são passíveis de
interpretações diversas, exceto se afirmarem falsidades. Algumas
interpretações verificaram-se erróneas, mas só muito poucos autores
publicaram honestamente autocríticas. O marxismo corrente contém ideias
de Marx quando comprovadamente nos textos que legou e ideias que não
estão nos seus escritos, tais como as elaboradas por ENGELS (em vida de
Marx ou não), Lenine, Lukács, Gramsci, para falar apenas de alguns dos
mais importantes continuadores. O marxismo não é um -este ou aquele- mas
diversos. O marxismo que designamos por marxismo-leninismo é recusado
por várias correntes marxistas. Não há um único Marx, neste exemplo, mas
vários. Com profundas repercussões políticas.
Todas
as contribuições inovadoras devem ser incorporadas no marxismo
(pense-se em Lenine, Gramsci, Lukács, entre muitos outros) salvo se
negarem ou evacuarem teses indiscutivelmente marxianas, as que se
encontram nos textos e são congruentes com a sua vida e obra. Nestes
casos, que exigem critérios consensuais, não há que recear ser-se
alcunhado de “dogmático”, “marxista tradicional”, etecetera. Sejamos
claros: que têm a ver com o pensamento de Marx teses que retiram à
classe operária o seu lugar de classe potencialmente revolucionária, e
até, segundo alguns, obsoletas as lutas de classes? Nota O Cap. Cap. VIII Ou
que as lutas contra o chamado “neoliberalismo” dispensam atualmente
partidos políticos comunistas? Outros temas são muito mais complexos e
têm dividido marxistas, isto é, aqueles muitos que não subscrevem de
modo algum as teses revisionistas anteriores. Refiro-me a temas como: há
uma dialética da natureza? A dialética é apenas método gnoseológico ou
reflete a realidade social externa à mente? Há uma única causa nas
crises económicas do capitalismo? Como organizar uma classe operária em
franca diminuição numérica na Europa desenvolvida? E outros mais que não
cabem aqui. Onde os escritos de Marx não são suficientemente
explícitos, as controvérsias abundam.
Repare-se:
o que torna mais rigorosa uma versão não é somente a leitura documental
e a interpretação linguística, mas também a coerência e a congruência
com que se deve avaliar determinadas teses do autor na unidade da sua
obra (incluindo toda a correspondência trocada) e até da sua vida (no
caso de Marx e de Engels, a prática das suas ideias- o intercâmbio entre
a prática e as ideias- é de fundamental importância). E é também o
caráter de verdade na relação dos escritos com os acontecimentos
comprovados pelos métodos competentes. É aqui que costumam emergir
versões completamente diferentes do pensamento de Marx. O outro caso tem
sido a publicação de textos de Marx até então desconhecidos, o que nos
permitiria até marcar “épocas” na interpretação das ideias marxianas.
Portanto, uma coisa é tentar repetir textualmente as proposições de Marx
(e mesmo aqui uma tradução para outra língua pode revelar-se errónea ou
equívoca, como sucedeu com traduções pioneiras para o francês), outra é
abrir caminhos novos. Aplicar a Teoria a épocas diferentes. Aqui reside
o grau científico dos conceitos marxianos de Marx explicativos dos
movimentos do capital, a potencialidade do seu método dialético, a
justeza das categorias filosóficas materialistas. Não é a uniformidade
que carateriza o mundo social sempre movediço. Uniformizar lembra fardas
militares e clericais que se regulam pelas mais rígidas e conservadoras
hierarquias de obediência. O que é universal é sempre a abstração
maior, ainda que não seja, por isso, sinónimo de vacuidade. O concreto
está empiricamente presente, porém não se dá unicamente pelos sentidos;
temos de ser capazes de discernir qualidades num objeto que os olhos não
vêm. Releia-se a Ideologia Alemã e surpreendamo-nos ainda com insuspeitados modos de ver.
O que lá se escreve parecem agora proposições banais, pressupostos das
ciências, e assim fossem para mais mundo; no seu tempo, foram
descobertas ou formulações absolutamente revolucionárias. O facto de
hoje deverem constituir verdades básicas, não significa que não se
encontrem distorcidas em alguns cientistas sociais mui estudados nas
academias.
Marx
não era dogmático, nem Engels o foi, embora o primeiro tivesse sido
muito mais teimoso que o afável amigo de sempre. Evoluiu, corrigiu-se e,
quanto mais velho, mais exigente consigo próprio nos métodos e
critérios. É preciso possuir muita capacidade de diálogo para quem, como
Marx e Engels, tinham de, a partir do zero, conquistar a adesão de
operários, muitos deles pouco instruídos, de intelectuais, de agitadores
revolucionários anarquistas, para as suas ideias…Uma permanente lição
que não devemos esquecer em tempos complicados. Sermos capazes de unir;
no caso presente, convencer. E jamais desistir.
No
movimento comunista internacional cometeram-se graves erros:
uniformizar, sufocar a diferença, a autonomia e a criatividade,
dogmatizar, proibir, censurar, impor cultos e obediências. Refiro-me aos
dirigentes dos estados e partidos comunistas, não aos revisionistas
encartados ou dissimulados. Nem àqueles intelectuais, ditos “socialistas
democráticos”, a piscar o olho à social-democracia ou, em casos
verdadeiramente obscenos, financiados pela CIA. Unir, dialogar e tentar
pacientemente convencer é necessário, contudo há limites na “abertura”
das posições, isto é, nas cedências e nessa consensualidade suspeita.
Não podemos acomodar posições que deixariam Marx indignado. Marx, por
exemplo, pugnou por revoluções nacionais que se estendessem ao mundo
todo, através de todas as vias que se considerassem ajustadas à adesão
das massas sociais e ao sucesso do socialismo. Um movimento comunista
internacionalista, e nada que se parecesse com cedências às utopias
reformistas. Quanto ao resto, Marx não quis ser “marxista”, pois só os
irremediavelmente sectários não mudam de culto, recitam e não se
emendam. Marx exemplifica o criador que não parou de evoluir, corrigir e estudar. O conceito científico de Valor não se encontra nos Manuscritos de 1844 e na Ideologia Alemã. Muitas das páginas dos Manuscritos de 1844,
embora muito belas e comoventes, estão imbuídas de um quase idealismo
contemplativo que já não encontraremos nas obras posteriores. E porque
isso tem de surpreender num jovem atento e ativo que iniciava o projeto
de um mundo novo?
O Manifesto do Partido comunista foi
redigido para os seus autores intervirem nas revoluções de 1845.
Derrotadas, acaso perdera vigor e atualidade o mais poderoso texto do
século XIX? Contudo, deve-se tomar como receituário religioso de
verdades imutáveis fora da história? É claro que não.
De
pesquisa em pesquisa, de acontecimento em acontecimento, Marx viu a
solução de problemas onde os outros nem sequer viam problemas nenhuns. E
ainda não vêm…
Fazer ciência e Filosofia é isso, exatamente isso. Que problema provocou a necessidade do conceito de praxis nas Teses sobre Feuerbach, ou de alienação política do cidadão, na Introdução da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel? Que essencialidade viu, sob as aparências da Mercadoria, que lhe permitiu forjar um conceito científico de Valor sobre a noção de mais-valia que outros já haviam detetado?
As
derrotas de um determinado modelo de socialismo não refutaram a Teoria
de Marx. Apesar das enormes transformações benéficas com repercussão
mundial para as massas trabalhadoras, a economia da URSS nos seus
últimos decénios, a partir de 1965, estagnou, por constrangimentos do
modelo perseguido e por estrangulamentos por via externa, ao ponto de
não se reconhecer quais as vantagens superiores do socialismo sobre o
capitalismo. Esse legado negativo, sobretudo na esfera das liberdades
políticas, tem prejudicado a adesão ao marxismo. Em um balanço crítico
das vicissitudes que vem sofrendo o marxismo, depois de um prolongado
sucesso, quem saiu mais prejudicado não foi Marx, mas Lenine. Na verdade
o ataque principal, em que é difícil distinguir o adversário do inimigo
pela argumentação utilizada, assenta nos fatos imputados ao dirigente
da Revolução. À Revolução soviética no seu percurso conflituoso que
teria gerado necessariamente a autocracia de Estaline. Direta ou
indiretamente vem à baila o seu pensamento político e filosófico.
Independentemente do fato de ninguém ser obrigado a simpatizar com a
contribuição filosófica de Lenine, o que aproxima críticos por vezes
muito diferenciados é a rejeição de partidos comunistas, porque são
estes que podem ameaçar os patrões. Lenine, cabe dizê-lo neste artigo
sobre Marx, não reviu a Teoria marxiana nos seus fundamentos, princípios
e finalidades. Para sermos sucintos, Lenine defendeu a possibilidade
objetiva de uma revolução proletária anticapitalista num país atrasado,
basicamente camponês, que se assemelhava nesses aspetos ao próprio
"Terceiro Mundo" e não à Europa. Contra Marx? Não. Marx admitiu
claramente essa possibilidade. O problema é que nessas condições é
muitíssimo mais difícil desenvolver um país (de modo independente e não
capitalista, é claro). Era precisamente o que Marx pensava. Seria mais
fácil numa economia industrial desenvolvida. Determinadas controvérsias
parecem realmente inúteis e gratuitas. A menos que hajam outros
determinantes…
A
“nova” atualidade de Marx acontece devido à falência do chamado
neoliberalismo porque não conseguiu impedir as crises conjunturais e, o
que é mais preocupante, a persistente crise sistémica. Outros fatores se
somam neste século cheio de perigos mortais. As lutas de classes estão
acesas, tanto das classes trabalhadoras contra as políticas neoliberais
na Europa e na América Latina, como, reactivamente, a contestação maciça
das burguesias nacionais contra governos progressistas.
A
atualidade de Marx nas academias burguesas, nos centros imperialistas,
não nos deve enganar: é um Marx assético que sirva apenas para ajudar a
compreender as contradições do sistema e, assim, a resolvê-las, como nos
lembra o exemplo clássico de Joseph Schumpeter, senão mesmo de Keynes.
Há
no entanto elementos de outro tipo, mais interessantes: sondagens e
outros estudos evidenciam uma maioria de nostálgicos dos antigos regimes
socialistas no Leste…
O
século passado foi o tempo das revoluções comunistas e
anticolonialistas; quando falharam, assistiu-se a um profundo refluxo.
No início do novo século ainda parecia a muitos marxistas desiludidos
que Marx necessitava de uma revisão de alto abaixo, atitude que costuma
fazer resvalar para a social-democracia, que foi o que sucedeu. Ora, a
social-democracia se deve alguma coisa a Marx é tê-lo abandonado.
A
ofensiva contra o comunismo e o marxismo (de Marx e de Lenine)
mantém-se desde a “Guerra Fria” através de cada vez mais sofisticados e
monopolizados meios de propaganda (os que se disfarçam de “noticiários” e
de “séries dramáticas” são os mais eficazes). Ora, nunca nos cansemos
de esclarecer os trabalhadores: Marx não foi responsável por modelo
algum de socialismo “real” e não vale a pena procurar nele soluções
“prontas a vestir” para épocas posteriores que ele não podia obviamente
profetizar. Este é o lado argumentativo fundamental do contra ataque; o
outro, é desmentir o que há de falso na narrativa sobre as revoluções e
sobre, particularmente, todo o horrendo cortejo de crimes que dizem ter
sido cometidos. Importa continuar a defender os imensos benefícios e
progresso para as classes trabalhadoras desses países e do mundo
capitalista trazidos pela Grande Revolução de Outubro. E devemos dizê-lo
agora: introduzidos igualmente pelo Partido comunista chinês.
O
começo de uma exposição do marxismo pode começar pelo mais universal
(embora não necessariamente como o mostrou Marx com a exposição de O Capital iniciada pela mercadoria), pelas categorias mais gerais que constituem o fundamento, a essência das essências, a totalidade das totalidades, ou seja, fundam. Refiro-me à ontologia materialista e à gnoseologia dialéctica correspondente. Portanto,
à Filosofia. É por esta ordem que interpreto a Teoria de Marx. E
interpreto-a em consonância com as posições de Engels, as quais, ao
contrário de outros marxistas, não repudio. O marxismo fundacional é
obra de ambos. Também para Engels o materialismo filosófico expõe o
fundamento material universal da história natural e social, e Marx não o
censurou.
Desprezar,
remeter pejorativamente para “narrativas” metafísicas a ontologia, a
corrente do materialismo dialético, são interpretações que corrompem
absolutamente a Teoria marxiana. Pode-se não aprovar uma dialética da
natureza porque não é isso que abala as bases, o que não se pode é
excluir a ontologia, o materialismo, sem consequências. Nessas
interpretações que em próximo artigo poderemos elencar, aquela que se
apresentou com mais força influência é a que afirma que as posições
filosóficas de Marx foram por ele abandonadas na época em que se dedicou
à investigação económica e, daí o passo seguinte da argumentação, Marx
fez a ciência que nos legou e que é o único legado que importaria
preservar. Em primeiro lugar a ciência que Marx nunca abandonou desde a
juventude das Teses sobre Feuerbach e a Ideologia Alemã, é a ciência da História, mas entendendo ciência não
a disciplina particular da historiografia, sim a conceção de que tudo
que é social está sujeito à historicidade onde a ideia de totalidade
assume particular importância; em segundo lugar, Marx não era ubíquo e,
portanto, dedicando-se à pesquiza na Biblioteca Britânica, não conseguia
realizar duas tarefas ao mesmo tempo (Marx era prodigioso nas
intuições, mas insaciável na leitura de documentação); essa tarefa, e
podemos falar em uma divisão do trabalho, coube a Engels que, qual
gigante, conseguiu dominar toda a ciência do seu tempo, dando conta
quase diariamente por cartas desse trabalho a Marx na dezena de anos que
este entregou à Biblioteca de Londres. Tais factos e documentos
poder-se-ão apresentar e analisar nas comemorações do nascimento de
Engels no próximo ano. A Filosofia, portanto, foi desenvolvida por
Engels. A Teoria marxiana é eminentemente filosófica ou, se preferirmos,
nela a filosofia –o materialismo dialético e o materialismo histórico-
não está de costas voltadas para a ciência. Por isso é impossível
arrumar Marx numa única categoria: sociólogo, historiador, filósofo,
economista, político…É certo que John Stuart Mill, o mais famoso
pensador liberal do século, também não é facilmente classificável. Mas é
precisamente essa a característica forte das mundividências
filosóficas. Nesse aspeto o liberalismo não se distingue do marxismo. O
que os separa é que o primeiro, na sua veemente crença na bondade do
capitalismo procura creditá-lo como o modo mais natural de se viver
(trabalhar, produzir, distribuir), mais feliz disse-o Mill, enquanto o
marxismo acha que o que é natural é o fim inescapável do capitalismo.
A filosofia marxista é composta por uma ontologia que
afirma a dependência do ser social em relação ao ser físico e
biológico, do qual emergiu o primeiro. Esta é tese básica dos
materialismos. Não é apenas do materialismo de Marx. Há que acrescentar
algo mais que distinga este do materialismo evolucionista ou darwinista
contemporâneo.
É
uma conceção global, no sentido ontológico, gnosiológico e
epistemológico, a qual afirma a existência independente de determinados
objetos investigados pelo pensamento, exercendo algum tipo de ação
externa sobre o sujeito cognoscente.
Ela
é um materialismo prático (ou da práxis), que afirma e investiga o
papel constitutivo da ação transformadora do homem na
produção/reprodução dos modos de vida coletivos e individuais, sendo por
isso a mudança consciente e voluntária uma caraterística forte das
sociedades humanas.
Ela
é um materialismo histórico, que afirma o primado causal do modo de
produção e de reprodução da vida natural humana, ou, de um modo mais
geral, do processo de trabalho no desenvolvimento da história humana,
inserido num determinado regime de propriedade privada dos meios de
produção.
E
é um Materialismo dialético, que reconhece a existência de contradições
antagónicas e não antagónicas no ser social e o seu papel motriz nas
lutas de classes.
As
distinções não são divisões separadas e estanques, mas
interdependentes. Ser, conhecer, agir. Contudo, sem estabelecer
hierarquias de tipo moral ou dedutivo, Todas as áreas dos saberes, no
marxismo, apoiam-se numa base fundacional, em termos universais e
originais, numa ontologia materialista.
Pois
é: logo alguns se apressarão a classificar esta interpretação das
ideias de Marx como “ortodoxa”. Ou mais maliciosamente, “engelsiana”.
Não há, a meu ver, possibilidade alguma de negar a concordância de Marx,
nos últimos dez de vida, com o chamado “ontologismo” de Engels, através
de documentos escritos. O marxismo é irrefutavelmente o conjunto do
materialismo histórico e do materialismo filosófico. Lenine, entre
outros, compreendeu isso muito bem e corroborou com o seu amplo
contributo. Aqueles que recusam a base ontológica materialista, como
Gramsci por um lado, e Lukács e Mészáros por outro, ou, personalizando a
coisa, rejeitam (os dois últimos) a contribuição singular de Engels,
não deixam de ser marxistas por isso. Avançam com bons argumentos
teóricos e não se impediram de uma vida militante insuspeita. O que eu
julgo, e é apenas o que julgo pela minha cabeça, é que uma “ontologia
social” à maneira de Lukács e Mészáros, ou uma “filosofia da práxis” à
maneira de Gramsci, afiguram-se-me milagres inexplicáveis da espécie
humana se não tiverem uma sustentação ontológica. Por palavras mais
rudes: é uma acrobacia aérea a modos do idealismo.
Na
filosofia de Marx ocupa papel central a negação da autonomia absoluta
das ideias, ou seja: do pensamento, do espírito, o que se queira. Isto é
materialismo filosófico e também científico.
Não significa que Marx (e Engels) tivesse negado alguma vez o poder do
pensamento, a realidade das ideias e o papel influente delas (doutrinas
religiosas, filosofias, ciências, artes, o Direito, etc.) no processo
histórico, o que seria quase um disparate inconcebível, ou que a práxis
(a atividade social) fosse desprovida de cultura (outro disparate), ou
que das ideias não nasçam ideias, umas boas, outras más. Age-se com a
cabeça, mesmo quando nos falta a solução mais racional. Não há
mecanicismo algum ( NOTA:
aliás, quem o diz acerta mal, porque, em boa verdade, os materialistas
do século dezoito não eram atomistas à maneira primitiva e ingénua de
Demócrito, para o qual as ideias eram partículas materiais que vinham de
fora para dentro) e Marx desprezava a tese de que o cérebro segrega o
pensamento como o fígado segrega a bílis. A tese materialista básica tem
sido alvo de intermináveis e, por vezes, perfeitamente escusadas, senão
mesmo maldosas, controvérsias. Na realidade, não se trata apenas de
questões que envolvem postulados científicos controversos, mas também de
filosofia política.
Este é para os anti marxistas o alvo. Marx não veio para contemplar o
real, veio para demonstrar que uma outra realidade é possível porque é
necessária, dar uma teoria ao mal-estar, dotar os trabalhadores de um
projeto, fornecer à luta dos trabalhadores de todo o mundo um destino
racional: a completa irradicação de qualquer forma de dominação
económico-social de seres humanos por outros seres humanos. É assim que
entendo o comunismo de Marx e Engels: a máxima autonomia individual que
permitirá o desenvolvimento integral das capacidades de cada um.
Escreveu Marx no Prefacio a O Capital: «o fim último desta obra é desvendar a lei económica do movimento da sociedade moderna»
Num
artigo que tem de ser breve, não podemos listar com clareza suficiente
para cada conceito o respetivo problema e contexto. Sim, Marx discutiu
ideias contra ideias, leu teorias de outros que aproveitou (o
socialismo, as classes e a luta de classes, a mais-valia e o
valor-trabalho, o papel do proletariado) ou refutou; contudo, foi também
o encontro com fatos observados (o célebre roubo da lenha que ele
denunciou, a brutal exploração de crianças e mulheres em fábricas e
minas dantescas tão bem descrita no livro pioneiro de Engels)NOTA que
o iluminou, terreno empírico onde ele viu problemas e descobriu causas,
ou pressentiu-as muito cedo. As categorias que vamos expor não brotaram
simplesmente da coxa de Zeus como Atena. Assim costumam pensar os
filósofos do idealismo. Marx foi influenciado e nem tudo que escreveu
era da sua exclusiva invenção. E isto até é bom: mostra que os profetas
não são inspirados por deuses, mas frutos de contextos e de influências.
Categorias e conceitos
As
categorias são conceitos universais que pretendem exprimir as nossas
relações cognitivas e práticas com o mundo e connosco mesmos; possuem
uma dimensão e um alcance ontológico, nomeando aspetos do Ser, através
de uma tomada de consciência gnosiológica, isto é, dizendo o seu sentido
do ponto de vista do conhecer. Para Marx são formas do Ser,
determinações da existência, não são puras “essências lógicas”, nem
“determinações do intelecto”, como quer o idealismo. Temos de distinguir
uma categoria geral, universal, como a de Matéria, que se refere à
natureza objetiva que não se rege por intenções, interesses materiais,
conflitos entre quem trabalha e quem se se apropria dos excedentes, por
finalidades e finalismos, de modalidades de expressão de realidades que
têm a ver com a sociabilidades entre os seres humanos, por exemplo “todo
o trabalho produtivo tem uma finalidade consciente e voluntária:
produzir excedentes”. A categoria de “os fins” (teleologia) indica a
transformação da natureza com o fim de produzir bens e que, ao mesmo
tempo, modela o comportamento. Os fins postos pelo entendimento não são
meros epifenómenos da nossa condição biológica; não é só o Objeto (a natureza) que transforma o homem (originou o homem, e este é em primeiro lugar e em último lugar, um ser natural), o Sujeito também
transformou profundamente a natureza ambiente (ao ponto de a destruir,
de colocar em perigo a sua própria existência). Estes fatos evidentes
confirmam, na minha opinião, o conteúdo dialético do materialismo
marxiano-engelsiano. Para que serve aqui uma lógica unilinear?
É nas Teses sobre Feuerbach que
devemos começar a procura das categorias (filosóficas) fundamentais. O
novo materialismo fundado na categoria da prática ou da atividade. O
subjetivo como construção do mundo objetivo histórico-social. A
sociabilidade, a ação social no grupo, nas classes, sem a qual não
haveria subjetividade e personalidade. E o objeto-objetividade
(externalidade) interpretado gnosiologicamente como mundo humanizado.
Algumas
categorias não parece distinguirem-se dos conceitos científicos (ou
usados nas ciências experimentais particulares), por exemplo a categoria
modal de causalidade, mas possuem um alcance mais abstrato, geral. No
marxismo constituem a lógica dialética. Por exemplo, responder à
pergunta: o que é, refere apenas o objeto atual, ou também é real a sua possibilidade imanente de vir a ser algo mais, algo diferente? A mesma interrogação de outra forma: o que é encontra-se em devir?
As categorias filosóficas referem-se à relação cognitiva com o objeto. O que é que é? O que é a Matéria em geral, criadora
de tudo que existe? Qual é a relação social básica do homem enquanto
ser natural: o trabalho? A sexualidade- estrutura familiar? As
categorias filosóficas conseguem expressar, ou refletir, características
gerais, propriedades ou qualidades, do próprio objeto (o que é externo
ao sujeito e que este observa, manipula e trabalha, usa e transforma), e
os produtos da mente (artísticos, práticas festivas e religiosas) não
são exceção. Portanto, não se opõem sempre ao pensamento realista
científico e aos métodos empíricos, tendo sido o berço destes métodos; o
pensar filosoficamente não é incompatível nem muito diferente do
pensamento científico. Olhamos para o céu estrelado hoje com o olhar que
a ciência nos deu e pensamos filosoficamente na sua origem, no seu
porquê, na sua pura materialidade, na nossa existência singular e
coletiva. Para quê desvincular o que esteve historicamente muitas vezes,
o melhor das vezes, vinculado?
As
categorias filosóficas marxianas possuem objetividade, não são meras
especulações ou “infalsificáveis” como defendeu Popper e o cortejo de
repetidores liberais e agora pós-modernos. Tanto a mais geral de todas, a
Matéria, a qual exprime a realidade independente e anterior à
existência do ser humano, como as categorias transhistóricas de
Trabalho, de Ideologia…A filosofia marxista possui um grau de
objetividade que o idealismo filosófico não consegue alcançar, porque
ela se casa bem com a prática (as
atividades e as relações sociais concomitantes), essa categoria
filosófica fundamental tão menosprezada pelo idealismo clássico. E, por
isso, uma fonte dos seus enunciados falsos. Porque tem de ser
“infalsificável” o grande enunciado marxiano de que os modos de produção (segundo
a definição de Marx evidentemente) compõem em boa parte uma lógica do
processo histórico por todo o percurso das sociedades humanas?
As categorias são posições,
noções, juízos, diferentes expressões do ser, por meio de que podemos
investigar e explicar o que observamos, e intervir. A mundividência
materialista-histórico-dialética distribui o ser em duas camadas: O Ser
geral- a Matéria- e o ser social, sendo que o Ser geral (universal) – a
Matéria- possui o primado ontológico e cronológico. As categorias são
formulações próprias da atividade filosófica, de âmbito geral, portanto,
distintas dos conceitos que são noções próprias das ciências
particulares que estudam objetos particulares, determinado campo de
fenómenos.
Quais
são esses conceitos gerais que estão no núcleo científico da
historiografia, ou que não estando só diminuem o alcance científico
desta?
O conceito de Modo de produção (combinação
mais ou menos contraditória de forças de produção e relações de
produção) dos bens consumidos por uma sociedade. Suporta a exigência de
estudar-se uma determinada realidade, genética e ontologicamente, para
que se fique a conhecer qual o modo de produção determinado e
determinante de uma dada formação económico-social (outro
conceito! Fundamental neste a divisão do trabalho), qual a profundidade
da dinâmica das contradições que o percorre. Com base nesse
conhecimento torna-se mais compreensiva a estrutura de classes dessa sociedade.
Modo de produção, formação económico-social, estrutura de classes.
Metodologicamente
pouca diferença faz começar-se pela base para explicar a divisão
conflitual de classes ou começar por esta e chegar-se às bases. Por
conseguinte, as categorias filosóficas e os conceitos científicos
exprimem realidades mutáveis precisamente porque são históricos.
Conceitos científicos tais como os da mercadoria força de trabalho, valor e mais-valia, taxa de exploração, feitiço da Mercadoria e alienação do
trabalhador, aplicam-se exclusivamente à formação económico-social
capitalista, exprimem realidades, fenómenos, que não existiam em
anteriores sociedades. Tal significa que outros conceitos não se podem
aplicar a essas sociedades? Não. O conceito de modo de produção, por exemplo, aplica-se a essas sociedades.
Determinados
conceitos só conservam validade enquanto subsistir esta sociedade
capitalista porque surgiram com ela e servem como explicação. Outros
conceitos subsistem para além do momento e da época, porque se fixam
numa esfera de grande abstração. Contudo, é necessário distinguir
conceitos abstratos marxianos de outros conceitos abstratos: por
exemplo, a definição que Aristóteles nos legou de Justiça – definição
muito correta- pode aplicar-se a todas as sociedades, porém não pode
explicar obviamente as caraterísticas concretas da justiça/injustiça da
sociedade capitalista.
Defendo aqui, estribado nos textos de Marx e nas sínteses rigorosas apresentadas por Engels para explica-los, uma Teoria científica e filosófica que
compreende uma ontologia geral (materialismo dialético) e uma ontologia
social (o materialismo histórico), que explica a cientificamente a
essência o movimento do capital e que justifica a necessidade de
revoluções socialistas rumo ao comunismo. É esta totalidade que defendo.
Totalidade dialética com a qual se articulam dados científicos atuais e
enunciados filosóficos numa mundividência.
O marxismo, na medida em que respeite o corpo científico das categorias e conceitos cuja aplicação se encontra sobretudo em O Capital,
não foi “falsificado” por teorias, métodos ou práticas. A sua
atualidade é demonstrável sem dificuldades intransponíveis, porque
acolhe as transformações que as sociedades têm sofrido. É uma doutrina
aberta que não teme ajustar-se. Portanto, as categorias e conceitos que
vamos aqui apresentar, nomeadamente económicos, não se aplicam somente
ao século XIX, como querem fazer-nos crer os intelectuais da antiga e da
nova “Guerra Fria”. As coisas não mudaram assim tanto.
Na
medida em que considerarmos que a vertente filosófica da Teoria
marxiana – onto-gnosiológica – se articula logicamente com o nível
científico da crítica social, então o materialismo histórico e dialético
é atual e não dispensável. Afirmo mais: o chamado “neoliberalismo” veio
atualizar O Capital e
as ciências particulares (da natureza e sociais) vieram confirmar o
materialismo. Para alguns marxistas faz sentido que a parte filosófica,
ontológica, particularmente a categoria de matéria, seja separável do
resto da Teoria marxista e até excluída. É um erro. A Teoria fica
decapitada. A ontologia materialista sustenta a Teoria social.
E o materialismo histórico, a ontologia do ser social (o trabalho
produtivo e outras categorias), confirma a materialidade do mundo e da
vida.
Não
se tenha receio de defender, demonstrativamente, que Marx forjou
conceitos científicos; que, por conseguinte, o marxismo contem uma
teoria científica sobre o capitalismo exposta em O Capital. Neste sentido, e apenas neste sentido, Althusser estava certo e podemos compreender a justeza do livro de Engels, Do socialismo utópico ao socialismo científico. Contudo, em O Capital há
também uma filosofia. Manifesta e latente à maneira dos sonhos. É uma
crítica da Economia Política burguesa, que é, ela própria, uma obra política. O materialismo histórico e dialético está lá bem, e recomenda-se.
Os
adversários costumam recorrer um argumento para tentar refutar a teoria
de Marx: a crença deste na inevitabilidade do socialismo; alguns leram
nos seus textos uma suposta teoria do colapso iminente. Quem quer ver o
que procura, sempre encontra. Quanto ao primeiro argumento diga-se que
Marx demonstrou que o capitalismo conduzia à ruína do pequeno
empresário, à exploração dos assalariados, à concorrência feroz, ao
agravamento de contradições internas nacionais e internacionais;
portanto, eram inevitáveis crises, revoltas e revoluções, porque nada é
eterno. Quanto a segundo, uma coisa é o desejo de Marx, aquilo porque
lutou na prática para precipitar (como fazemos todos nós, comunistas), e
que admitiu perfeitamente que uma profunda crise do capitalismo (não
previu a data e o local) podia, e devia, ser aproveitada pelo
proletariado para derrubar o capital. Sem dúvida. A derrota de 1845, o
triunfo de Luís Bonaparte em 1851, a repressão sangrenta sobre a Comuna
em 1871, não vieram refutar coisa alguma, por maior que tivesse sido a
surpresa de Marx. Vieram confirmar a importância decisiva da política, das lutas de classes. A categoria marxista de Revolução, exposta pela primeira vez em O Manifesto do Partido Comunista, (que, mais tarde, Engels desenvolveu no Anti-Dühring) o que diz, e aqui não se nega, é que só uma revolução derrubará o capitalismo, e essa revolução ou é socialismo ou não é.
Os
conceitos científicos económicos marxianos são, na sua força objetiva
irrefutável, observações de relações sociais transpostas pelos sentidos
para a mente de cada indivíduo, traduzidas e elaboradas pela memória,
imaginação, linguagem conceptual, símbolos e outros recursos lógicos. A
mais-valia enquanto termo linguístico é produto da consciência, contudo
exprime um fenómeno real. Os capitalistas sabem isso perfeitamente e não
precisou de nenhum curso superior e denuncia-o com se queixa de que não
pode pagar salários mais altos sob pena da empresa ir à falência. Pois.
Correm pelos palcos académicos burgueses conceções que garantem que
tudo que se diz é tão “cultural”, subjetivo e relativo, que não
admiraria que dissessem que o dinheiro, sendo coisa abstrata, é apenas
uma realidade atmosférica na cabeça do rico. Sim, é delírio, mas na
cabeça do pobre.
Isto
nada, mas mesmo nada, tem que ver com o fato de que conceitos
económicos forjados e empregues por Marx somente são verdades na medida
em que subsistam as relações económicas capitalistas. Algumas leis
históricas só são leis para um determinado desenvolvimento das forças de
produção. Melhor dito: leis tendenciais.
Categorias do ser social-
trabalho, base, infra e supraestruturas, finalidade (teleologia),
classe, ideologia, consciência, alienação, possibilidade,
atividade-práxis, liberdade.
Categorias gnosiológicas-
abstrato/concreto, universal/particular/singular,
reflexo-tradução/reprodução/representação, contradições antagónicas e
secundárias, contrários-oposição, reciprocidade, unidade de contrários,
negação da negação, superação; substância/forma
Devemos seriar níveis no Ser,
entendida esta categoria (a Matéria do mundo) na sua máxima
generalidade – distribuir o ser- as categorias que exprimem o conteúdo e
as formas. A Matéria, no sentido filosófico primeiro ou ontológico, é a
composição do universo (Natureza) inseparável das formas como se
manifesta e se auto cria e se destrói; composição a que nada se
acrescenta que não seja material; é nesse sentido que dizemos que é o
Todo ou Totalidade máxima, admitindo que este universo é finito. Dizemos
por isso que há dialeticidade da forma e do conteúdo; que há no
universo possibilidades reais (um fim inexorável, emergência de outras
vidas inteligentes) e possibilidades formais (podemos falar de
potencialidade atualizada ou apenas virtual, sendo que o virtual pode
possuir uma dimensão real); os saltos qualitativos e as emergências (uma
qualidade nova ou uma forma diferente que emerge da complexidade
dinâmica dos fenómenos naturais). Categorias com as quais o método
dialético trabalha e que expressam fenómenos objetivos.
Não
existe um só materialismo, mas vários. O materialismo evolucionista é
agora absolutamente dominante após o refluxo do marxismo na segunda
metade do século passado. Ele próprio não é homogéneo, ainda que o
neodarwinismo seja o denominador comum. Convinha de todo que se
aprofundasse o diálogo entre evolucionistas e dialéticos, até porque
entre os primeiros há cientistas a quem não repugna designar como
dialéticos determinados fenómenos da química e da biologia. De resto, os
marxistas, sendo materialistas, também eles se dividem em adeptos de
uma dialética da natureza e os que o não são de todo. Há aspetos
fundamentais que no materialismo separam marxistas dos evolucionistas:
era absolutamente claro para Marx que a cultura, a proeza humana de
produzir os meios do seu sustento e os meios dos meios, é uma rutura com
a biogénese, ou melhor: é uma sociogénese. É com este significado que
usamos a expressão ontologia do ser social, que devemos a Lukács, e
apenas com este significado; não com o significado, que é seguramente de
Lukács, de desconsideração pelo materialismo dialético, aquela
ontologia que ele censurou em Engels.
Entre
a natureza não humana e a espécie animal humana introduziu-se uma
descontinuidade. Esta asserção é tipificadamente dialética (no caso,
materialista dialética) e dá substância às categorias fundamentais de
Marx e Engels. Pela pena de Marx podemos conhecê-las nas Teses sobre Feuerbach.
Não há continuidade linear, erro em que incorrem evolucionistas, por
culpa do seu reducionismo. Se formos pesquisar as suas posições
políticas descobrimos sem surpresa que são em grossa maioria
politicamente conservadores. Uma coisa não leva à outra automaticamente,
contudo é de assinalar. Outra diferença com os evolucionistas nossos
contemporâneos passa precisamente pela noção que fazem de uma evolução
lenta e gradual (nos darwinistas mais ortodoxos). Ora, a conceção de
Engels, a qual Marx não corrigiu, é a de na natureza também se verificar
mudanças bruscas, os famosos saltos qualitativos. Exemplos
extraídos da Química ilustram perfeitamente estes fenómenos naturais:
aumento na quantidade produzem mudanças qualitativas (surgem, por
exemplo, novos minerais, metais, ou outras substâncias). Esta categoria
tornou-se central numa conceção dialética da natureza; não a de mudança
ou até de desenvolvimento, porque estas também são defendidas pelos
evolucionistas. Importa insistir: para o marxismo as leis da matéria ou
natureza não podem ser todas elas transpostas para as sociedades
humanas. Em primeiro lugar, porque aqui funciona também a
práxis (o trabalho produtivo e inventivo), a subjetividade (razão,
vontade, intenção, ação; a planificação e a prevenção), as relações
sociais. Em segundo lugar, porque as leis da matéria não se aplicam a
todas as suas formas, embora existam aquelas que são mais gerais do que
outras; as leis naturais não são absolutas, mas relativas (conforme os
princípios da Relatividade de Einstein). Em terceiro lugar, não
afirmamos de modo nenhum que as categorias da dialética são as únicas
que explicam os movimentos da matéria ou natureza; afirmamos que existem
fenómenos para cuja explicação as categorias da dialética são
auxiliares indispensáveis. Na medida em que a espécie humana é,
literalmente, uma espécie viva substancialmente idêntica a qualquer
outra (diferenciando-se pelos graus de complexidade e autonomia), não
deve surpreender que categorias dialéticas que se constatam nas
sociedades humanas (as quais, não deixam, por isso, de ser sociedades de
animais), se encontrem também noutros fenómenos da matéria. A questão
torna-se controversa neste ponto: na matéria ou natureza os
acontecimentos ou movimentos são automáticos (não vale dizer
“mecânicos”, como alguns críticos escrevem, porque podem ser químicos e
biológicos), não conscientes, conduzidos por um certo “fatalismo”,
enquanto nas sociedades humanas intervém a consciência e a vontade, isto
é, a autotransformação e a cooperação consciente. É um forte argumento a
que os marxistas têm respondido de modos contrários entre si. As
prioridades deste artigo e a sua extensão não me permitem desenvolver
mais o tema.
Deixemos
como apontamento a sinalização das seguintes categorias dialéticas,
devidas a Engels, que nos ajudam a compreender a natureza: conexão e as
relações de ação recíproca entre os fenómenos (a quântica mostra a
conexão entre partículas separadas por distâncias astronómicas),
desenvolvimentos descontínuos de complexidade crescente através de
mudanças qualitativas bruscas, movimentos opostos que podem traduzir-se
por equilíbrios, pela eliminação de um dos polos ou corpos ou pela
destruição de ambos, emergências da matéria que se movem na direção da
flecha do tempo por força da entropia e que, portanto, possuem uma
história, história dentro de uma história maior (a história da Vida na
Terra e a história descontínua dos primatas bípedes; a história do
nossos universo, com uma origem e um fim).
Retomemos Engels: foi ele nas suas obras Origem da Família, da Propriedade privada e do Estado e Dialética da Natureza (textos
inacabados estes, apontamentos que deixou na gaveta para se dedicar
inteiramente à edição dos Livros de O Capital que a morte inesperada de
Marx interrompera), que esclareceu e firmou essa tese importante da
Teoria de Marx e dele. Hoje sabemos que a espécie humana em certa medida
dominou a seleção natural (protegeu os mais débeis por exemplo)
contrariamente a todos os restantes seres vivos. Sabemos hoje muito mais
do que soube o espírito enciclopédico que foi Engels para o seu tempo.
Talvez saibamos o bastante para ligarmos o homem à sua natureza,
a matéria de que é feito todo, a matéria de que ele é a expressão
pensante, libertando-nos de reducionismos que não vêm que o homem
construiu uma “segunda natureza”, as relações sociais, que o tornaram
distinto no planeta. Dominando com a técnica aqui e acolá a natureza
hostil para sobreviver e, agora, ponde em perigo a sobrevivência de
ambas as coisas. Nos meados do século XIX Marx e Engels já defendiam o
que atualmente é verdade corriqueira: a espécie homo sapiens sapiens (senão
mesmo as que se distinguiram) rompeu de certo modo com a prisão ao meio
ambiente, num processo que ainda não terminou. No entanto, convém que
não exagerarmos na fundura desse corte: não se encontrou em parte
nenhuma uma entidade que não fosse composta de ingredientes naturais ou
materiais. O “Espírito”? Uma coisa é dizer-se que possuímos, como
humanos sociais, uma vida interior e capacidades neurais para
imaginarmos o que não existe, outra coisa é separar-se Ser, isto é,
Matéria, de uma “coisa” chamada Pensamento. Na verdade, ou se é
materialista ou não se é. O agnóstico discípulo de Kant não é
materialista mesmo que o afirme. Nada existe para além das infinitas
formas que a matéria assume. E isto não é reducionismo. Sê-lo-ia se não
compreendêssemos que sem sociabilidade ou relações sociais não
formaríamos pensamentos, pois até as sinapses neurais disso
necessitam…Somos seres agentes acima de tudo, esta uma afirmação
vincadamente marxiana. Somos e temos sido capazes do melhor e do pior,
gozando portanto de autonomia face ás foças naturais cegas e
automáticas, capazes de fazer a nossa própria história ao contrário dos
símios. Como vcoletio, independentemente de certa maneira das leis da
selecção natural, nae até contra, na medida em que criámos modos de
protecção dos mais débeis ao longo de progressos lentos mas
desigualitário mas ainda assimprofundos na protecção das famílias e das
crianças, nos casamentos e regras de parentesco, etc., na medicina, no
stado Social. Somos seres autodeterminados. E esta é uma afirmação
coerente em quem trouxe a categoria da atividade social ou práxis para a
cena da filosofia e das ciências sociais. Antes de tudo somos corpos,
necessitamos de outras matérias para nos conservarmos vivos, que fomos
capazes de produzir. A consciência é corpórea, isto é, uma função do
corpo e neste da sua parte cerebral, a precondição de toda teoria da
subjetividade é aceitarmos e partirmos nas nossas elucubrações da
existência destes seres necessitados no mis banal sentido do sensual e
do fisiológico e do emocional. Tal como todos os seres vivos extraímos
do meio ambiente natural o que podemos através de um metabolismo que
deixou de ser puramente natural e cego, para se converter em mediação
social coletiva, o trabalho e, num processo dialético, corelações que
foram estruturando as comunidades aldeãs e, depois, citadinas. Fomos
capazes de reunir e armazenar e transmitir informações cada vez mais
complexas em função dos modos de produzir e distribuir. A codificação
sonora e escrita, a linguagem condição decisiva da nossa evolução
autónoma, e que, na teoria marxiana e engelsiana, mostra bem como se
adiantaram às ciências dda primeira metade do século. Como seres vivos,
unidades complexas combinadas de células e, cromossomas, etc., usamos
energia, consumimos energia das estrelas, produzimos energia para outros
vivos, benéfica e maléfica…Pensar é uma necessidade material. A
subjetividade, a pessoa ou a personalidade, é uma construção social. Até
os sentidos! Eis aqui postulados inseridos na totalidade coerente de
uma conceção geral do mundo e da vida afirmada já nos anos quarenta do
século XIX (estão na Ideologia Alemã e nas Teses sobre Feuerbach,
no essencial). Corpo e espírito não são entes ou entidades diferentes,
nem sequer o espírito é ente nenhum. É uma criação dos idealistas da
Grécia e dos padres que se lhes seguiram. Só existe o corpo. Dotado na
nossa espécie de um complexo sistema nervoso que nos faz sentur a dor e
chorar sobre o passado. Os golfinhos são tão dotados como nós e se não
constroem cidades e se fusilam una aos outros é porque não
enconcontraram vantagem alguma para além dos paraísos mem que viviam
taté há pouco…A nossa biologia foi e é ainda o cimento da nossa
excecional sociabilidade. E estas précondições constituem a ontologia
materialista. Perberam-no e escrevram-no fora de qualquer posição
positivista conteana Que não é, aliás, materialista mas agnóstica) e
muito antes de A Origem das espécies, de Charles Darwin. Oque nos
diferencia dos evolucionistas contemporâneoa não é somente a
anterioridade, mas aquilo em que eles teimam em errar: na deficiente ou
memso incacidade, mercê do seu naturalismo unilateral, de valorizar e
até entender nalguma casos (na Psicologia por exemplo) que a fonte das
ideias e das relações está na externalidade, ou seja, na
formaçãoeconómico-social em que vivemos.
Categorias do ser social-
Podemos emparelhá-las porque é assim que aparecem: propriedade
comunal/propriedade privada; formação económico-social/divisão do
trabalho; divisão do trabalho/ estamentos e classes sociais; modo de
produção /forças e relações de produção; trabalho/ força de trabalho;
valor de uso/valor de troca; Mercadoria-Valor; trabalho
concreto/trabalho abstrato; exploração- taxa de mais-valia/capital,
acumulação/concorrência; composição orgânica do capital /lei tendencial
da queda da taxa de lucro; concentração/centralização;
infra/supraestruturas; contradições/oposições;
finalidade/meios-mediações; ideologia/filosofia e ciência;
consciência/alienação; liberdade/dominação-Estado. Categorias
transhistóricas: formações económico-sociais, Trabalho, divisão social
do trabalho, modo de produção, Trabalho, Estados, Ideologias, formas de
dominação, grupos sociais; cooperação; família e/ou parentesco;
linguagem; consciência social (ênfase nos conteúdos sociais da atividade
mental).
Categorias gnosiológicas- abstrato/concreto, universal/particular/singular, reflexo /tradução/reprodução.
Não
vou expor evidentemente todas estas categorias (de resto, não as listei
todas). Escolhi algumas noções sem critérios de maior ou menor
importância, porque todas elas se revestem da mesma importância (as
causas não são mais importantes que os efeitos, porque estes são amiúde
importantes causas de acontecimentos históricos). Algumas são gerais e,
por isso, contêm outras.
O que é o materialismo?
No
seu significado ontológico (o Ser enquanto Ser) é uma conceção
filosófica que afirma a dependência unilateral do ser social em relação
ao ser biológico (e, mais geralmente, ao ser físico) e a emergência do
primeiro em relação ao segundo. Esta é a explicitação do materialismo no
seu significado geral e ontológico. Dado que esta definição aplica-se a
todas as conceções materialistas contemporâneas, o materialismo
construído por Marx e Engels vai mais longe: utiliza o método dialético
porque considera a existência real de relações tipificadamente
dialéticas em determinados fenómenos naturais e, particularmente, nas
relações sociais. Daí a designação de materialismo dialético, o que o
distingue do materialismo naturalista ou darwinista. De seguida podemos
distinguir:
Um materialismo epistemológico (gnosiologia),
que afirma a existência independente e a atuação transfactual de pelo
menos alguns dos objetos do pensamento científico; a possibilidade de
conhecimentos verdadeiros é-nos garantida, juntamente com outros
critérios metodológicos, por um materialismo prático (práxico),
que afirma o papel constitutivo da ação transformadora do homem sobre o
meio-ambiente produzindo/reproduzindo as formas sociais que
constituíram e vão constituindo as sociedades, transformando-se ao mesmo
tempo os indivíduos. Neste âmbito conserva-se o modo dialético de
explicar as coisas na medida em que a dialética pensada corresponde ou
traduz a dialeticidade do real social.
Por fim, o materialismo histórico afirma
o primado causal do modo de produção dos homens (e das mulheres) e de
reprodução de seu ser natural (físico), ou, de um modo mais geral, do
processo de trabalho no desenvolvimento da história humana.
Contrariamente a teses de marxistas da atualidade defendemos o carácter
transhistórico do Trabalho, muito embora seja certo e importante dizê-lo
que o trabalho abstrato é próprio do modo de produção capitalista logo
que entrou na sua fase mercantil industrial. O materialismo histórico
fundado por Marx NOTA (os seus elementos básicos encontram-se em A Ideologia Alemã,
escritos de Marx e Engels, que não eram destinados a publicação, mas é
no texto de Marx Contribuição Para a Crítica da EconomiaPolítica de 186 )
releva a base económica das sociedades, tal como era e é notório no
capitalismo, contudo não lhe destina sempre um
papel determinante nos acontecimentos sob qualquer circunstância; não
há determinismo económico ou economicismo no materialismo histórico; a
confusão deve-se à enfase que Marx e Engels atribuíram, e bem, às
condições de vida dos seres humanos pelo trabalho, pela exploração do
trabalho, etc. Controverter estas teses bem explícitas nos textos de
Marx desde a sua juventude e maduramente esclarecidas em O Capital, como têm feito alguns simpatizantes do marxismo, deve-se a um certo apego estreito de vista ao Prefácio de…nota……………
sem ter em conta obras anteriores e posteriores, esclarecimentos de
Marx e Engels em prefácios e correspondência, e a uma certa incapacidade
para compreender a obra e o homem na sua totalidade. Aqueles que atacam
o marxismo e censuram o pretenso determinismo, o que querem é atacá-lo
seja desta maneira ou doutra.
As
distinções não são divisões separadas com absoluta autonomia, mas
interdependentes, digo mais: todas as áreas dos saberes dependem da
ontologia materialista (a que chamei ontologia primeira ou geral),
contra a opinião de muitos marxistas. Tenho como certo que renunciar a
uma ontologia materialista- o materialismo dialético - é rever e
contrariar o pensamento de Marx e que Engels desenvolveu. Sobre isso não
se chegará jamais a um consenso entre as posições opostas que separam
os marxistas. Contudo, devemos conhecer os argumentos de todas as
partes, conhecer os manuscritos de Marx e Engels conforme vão sendo
editados, estudar sempre as ciências e conhecer claramente as
consequências políticas das nossas opiniões sobre o tema em discussão. E
isto também é marxismo. Marx hesitou, reviu, evoluiu? Certamente.
Importa saber em quê, porquê e quando. Idêntico raciocínio aplica-se a
Engels: hesitações, contradições lógicas, ambiguidades, nos temas
fraturantes da filosofia, ciência, dialética. Passou o tempo em que se
lia, amiúde, a seguinte conclusão perentória: Lenine fez a síntese,
disse o que era marxismo e o que era revisionismo, e está dito. Lenine
foi um intérprete lúcido e rigoroso, certamente; porém, não conheceu
obras de Marx e Engels só publicadas posteriormente; além disso, quando
escrevia e publicava estava movido por imperativos de urgência política
bem direcionados e quase que podíamos distinguir os temas e as escolhas
conforme os períodos marcantes do percurso do partido até à revolução e à
construção do Estado socialista (o exemplo bem ilustrativo é o livro O Estado e a Revolução,
disparando as armas da crítica para várias direções). Os problemas que
hoje enfrentamos não são todos eles iguais, de modo algum, aos que
Lenine conheceu. O que nos cabe fazer é saber aplicar os instrumentos
que Marx, Engels e Lenine, nos transmitiram, às novas e muito complexas
situações que atravessamos, criar novas categorias e desenvolver as que
se encontravam apenas num estado latente. Para tanto não basta lermos o Manifesto para ficarmos a conhecer o que temos agora pela frente…
Modo de produção
Qual
é o conceito científico transhistórico de Marx pelo qual finalmente
compreendemos que a história possui uma lógica interna que não é divina
nem puramente especulativa, nem um confuso emaranhado de chefes, guerras
e impérios que se sucedem?
É o conceito científico de modo de produção. Este conceito axial que traçou os rumos da moderna historiografia esta exposto em Para a Crítica da Economia Política, Prefácio, 1859.
Todo
o modo de produção é uma combinação de forças de produção e relações de
produção. As forças de produção (força de trabalho, técnica,
matérias-primas, etc.) não causam mecanicamente
relações sociais, determinam-nas, isto é, conferem caraterísticas
específicas e influenciam a sua criação (na Baixa Idade Média, após a
Peste Negra, ao aumento da oferta de “jornaleiros” em troca de um
salário, marcam o advento do capitalismo). A evolução das forças e das
relações está na sua interdependência e influência recíproca; assim
brotarão inevitavelmente contradições entre ambas; as relações acabarão
por entravar o desenvolvimento das forças produtivas, seja pelo nível
dos salários e pela exploração, seja pela orientação dos investimentos
que depende do lucro, das políticas económicas do Estado burguês, etc. O
fraco desenvolvimento económico sob a ditadura fascista de Salazar,
colhido por profundas contradições entre as forças e as relações de
produção, em que os latifúndios e o caráter terrorista do regime
exerciam a sua profunda influência, ilustram este tema. A
evolução de cada modo de produção, o amadurecimento das suas
contradições antagónicas, determinam o rumo próprio dos acontecimentos. O
processo histórico é, fundamental e genericamente, a mudança de modos
de produção.
RELAÇÕES DE PRODUÇÃO
O
ser humano ao trabalhar produtivamente criou nessa atividade
determinadas relações. As possibilidades tecno-materiais de produzir e
acumular excedentes desempenharam o papel decisivo na formação de sempre
novas sociedades. Todos os indivíduos que ocupam um determinado lugar e
desempenham um determinado papel no processo de produção estabelecem
entre si, quer queiram ou não, relações. Relações não só estritamente
económicas (pagamento de um salário em troca de um determinado tempo de
trabalho) mas inclusivamente jurídicas (legislação do trabalho, direitos
e deveres recíprocos) e políticas (o Estado intervirá com a força de
que tem o monopólio e
a legalidade, contra os trabalhadores) e ideológicas (todo o sistema de
ideias que as escolas e os meios de propaganda “noticiosa” difundem
permanentemente, justificando como “naturais” as relações de exploração e
desigualdade). Compõem com a divisão social do trabalho as diferentes
classes sociais do sistema, as suas diferenças antagónicas (as relações
entre aqueles que se sentem explorados e os que são percecionados como
exploradores geram revoltas sociais que conduzem, mais tarde ou mais
cedo, ao desabamento da antiga ordem económico-política) e não
antagónicas. As relações sociais capitalistas expandem-se dentro da
nação e para além desta, acabam por dominar outros modos de produção,
forças de produção atrasadas e regimes de propriedade e troca não
capitalistas. A compra compulsiva é atualmente um meio de expropriação
de propriedades dos povos e dos camponeses pobres; formas de
neocolonialismo vieram substituir com vantagens financeiras e políticas o
colonialismo clássico.
As
relações sociais de produção capitalistas impuseram-se e impõem-se pelo
poder, pela capacidade de um grupo de indivíduos se apropriar pelo
roubo ou pela troca em dinheiro das terras e de outros meios de produção
e necessitarem de comprar uma mercadoria
especial: a força de trabalho dos pobres. As relações sociais
capitalistas de produção permitem e exigem a reprodução ampliada, isto
é, a acumulação de capital e, mais depressa ou mais devagar, o
desenvolvimento das forças materiais de produção. Forças de produção
atrasadas e relações sociais de produção avançadas podem provocar
alterações de regime político com vista à expansão das primeiras.
Forças de produção
Os
utensílios, as máquinas ou o progresso tecnológico, constituem
elementos característicos da produção capitalista. Os avanços técnicos
estão sujeitos a ritmos desiguais entre os países. Este exemplo, assim
como as patentes, os entraves sempre colocados pela concorrência, a
submissão da tecno-ciência, técnicos e cientistas às ordens do capital,
criam obstáculos sérios a um progresso que não é contínuo ao contrário
do que parece aos marxistas que empolam demasiado as tecnologias da
produção capitalista.
Posto
isto também vale acrescentar que não é a máquina, a tecnociência
abstrata sem capitalistas que é responsável pela degradação do meio
ambiente e dos seus equilíbrios; como é de todo evidente não são as
máquinas que conspiram. É o modo de produção de mercadorias, de
acumulação de capital, da concorrência feroz; nem sequer esse “Capital
automático” sem mãos humanas e responsabilidade criminal de que agora
falam alguns marxistas místicos. É sobretudo o capital monopolista.
Portanto, determinadas forças de produção estão sempre ligadas a
determinadas relações sociais que as entravam ou, pelo contrário, as
impelem. Esta é a chave-mestra para abrir os três Livros de O Capital.
A
principal força produtiva é e sempre foi no passado mais remoto a força
de quem trabalha com os meios de produção então disponíveis, fosse o
arado de madeira, seja a robótica. A divisão do trabalho, a organização
do processo produtivo em suma, não nos dá automaticamente a totalidade
da formação económico-social em concreto. As técnicas revolucionadas
pelo capital são evidentemente necessárias no presente, sem escamotear
os graves prejuízos, e sê-lo-ão para o socialismo. Dependem do
conhecimento, da habilidade, etc., mas não saberíamos a partir da
simples vestígios arqueológicos entender qual o tipo de sociedade no seu
todo. Para isso é preciso algo mais. O simples moinho de vento não nos
diz de imediato o que era a corveia ou o dízimo e as complexas
vassalagens. Esse algo são as relações sociais sob
as quais se processa a atividade produtiva. O que importa é a ideia de
que o desenvolvimento das forças produtivas não basta para compreender o
quadro geral de uma formação económico-social. Na realidade, nem sequer
em parte alguma existiu uma sociedade, por mais atrasada, onde
existissem meios de produzir e trabalho para as utilizar e nada mais que
isso. O trabalho, a necessidade de produzir, tem existido sempre e
continuará a existir em qualquer sociedade futura. Mas os meios de
produção (os utensílios, as invenções, as matérias-primas, a forma de
processar a energia), o próprio trabalho, nunca existiram, não existem e
não existirão nunca independentemente de determinadas relações que se
estabelecem entre os indivíduos na divisão do trabalho e do regime da
propriedade, no processo orgânico da produção e da distribuição. Esta é
porventura a primeira ideia evidente que nos toma se refletirmos nestas
questões quando observamos o Trabalho em todas as civilizações. Poderá
ter sido a primeira ideia evidente que tomou a mente de Marx também,
porque é a partir dela que tudo o mais vem em seguida. Relações sociais,
a sua grande categoria filosófica e, especificamente, as determinantes
relações de produção.
Os
utilizadores dos meios de produção podem operar em equipas,
cooperativamente, é o que tem sucedido desde os primórdios. Mas a
interrogação que devemos fazer é «quem controla o quê?». Há alguém que é
o proprietário dos meios de produção? E esse mesmo é quem fica com os
resultados? ? E de que regime de propriedade (comunal, cooperativa,
privada, estatal), que tipo de proprietário (individual, acionistas,
administração de capitalistas)? Portanto, qual a relação deste(s)
indivíduos(s) com os trabalhadores e os meios de produção? É por aqui
que tudo começa. Quem inventa e fabrica os meios técnicos ou quem deles
se apropria pela força ou pela troca, é quem os utiliza? As tecnologias
nas sociedades capitalistas são mercadorias e os bens que elas podem
auxiliar a produzir são mercadorias, a força de trabalho é uma
mercadoria, a propriedade é mercadoria, as relações entre quem trabalha e
quem manda representam objetivamente relações sociais de dominação pela
força bruta ou pela coerção ideológica. Não é verdade que Marx
explicasse o processo histórico através exclusivamente das forças de
produção, das técnicas em particular. A categoria de modo de produção
não sobrevaloriza um dos elementos do par dialético, ainda que Marx aqui
e ali enfatize a importância do desenvolvimento das forças de produção e
o revolucionamento das técnicas. Nos países socialistas logo a seguir à
tomada do poder, muito atrasados e necessitados de bens com urgência, é
natural que se tenha enfatizado o desenvolvimento das técnicas e de
todos os meios de produção. Mas basta referir a imperativa planificação
central da economia para estarmos logo a falar de relações sociais.
Trabalho, Técnica, tudo isto tem que ver com essas práticas sociais tão
diversas, com as quais se foi dominando o meio ambiente, dividindo as
funções e os poderes, produzindo/reproduzindo as leis.
Na ontologia do ser social falemos, pois, do Trabalho.
O TRABALHO
Sob
o capitalismo os produtos do trabalho regra geral não são fabricados
para uso imediato, são fabricados para serem mercadorias sim; então,
adquirem uma propriedade particular. Esta propriedade não resulta da
utilidade específica dessa mercadoria, nem da qualidade particular do
trabalho utilizado na sua produção (ainda que a “marca” e a publicidade
influenciem fortemente o consumidor). Esta propriedade depende da
quantidade de trabalho utilizado na produção de cada mercadoria, desde
que o trabalho utilizado na sua produção tenha sido efetivamente um
trabalho de utilidade social. Assim, diferentes trabalhos assemelham-se
uns com os outros, o que significa que existe um algo neles
que os assemelha. E esse algo pode ser medido: a qualidade pela
quantidade. O dinheiro. O dinheiro, esse equivalente universal, vem
ocultar o carácter social do trabalho. Um dos enigmas do capital. Marx
decifrou-o. Aparentemente (que é o que costuma contar) tudo se deve aos
empresários, ao seu trabalho e amor pelo risco e à capacidade virtuosa
do capitalismo. Nada mais falso.
O
capitalismo explica-se fundamentalmente pelo modo como produz e troca
mercadorias. Ou seja: é na exploração económica dos trabalhadores que
vendem a força de trabalho que reside a base historicamente original e
sempre principal da acumulação do capital.
O capitalismo é um processo específico de acumulação de capital que
toma a forma de dinheiro. Não se produz para trocar valores de uso por
outros valores de uso concretos, mas para fazer dinheiro e mais dinheiro
que é, de certa maneira, uma coisa completamente abstrata. Acumulação
de dinheiro. Essa “coleção imensa de mercadorias” (Marx) só visa uma
finalidade: obter dinheiro num movimento irracional, devorador de seres
humanos e de matérias-primas. Temos aqui a explicação primeira do
conceito de infraestrutura económica e material, quando queremos
entender o sistema capitalista. E começamos a entender que muitas coisas
decorrem daqui como se este fosse o solo envenenado que faz brotar
plantas carnívoras.
EXPLORAÇÃO
Ocupa
o alfa e o ómega da Teoria de Marx a exploração de uma classe social
por outra. A extração do trabalho excedente. A propriedade privada dos
meios de produção. A desigualdade do lucro e do salário. O lucro, no
fundamental, na origem, que deriva da extração da mais-valia, que se
torna propriedade do capitalista. Esta apropriação é sempre coerciva,
podendo não ser mais violenta desde que o trabalhador não proteste. Na
sua expressão jurídica, o grau e o modo da exploração não são imutáveis,
tanto podem aumentar como diminuir, tudo dependendo das lutas de
classes e do interesse dos capitalistas (das crises e da concorrência);
além disso, a coerção começa no facto do trabalhador não ter outra
remédio para sobreviver, mais a sua família, senão vender a sua força de
trabalho a um indivíduo estranho; coerção para que o trabalhador
trabalhe mais do que o tempo necessário à produção de mercadorias
imprescindíveis à reprodução da sua força de trabalho. Num sentido
abstrato a categoria de exploração é transhistórica, existe há muito
tempo, mas a exploração económica de uns indivíduos por outros não é
imanente à espécie: nas tribos de caçadores-coletoras não havia, no
socialismo não há se realmente for socialismo. A forma de exploração
estrutura basicamente as sociedades de classes. No esclavagismo não há
qualquer velamento, no capitalismo há. A guerra da secessão nos Estados
Unidos ilustra claramente essa distinção no que respeita à escravatura e
à exitosa “libertação” dos negros. Tem sentido falar-se de Progresso
quando nos damos conta que a exploração do homem pelo homem sempre
existiu, e existe, com diferentes formas? Saque dos excedentes, das
riquezas produzidas por outros, opressão dos vencidos.
Da
exploração resultam as lutas de classes, dos explorados contra os
exploradores. Não resultam, porém, de modo automático, fatal; regimes de
exploração e dominação duraram milénios, nalguns casos soçobraram
guerras de rivais ou cataclismos; e as lutas de classes não se
circunscrevem a grandes confrontos explosivos; os acontecimentos – os
movimentos da história- não resultam apenas de confrontos entre duas
classes vincadamente opostas: a dos explorados contra os seus
exploradores, e as grandes mudanças, mais lentas, não se devem apenas a
essas lutas de classes antagónicas na história do mundo. Aliás, não
houve em boa verdade uma história universal (conceção eurocêntrica
hegeliana).
Uma
grave mutilação do marxismo é evacuar, com argumentos falaciosos, o
conceito de exploração; o que fica, não é Marx. O que fica não é a luta
das classes e grupos sociais que se sentem explorados por patrões,
tratados desigualmente pelo Estado amigo dos patrões, e se revoltam. Os
ideólogos “liberais sempre se esforçaram por velar a exploração, por
recusar a lógica matemática da taxa de mais-valia,
servindo-se da retórica de que o trabalhador só trabalha se quiser, que
é livre de vender o seu trabalho, que escolheu ser operário e não
capitalista, que não é tão inteligente como o seu patrão, que é feliz
porque faz o que gosta de fazer, que pode sempre negociar o salário
através de sindicatos livres na “Concertação social”, etc. O salário
mínimo em Portugal é dos mais baixos e indignos da UE, tal como o
salário médio.
A
análise e exposição da realidade factual da exploração no modo de
produção capitalista, ontem e hoje, da brutal desigualdade, está vertida
nos três Livros de O Capital. Economistas
burgueses, muito poucos, como Ricardo, haviam chegado às margens do
enigma, só aí. Marx decifrou. Porque não se trata apenas de descobrir a
verdade. Trata-se de ter a coragem de extrair dela as consequências.
Exploração e mais-valor
A exploração é
a taxa de mais-valia que os capitalistas conseguem extorquir. A
organização económico-política capitalista dedica-se à produção de
valor. A sua finalidade é extorquir mais-valia (mais-valor) aos seres
humanos que produzem essas mercadorias que, assim, transportam valor.
Mais-valor é o que o trabalhador não recebe no seu salário e o
capitalista abocanha. Portanto, trata-se de pura exploração do homem
pelo homem e não de uma lei da espécie humana em que os mais
“empreendedores” governam os menos inteligentes ou menos instruídos (o
patronato português é muito menos instruído que a massa de trabalhadores
e dos menos instruídos da UE)…São estruturas de dominação
autoproduzidas pelo sistema e que se reproduzem continuamente, sob
formas menos violentas nuns casos, ou por regimes de terror como a
ditadura fascista de Salazar.
A
exploração assenta numa série encadeada de categorias num quadro lógico
em que uma causa gera um efeito e este gera uma causa do efeito
seguinte: força de trabalho convertida em mercadoria, dinheiro na posse
de um indivíduo interessado em fazer dinheiro com um negócio, compra de
uma mercadoria especial, salário como valor de troca, mais-valia que
corresponde ao tempo de trabalho não pago (que é quase todo), trabalho
concreto/trabalho abstrato, divisão do trabalho, classes e subclasses,
concorrência, expansão mundial do capitalismo, crises e guerras,
colonialismo, imperialismo, etc.
VEJAMOS DE SEGUIDA UMA CATEGORIA IMPORTANTE DO MARXISMO: a Práxis.
É a
atividade produtiva e reprodutiva que carateriza a espécie humana e a
diferenciaram há centenas de milhar de anos das outras espécies vivas.
Pela prática a nossa espécie (outras desapareceram) transformou os
lugares, adaptou-se fisicamente e criou relações sociais aptas, fez-se a
si própria. E isto é pura dialética! Marx utilizou a expressão atividade, raramente a expressão práxis.
São várias e diferentes as práticas ou atividades que englobam as
culturas humanas (práticas de formação e preservação dos grupos, a
divisão do trabalho, as práticas agrícolas, as práticas festivas e
religiosas, a prática da guerra). A ciência possui igualmente uma
dimensão prática, que é a experimentação e a técnica. A própria
filosofia somente se aproxima da verdade relativa quando não descola das
práticas sociais. Os marxistas não costumam descurar a investigação das
práticas que distinguem e preservam as tradições, as comunidades, os
pequenos grupos, as identidades adquiridas ou atribuídas, os
intercâmbios, os locais de residência, a geografia, etc. Tendo sido Marx
a relevar o papel da prática, da atividade produtiva, não excluía
obviamente as práticas que decorriam direta ou indiretamente das
primeiras, sem utilizar causalidades mecânicas: a atividade política e
as suas instituições, as instituições culturais e os cultos religiosos,
as festas, os espetáculos… NOTA- Teses A práxis
Apesar da sua relevância, como no-la mostram as Teses sobre Feuerbach e a Ideologia Alemã,
e do papel que sempre esta categoria (a atividade) desempenhou na
constituição, no significado objetivo e verdadeiro, das categorias e
conceitos marxianos (observe-se a prática da produção para se elaborar
teorias mais ajustadas das transformações da vida), o critério da
verdade por meio da práxis social não pode por si só provar ou refutar
determinadas conceções teóricas complexas. Em certos casos é a
matemática que prova, ou uma elaboração dedutiva sofisticada. Quando se
diz: a prova do pudim é comê-lo! É uma afirmação que se aplica e bem a
certos casos, não a outros. A Ideia comunista,
chamemos-lhe assim a um projeto singular, não foi refutada por
determinadas experiências práticas derrotadas. Talvez essas experiências
não fossem aplicações corretas da teoria…As grandes teorias filosóficas
e científicas, como precisamente a Teoria de Marx e de Engels nem são
“segregações biliares” da prática, em esta dissolve em ácido as grandes
construções intelectuais. A atividade humana é pensada, mais ou menos
consciente, e os pensamentos, quando expressam verdades, necessitam de
nascer de fora, pela atividade da observação, da manipulação e do fabrico.
Pouco depois da redação das Teses, o termo práxis foi abandonado por Marx. O que passa a marcar a investigação é o termo atividade social produtiva essa
ação que produz toda a história humana. Assim, o marxismo é uma
filosofia da atividade humana; abrange em primeiro lugar o trabalho, em
seguida tudo que está compreendido pelo conceito de modo de produção e
que já referimos. O termo práxis vem do grego e em Aristóteles significa
atividade humana nobre, para a atividade produtiva reserva o termo poiésis (subalterna, como era de esperar). Portanto, Marx passa a preferir o termo alemão Tätigkeit- atividade que produz alguma coisa no mundo real. Na versão materialista de Marx, a atividade produz ao mesmo tempo, na história humana de cada sociedade diferente, o seu produtor mesmo.
Em Marx de A Ideologia Alemã e das Teses o termo praxis é
completamente positivo, benéfico para o homem. É este sentido que o
marxismo herda do seu fundador. Porém, não é praxis ou práticas sociais
do homem a exploração do homem pelo homem, as guerras, os genocídios, as
lutas sociais e os colapsos de civilizações inteiras causadas pelo
homem? Certamente que sim. O trabalho que produz bens para consumo
próprio ou para troca de outros bens tal como se executa há milénios, é
uma prática social, assim como o é, no capitalismo, a exploração do
trabalho vivo produtivo, a mercantilização de tudo que forneça lucro, e a
colonização da vida quotidiana que os marxistas deviam estudar nas
áreas académicas da sociologia e da psicologia social.
VALOR
NAS SOCIEDADES MERCANTIS, DE ONTEM OU DE HOJE, O Valor É UMA CARATERÍSTICA FUNDAMENTAL. O QUE É ENTÃO O VALOR?
É
uma relação social de produção. O valor não é uma coisa, não é o
próprio bem em concreto, o qual, certamente, possui um determinado valor
de uso que atrairá o comprador. Tratamos aqui de mercadorias. Ora, na
indústria (noção genérica) capitalista todos os bens são bens destinados
ao mercado para serem trocadas por dinheiro. Qual é o seu Valor? É um
valor criado no processo de produção delas, isto é, pelo trabalho
humano. O valor de troca é uma relação: a quantidade que se pode trocar
de valores de uso contra um certo número de valores de uso de outra
espécie. Que há de comum que os torna equivalentes e passíveis de serem
trocados uns pelos outros? É serem produto do trabalho humano. O
trabalho concreto que produz um almoço no restaurante ou uma bicicleta?
Não. O que há de comum é o trabalho abstrato, o trabalho humano em geral. A força de trabalho humano. Cada mercadoria representa uma parte do tempo de trabalho socialmente necessário.
A grandeza do valor é determinado pela quantidade de trabalho
socialmente necessário para a produção de determinada mercadoria. O
valor é, assim, uma relação entre pessoas e não entre coisas.
Mais-valia é o valor
acrescentado, é a fração do valor produzido pelos assalariados que é
apropriado pelos proprietários dos meios de produção utilizados pelos
trabalhadores. A mais-valia é distribuída pelos capitalistas da banca
sob a forma dos juros dos empréstimos concedidos aos capitalistas
industriais e é reinvestida uma outra parte contida na soma total dos
lucros obtidos nas vendas (descontada a porção para consumo próprio e
nos dividendos). A mais-valia não pode provir da circulação das
mercadorias, porque estas só conhecem a troca de equivalentes, nem pode
provir de um aumento dos preços porque as perdas e os lucros recíprocos
dos compradores e vendedores equilibrar-se-iam. A mais-valia é um
fenómeno social médio generalizado, universal no capitalismo, e não de
um fenómeno particular isolado ou individual.
Para
obter a mais-valia um burguês com dinheiro precisou de uma mercadoria à
venda no mercado (outrora os mercados eram ao ar livre, como ainda se
verifica em vários países do Médio Oriente e em África, e já foi em
Portugal e nas colónias), dotada da propriedade de gerar valor. Ao ser
consumida como valor de uso, cria valor. Qual é o valor da força de
trabalho? Tal como outra qualquer mercadoria o seu valor é determinado
pelo tempo de trabalho necessário para a sua produção, isto é, pelo
custo de manutenção do trabalhador-produtor e da sua família. Comprada a
mercadoria força-de-trabalho, o endinheirado burguês fica com o direito
(podendo ser ou não formalizado por uma qualquer forma de contrato
escrito) de consumi-la durante x horas.
As
diversas correntes marxistas debatem-se com um problema, a saber: o
sector terciário- comércio-serviços produz mais-valor? É que ele
atualmente ocupa a maior parte da economia e dos assalariados! A
tendência correta é para falar dos trabalhadores no sentido amplo que a
expressão abrange: todos aqueles e aquelas pessoas que a troco de um
salário vendem a sua força de trabalho a detentores de capital, seja na
indústria, no comércio ou nos serviços. Na verdade, devia-se falar sem
distinção entre comércio e serviços, pois quando estes são escolas e
hospitais privados tudo isso são negócios do comércio. São explorados
esses trabalhadores por conta de outrem, que não trabalham nas fábricas,
dominados e quantas vezes oprimidos, seguramente alienados, em Portugal
auferindo dos salários mínimos e médios mais baixos da União Europeia,
receosos do desemprego, que têm engrossado a abstenção nas eleições,
contudo não produzem mais-valor nos termos da exploração fabril em boa
parte dos casos. No entanto, não produzem mercadorias as empregadas dos supermercados que cozinham as refeições takeway? Muitos outros exemplos poderíamos elencar. Estas considerações parecem ultrapassar a conceção de proletariado exposta no Manifesto; contudo, julgo que podemos encontrar em O Capital uma perspetiva
que dá conta na altura da sua redação das grandes transformações que
estavam a sofrer as sociedades capitalistas do ocidente desenvolvido. A
classe operária que a Teoria marxiana admite abrange os trabalhadores
manuais e os trabalhadores intelectuais e técnicos de nível inferior
(quadros administrativos e técnicos, empregados), o que deve somar uma
percentagem imensa da população mundial. Tenha-se em conta as diferenças
entre determinadas camadas do proletariado de países europeus e as
condições miseráveis de vida na Índia, na Nigéria, na América Latina.
Assim,
devemos alargar o conceito de proletariado para incluir todos aqueles e
aquelas que são assalariados de nível inferior do setor privado. Uma
empregada do comércio vende necessariamente mais mercadorias em dinheiro
muito superior ao seu salário. Trabalha, portanto, muito mais horas do
que aquelas pagas e essa diferença é embolsada pelo comerciante sob a
forma de mercadorias que a empregada vendeu (registou, embalou, etc.).
Deste modo utilizamos o termo trabalhadores assalariados (o
que já é uma redundância) para todas as maiorias exploradas por uma
minoria de capitalistas e de gestores e burocratas bem pagos que os
servem. É esse povo que nestas semanas se apoderam das ruas e praças e
deixam o imperialismo preocupado.Mas estaria muito mais se essas massas
revoltadas no EChile, na EColEômbia, na França…tivessem a conduzir as
suas reivindicações objetivos socialistas revolucionários e partidos
comunistas poderosos.
O
que asse assiste não é à morte da classe operária,mau grado a sua
diminuição flagrante no capitalismodesenvolvido, antes à proletarização
das camadas intermédias e da pequena burguesia tradicional. O que se
assite é ao aumento exponencial nas últimasdécadas do proletariado vindo
das camadas sociais camponesas espoliadas nospaíses emergentes da ´Qsia
ou no aumento da classe operária na China. A tendência não é para o
“aburguesamento” do proletariado e das camadas intermédias , ainda que
no plano ideológico ascoisas sejam bem complicadas, mas, objetivamente,
isto é, no nível dos rendimentos e na relação com as depesas deconsumo,
no controlo dos meios de produção e de distribuição, no crédito e no
enidividamento, assistimos ao empobrecimento de largas camadas na Europa
e por todo o planeta.
O
dinheiro é o equivalente geral. Portanto, abstrato, universal. O
capitalismo generalizou esta mercadoria que veio permitir a troca
generalizada de mercadorias. Trabalho abstrato, equivalente universal
abstrato. E é o dinheiro que fornece o poder todo, todo o cinismo e toda
a crueldade. O dinheiro, forma tipicamente capitalista mercantil,
encobre e dissimula o carácter social dos trabalhos parciais. O abstrato
dissimula o concreto. Os mortos dissimulam os vivos.
Tudo
se passa num processo de produção submetido às regras do MERCADO, o
lugar de distribuição e troca. O Mercado capitalista distingue-se de
outras formas de mercado precedentes ou presentemente dominadas, pois
troca-se o que foi produzido por uma força de trabalho assalariada; o
trabalhador-produtor que consome os valores de uso dos meios de produção
de que ele não é proprietário, nem sequer é proprietário da sua energia
física e intelectual, pois que a vendeu. Desloca-se para o “seu”
proprietário (no período de, no mínimo, oito horas por dia) com um
transporte que ele comprou a um capitalista. Quando adoece é tratado por
um SNS; se este não existir ou funcionar muito mal, vai pagar a cura
nos hospitais privados através de uma companhia de seguros que lhe
desconta o preço na conta de um banco privado…
Os
mercados são hoje dominados pelo capital na maior parte do mundo, não
em todo ele, e isto vale salientar para contrariar atitudes fatalistas O
socialismo conforme vá desenvolvendo-se em todas as esferas, elimina a
existência deste tipo de mercado. A formação dos preços obtém-se e
obter-se-á por outras formas que não pela anarquia da produção.
Sem Trabalho não há mercado. Ele é a
mediação do homem com a natureza, origem da humanidade e das
civilizações, da propriedade privada e do estado, das guerras e sua
ligação com a riqueza social que constituem os excedentes e os recursos
para obtê-los, produção material das condições de vida, produção de
meios técnicos. Uma vez mais se verifica, se quisermos ver sem óculos
fumados, a articulação dialética entre vários fatores! No modo de
produção característico do capitalismo, das modernas sociedades de
mercado, o trabalho, sendo uma categoria transhistórica, assume um
carácter particular, como mercadoria peculiar que despende força de
trabalho que é o seu valor de uso. Possui uma natureza objetal material,
é uma relação social.
As
relações de valor constituem a forma particular assumida pelas relações
sociais capitalistas. Essa forma é a mercadoria. Daí Marx começar a sua
exposição por esta. É a forma que aparece…
O Trabalho é,
assim, o metabolismo (meta-bolis= transforma a matéria) do homem com a
natureza externa (o seu meio ambiente concreto), semeia e colhe,
transforma pedaços da natureza em matérias- primas para a indústria,
introduz ao mesmo tempo as trocas. Só vale falar de trabalho imbuído
numa determinada forma social. O capital é a forma que se apropria da
substância trabalho. Fora isso não é nada, assim como trabalho
assalariado e mercadoria.
Sempre
que os produtos do trabalho são fabricados não para uso imediato mas,
sim, para venda como mercadorias, adquirem uma propriedade particular.
Esta propriedade não resulta nem do matéria--prima, nem da utilidade
específica dessa mercadoria, nem tão-pouco da qualidade particular do
trabalho utilizado na sua produção (ainda que a “marca” e a publicidade
influenciem fortemente o consumidor). Esta propriedade depende pura e
simplesmente da quantidade de trabalho utilizado na produção de cada
mercadoria, desde que o trabalho utilizado na sua produção tenha sido
efetivamente um trabalho de utilidade social. Assim, diferentes
trabalhos assemelham-se uns com os outros, o que significa que existe um
algo neles
que os assemelha. E esse algo pode ser medido: a qualidade pela
quantidade. O dinheiro. O dinheiro, esse equivalente universal, que vem
para possibilitar as trocas, mas também para ocultar o carácter social
do trabalho. E este não é o menor dos grandes enigmas do capital. Marx
decifrou-o, porém cento e cinquenta anos depois ainda os burgueses
preferem falar do que oculta, não do que é ocultado. Aparentemente (que é
o que costuma contar) tudo se deve aos empresários, ao seu trabalho e
amor pelo risco e à capacidade virtuosa do capitalismo. Nada mais falso.
O Trabalho abstrato é o Tempo de trabalho socialmente necessário para a produção das mercadorias. É ele que gera Valor e não o capital. O
Valor possui uma dimensão quantitativa do Valor (que serve para a
medida do tempo de trabalho socialmente necessário) e qualitativa.
Marx sempre sublinhou o caráter penoso do trabalho em todas as sociedades de exploração do trabalho do homem pelo homem.
No
capitalismo o trabalho converte-se, por causa do modo de produção, numa
atividade rotineira, mecânica, estranhada, fragmentada, vigiada, sob
regime de emprego precário, em que impera o receio pelo despedimento;
trabalho em que o operário individual não fabrica o objeto na sua
totalidade; em que os meios não lhe pertencem e se quiser adquirir o
produto tem que o comprar…ou seja: continuar a submeter-se a essa
atividade para que possa adquirir o que necessita para viver. O
trabalho, como se costuma dizer, é uma obrigação.
O
paradoxal é que esta atividade, tantas vezes penosa, quase sempre com
graves prejuízos para a saúde do trabalhador (fabril ou não),
converte-se no sentido da vida e na identidade do próprio: matéria das
suas conversas e convívios sociais, dos seus sonhos e pesadelos, dos
seus projetos de mudança, do seu status.
Todavia, desde os longínquos tempos em que o assalariado surgiu,
irromperam as insurgências sociais modernas e é disso que trata o Manifesto do Partido comunista.
O mundo do trabalhador assalariado, portanto explorado, é o mundo do
capital, onde este se reencarna e se disfarça, e onde o único
crucificado é, por exemplo, a trabalhadora têxtil do Bangladesch.
Encerrando-se a época da dominação do capital, desaparecerá a figura do
trabalhador assalariado por conta de um proprietário privado. Terá de
desaparecer o trabalho abstrato que o mercado capitalista criou.
Marx
tinha, portanto, uma conceção negativa do trabalho dentro do
capitalismo, onde o conceito de trabalho abstrato é fundamental para
compreendermos o mal-estar. Não é somente o mal-estar que provoca o
carater penoso do trabalho, mas a perda das potencialidades que o
trabalhador merecia desenvolver e não desenvolve; esta maior abrangência
da categoria alienação e trabalho para a esfera psicológica, médica e
antropológica tem instigado o interesse de notáveis investigadores. Os
problemas são sérios e incluem o chamado síndrome de burnout,
e devemos incluir não só os operários fabris, também outras camadas e
profissões por conta de outrem. Desafia também os marxistas para os
debates rigorosos e não utópicos sobre o que é, pode ser, o trabalho nas
economias socialistas. O trabalho permanecerá nas sociedades
comunistas, porém sob formas não alienadas, e esse é o traço forte dessa
comunidades a construir depois do pesadelo do trabalho forçado em
milhares de anos de “pré-história”.
As
diversas correntes marxistas debatem-se com um problema, a saber: o
sector terciário- comércio-serviços produz mais-valor? É que ele
atualmente ocupa a maior parte da economia e dos assalariados! A
tendência correta é para falar dos trabalhadores no sentido amplo que a
expressão abrange: todos aqueles e aquelas pessoas que a troco de um
salário vendem a sua força de trabalho a detentores de capital, seja na
indústria, no comércio ou nos serviços. Na verdade, devia-se falar sem
distinção entre comércio e serviços, pois quando estes são escolas e
hospitais privados tudo isso são negócios do comércio. São igualmente
explorados esses trabalhadores por conta de outrem, dominados até se
sentirem oprimidos; seguramente alienados das finalidades de atividades
que acabam por odiar, auferindo dos salários mínimos e médios mais
baixos da União Europeia; receosos do desemprego e que, por isso,
aceitam tudo, inclusivamente o emprego precário; que têm engrossado a
abstenção nas eleições… Contudo não produzem mais-valor nos termos da
exploração fabril em boa parte dos casos. Interroguemos: não produzem
mercadorias as empregadas dos supermercados que cozinham as refeições takeway?
Os trabalhadores que das estufas de legumes e frutas? Os pescadores que
recolhem o peixe no alto mar? Os trabalhadores que montam os
espetáculos para milhares de espectadores nos quais tudo se traduz por
mercadorias que se fabricam e vendem? Muitos outros exemplos poderíamos
elencar. Estas considerações parecem ultrapassar a conceção de
proletariado exposta no Manifesto; contudo, julgo que podemos encontrar em O Capital uma perspetiva
que dá conta na altura da sua redação das grandes transformações que
estavam a sofrer as sociedades capitalistas do ocidente desenvolvido. A
classe operária que a Teoria marxiana define abrange os operários
manuais e os operários “cerebrais” (operários qualificados ou técnicos
que produzem bens transacionáveis).Tenha-se em conta as diferenças entre
determinadas camadas do proletariado de países europeus e as condições
miseráveis de vida na Índia, na Nigéria, na América Latina. Mais de
noventa por cento da população mundial são trabalhadores, a grande
maioria assalariados. Ou seja: a grande maioria da humanidade vende a
sua força de trabalho para sobreviver e a maioria desta maioria é pobre
ou vive no limiar da pobreza. O marxismo não é uma teoria somente para
os trabalhadores europeus ou norte-americanos. Marx estudou e escreveu
lúcidos textos sobre povos colonizados mostrando-nos a profunda
contradição entre os progressos que os colonizadores introduziam e as
destruições bárbaras que provocavam.
Assim,
devemos alargar o conceito de proletariado para incluir todos aqueles e
aquelas que são assalariados de nível inferior do setor privado. Uma
empregada do comércio vende necessariamente mais mercadorias em dinheiro
muito superior ao seu salário. Trabalha, portanto, muito mais horas do
que aquelas pagas e essa diferença é embolsada pelo comerciante sob a
forma de mercadorias que a empregada vendeu (registou, embalou, etc.).
Deste modo utilizamos o termo trabalhadores assalariados (o
que já é uma redundância) para todas as maiorias exploradas por uma
minoria de capitalistas e de gestores e burocratas bem pagos que os
servem. É esse povo, ao qual se juntam os filhos estudantes e os
professores que os ensinam, que se apoderam das ruas e praças e fazem
cair governos. E distinguimos os operários como sendo aqueles que
produzem bens transacionáveis e, por isso, a quem é extraída a
mais-valia com a qual se processa a acumulação de capital; mais-valia
que é depois distribuída pelas diferentes esferas e setores da
distribuição, das rendas e da finança. Este operariado constitui um
grupo social que designamos ainda por classe, dado que desempenham o
papel de produtores assalariados, idêntico, na esfera da produção das
mercadorias, quer tenham ou não consciência de classe, quer divirjam ou
não os seus salários e as condições de trabalho, isto é, quer sejam
operários de uma multinacional alemã protegidos por um poderoso
sindicato metalúrgico, quer labutem nas fabricas infectas do Paquistão. O
marxismo confia na força potencial que esta classe carrega, na
possibilidade real de revoltas e revoluções quando se organizam e se
consciencializam dos seus direitos (neste momento em que escrevo vastas
massas populares continuam a ocupar as ruas de Santiago do Chile, do
Equador, da Bolívia, da Colômbia; derrotadas ou não, as lutas de classes
voltaram, porque sempre cá estiveram. O marxismo não confia
exclusivamente na classe operária assim definida (sector da produção),
mas os operários marxistas confiam também na força potencial, na
capacidade de luta e protesto, dos empregados de escritórios, do
comércio, dos serviços; em suma: do novo e vasto proletariado, de todos
os que vendem-a-sua-força-de-trabalho. Sem estes, sem a participação das
camadas sociais intermédias (quadros técnicos médios e superiores,
intelectuais que produzem os chamados “bens imateriais” – realmente
materiais -, mercadorias culturais), sem determinadas frações da nova
pequena-burguesia esmagada pelo grande capital, uma revolução não se faz
nem vai avante. Para isso, não é com objetivos imediatos de
coletivização da propriedade privada pequena e média que terá apoio para
vencer e convencer.
IDEOLOGIA
O que é ideologia segundo Marx?
São
os pensamentos dominantes que exprimem em preconceitos, perceções e
ideias, as condições materiais sociais e históricas dominantes e que têm
servido desde a sua origem para justificar, impor e mascarar as
relações sociais de exploração, como sucedeu e ainda sucede com a
religião, os preconceitos racistas, xenófobos, etc. a cultura operária
com as suas idiossincrasias tão marcada nos bairros operários dos tempos
idos, em Portugal e noutros países europeus, vai extinguindo-se com a
transformação das periferias, nas quais hoje germinam outras ideologias.
O que domina no mundo em geral é a ideologia burguesa, ainda que ela
mesma não seja homogénea em toda a parte e as classes subordinadas
conservem elementos de tradição, religiões, hábitos linguísticos e modos
comuns de interpretar as relações e comportar-se.
Com
as categorias marxianas, ainda que submetidas a evoluções, a História
passa a ser interpretada sobre linhas racionais que podem permitir
deduções científicas baseadas nos documentos escritos que necessitam de
ser decifrados, porque, à semelhança da consciência, ocultam um
“inconsciente social”. A historiografia, os historiadores, sociólogos,
antropólogos e outros cientistas sociais, não podem desprezar estas
perspetivas criadas por Marx. Estão bem visíveis nos escritos juvenis,
no “ajuste de contas” que é a Sagrada Família, no trabalho a duas mãos da Ideologia Alemã, nesse admirável texto que é o Manifesto do Partido Comunista, no Prefácio famoso de Para a Crítica da Economia Política, de 1859, nos Elementos Fundamentais Para a Crítica da Economia Política, de 1858, os agora celebrado Grundrisse, e em diversas páginas redigidas para O Capital,
particularmente no chamado Livro Quarto. Por estas razões, não têm sido
poucos os eminentes historiadores não marxistas concordantes com a
riqueza desta categoria histórica marxiana. Tema que regressa com força à
literatura internacional, depois da “travessia no deserto”
experienciada pelo marxismo e pelos marxistas nos finais do século
passado.
Falamos
de ideologia, não no sentido curto de doutrina política, sim desta
espécie de “mentalidade” composta de interesses, simbologias, de
idiossincrasias marcadas por interesses de classe, interesses muito mais
coletivos e comuns a grandes grupos do que se apresentam à primeira
vista, conscientes ou não. Poderíamos falar aqui, se espaço houvesse, da
formação do indivíduo, da personalidade e, coerentemente, deveríamos
desde logo ter em conta a determinação social externa (a externalidade
da subjetividade, sem a qual a segunda não se formaria na criança) essa
atmosfera (hábitos, perceções, inclinações, atitudes,
simpatias/antipatias, preconceitos) que impregnam os nervos, o coração e
a mente de cada indivíduo singular. A pessoa que deve quase tudo que
sente e pensa, à sociabilidade. Ver-se-ia que ninguém hoje escapa à
pregnância, por exemplo, dos poderosos e planetários meios de
comunicação (escolas, opinião pública fabricada pelos media,
“cultura industrial” (nomeadamente grande parte do cinema e dos
conteúdos televisivos, “filosofices” menores de como ter sucesso ou de
“ajuda”, etc.), que competem com o antigo poder absoluto das religiões. O
marxismo não desdenha o indivíduo singular, a formação da
personalidade, o meio social concreto, como poderia fazê-lo? O que
separa a ética, entendida filosoficamente, de Marx e Engels, do
individualismo teorizado pelo alemão Stirner, ou do liberalismo (do qual
Stirner é, no fundo, um avatar) é a tese lógica e claríssima de que o
indivíduo é um ser social. A vida individual e a vida genérica do
homem não são diferentes; podem é mostrar-se separadas e até opostas
sob a dominação da ideologia burguesa. Não é uma conceção ética
individualista, egoísta, porque se baseia no facto originário da
sociabilidade da espécie humana, da comunicação e da cooperação. O que
nos conduz às teorias dos grupos, às complexas classes sociais modernas,
aos sistemas globais, fortemente integradores e simultaneamente
excludentes como se mostram as novas sociedades capitalistas, à evolução
contemporânea da extremada divisão do trabalho, à valorização atribuída
atualmente às minorias e às solidariedades, etc., etc.
Ideologias
são, deste modo, representações mentais e culturais (signos, símbolos,
imagens) constituídas por interesses que nos identificam face aos outros
e pelos quais nos guiamos nesta imensa ditadura da burguesia,
misturando contraditoriamente nossos interesses genuínos com interesses
dos nossos exploradores. Valores (valorizações de bom ou mau, que
atribuímos às coisas e às pessoas) criados pela classe que domina a
economia e a cultura da sociedade e em que acreditamos ou não, que vão
mudando (como dizem os versos de Luís de Camões) e com os quais nos
relacionamos com a estrutura de poderes. De uma maneira geral agimos
através da mediação de juízos de valor. Os teóricos burgueses da
economia sabem há muito que a psicologia social atravessa o mundo
complexo das mercadorias. Em O Capital,
Marx subentende a noção de ideologia quando nos explica a função do
dinheiro, símbolo e equivalente universal; ou quando nos explica o
feiticismo da mercadoria.
Mesmo
nas sociedades contemporâneas nem todo o trabalho é penoso e
“estrangeiro”. Refiro, por exemplo, os tempos livres nos quais o
trabalhador pode escolher uma atividade prazenteira e livre. Como
marxista eu questiono: escolheu livremente? Na verdade, esse tempo livre
está cada vez mais colhido pelo mercado que lhe “oferece” serviços que
ele procura a miúde através de publicidade paga ou a pagar no preço
final…. Quase tudo é já mercadoria nas sociedades desenvolvidas.
Resta-nos reconhecer nas atividades artísticas, comunitárias e
cooperativas (por exemplo em países da Ásia e da América Latina), um
potencial de independência material e espiritual. Não pensamos somente
aquilo que as burguesias querem que pensemos e não há hoje uma única
forma de pensar alternativa. O projeto de uma sociedade comunista em
Marx, desde a juventude dos Manuscritos de Paris, até às fórmulas sublimes de O Capital,
não foi alheio ao conhecimento das experiências positivas da
humanidade: cooperativas, velhas e novas experiências de comunas, a
liberdade artística transgressora, etc. Existem atualmente formas e
conteúdos diversos de crítica à ideologia burguesa. O marxismo é
seguramente a crítica mais radical.
Dediquei
estes largos parágrafos à questão da IDEOLOGIA porque atualmente, mais
do que nunca, as representações mentais favoráveis à classe dominante
difundem-se por meios nunca vistos na história do mundo e são mais
pregnantes e nefastos provavelmente do que nos períodos mais recentes,
na minha opinião. Poderosos catalisadores da submissão. Obstáculo da
aceitação das ideias rebeldes, subversivas, marxistas sobretudo. Formas
de pensar que refletem as condições materiais e que têm servido desde a
sua origem para ratificar, favorecer ou mascarar as relações sociais de
exploração, como sucede com o papel da religião em largas zonas do globo
onde as vidas são absolutamente miseráveis. A cultura operária com as
suas idiossincrasias tão marcada nos bairros dos tempos idos, já quase
se extinguiu na Europa do “neoliberalismo”; desaparecidos esses bairros,
foram substituídos por megacidades das periferias onde habita a solidão
e a exclusão social e se inventam modos de entreajuda e sociabilidade
desprezados pelas elites moralistas e pelas polícias, mas que devemos
compreender.
ALIENAÇÃO
ALIENAÇÃO
Marx utilizou o termo estranhamento (estranho, entfremdung), já nos textos de juventude. Alienação (se bem julgo, tradução francesa que todos herdámos) é essa perda do sentido humano (=ser genérico),
a que o influente filósofo materialista Ludwig Feuerbach não fora
alheio. O produto e a atividade tornam-se estranhos para o operário na
indústria capitalista. A origem dessa espécie de doença não
diagnosticada como tal mas cujos efeitos são-no, está na propriedade
privada capitalista e na descrição do trabalho como atividade penosa e
resultava da observação que Marx e Engels faziam justamente das
condições terríveis impostas ao proletariado nos países europeus onde o
capitalismo industrial se implantava e se desenvolvia.
Em O Capital a
alienação refere a separação absoluta dos produtores diretos e as suas
condições de trabalho; o trabalhador que se aliena (isto é, perde o
sentido de ser genérico como
Marx escrevera na juventude) é alienado pelo tipo e condição do
trabalho na empresa privada, seja qual for o trabalho e a empresa (está
na moda a empresa onde se trabalha em “família”, todos “colaboradores”
com interesses comuns; estratégias para aumentar a produtividade, isto
é, a taxa de mais-valia, a que já chamámos exploração).
Marx tem, portanto, uma conceção negativa do trabalho, onde o conceito de trabalho abstrato é fundamental para compreender esse estranhamento ou
alienação. Não é somente o mal-estar que provoca o carater penoso do
trabalho, mas a perda das potencialidades que o trabalhador merecia
desenvolver e não desenvolve; esta maior abrangência da categoria
alienação e trabalho para a esfera psicológica, médica e antropológica
tem instigado o interesse de notáveis investigadores. Os problemas são
sérios e incluem o chamado síndrome de burnout,
e devemos incluir não só os operários fabris, também outras camadas e
profissões por conta de outrem. Desafia também os marxistas para os
debates rigorosos e não utópicos sobre o que é, pode ser, o trabalho nas
economias socialistas.
Com
o progresso técnico, os novos métodos de gestão e organização
empresarial, a alienação tende a diminuir. Nas empresas de ponta já não
tem sentido falar-se em alienação. Eis o que se ouve e lê agora.
É
mera utopia capitalista. Elucubrações de pseudo-marxistas. Há de facto
mudanças importantes na organização capitalista da produção, porém não
alteram as relações de produção, o fator principal que origina a
alienação do trabalhador: a separação do trabalhador relativamente aos
meios de produção que utiliza e ao produto do seu trabalho. O trabalho
assalariado não é livre, ainda que a pílula possa ser dourada e o
trabalhador mais bem pago e labore em condições mais confortáveis. Em
muitos casos atualmente é precário (nos EU pode ser despedido
liminarmente). Os canteiros floridos, o parque verde para acalmar do burnout,
a “cenoura” dos prémios e participação nas ações foi mais “chão que deu
uvas”, as crises o demonstram. A tentativa para não deixar diminuir a
taxa média de lucro é que comanda todas as operações. Tal como no
passado o trabalho vivo não
deixou nem deixa de ser alienante mesmo que este ou aquele trabalhador
festeje o natal com a “empresa-família” onde as câmaras de vigilância
não são propriamente enfeites natalícios. Afirmo mais: atualmente a
alienação é mais larga e profunda dada a fragmentação da classe, a
complexa divisão do trabalho, a introdução das mais complexas
tecnologias (a máquina que comanda o trabalhador, os seus ritmos, os
seus pensamentos), a força do trabalho abstrato,
o isolamento profissional e social dos assalariados. Os efeitos estão à
vista na extrema debilidade da consciência de classe nos países
desenvolvidos. A vaga recente de suicídios no Japão e numa determinada
fase do crescimento da nova China, são indícios concludentes. Acresce
paradoxalmente o medo do desemprego, que conduz à submissão necessária,
exemplificada por aquele dito recente «mais vale um mau emprego do que
nenhum».
Estar
alienado é, literalmente, separar-se de algo. No capitalismo é ser
expropriado das suas propriedades ou qualidades individuais, da sua
independência e capacidade criativa (como existiu nos artesãos), da
posse objetiva daquilo que produz e dos meios, é ser excluído, ou
ameaçado de ser, da própria sociedade. Assim, a alienação abarca graus
diversos, mas nunca é meramente sentimental e subjetiva. Tem raízes no
modo de produção de mercadorias assente no trabalho assalariado.
Discussões
recentes sobre o conceito (noutras alturas fora mesmo eliminado com
manifesto erro e prejuízo) conduzem alguns marxistas a fazer do feitiço (“fétiche”
na tradução francesa que se impôs) da mercadoria o único termo com que
se deve compreender a alienação. Marx não substituiu a teoria da
exploração pela teoria da alienação- são questões complementares mas
diferenciadas- nem substituiu a alienação pela feiticização da
mercadoria. O conteúdo que as traduções passaram para o termo comum de
alienação, esse conteúdo está presente nos três Livros do Capital, quer
Marx escreva “alienação”, quer não a nomeie. São os meios de produção
que estão separados=alienados do trabalhador que provocam a alienação
deste, subentendidas aos outros fatores organizacionais do trabalho
contemporâneo.
O
tema e o termo tem sido centro das polémicas entre marxistas, porque
era e é necessário compreender porque não se revoltava e aderia ao
socialismo a classe operária norteamericana ou britânica. Nos anos
sessenta eram os camponeses que pegavam em armas no “Terceiro Mundo”
para combaterem o imperialismo. Quem era a classe naqueles continentes,
ou os grupos sociais minoritários no Ocidente desenvolvido com um
proletariado relativamente bem pago e “integrado”, que vinham realizar
aquilo que competia à classe operária? Foi assim, hoje de novo com novos
temas-velhos temas, novas minorias-velhas minorias. Marx e Engels já
observavam diferenças entre o proletariado e outras camadas sociais no
juvenil Manifesto, e, seguidamente, Marx em O dezoito do Brumário de Luís Bonaparte. Neste
livro Marx concluiria que os camponeses – não os jornaleiros ou o
proletariado dos latifúndios do Alentejo!- não eram na França uma classe
social, e não eram confiáveis. Na Europa, a ocidente, não se enganou.
Na Revolução soviética não foram os camponeses que lideraram a
construção do socialismo (embora a princípio apoiassem a distribuição da
terra) como todos sabemos e com todas as consequências gravosas.
Atualmente constituem uma minoria residual na Europa. Há que escolher
qual a classe, ou classes, que são mais capazes de conduzir e realizar o
socialismo. Marx e Engels escolheram. Podemos e devemos proceder a
algumas adaptações e extensões, contudo mudar o essencial é deixar cair o
marxismo.
Ou
toda a classe operária está alienada (=submetida) e então a tarefa de
um partido operário revolucionário e até dos sindicatos é demasiado
demorado ou mesmo condenado ao fracasso, ou não exageremos: a alienação
não é fatalidade universal como o é o pecado original…São as relações de
produção capitalistas que alienam, (mesmo os operários mais conscientes
acham o seu trabalho penoso, talvez até ainda mais penoso), porém tal estranhamento converte-se
dialeticamente num salto qualitativo que conduz à revolta contra o
sistema. É certo que a alienação generalizou-se com os grandes meios de
difusão, e manifesta-se nas “distrações” com que os trabalhadores –
todos nós- nos entretemos.
As
mudanças positivas das sociedades capitalistas contemporâneas como
sejam na gestão dos recursos humanos ou no emprego da robotização, não
vêm alterar as bases do capitalismo que determinam a exploração e,
portanto, a alienação, tal como a relativa emancipação da mulher não
veio libertar completamente as mulheres trabalhadoras. Por outro lado,
não bastará aos países que se orientam para o socialismo, a extinção da
dominação da propriedade privada capitalista, para a alienação se
dissolver no ar. Uma condição objetiva fundamental há de ser a
participação efetiva dos trabalhadores nos rumos do seu país, da sua
democracia, das suas vidas. Participação que se exerce apenas por
representantes administrativos, sobretudo se forem cargos não submetidos
a sufrágio. A perda de controlo é a alienação moderna. A conquista do
controlo será, presumo eu, a desalienação.
Fetichismo. Feiticismo. Feitiços
Não
se trata apenas do feitiço que a mercadoria- as coisas- exercem sobre
os consumidores, mas, sobretudo, do modo deformado, invertido, como os
capitalistas explicam a sua sociedade e o seu modo de produção
mercantil. Naturalizam as relações de produção e mistificam a sua
origem. A forma mais evoluída da feitização é quando o próprio
trabalhador se transforma, à sua força de trabalho, em mercadoria.
Em O Manifesto diz-se
que a burguesia trouxa a exploração aberta, não disfarçada pela ilusão
religiosa, cavaleiresca. Mas a burguesia substituirá essas ilusões por
novas, tão ou mais eficazes. Por exemplo, a ilusão jurídica. É velada a
relação de desigualdade na propriedade “legítima” dos meios de produção e
é velada a exploração na compra e venda “livres” da força de trabalho. A
ilusão jurídica é corroborada pela feitização da mercadoria, isto é,
pela conversão de relações puramente sociais entre pessoas por relações
entre coisas. O fenómeno da feitização brota no processo de produção e
manifesta-se na realização da mais-valia, no mercado onde o dinheiro faz
a sua entrada gloriosa. Mas eu alargaria o fenómeno, com raízes nas
relações de produção, para a ação mágica exercida pelas mercadorias
sobre os consumidores, desfalcando o pouco dinheiro que possuem. Há que
produzir e logo vender! A concorrência é feroz, de morte. Torna-se
imperativo publicitar através da palavra, de valores, de imagens, de
referenciais, de autoridades.
Por estes aspetos, a feiticização não é o mesmo fenómeno da alienação. O burnout (esta
“sociedade do cansaço”) não é provocado por nenhum feitiço (o que, de
resto, é uma imagem alegórica religiosa a que Marx recorreu). Feitiço é
literalmente um fenómeno religioso, místico, ou de magia negra. Não se
reduz a uma pura ilusão visual ou ficção puramente mental, porque é
auto-convicção com ação da materialidade da vida social sobre a
subjetividade. É no mercado que se manifesta ou se torna real. O bruxedo
existe, o que não existe são as bruxas…
Feiticismo
em alguns autores marxistas contemporâneos converteu-se numa operação
intelectual que inverte a ordem das coisas na explicação. A superfície, o
fenómeno, é apresentado como a essência. A aparência pertence à
essência, é a sua forma, a sua manifestação. Todavia, não é a essência. A
feiticização-forma possui um conteúdo. Esse conteúdo é a
mercantilização absoluta literalmente.
É
o advento das “sociedades de consumo”. O “feitiço” provocado pelas
entidades abstratas e exercido pela mercadoria relaciona-se com a ideologia enquanto consciência falsa, “invertida” e traduz-se pela reificação. De modo que estas diversas categorias se relacionam estreitamente.
«De
onde brota, pois, o caráter enigmático do produto de trabalho logo que
ele assume a forma-mercadoria? Manifestamente dessa própria forma. A
igualdade dos trabalhos humanos adquire a forma coisal [sachliche] da
igual objetividade de valor dos produtos de trabalho, a medida do
dispêndio de força de trabalho humana pela sua duração temporal adquire a
forma de magnitude de valor dos produtos de trabalho, e, finalmente, as
relações entre os produtores, nas quais são confirmadas aquelas
determinações sociais dos seus trabalhos, adquirem a forma de uma
relação social entre os produtos de trabalho. É apenas a relação social
determinada entre s próprios homens que toma aqui para eles a forma
fantasmagórica de uma relação de coisas. Assim, para encontrarmos uma
analogia temos de nos escapar para a região nevoenta do mundo religioso.
Aqui, os produtos da cabeça humana parecem figuras autónomas, dotadas
de vida própria e estando em relação entre si próprias e com os homens. O
mesmo se passa no mundo das mercadorias com os produtos da mão humana.
Chamo a isto feiticismo, que se cola aos produtos de trabalho logo que
eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da
produção de mercadorias. Este caráter de feitiço do mundo das
mercadorias brota, como a análise precedente já mostrou, do carácter
social peculiar do trabalho que produz mercadorias.» Marx, O Capital, Livro Primeiro, Tomo I, cap. 4, O caráter de feitiço da mercadoria e o seu segredo
O
que significa, julgo eu, que enquanto existir trabalho abstrato que
produz mercadorias das quais o produtor está completamente separado no
ato de produção e na esfera da circulação, e que comandam a vida, há
feiticismo e alienação. Aí a emancipação do proletário ainda não chegou.
P.S.
Num próximo artigo abordarei outras das categorias da obra teórica de
Marx: essência, finalidade, liberdade, socialismo, comunismo.
Nozes Pires
Escrito entre Janeiro e Outubro de 2019
XV CONGRESSO DO PCP
Um partido mais forte
Novo rumo para Portugal
Resolução Política
3. A classe operária, os trabalhadores e as suas organizações de classe
A
classe operária, os trabalhadores e as suas organizações de classe, com
particular destaque para o movimento sindical, continuam a ser uma
força social determinante, não só na defesa dos interesses dos
trabalhadores, das massas populares e do País como na resistência à
política de direita, e confirmaram-se, pela sua acção e pelos seus
valores, como elementos essenciais na defesa do regime democrático.
A
classe operária, pelo seu lugar no processo produtivo, por estar no
centro da luta entre o trabalho e o capital, pelo grau de organização e
experiência de luta, continua a ser a força dinamizadora e mobilizadora
das lutas de classe contra o capital e da vasta frente social de luta
contra a política de direita e pelo progresso social.
Esta
realidade, confirmada pela vida, não anula uma outra realidade, que é a
de as posições do movimento operário e sindical, globalmente
consideradas, se terem enfraquecido. Confrontado com um processo de
reestruturação geral das condições de exploração da mão-de-obra, assente
na desregulamentação das relações laborais e na intensificação da
exploração, o movimento operário e sindical enfrenta uma poderosa
ofensiva e actua num quadro profundamente alterado, que afecta a sua
estrutura, formas de organização, capacidade de intervenção, direitos e
condições de trabalho e de vida.
No
período que nos separa do XIV Congresso, com o aprofundamento de
processos que se desenvolvem há vários anos, operaram-se significativas
mutações de carácter qualitativo na composição dos trabalhadores,
estatuto laboral e papel nos processos produtivos:
-
A estrutura do desemprego alterou-se na sua dimensão (aumentando em
volume e tornando-o massivamente crónico), na sua natureza (aumentou o
desemprego de longa duração), na sua extensão (afecta todos os sectores e
crescentemente a mão-de-obra qualificada), no seu ciclo de variação (o
desemprego diminui pouco ou aumenta mesmo, em períodos de crescimento
económico); a precariedade, nas suas múltiplas formas, aumentou e tende a
generalizar-se como forma de estatuto laboral;
-
desenvolvem-se processos de atomização das relações laborais e
processos de concorrência entre trabalhadores em resultado dos elevados
índices de desemprego e incerteza quanto ao futuro;
-
com a chamada libertação da mão-de-obra «velha», com o crescimento dos
assalariados jovens e mulheres, altera-se a composição etária e de
sexos;
-
com as reestruturações industriais, as mudanças tecnológicas, as novas
formas de organização e divisão do trabalho e da actividade e das
estruturas económicas, alteram-se a natureza e a composição do trabalho
assalariado. Os próprios conceitos de empresa, de patrão e da condição
de trabalhador assalariado tornam-se fluídos com o recurso à
subcontratação, ao aluguer de mão-de-obra, aos recibos verdes, ao falso
estatuto de trabalhador por conta própria;
-
com o afastamento dos lugares de residência dos locais de trabalho,
modificam-se as formas de organização de vida, as estruturas familiares,
a ocupação dos tempos livres, a psicologia social e a disponibilidade
para a actividade militante;
-
com o aprofundamento do processo contra-revolucionário, as alterações
nas estruturas socioeconómicas, as limitações de direitos, as
privatizações e a fragmentação de grandes empresas, alterou-se o nível
de concentração dos trabalhadores e o papel de sectores em que estes têm
maior consciência de classe, mais forte organização e experiência de
luta.
Todas
estas mutações se repercutem não só sobre as formas de organização do
trabalho, a natureza da mão-de-obra assalariada e estatutos laborais,
mas igualmente na força organizada, unidade e condições de luta. O
próprio imaginário colectivo tende a diluir-se, em muitos casos, ao
tornar-se mais heterogéneo o mundo do trabalho e a formação da
consciência de classe é mais morosa e complexa.
A
dificuldade na resposta às novas realidades, o enfraquecimento das
células de empresa como principal forma de organização do Partido para a
acção junto dos trabalhadores, diminuem a capacidade de organização e
de luta dos trabalhadores e sua formação política e ideológica.
As
actuais dificuldades do movimento operário e sindical, embora de longa
duração e complexa superação, são temporárias. A própria história do
movimento operário e sindical conheceu, já no passado, situações de
crise, que todavia vieram a ser ultrapassadas. As alterações de carácter
objectivo no plano das inovações tecnológicas, nas novas formas de
organização do trabalho e composição dos trabalhadores assalariados, não
anulam a natureza exploradora do capitalismo. Natureza que, na
actualidade, se intensifica e alarga com a extensão do trabalho
assalariado a novos ramos produtivos, a novos sectores e profissões.
O
agudizar da luta de classes entre o trabalho e o capital é uma
realidade inquestionável. As lutas de massas, incluindo formas de luta
superiores, abarcam novas camadas de trabalhadores, abrindo sólidas
perspectivas ao seu desenvolvimento e à organização dos trabalhadores e
do Partido.
Sem comentários:
Enviar um comentário