quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Henriques Nogueira.

 

A Utopia de José Félix Henriques Nogueira


José Félix Henriques Nogueira nasceu em 1825 no lugar da Buligueira, freguesia de S. Pedro de Dois Portos, concelho de Torres Vedras, de uma família distinta de proprietários rurais; aqui residiu com sua mãe, nunca havendo casado, sempre até à sua morte ocorrida em Lisboa, onde se deslocava frequentemente. Devotado à lavoura, dispondo de boas terras, a sua origem social ajuda-nos a compreender os contornos da sua ideologia política e social. Homem de carácter, ligado ao povo trabalhador, atento aos seus sofrimentos e aos ideais de progresso da justiça social, culto e viajado, o facto de habitar a província não o converteu num provinciano. Leitor de muitos livros, jornalista, ensaísta, escritor de bom estilo, observador penetrante das vantagens e desvantagens da revolução industrial nas potências europeias de então, comprometido com as causas sociais mais adiantadas do seu tempo, fez-se moralizador e pedagogo, agente político sem tibiezas e oportunismos pessoais, não servindo indivíduos mas ideias e princípios, nunca confundindo os interesses das classes possidentes e dominantes com os interesses da nação. Foi homem de amizades leais, teve entre os seus admiradores e amigos grandes personalidades do seu tempo. A sua morte súbita, ainda tão novo, provocada pela tuberculose, o seu funeral, provocaram comoção nas elites do país, sobretudo nos homens bons como ele fora.

Os seus ideais e a sua utopia social tinham raízes nas aspirações e no activismo político de uma pequena burguesia democrática e radical, que se opunha aos projectos da alta finança, dos novos proprietários rurais que se haviam apropriado das enormes propriedades que a Igreja detivera no Antigo Regime, ou seja, no regime monárquico-feudal. O seu programa político ia até mais longe do que essas camadas sociais para as quais o chamado liberalismo significava na prática a formação de monopólios mercantis, isto é, grandes negociatas como então se dizia,  grandes capitalistas que enriqueceram de um dia para o outro. Henriques Nogueira era implacável nas críticas que escrevia em jornais da época.

Proclamava-se contrário ao sistema capitalista tal como então vigorava, que lhe parecia atraiçoar os ideais das  grandes revoluções liberais, criticava vigorosamente o «despotismo do capital», almejava fazer cumprir as ideias «igualitárias» que apenas numa República e em uma República Democrática, lhe pareciam possíveis. Este seu programa de uma República Social correspondia ao Socialismo. Denunciava o estilo autoritário e demagógico da governação, que classifica de «Governo gasto, sofismador, estéril, corroído por interesses de bando, a sua conservação só se explica pelo mau fado que geralmente preside às nossas causas, e pela pasmosa indiferença a que uma série não interrompida de decepções nos tem levado». Eis uma reflexão que não perdeu actualidade. Estou a reduzir ao osso a mensagem que vos quero transmitir, e permitindo que os meus colegas caracterizem, se quiserem, os factos históricos e políticos da época.
A palavra-de-ordem do reformismo socialista de Henriques Nogueira, «regeneração física e moral da sociedade», condensa o projecto da chamada geração de 50, isto é, daquela pequena e média burguesia, como disse, que desejava uma via de desenvolvimento não-capitalista, julgando poder conciliar a apropriação capitalista com uma vasta área de cooperativas sem finalidade de apropriação privada dos lucros. Esta ideia de um desenvolvimento não-capitalista é de superlativa importância e não perdeu uma partícula de actualidade: todo o século xx e este têm sido laboratórios de experiências social-democratas e socialistas. Uma outra espécie de capitalismo, não monopolista e não latifundiário, em que o grande capital financeiro, especulativo e parasitário, seria controlado por um Estado Democrático eleito por sufrágio universal, apoiado numa base social organizada em associações populares, eis o essencial do seu programa. Não punha em causa, portanto, o direito de propriedade privada, que considerava «um dos estímulos mais poderosos do trabalho», isto é a iniciativa, o direito ao lucro pelo trabalho pessoal, uma economia mista vantajosas para os patrões e para os trabalhadores, para o progresso das regiões, coexistindo, assim, com pequenas oficinas de artesãos, com cooperativas e outras associações económicas e bancos populares (mutualistas) que protegessem os cooperantes, os accionistas e associados da concorrência dos grandes empresários nacionais e estrangeiros.
O Princípio que constitui o eixo central do ideário socialista de Henriques Nogueira era o associativismo operário e do pequeno produtor, e, sobre essas alavancas de progresso, a necessidade urgente de constituição de municípios autónomos associados em regiões. Enfim, associações, regiões, a nação inteira unir-se-ia a uma nova Espanha governada pelo mesmo Socialismo, compondo a Federação das Nações Ibéricas. O Federalismo Ibérico foi um dos ideais mais importantes e recorrentes nos doutrinadores republicanos e socialistas do século dezanove português e espanhol. No caso de Henriques Nogueira haveria de ser, só poderia ser, uma união fraterna de dois regimes socialistas verdadeiros.

As ideias que expus muito superficialmente revelavam-se utópicas. Digo-o porque não encontraram audiência então -nos anos cinquenta- nas classes sociais trabalhadoras: nos operários, artesãos, comerciantes, pequenos lavradores. O próprio Henriques Nogueira perdeu em eleições locais aqui mesmo, em Torres Vedras. As eleições, que não eram universais de todo, eram dominadas pelos caciques locais e pelas «chapeladas» (dizia-se assim), tráfico de influências, e em condições de corrupção e manipulação que ocorriam impunemente.

O facto do seu ideário filosófico, político, ser utópico, não significa que fosse impossível no futuro com outras condições. É verdade que existem utopias que constituem sonhos aéreos, abstractos e impossíveis de todo, embora nos deliciemos com a leitura dessas histórias extraordinárias nos bons escritores, por exemplo de ficção científica do século vinte. Eu confesso-me um leitor apaixonado, e desde muito jovem, pelas narrativas utópicas, que, desde Platão, filósofo da Grécia Antiga, têm sido escritas, passando pelo criador da palavra «utopia», o grande Tomás More, nos inícios do século dezasseis, que publicou uma história maravilhosa com esse mesmo título, ou seja, o nome que ele deu a uma Ilha governada pela mais absoluta justiça social, igualdade e comunidade. O seu livrinho genial teve continuadores até aos nossos dias, embora hoje os encontremos menos vezes ou mais dirigidos para a chamada ´ficção científica`.

Contudo, dizia eu, existem construções utópicas de sociedades mais perfeitas que nos fornecem uma imagem visual posso dizer, que oferecem abundante alimento à imaginação dos leitores, com que nos identificamos, que dão um corpo às nossas aspirações às vezes confusas, mas sinceras e generosas. São representações de desejos universais de justiça social, onde o trabalho é fonte de liberdade, de alegria, de criatividade, de realização pessoal e colectiva. Dizemos então que o impossível talvez um dia se torne possível.

Solucionar contradições que parecem insolúveis, conciliar opostos que parecem irremediavelmente irreconciliáveis para todo o sempre, dar um corpo a uma Terra Prometida que há-de vir no futuro e que já se anuncia no presente, são rumos que interessam aos pensadores utópicos. É preciso que se diga que este género literário ou filosófico não é exclusivo de ficcionistas, quer sejam escritores ou realizadores de filmes, porque as utopias, ou sonhos despertos, também se revelam em pintores, arquitectos, músicos, dramaturgos, encenadores e coreógrafos, nas artes de uma maneira geral. Esta saudade do futuro,esta aspiração a realizar o que aos mais conformistas parece impossível, está inclusivamente presente nos grandes construtores das ciências e das técnicas.

O associativismo, o cooperativismo, a democracia e as doutrinas socialistas, tiveram em Henriques Nogueira um notável precursor nesse pequeno e atrasado país que se chamava Portugal,nos longínquos anos de 1850.


   Nozes Pires
22 de Janeiro de 2007

Henriques Nogueira- democrata e socialista

 

A utopia de José Félix Henriques Nogueira

 

 

José Félix Henriques Nogueira (1825-1858) nasceu na Bulegueira, comarca de Torres Vedras, onde possuía avultada propriedade agrícola. A sua origem social ajuda certamente a compreender os traços e o alcance do seu pensamento ideológico mas não o impediu, contudo, de acreditar num ideal que o colocou muito acima de muitos dos seus contemporâneos, mesmo os mais ilustres. Contribuíram as tendências e as aspirações da sua época, fermentadas em acesas e duras batalhas políticas e sociais, mas, sobretudo, a sua notável cultura, as suas preocupações intelectuais de homem atento, de vistas largas e de coração generoso. Temperamento enérgico, equilibrado com a capacidade de concentração de um verdadeiro estudioso, animoso e decidido, carácter moral inteiriço, interveio, pela escrita e por outros meios, nas lides políticas e ideológicas, sem pedir nem dever nada a ninguém, excepto a admiração que parecia professar por Alexandre Herculano, Silvestre Pinheiro Ferreira, e alguns mais entre os portugueses notáveis, e por um punhado de teóricos e publicistas políticos estrangeiros, incluindo chefes militares revolucionários cujos feitos divulga com fervor. Não é pequeno o acervo dos seus escritos, que contêm um pensamento dotado de notória coerência conceptual e doutrinária que não era, nem acaso é ainda, habitual ao tempo entre nós. Apesar de muitos dos seus princípios de doutrina política e mesmo de soluções não serem originais, em nada sai diminuído, até pelo modo como os assimilou, traduziu e desejou pô-los em prática. Apenas recentemente investigada, a sua obra ainda aguarda uma leitura mais detalhada e articulada numa história das ideias que aguarda entre nós que se faça. Neste breve artigo sem pretensões, cujo objectivo é a mera divulgação junto de um público que se pretende largo e heterogéneo, iremos tentar expor algumas das linhas mestras do seu ideário.

A vida de Henriques Noqueira , vida breve de 38 anos ( morreu de madrugada com uma hemoptise quando nada o fazia prever) decorreu num período político, provavelmente o mais agitado do século, dos mais intensos da nossa história. A ascensão da burguesia, embora lento fosse entre nós o seu desenvolvimento económico, ao poder político, havia-se iniciado nos inícios da década de vinte, por meio de uma revolução notável a todos os títulos à escala europeia, e não seguramente das mais tardias, encontrando, porém, uma forte e violenta reacção desde logo por parte dos apoiantes do Antigo Regime (1823, 24, 28). A Carta Constitucional, outorgada por D.Pedro V, agradara e moderara os ímpetos de uma parte, que soube coligar-se com determinados grupos do capital, atraídos pela segurança que essa solução lhes prometia; contudo, os latifundiários e outros senhores tradicionais, nos quais se incluía a igreja católica, que viria a ser despojada de grossa percentagem dos seus bens patrimoniais e de privilégios de que gozara sem conta nem medida (os rendimentos do clero equivaliam aos do Estado), depressa se lançaram na aventura de uma pertinaz e sangrenta contra revolução, encontrando no príncipe D. Miguel ( sem direito ao trono por vontade de seu tio) o chefe possível ( ao qual, faltando embora qualidade de estadista e de cabo de guerra, não faltavam teimosia e virulência). Em 1832-34  Mouzinho da Silveira abolira os direitos senhoriais e Joaquim António de Aguiar extinguira as ordens religiosas e confiscara os bens da Igreja. O curso da segunda revolução liberal de 1836, se afrontou tentáculos do Antigo Regime ainda sobrevivos, acirrou os ânimos e fragmentou profundamente as burguesias (a Revolta dos Marechais, 1837 e repressão sangrenta do Governo setembrista de Sá de Miranda contra as milícias populares), radicalizando as camadas populares e democráticas, e atemorizando por algum tempo os “barões” enriquecidos com o leilão dos bens eclesiásticos, com a usura e a agiotagem, e com o proteccionismo que, embora defendido pelos mais radicais, lhes servira na perfeição. Formou-se uma burguesia de proprietários rurais que, apesar de alavanca para o desenvolvimento das relações capitalistas no campo, pôde integrar e aproveitar-se de antigas relações ainda conservadas. Estes aspectos, a alguns mais, configuraram traços bem característicos da propriedade agrária entre nós, assim como no outro polo do capitalismo emergiu como sector dominante o capital comercial e bancário, que haveria de encontrar nos primeiros aliados preferenciais. Finalmente, a industrialização, ou o capital industrial, desenvolveu-se muito lentamente, apesar de um ou outro surto ( no período cabralista e, sobretudo, no fontismo), ora chocando-se com o latifúndio meridional, onde, como dissemos atrás, as relações capitalistas abriam caminho com dificuldade, ora coligando-se. Estas características, derivadas do tipo das alianças e do rumo das revoluções e contra revoluções, que se exprimiam por uma fraca concentração industrial e pelo incipiente investimento em capital fixo e intensivo, marcou o ritmo do Portugal de oitocentos e ajuda a compreender o relativo fracasso da primeira república (1910) que tombou sob o golpe de uma longa e tenebrosa ditadura, cuja finalidade essencial se atribui à acumulação rápida, concentração e centralização do capital, ou seja dos monopólios, por via do proteccionismo e do corporativismo, em aliança com o capital agrário e os latifundiários.

  As revoluções liberais estiveram longe de satisfazer os interesses das pequenas manufacturas (onde a maquinaria a vapor demorou a penetrar e quando se introduziu cilindrou-as), do artesanato, da pequena burguesia em geral; a produção escassa, a distribuição péssima ( Nogueira, já na década de cinquenta, publica sucessivos artigos denunciando o estado das vias de comunicação), há-de limitar por muito e muito tempo o poder de compra, mantendo-se uma larguíssima percentagem da população, que só lentamente se foi deslocando para as cidades, em condições pouco diferentes daquelas em que sempre vivera; a emigração para Lisboa e Porto não viria a beneficiá-la grandemente, muito pelo contrário, introduzindo isso sim elementos de desenraizamento e de pauperismo urbano. Não admira que o proletariado industrial fosse relativamente escasso, de constituição lenta, trabalhando e vivendo em condições de miséria gritante, concentrado em dois ou três polos do território nacional.

A oposição entre, por um lado, os capitalistas da finança ( que se colariam aos importantes investimentos públicos de Fontes Pereira de Melo, e já antes sob o governo dos Cabrais) e os novos burgueses da terra e da renda, e, por outro, a pequena burguesia industrial e urbana, dá origem à formação dos dois grandes, e únicos, partidos à época: os cartistas ( que se punham à sombra da Carta Constitucional ) e o partido setembrista. O consulado de Costa Cabral teve como efeito acirrar as forças da Reacção mais tradicionalista, monárquica e clerical, que não desistiram nunca de contra atacar no percurso de mais de metade do século, reagrupando-se e manipulando facilmente as massas camponesas do Norte (1846); de resto o descontentamento era geral, face ao enriquecimento da Banca protegida pelo governo, às negociatas dos “devoristas”, aos escândalos (  aliás, ambas as coisas perdurariam muito tempo), à política de estruturação do Estado ( esta questão, as tarefas de centralização dos aparelhos do Estado liberal, como sejam por exemplo os órgãos e a política nacional de fiscalidade, os corpos militares e policiais de segurança e de repressão, os aparelhos de propagação da ideologia, o Ensino, etc., constitui um dos temas mais importantes do percurso do liberalismo português, oscilando entre o laissez faire, laissez passer e o proteccionismo, a liberdade de imprensa e o garrote (ou a “rolha”), o apetite insaciável do Estado esbanjador e permanentemente endividado) provocando desagrado nos sectores mais díspares, tanto no clero “caceteiro” e caciquista das regiões interiores ( mesmo assim insatisfeito apesar  do apoio que os Cabris deram ao clero), como na pequena e média burguesia, tanto nos José Agostinho de Macedo, como nos Alexandre Herculano. A crise económica de 46, conjugada com os factores citados, desencadeia o movimento da Maria da Fonte. O período imediatamente posterior, de 48 a 50, assiste à contestação do domínio dos oligarcas (1849 – regresso de Costa Cabral , “ditadura” até 1851, apeado pelo movimento da Regeneração chefiado por Saldanha), fermentando, entre as camadas informadas da pequena e média burguesia letrada e dos artesãos e tipógrafos, projectos liberais e democráticos radicais, que apontavam para o república e para o socialismo, de pendor utópico ( têm eco entre nós as ideias dos saint-simonianos, dos grandes tribunos populares L. Blanc e Lamennais, as concepções cristãs de Buchez, o republicanismo de R. Blum, Ledru-Rolin, Raspail, os princípios libertários de Fourier e o federalismo de Proudhon). Regeneração é a palavra de ordem, a bandeira ideológica, ambígua e difusa, que alberga correntes as mais diversas. A palavra nuclear do novo discurso das novas classes, retórica do poder para aqueles que já o detinham e não o largavam, senha mágica para as camadas despojadas de poder efectivo, ideal de emancipação que, sendo delas em primeiro lugar, generalizavam para as de “baixo”, carregada de significados múltiplos e díspares, significados “estabilizados” pelos seus opostos. O termo “regeneração” “encaixou-se” num novo sistema, ideológico-cultural-simbólico, que produzia hierarquias sociais e culturais. A chave para “ler” este discurso é o código de opostos binários: cidade-campo, centralização-municipalismo, trabalho-capital, produtivos-ociosos, parasitários ,especuladores, agiotas, divisão igualitária da propriedade rural-oligarquias, monopólios, etc. O lado “inconsciente” do texto de Nogueira, ou o “lugar” do inconsciente, são as polaridades binárias que sublinham os pressupostos metafísicos e utópicos da sua mundividência escrita ( o cristianismo, por exemplo, de homem burguês da terra mais inclinado para solidariedades do que para assaltos violentos dos “expoliados” ao poder). Os órgãos de imprensa desempenharam o seu papel na proliferação dos significados, ou na sua sedimentação. Os significados diferenciados ( todo o discurso é feito de diferenças) não deixavam de ser o resultado de convenções socialmente acordadas, referenciados pela Carta Constitucional admitida ou por textos constitucionais mais avançados (José Estêvão), pelos panfletos políticos, pelos novos breviários e cartilhas; é notório o cuidado que Nogueira coloca quando discorre sobre “regeneração”, “federalismo ibérico”, “municipalismo”, “associativismo”, etc., tendente a fazer-se entender por um público-alvo confundido com palavras iguais mas com significados diferentes (“progresso”, “liberdade”, p. ex. ), ou mesmo a forjar um auditório congruente – nesse sentido, Nogueira foi um excelente propagandista, cuja sementeira viria mais tarde a ser recolhida ( embora seleccionada) pelos Partidos Republicano e Socialista. Os novos critérios da hermenêutica exigem-nos que partamos da convicção de base de que as palavras não comunicam significados que estejam presentes sem ambiguidade no espírito, ou seja, os textos devem ser lidos “contra si próprios”, captando-lhes as “diferenças” e as ambiguidades; por outro lado, os significados são somente aqueles que ficaram (quando uma força triunfa sobre outras) “estabilizados” por ideologias culturais e políticas dominantes. Munidos desta utensilagem, o Texto de Nogueira revela-se-nos como um texto-alternativo, um discurso-outro, relativamente ao discurso constitucional-monárquico (meramente retórico e demagógico em aspectos fundamentais da política desenvolvimentista). A linguagem reformista das élites esclarecidas e descomprometidas não triunfou, muito embora se movesse adentro de determinadas convenções linguístico-ideológicas burguesas dominantes. Com mais clareza: a primeira “retórica” socialista ( que justapunha ao “liberal” o “social”) não rompendo embora com a “retórica” liberal, nas primeiras décadas do século ( e isso é patente em Silvestre P. Ferreira, Oliveira Marreca, José Estêvão, Castilho, Lopes de Mendonça, Amorim Viana), manteve, contudo, em aberto a orientação socialista que o pensamento liberal, nascido das revoluções, transportava. Talvez poucos, e entre eles o anarquista Sousa Brandão e Henriques Nogueira, estiveram perto do corte. A favor desta tese daríamos o exemplo dos inteligentes esforços de Nogueira para articular o político com o social, o papel do Estado com o papel das associações de base (organizações locais), o Estado-Providência. Se admitirmos, sobretudo, que o anarquismo-mutualista-operário-federalista do segundo Proudhon não corresponde já à especificidade do pensamento liberal. Se se admitir, pelo contrário, que nem mesmo o Proudhon do anarco-sindicalismo ( que prenuncia o Bakúnine) estabelece um verdadeiro corte, mas apenas tal se verifica com as posições comunistas do Marx de 48, então há-de concluir-se que isso só muito mais tarde se verificaria entre nós. E mais: que sendo então o discurso “socialista” um mero prolongamento do pensamento liberal, pressupondo a mesma rejeição do “colectivismo” e o mesmo apego às “liberdades”, estaríamos perante este facto: que o “socialismo” em Portugal foi sempre um socialismo utópico, e utópico na medida precisamente em que não rompeu com o liberalismo. Seja como for, Nogueira, em primeiro lugar, foi menos proudhoniano (até pelo papel relevante que atribui ao Estado) do que parece, e, em segundo lugar, a concepção do Estado-Providência já vinha de trás, tanto do pensamento liberal ( e do iluminismo) como do próprio absolutismo real da segunda metade do século dezoito (pelo menos nos grandes países da Europa). E mais: nas teses de Nogueira, e de outros, existem claros ingredientes corporativistas ( leiam-se as propostas idílicas para um Portugal rural dos “pequeninos”) que ajudarão (contra natura?) a coser o caldo do clerical-fascismo de Salazar. De uma maneira geral os textos críticos e programáticos do socialismo utópico português pulsam ao ritmo do Portugal rural, “profundo”, ocultando melhor ou pior um uma pulsão paternalista, latente nos aconselhamento aos pobrezinhos, à morigeração dos seus costumes, à poupança redentora, à inserção do trabalho infantil e feminino salutar. Ao lado, caminha o apelo a uma industrialização moderada, contida nos limites do razoável, numa moldura idealizada de um capitalismo sem proletariado. Um exemplo claríssimo dos “deslizamentos” de um texto, cujas contradições emergem de uma mentalidade indubitavelmente ruralista. Não foi caso único, doutrinadores europeus de envergadura internacional exprimiram outro tanto ( entre outros, Anatole France e W. Morris, já no termo do século), é certo, mas entre nós creio que a ruralidade (da pequena e média propriedade) e a pequena indústria (oficinal, artesanal) constituíram a dupla (as duas “figuras” e os dois alvos do discurso) ossatura dos textos utópicos. Entretanto as oligarquias especuladoras  prosperavam à sombra do Estado, constituindo-se elas próprias como força de bloqueio da industrialização acelerada do País. Ou seja: duas faces opostas da mesma moeda, que reciprocamente se alimentavam. O “Estado Novo” exprimirá na sua longa vida estas duas linhas contraditórias, ruralista por um lado, tentando conter a industrialização e a proletarização consequente, e, por outro, protegendo, através de uma ditadura terrorista, a conglomeração do capital monopolista.

O golpe de Estado de 51 procura, de resto, realizar os desígnios nacionais e liberais de regenerar a Pátria decadente. Recebe num primeiro lance o apoio de cartistas moderados, setembristas e socialistas “utópicos”. Muitos deles desenganar-se-ão, sob o consulado do engenheiro Fontes Pereira de Melo, o das infra-estruturas materiais. Outros instalam-se na situação (Lopes de Mendonça). Seja como for, as realizações materiais suscitam a simpatia, ou pelo menos o silêncio espectante, de não poucos doutrinários, incluindo o nosso Henriques Nogueira. Reconhecem que isso é obra nacional urgente e de vital importância, mas depressa criticam os atrasos e as prioridades, e denunciam o modus faciendi. A construção dos caminhos de ferro representou a obra mais saliente, com efeitos positivos sobre o escoamento dos produtos agrícolas e a acumulação de capital agrícola comercial. As manifestações populares de 56 atestam, porém, a insatisfação das camadas urbanas, do artesanato e dos pequenos industriais, sempre atingidos pelo processo de desenvolvimento económico nesse século e na primeira metade do seguinte.

 Este o quadro, num desenho muito genérico, económico, social e político, de oitocentos até á década de cinquenta. Situados deste modo a personalidade e o pensamento de Henriques Nogueira, e deixando por ora o retracto das revoluções no resto da Europa, passemos às ideias:

Analisemos duas que consideramos assaz marcantes dessa parte do século português e do ideário de Nogueira. A primeira é talvez, para nós é seguramente, a expressão ideológica paradigmática desse período histórico, para a qual confluem diversas e opostas designações e aspirações de classe. É a palavra Regeneração. A segunda é o iberismo, que congrega simultaneamente as condições para a Regeneração de Portugal, segundo Nogueira e outros ( o mesmo se passa na Espanha), o municipalismo, o associativismo, enfim, o republicanismo de pendor socialista, que os grandes doutrinadores franceses divulgavam nas suas obras consumidas por todo o lado, e que as massas populares procuraram levar à prática nas revoluções europeias de 48 e seguintes.

 O problema da Regeneração é desenvolvido por Nogueira em diversos textos e ocasiões. Na Obra Completa ( ed. 1980), surge no terceiro volume, em seis artigos com esse título, publicados no jornal O Progresso, entre 1855 e 1856, compondo-se de críticas acutilantes e muito concretas ao regime dito “Regenerador”, ou seja, à “ditadura” (palavras do próprio Nogueira) de Fontes e da clientela que se arregimentou à sombra. Trata-se por conseguinte não de um elogio do liberalismo canhestro luso, prometido pelas facções revolucionárias agrupadas no Partido progressista, em 51, e que apeou os Cabrais, mas da denúncia de um programa que se revelou pouco regenerador das forças do progresso e que desprezava a mais querida das tradições lusas e ibéricas, o municipalismo, segundo desejava Nogueira, e que Herculano soubera arrancar do passado. O artigo mais interessante a nosso ver, elucida- nos sobre o ideário advogado pelos “progressistas”, os princípios desse partido, as fracções em que se dividia, apresentado como “o grupo dos liberais que querem o alargamento dos direitos populares, a verdade do sistema representativo, a moralidade nos actos do governo, a economia na administração do Estado, o corte dos abusos, e, numa palavra, a protecção de todos os interesses morais e materiais do País”. Nas formas de levar a cabo estes desideratos é que se dividiam em “democráticos” e “monárquicos”. Nogueira inclina-se claramente para os primeiros, dizendo que “os progressistas querem desde já instituições que garantam a liberdade, a justiça, a morigeração, o ensino e a riqueza do povo”, programa vago, vasto e complexo, que servirá de aspiração prolongada às camadas mais radicais da nossa sociedade e às suas elites, bandeira tanto dos socialistas pequeno-burgueses que hão-de vir, como Antero e José Falcão José Fontana, como o fora de José Estevão, Solano Constâncio e Oliveira Marreca ( nessa configuração de princípios o próprio Herculano, não “democrático” como se sabe, se poderia incluir; tanto a estes todos como ao futuro Partido republicano ( que se oporá veementemente aos socialismos, convém lembrar). Nogueira concretiza  as reclamações desse amplo Partido interclassista: “ a reorganização da guarda nacional ( questão empolgada na época e que Nogueira considerava uma espécie de milícia armada do povo), a reforma municipal, com autoridades electivas e participação nos impostos (directos); a extinção do monopólio do tabaco e sabão ( medida que agradava aos liberais desejosos de abocanhá-lo mas que em Nogueira é, antes, uma postura coerente anti monopolista); a difusão universal do ensino primário ( medida que haveria de aguardar muitos anos e pela qual Nogueira se bateu constantemente); uma verdadeira e congruente e decente implantação dos caminhos de ferro e de abertura de estradas ( bateu-se, por exemplo, pelas estradas modernas neste concelho actual e nesta região); a abolição total dos morgados; a confecção do código civil( que esperaria até aos anos sessenta), entre outras. Portanto estas tarefas que competiam ao Estado e pelas quais se haviam batidos os setembristas e outros, e se haveriam de bater os vindouros , constituíam uma programa comum, digamos assim. Algumas delas foram, todavia, aprofundadas, ou radicalizadas, se preferirmos, por Henriques Nogueira, tornadas mais democráticas, populares, nacionais, e em suma revolucionárias, pelo menos para a época; foi o caso da Reforma dos municípios, do processo electivo para o parlamento, do imposto progressivo, ou da instrução do povo e da participação digna dos trabalhadores desde a base até ao topo. Aspirações utópicas, disse-se para a época, se apenas as virmos em retrospectiva; na realidade, foi um combate estrénuo, umas forças perderam, outras triunfaram. A “regeneração” real, ou seja, propagandeada pelo regime saído de 51, foi afinal isto mesmo, nas palavras do nosso publicista corajoso e coerente: “Analisemos, agora, as tendências da situação criada em 1851, e o triste consórcio que com ela fizeram alguns progressistas. A regeneração, definida na sua maior simplicidade, é a negação mascarada, astuciosa, procastinadora das úteis aspirações do partido progressista. (...) graves omissões, os escandalosos desperdícios(...) empolgou a conserva a ditadura a despeito da fantasmagoria parlamentar; mas nem sequer sabe ou pode nobilitá-la por medidas vigorosas, reformadoras, que justifiquem, até um certo ponto, a sua ilegítima existência. Composto híbrido de antigos cartistas e de reaccionários conversos, a regeneração tem mantido todos os velhos abusos e mofado de todas as indicações patrióticas. É ainda o clássico e sempiterno absolutismo que mudou de traje para iludir os incautos e recrutar defensores. (...) Há, portanto a este respeito bem pouco que agradecer à regeneração. Governo gasto, sofismador, estéril, corroído por interesses de bando, a sua conservação só se explica pelo mau fado que geralmente preside à nossas causas, e pela pasmosa indiferença a que uma série não interrompida de decepções nos tem levado.(...) não é o cúmulo da vergonha sermos nós (os progressistas) a maioria militante do País e estarmos privados de uma tribuna independente onde as nossas queixas pudessem achar eco, e os nossos males pronto remédio? (...) Seja-nos também permitido avaliar, à luz do interesse de partido, o apoio que à regeneração prestaram alguns progressistas. Ainda que nos pese, manda a verdade que se diga que tal apoio foi funesto”.

   Não admira, pois, que este homem ilustre, crítico fino mas implacável dos desvios oportunistas das doutrinas que proclamavam reformas e benfeitorias para o povo, adversário da monarquia constitucional, ou seja, daquele modo português de cumprir o liberalismo, haja sido recordado pelo Partido Republicano neste termos, por exemplo no periódico Galeria Republica, Setembro de 1882: “O ilustre fundador da moderna democracia portuguesa nasceu em 15 de Janeiro de 1825 e morreu em 23 de Janeiro de 1858; a sua vida está compreendida entre estas duas datas, que abrangem a história completa do regime parlamentar em Portugal, nos seus dois períodos notáveis, o da violência absolutista e intimidação cabralina, e o período da corrupção sistemática das duas regenerações. “

É indiscutível, de facto, que Henriques Nogueira pertence ao escol daqueles homens de excepção que tendo vivido e reflectido sobre o presente deles, muito embora, souberam descobrir e anunciar reformas e soluções que estavam muito além daqueles regimes e até daqueles sistemas económicos. E, por isso, Henriques Nogueira, ou José Fontana, ou Oliveira Marreca, ou José Estêvão, ou Antero, não foram tanto os fundadores do Partido republicano, tal como surgiu e foi, mas da democracia moderna, isto é, de um republicanismo exigente e radical, que puxava a República para uma democracia avançada. Cada um saberá se já a experimentámos ou se é ainda uma utopia.

 A Regeneração-

  Regenerar Portugal, eis a palavra mobilizadora, aspiração de elites e de massas, nuns casos demasiado abstracta e equívoca certamente, mas  suficientemente interclassista para ser nacional, para designar um projecto e um programa de reformas. Pendão e certificado da revolução, a de 1820 e as que se lhe seguiram, setembristas, progressistas, liberais. Ideologia política de forças políticas ora coligadas ora desirmanadas. Promessa traída, disse-se, pelos chefes do golpe de 51, diminuída no seu alcance pelo sufrágio censitário e por outras habilidades, aqueles que se colaram ao poder, que pouco mudaram excepto algumas cabeças de oligarcas, no pensar dos seus críticos como Henriques Nogueira, talvez menos nos apoiantes de primeira e segunda hora, como Garrett.

Diversos órgãos de imprensa ostentavam esse título honroso apesar de tudo. Regenerar significa encaixar-se aí o que se quiser, excepto o regresso ao absolutismo. Partidos moderados e partidos democráticos radicais, formados pelo ímpeto liberal, viam a luz do dia por toda a Europa. Muitos dos seus militantes bateram-se nas barricadas, em 48, na França, na Alemanha, na Espanha, generais do povo em Itália agrupavam exércitos mal armados de trabalhadores contra o poder austríaco, pela unificação ou pela independência. Marx e Engels redigiriam em 48 o célebre Manifesto Comunista. Se se deseja regenerar é porque se assiste à decadência, e ela é sinónimo tanto das estruturas feudais e aristocráticas como dos grandes burgueses negocistas, devoristas, mais desejosos de participarem do poder ( a burguesia não estava, ainda antes da revolução, excluída do poder), sós ou coligados com os anteriores, do que fomentarem o progresso, material e moral, mais preocupados com as sedições populares e já proletárias do que cumprir os ideais de prosperidade prometidos pela nova indústria, com a sementeira das luzes nos povos atrasados, incultos, miseráveis. A instauração da liberdade política e do direito universal de propriedade serviram perfeitamente como instrumentos limitativos em alto grau à recusa das reivindicações operárias e socialistas: estabelecimento do salário mínimo, de horário máximo de trabalho, de leis de protecção contra despedimentos, etc. A doutrina da “unidade indivisível do Estado” liberal dirigiu-se quase simultaneamente tanto contra os antigos privilégios corporativos como contra, e cada vez mais, as “utopias” revolucionárias que já incomodavam deveras os estratos instalados da grande burguesia financeira e agrária: democracia directa, federalismo, associativismo popular e operário, municipalismo orgânico e autónomo ao modo de Henriques Nogueira... Os sindicatos hão-de continuar proibidos até aos finais do século.

Regenerar transporta o ímpeto de todas as revoluções sociais, sobretudo aquelas que fazem jus ao nome, realizadas ou desejadas pelas novas classes, como as burguesias anti feudais e anti absolutistas. A Regeneração deseja o mesmo: mudar tudo, as relações sociais que entravam as novas forças produtivas, o Estado caduco e agora o Estado das oligarquias “monopolistas”, enfim o próprio indivíduo (“cidadão”) produtivo e sede de direitos naturais. Contudo, regenerar em Portugal significa também aqueles traços específicos do sentir e do pensar português. O messianismo larvar e sempre presente. A utopia lusa. A tendência para encontrar “fora” as forças que lhe faltavam de dentro. No oceano, noutros continentes, ou terra comum da Ibéria. Ou na Europa comum. Mudam-se as palavras, todavia permanecem aspirações e idiossincracias.

Modernizar o país, remoçá-lo, significava e significa ainda transformar de alto a baixo, criar não só um regime e um sistema novos, mas um homem novo, implicando um direito e instituições novas, uma outra representatividade para os órgãos legislativo, deliberativo, governativo, legalidade e legitimidade assente na nova soberania, a do povo ( o “terceiro estado” ao qual muitos acrescentam já o “quarto”, o povo trabalhador, o proletário moderno), uma outra cultura política, um sistema de ensino. Os liberais, de todos os quadrantes, dedicaram-se a estas tarefas. O modo como as executaram suscitou em Henriques Nogueira os maiores reparos. Identificar o país exprimia um acto primeiro de renovação. A ele dirigiram muito das suas obras Herculano, Garrett, Castilho. Que povo era este, que fazia, que festejava, que histórias criava?

Regenerar era todo um programa de construção de um Estado, de uma ideário cívico e tudo mais que surge claramente, com uma lucidez e coerência verdadeiramente notáveis para a época, nos próprios títulos dos capítulos em que a grande obra de Henriques Nogueira está composta, os  Estudos sobre a Reforma em Portugal, de 1851: “Governo”; “Símbolo” ( Liberdade e seus direitos- Manisfestações deste sentimento- Lei da humanidade- Igualdade entre os homens; desigualdade artificial- Aspiração-Fraternidade: expressão prática do cristianismo); “Eleição”(onde defende o voto universal); “Ministério”( onde se açoita a burocracia);” Justiça” ( repositório de críticas ao “sistema tão estúpido como bárbaro de vingança, tintas em grande parte pelo sangue dos patíbulos, promulgadas debaixo da impressão de ideias intolerantíssimas em religião e em política); “A Força Armada”; A Fazenda e o Imposto (defende o imposto progressivo); o Capital (“Além dum banco central para as grandes operações comerciais, organize-se em cada município, um banco para acudir às necessidades gerais da indústria); o Trabalho ( A análise exposta do trabalho, a sua origem social e utilidade, a diferenciação das classes em dominadoras e dominadas e expoliadas (sic), a sua expressão ético-jurídica – o direito ao trabalho, a sua dignidade intrínseca- não fica atrás do que de melhor se escreveu por essa Europa fora ao tempo, embora nos pareça que parafraseia bastante famosos panfletários , mas enquanto doutrina histórica geral, pois é aplicada ao quadro português com conhecimento de causa : “O direito à subsistência pelo trabalho, digam o que disserem sofistas e retrógrados, é uma das pedras angulares da liberdade, porque assegura a primeira das necessidades – a conservação da vida.” , in Almanaque Democrático para 1853); “O proletariado moderno desaparecerá também, segundo confiamos, pelo influxo dos generosos princípios da fraternidade” – estas palavras, sinceras mas inspiradas no idealismo utópico europeu, onde o apelo ao cristianismo não estava ausente, demonstra bem os limites do democratismo de Nogueira e praticamente de todos os demais ( Marx, no Manifesto, faz a crítica destas utopias); Agricultura, Indústria, Comércio, Viação ( “ Que todas as nossas estradas, das diversas classes, sejam resguardadas e enriquecidas, pelos cuidados da autoridade pública, com belos renques de árvores de alto porte e larga folhagem, com chafarizes ou depósitos amiudados, com abrigos laterais e guaridas cobertas, com pequenos casais, formando uma extensa colónia, como linha de postos avançados contra inimigo poderoso e audaz, que todos estes melhoramentos progridam a par, e se completem uns pelos outros – e as viagens da necessidade e mesmo de recreio se tornarão entre nós tão comuns, como nos países em que tudo convida ao movimento.”- utopia ou já alguma vez existiu?); “Beneficência” ( “A base, porém, de toda a reforma deve ser a construção ou reparação, em cada município, de um edifício assaz vasto para conter todas as instituições de beneficência directa, como enfermarias, asilos para os órfãos e para os inválidos, e penitenciárias para os corrigendos (...) Instituições públicas, que tenham por fim prevenir a miséria, animando o trabalho, promovendo a associação, introduzindo a economia, fomentando a instrução, inspirando a moralidade (...) Instituam-se em cada aldeia ou rua de cidade associações locais em que se inscrevam, querendo, os operários de todas as indústrias (...)Institua-se em cada município uma caixa económica, garantida pelo respectivo banco, em que toda a gente possa depositar o fruto das suas economias e obter um módico juro (...) Institua-se, em cada município, um cofre das famílias, onde os indivíduos que quiserem deixar a sua mulher e filhos ou outras pessoas, alguma dotação, possam depositar anualmente as quantias correspondentes(...) Instituam-se trabalhos públicos nas oficinas modelos, colónias agrícolas e vias de comunicação, onde se dê que fazer, por um salário razoável, a todos que o pedirem”- eis um exemplo, e somente uma pequenina parte, de um programa utópico coincidente com projectos do mesmo teor, entre inúmeros que se redigiam e liam por essa Europa fora. E instrução, que não se desejava somente para elites, mas para todos; não somente para saber ler e contar, mas para saber fazer, bons artífices e bons cidadãos. A instrução pública e universal é, assim, uma batalha de capital importância. E urgência. Levará, como sabemos, décadas e décadas para se atingir. Sobre a instrução, no seu projecto reformista, propõe “escolas locais...crianças dos dois sexos...sob a direcção de mestras...estudos simplesmente intuitivos ( esta moderna pedagogia, vinda de Pestalozzi, conquistara não poucos socialistas utópicos da Europa ) de objectos da natureza e da arte, mostrados em galerias coloridas, e pequenos trabalhos rurais e artísticos completariam o ensino (...) escolas de adultos ...gabinetes de leitura...escolas industriais...escolas municipais...na capital, escolas centrais das ciências e artes” e outras medidas que caberiam, de resto, nos limites do desenvolvimento capitalista , que qualquer liberal moderado mas sério e honrado poderia admitir; o leitor de hoje verá se tal foi realizável, como e quando; “Propriedade” ( “Complemento natural da família (...) Aboli a propriedade, se tanto podeis - e faltar-vos á um dos estímulos mais poderosos do trabalho (...) Nós estamos longe de considerar a propriedade honestamente adquirida como um obstáculo à pública felicidade. Bem pelo contrário desejáramos generalizá-la, torná-la extensiva ao maior número de indivíduos – quiséramos, quanto possível fosse, facilitar a divisão da propriedade territorial para satisfazer a todos que quisessem dar-se à agricultura. Em rigor ninguém tem sobre a terra propriedade absoluta, isto é, direito de usar e de abusar – mas simplesmente posse e usufruto, enquanto a cultiva no interesse comum. O que cada um tem que seja propriedade sua são as benfeitorias que fez ao solo, as construções que nele edificou, o preço da compra, tudo enfim que representa trabalho. Quanto ao mais, à superfície do globo, ela pertence a todos, assim como o ar que respiramos e a luz que nos esclarece. Daqui nasce o direito que tem a sociedade de obrigar o possuidor de terrenos incultos a cultivá-los, ou a dá-los a quem os cultive” (o socialismo reformista de Lamennais e de Blanc é visível nestes pressupostos, mais próximos de Adam Smith do que de Proudhon, por isso a teoria liberal não os enjeitava); “Associação” (“ poderosa alavanca da moderna ciência política (...) queremo-la livre, espontânea, nascida das conveniências individuais, e não das prescrições da lei ou dos rigores do sistema (...) pretendemos conciliar todas as vantagens económicas e civilizadoras da associação com o poderoso móvel do individualismo ou situação em que cada um trabalha e vive sobre si (...) Uma associação local, no campo ou na cidade, no primeiro período do seu desenvolvimento, limita-se, e já não fará pouco se o conseguir, a apresentar à venda os géneros alimentares, inclusivamente o pão, pelo preço corrente nas lojas de retalho, mas de melhor qualidade (...) a fazer a educação comum das crianças (...) a recolher semanalmente num mealheiro as quantias que cada um puder dispensar (...) a socorrer os sócios e os vizinhos (...) mais tarde, no segundo período de aperfeiçoamento, a associação local deve alargar a esfera da sua actividade: estabelecer moradas cómodas, salubres e baratas, para os operários; fundar depósitos para os produtos da indústria da localidade; e montar oficinas que faltem e convenham ao lugar (...) Operários: não julgueis que a associação local exija grandes sacrifícios da vossa parte. Ao contrário ela é a única que vos pode realizar aquele dito do Evangelho: “Daí e dar-se-vos-á: no seio vos meterão uma boa medida, bem cheia, bem acalcada e bem acogulada. (...) Amigos: fazei votos para que chegue a época em que vejais por vossos próprios olhos, em instituições modelos, a imensa utilidade do plano, que aqui vos estamos aconselhando!”.

 

 

O socialismo 

Medidas que cabem bem no saint-simonismo ( bancos populares abertos aos capitalistas), preconizadas por Lamennais e Louis Blanc, pelos fourieristas,  pelo primeiro Proudhon (caixas económicas), projectos reformistas para os proletários, para obviar a sua miséria, que colhem na sementeira de L. Blanc e de Buchez, a crença na indústria que haveria de trazer desafogo, luzes e moralidade, o evangelho da morigeração e poupança que emanciparia os operários, a convicção de que um regime republicano democrático, levando à prática o projecto geral que ele defendia, conduziria ao desaparecimento do proletariado moderno, a doutrina do igualitarismo agrário, o associativismo ( com as finalidades e os efeitos que ele antevia), estes e outros desígnios caracterizam clara e vincadamente o socialismo utópico de Henriques Nogueira, e isso não é pouco para o seu tempo português. Utópico não significa impossível em absoluto, significa que não se realizou no seu todo, sequer na sua parte ( por exemplo, a Reforma Agrária que advoga ( e pensamos no Alentejo) foi uma excelente oportunidade perdida, difícil se tornou mais tarde, mas sempre exigida pelo progresso económico, nesse sentido realista, mesmo no quadro do capitalismo ( o regime fascista, aliança dos latifundiários com o capital monopolista, suspendeu essa possibilidade durante mais de cinquenta anos, mas, simultaneamente, converteu essa possibilidade numa tendência histórica objectiva. Tende-se normalmente a pensar que uma utopia é simplesmente algo objectivamente impossível para todo o sempre, como voar como os pássaros e respirar sob a água como os peixes ( todavia, já o fazemos inventando as técnicas adequadas), recusando-se ver ( a velha metáfora da cegueira e da luz) que o Novo, o Ainda -Não, a Esperança, é o mais poderoso ímpeto subjectivo que se converte em força material.”o mundo inteiro é percorrido pela grande ideia duma coisa e pela intenção dirigida para o ainda-não-acontecido : a utopia concreta é a teoria-práxis mais importante desta tendência”, escreveu Ernst Bloch.

“Quanto a nós o melhor socialismo é o que mais harmonizar com os costumes e ideias do povo, a que é aplicado; o que mais rapidamente produzir os seus bons efeitos; o que mais facilmente se puder difundir por todos os recantos do país; o que for concebido no interesse de todos e não de alguns grupos sociais; o que não ferir os razoáveis e legítimos direitos de ninguém; o que, finalmente, constituir uma sociedade, em que o pobre não tenha inveja do rico, mas possa vir a sê-lo pelo seu trabalho, e em que o rico não aveze o pobre, antes o proteja fraternalmente”. E mais adiante: “ Tem-se querido, por má fé, envolver no mesmo anátema duas coisas bem distintas: o socialismo racional, ilustrado e humanitário com o comunismo absurdo, tirânico e evidentemente contrário à natureza e sentimentos do homem.” Louis Blanc versus August Blanqui, Proudhon versus Marx.

August Blanqui ( 1805-1881), irmão do economista Adolph Blanqui, passou nove anos na prisão, fora uma enérgico agitador estudantil ne juventude e animador do Comité des Écoles, mabro da Sociedade dos Amigos do Povo, influenciado por Raspail ( divulgado entre nós por H. Nogueira) e Buonarroti ( o companheiro do de G. Babeuf), não encontrava possível conciliação entre o capital e o trabalho, “o parasita e a sua vítima”, ao contrário de H. Nogueira e da maior parte dos mestres doutrinadores deste; Com uma fé inabalável na “igualdade” defendia “a terra comum”, “a associação” substituindo a “propriedade individual”, “O reino da justiça pela igualdade” há-de ser o da “associação” – este princípio, embora proclamado entre nós por H. Nogueira, acompanha-se em Blanqui por uma concepção dos meios que não encontra eco no nosso municipalista de 51- deve-se a Blanqui talvez a primeira teoria da insurreição e das regras de organização de um partido novo que, passando pelo Marx da maturidade, desembocará no Lénine de 1905.

Louis Blanc (1811-1882), foi um jornalista celebrado, fundador da Revue du Progrès que inspirou com certeza o título do jornal político O Progresso, que Nogueira ajudou a fundar em 1854 e para o qual escreveu numerosos artigos que ajudaram a fazer dele uma importante tribuna, incontornável para quem se quiser dedicar ao estudo desses anos cruciais.O texto de Blanc “A organização do trabalho”, publicado em 1839, diz-se que foi um dos livros “socialistas” mais lidos pelos operários franceses, nele critica a concorrência – “sistema de exterminação”, “causa constante de empobrecimento e de ruína”, “bomba aspirante da média indústria, do médio comércio, da média propriedade, é, numa palavra, a negação da burguesia em proveito de algumas oligarquias industriais”. Daí pugnar pelas “oficinas sociais”, auxiliadas numa primeira fase pelo Estado – os capitalistas “levariam os juros do capital que tivessem trazido, mas só participariam nos lucros como trabalhadores”, “No nosso sistema, o Estado tornar-se-ia o senhor da indústria pouco a pouco, e em lugar do monopólio nós teríamos (...) obtido a derrota da concorrência: a associação.”; a luta política pela conquista do parlamento é nele um ponto claro que o distinguirá dos proudhonianos anarquistas, a luta pelo sufrágio universal que abrirá caminho para a “democratização” do Estado e que o inclinará, por conseguinte, para os seus deveres sociais, tudo por meio da política, sem que recorre à violência. Em suma, “aproximar todas as classes da sociedade, em fazer-lhes compreender que os seus interesses são solidários, unindo-os num nobre sentimento de concórdia e de fraternidade”. Alguns paradoxos e contradições bem visíveis em L. Blanc transitam por inteiro para H. Nogueira e cremos que explicam a utopia deles e os seus fracassos políticos.

“Assim, em 1847, o socialismo era um movimento da classe operária. O socialismo era, pelo menos no Continente, “respeitável”; o comunismo era precisamente o oposto. E como a ideia que tínhamos desde o princípio era de que “a emancipação da classe operária tem de ser obra da própria classe operária”, não podia haver dúvidas sobre qual dos dois nomes tínhamos de adoptar. E o que é mais: estamos, e sempre estivemos, longe de o repudiar.”, escreveu F. Engels em 1888 no prefácio à edição inglesa de O Manifesto do Partido Comunista.  Na expressão entre comas citada por Engels, companheiro de Marx e co-autor do Manifesto , de 48, revela-se a diferença entre os socialismos utópicos e aquele que, segundo estes dois autores, não o era mais. Seja como for, o projecto “classe média”, ou da pequena-burguesia lusitana, de Henriques Nogueira não se realizou, nem mesmo em meros lenitivos para o ainda incipiente proletariado fabril, nem para os artesãos tradicionais, nem para as pequenas indústrias locais, nem para os camponeses pobres. Nem talvez para a própria “classe média”. Proprietário abastado, não morreu pobre. Mas morreu seguramente desiludido.

 Coloca-se sempre a questão de saber-se se estão ou não reunidas as condições objectivas e subjectivas para um determinado projecto. Questão difícil e prospectiva (quantas vezes não longe do profetismo) para os contemporâneos, científica, e mais fácil, para aqueles que hão-de vir a estudar as derrotas e as ruínas. O passado é a efectividade, o presente-futuro, esse, está prenhe de possibilidades. Por outras palavras: o que é necessário, e não apenas possível, efectiva-se necessariamente? Mas qual a definição objectiva de necessidade? Se acaso a História transportasse uma legalidade imanente a questão haveria de encontrar resposta de uma forma ou doutra num horizonte referencial absoluto. Assim não acontecendo, o jogo das variáveis interdependentes, o xadrês das casualidades, a dinâmica das contradições em presença, a quantidade e qualidade dos indivíduos e das forças em confronto, ditam os sucessos ou as derrotas. Abandonada a dogmática determinista, segundo a qual a base económica causa a superestrutura ( do género :”cada homem pensa o que come”) que se limita a “reflecti-la”, sobra espaço de autonomia para as ideias, esses artefactos da mente. Matéria (não indiferente às outras) com a qual se organizam sonhos em projectos e se convertem sentimentos em atitudes. Só aos incultos acomodados agradará o prejuízo dirigido aos “teóricos”. O acto simples de ver não é só um processo de receber passivamente dados sensoriais, mas também um processo mais complexo de receber, seleccionar e categorizar informação. Isto significa que qualquer observação, mesmo a mais simples, está obrigatoriamente carregada de teoria.

O iberismo federalista

  Um outro traço fundamental do ideário de Nogueira foi o seu iberismo, de resto muito difundido à época, articulado com o projecto federalista. Escreveu ele: “ A ideia da união ibérica, que não é nova, nem única no seu género, encontra todos os dias um número mais e mais crescido de sectários e de inimigos. Evidentemente, digam o que disserem, é uma ideia prática, e como tal palpitante de interesse e esperanças para uns e revestida de terrores e apreensões para outros. Cada um dos partidos que se agitam na península encara esta questão por seu modo, e mesmo dentro desses grémios políticos a homogeneidade de pensamento não é completa. Os partidos mais avançados são os que em Portugal e Espanha tendem para a união política dos dois países. Os partidos mais retrógrados são os que, pelo contrário, pretendem manter a separação” ( in O Progresso, 1851). Vários e bem argumentados artigos ( polemizará com vários adversários sempre com elevação moral e nobreza de ideias) difundirá sobre este tema-bandeira-projecto de regeneração peninsular, condição de sustentabilidade da democracia avançada e do progresso na paz. Como se sabe, continuou a ter adeptos até hoje, mudadas embora as bases e os meios. Nos Estudos expõe com clareza a concepção federalista :” união de diversos povos independentes”; “a federação é para os povos o que a simples associação é para os indivíduos – um aumento prodigioso de força, riqueza e bem-estar. Baluarte e última esperança dos povos oprimidos, que só na aliança com os seus iguais podem achar uma protecção benéfica e sincera, a forma federativa é destinada a libertar as nações fracas do predomínio dos fortes(...) Recorrer à união para escapar da tirania deve ser a política dos povos pequenos. “Por isso entendamo-nos bem. Nós queremos a federação; mas repelimos a fusão.”; A federação não é invento de moderna data, nem utopia arrojada (...) O que é uma família, senão uma federação (...) O que é um lugar ou povoado, senão uma federação de famílias (...) O que é um município, comuna ou concelho (...) O que é um povo senão uma federação de municípios (...) O que é uma nação, senão uma federação de povos (...) A humanidade inteira nada mais deveria ser do que uma federação de nações (...)” Como se sabe, quem melhor defendeu esta concepção, espalhada pela Europa pelo republicanismo democrático e socialista, foi Proudhon. A pedra de toque encontra-se na articulação, difícil, entre a descentralização ( o associativismo de base, auto-gestionário) e a centralização. O Estado (burocrático, centralizador por vocação) é rejeitado por Proudhon. Em H. Nogueira a tentativa original vai no sentido de conciliar o papel social (não apenas administrativo) do Estado democrático com a autonomia municipal e associativa, mais na linha dos socialistas cristãos reformistas Lamennais, Blanc, Buchez.

Dado este artigo que se queria breve, só poderá ficar para outra ocasião a explanação desta orientação que tanto marcou a utopia revolucionária liberal, isto é, republicano-socialista, aqui e lá, na Espanha.

    Corria o ano de 1909 quando a Câmara Municipal de Lisboa resolveu atribuir o nome de Henriques Nogueira “à rua entre o edifício da Câmara e o Ministério do Reino”; e o ano de 1932 quando a Câmara Municipal de Torres Vedras homenageou “o primeiro republicano português (...) defensor dos privilégios dos municípios” deliberando que “à avenida a poente do mesmo Edifício Escolar [E. E. Primário] o nome de Henriques Nogueira”.

Grande no seu tempo, grande ainda no nosso, porque o ser grande não tem prazo de validade, José Félix Henriques Nogueira merecia uma edição antológica e crítica dos seus melhores textos em volume acessível, um Encontro científico aquando do seu lançamento, uma bela estátua em local condigno. Português inteiro e clarividente, merece no mínimo isso. Sobra a sua utopia. O que é muito.

 

José Augusto Nozes Pires, professor.

Torres Vedras, Maio 2000