José Augusto Nozes Pires
Dissertação de doutoramento
Dom Deschamps ,
O filósofo e a sua sombra
Dissertação de doutoramento em Filosofia apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Torres Vedras
2003
AGRADECIMENTO :
Agradeço à Professora Doutora Maria Luísa Araújo de Oliveira Monteiro Ribeiro Ferreira a sua ajuda generosa, paciente e meticulosa, sem a qual muito dificilmente eu teria levado até ao fim esta dissertação.
Dom Deschamps : o filósofo e a sua sombra
-Espinosa e o espinosismo nos materialistas do século XIX francês; as utopias comunistas
«Não é senão porque eu sou no fundo a verdade que ei-la desenvolvida, e não é senão porque os meus semelhantes são-no tanto como eu, que aqueles, entre eles, capazes de me ler e de me entender dirão depois de me haverem lido, e compreendido, é ela, a coisa é evidente.»
Introdução
Léger-Marie Deschamps (1716-1774) foi um filósofo de origem francesa que interveio no movimento cultural das Luzes com excepcional originalidade. Era membro da ordem dos beneditinos. Na nossa tese de obtenção do grau de mestre, em 1997, explanamos com largueza bastante o percurso intelectual de dom Deschamps, membro de uma ordem regular poderosa ao tempo mas da qual não recebeu nunca quaisquer benesses. Viveu metade da sua vida numa minúscula e esquecida abadia da região de Poitiers, não muito distante do lugar onde nasceu René Descartes. Ficou obscuro pela mediocridade das funções que exerceu em plena província, pelo facto do seu sistema filosófico nunca ter sido publicado e, provavelmente, ficaria de qualquer maneira marginalizado pela singularidade extraordinariamente ousada do seu projecto. O estilo de redacção de dom Deschamps é bastante duro, muito longe da mestria e modernidade de um Rousseau ou de um Diderot. Apesar disso, lê-se hoje com menos dificuldade do que se lê o discurso do então célebre barão d’Holbach e, menos ainda, do que a generalidade dos escritos panfletários que abundantemente se publicavam na altura. A seguir à sua morte ficou rapidamente remetido ao esquecimento; contudo, não foi uma figura ignorada no seu tempo.
Tendo procurado as luzes, permaneceu na sombra. No entanto, outros mais fizeram as sombras desse século e desse movimento reformador que uma interpretação unilateral classificou em bloco como utilitarista e anti-metafísico; mas foi certamente um movimento que se julgou a si mesmo iluminado por uma Razão transparente que anunciava uma Era de progressos ilimitados. Foi seguramente uma época de conflitos e contrastes, de intensas batalhas ideológicas que exprimiam também contraditórios interesses económicos e políticos que iriam confrontar-se violentamente na última década do século. Foi certamente um Movimento de sombras e contrastes, encruzilhadas e ciladas, debates semiclandestinos em salões privados, nos cafés mundanos, de campanhas persecutórias, de espiões e esbirros, de delatores e funcionários corruptos, de prisões sem culpa formada e deportações apoiadas em simples calúnias.
A expressão «sombras» que utilizamos é aqui largamente polissémica. Em primeiro lugar exprime a escassa divulgação e popularidade da obra de dom Deschamps (apenas publicou dois opúsculos que obtiveram um muito fraco acolhimento); em segundo lugar, exprime a posição ambivalente de Deschamps relativamente ao Movimento das Luzes (alguns contemporâneos tomaram-no simplesmente como um conservador); em terceiro lugar, exprime a presença disfarçada de Espinosa na elaboração do seu pensamento.
Iremos demonstrar nesta dissertação que um beneditino, cuja obra foi descoberta somente um século depois, que criou uma seita de iluminados que pretendia rivalizar com os mações, teve uma intuição brilhante nos anos cinquenta. Munido dessa intuição atreveu-se a substituir, integrando e superando, todos os sistemas e todas as correntes de pensamento do seu tempo e, por meio de um projecto utópico surpreendente, atreveu-se a solucionar todos os problemas sociais e políticos de vez. Isto é, o sistema de dom Deschamps ambiciona resolver e completar os destinos da Filosofia e da História.
Pretendeu, em primeiro lugar, fornecer ao conceito de Todo ou Totalidade, que é uma noção nuclear das filosofias, uma nova formulação, denunciando e resolvendo contradições em que outros filósofos, segundo ele, se enredavam. O termo tout, ou grand tout, era recorrente nas diversas correntes que compunham o Movimento das Luzes.
Com a chave de uma dialéctica insólita mas que poderia vir a ser inovadora, dom Deschamps desafiava os seus contemporâneos a admitir, por via rigorosamente lógica e até gramatical, uma ideia não antropomórfica de Deus, uma concepção naturalista que harmonizasse o homem com a natureza, em que a morte não fosse uma tragédia mas uma necessidade da ordem natural das coisas, de uma ordem que ignora todo o bem e todo o mal. Alcançada a Verdade, abria-se a possibilidade de uma existência individual e colectiva permanentemente feliz. Ou seja: se desejarmos optar por uma forma de existência radicalmente diferente – mais autêntica- necessitamos primeiramente de modificar a perspectiva pela qual encaramos o mundo e a vida; dessa nova perspectiva resulta uma outra atitude existencial. Este é conteúdo do seu sistema. Por isso o designou de A Verdade, ou o Verdadeiro Sistema. É um sistema eminentemente ético.
Em segundo lugar, atribuía, por conseguinte, a tudo que existe uma ordem, um acordo interno e imanente entre todos os seres, desde o homem a tudo mais, sem graus fixos de valor e de hierarquia. O homem é um modo de ser da natureza, uma parte do todo universal. A morte, por exemplo, não equivale ao nada absoluto ou ao grau zero da existência, mas àquilo que ele chama “o menos da vida”.
Todas as coisas existem, entre o “mais” e o “menos”, como modificações internas de um Ser constituído por uma profunda contradição: é simultaneamente o todo material actual, positivo, perfeito e pleno de realidade física, movendo-se na duração temporal e no espaço, ou seja o universo ou natureza, e é o infinito, a eternidade, o indeterminado, o nada.
Um ser, substância ou todo, contraditório. Este é o núcleo duro do seu sistema. E porque o início explica o fim, o Autor move-se em círculos concêntricos. Os muitos cadernos insistem, repetem, regressam ao ponto de partida. Não se tratava de uma patológica obsessão, mas de esclarecimentos incansavelmente retomados em relação à matriz do sistema, a qual, a bem dizer, não sofreria modificações de relevo desde os anos iniciais em que foi elaborado. O Verdadeiro Sistema, assim denominado, foi a matriz, tudo o mais são registos de diálogos, textos que pretendia publicar para preparar a edição principal, explicações a ilustres hóspedes do seu amigo Marquês de Voyer, que residia nas proximidades da abadia de Montreuil-Bellay, correspondência... As dificuldades de recepção que encontrava nos seus interlocutores, obrigavam-no a repetir-se. Ele próprio queixa-se disso, e manifesta alguma arrogância intelectual. O que é evidente para ele, deveria sê-lo para todos os outros. A exposição, repetitiva, identifica-se, porém, com uma exposição didáctica, no sentido do mestre que ensina e ilumina, embora por vezes denuncie pouca paciência. Para nós, que expomos o seu sistema, é muito difícil evitarmos a repetição, a ameaça do movimento em círculos vai perseguir-nos seguramente.
Que sistema filosófico é esse? É um sistema aparentemente niilista, relativista nos valores e manifestamente aberto à existência do Nada, que impressionou os seus interlocutores, construído sobre a fórmula contraditória de um Deus simultaneamente positivo e negativo, que parece ter sido bebido nas teologias negativas. No entanto, esse Deus é apenas o mesmo nome com que ele designa uma coisa bem diferente: a Natureza. Neste esforço julgava haver transcendido os conflitos das filosofias e das ideologias políticas, mostrando como ora se afastavam, ora se aproximavam mais daqueles princípios que solucionavam o enigma da Existência. Julgava ele estar na posse da única filosofia genuína e absolutamente metafísica, pois que a teologia cristã não a possuía afinal, nem os deísmos e ateísmos que a esta se opunham. Um sistema de todos os sistemas, um dispositivo inclassificável de uma supra-metafísica, de um meta-discurso.
Num século onde as metafísicas estavam sendo alvo de ataques, do desprezo ou do silêncio de determinadas elites, também ele não as defendeu, tal qual eram, dando-nos, porém, um sistema, um dos mais metafísicos que se conhece, sobre o ser e o não-ser, que parece propor um regresso às origens da filosofia ocidental (todavia, Hegel irá retomá-lo). Crítico das correntes que abandonavam a metafísica, crítico do sensualismo e do empirismo, mas inclusivamente dos mais importantes expoentes das filosofias materialistas do seu século, integrou a metafísica como um “momento” do seu Sistema, isto é não lhe concedeu o plano supremo. Encarar metafisicamente os seres era entendê-los na reunião de um Todo material; porém, o pensar não terminava aí.
Tentou superar as filosofias da natureza em voga no seu tempo. Fique claro que o termo «natureza» exprime aquilo que se quiser, ou aquilo que se descreve conforme um determinado ponto de vista. Não lidavam então, nem ainda lidamos nós, com um referente unívoco, objectivo, exterior, cuja realidade se refecte no pensamento. Encontrava-se em pleno desenvolvimento uma atitude e uma concepção que se caracterizava por separar o pensamento desse Objecto, tratando a natureza como a «Coisa» externa que se podia conhecer e manipular por meio da técnica, subordinando-a aos fins humanos. De modo muito claro dom Deschamps opunha-se a esta fractura e a esta dominação, colocando os homens mais ao serviço da natureza do que o seu contrário. Ou seja, a natureza humana coincidia com a Natureza, e tudo que desta nos apartasse significa infelicidade. A civilização, por conseguinte, era um mal necessário (Melhor dizendo: havia sido), que se deveria e poderia abolir bastando para tanto que os homens optassem. O campo era bem melhor, e um campesinato idealizado projectava-se como um ideal utópico. Uma espécie de ecologia radical.
Distinguiu na especulação filosófica dois andamentos: por um lado, a formulação do conceito de O Todo( Le Tout), a soma de tudo que é realidade sensível e natural, e, por outro, a formulação de um conceito que se apresenta como absolutamente contrário do primeiro: Tudo (Tout), que equivale ao Nada. Este desdobramento do pensar especulativo em dois momentos – tese/antítese- propõe-se como uma supra-metafísica verdadeiramente original e ousada. Estranha aos figurinos da época. Embora não o haja formulado assim, era como se o Autor ultrapassasse os limites da metafísica para se alcandorar a uma ontologia. Uma metafísica do Todo e uma ontologia terminal do Tudo.
Crítico tanto das religiões reveladas como das doutrinas deístas e liberais, integrou todas as crenças, superando-as pela revelação de uma moral sem normas, de um Deus-Existência que equivale ao Nada, de uma Lei (natural) sem leis (humanas), de uma Felicidade gerada pela mais extrema igualdade. A Contradição do Ser conduzia à conclusão da mais cerrada Identidade. Um filósofo que se posicionava, de uma maneira extraordinariamente moderna, para além de todo o Bem e de todo o Mal.
Um dos eixos desta dissertação é demonstrar que dom Deschamps foi profundamente tocado pelas ideias de Espinosa, muito embora sob a forma, então corrente, de um espinosismo esquartejado por citações de segunda e terceira mão, interpretado, contaminado pela sátira, pela calúnia, pelo silêncio temeroso. Não foi Descartes, Malebranche ou Leibniz, Rousseau, d’Holbach, Diderot, ou qualquer outro seu contemporâneo, que lhe permitiu a revelação, a intuição original, nem foi, muito menos, a escolástica dos teólogos. Confrontou-se com quase todos. Opôs-se também a Espinosa ou àquele espinosismo que circulava em França, mas foi do autor da expressão Deus sive natura, do criador da fórmula natura naturans/natura naturata, que ele mais se aproximou. Daí a razão do título que demos a esta dissertação: Dom Deschamps, o filósofo e a sua sombra. Quizémos sugerir, desde logo, a presença denegada, e, por isso, bem mais visível, do genial autor da ÉTICA, filho de judeus portugueses. Negou-o? Recusou-o? Sim, certamente, redigindo até uma importante refutação, mas outro tanto fez com todos os demais, e neste, em particular, o “filho” precisou de “matar o Pai”. E isto não apenas por causa dos perigos que resultavam necessariamente de um parentesco com Espinosa, porque, se assim fosse, não se compreenderia a ousadia do projecto revolucionário de Deschamps. A sua utopia social era bem mais ousada que o projecto político de Espinosa. A acusação de que foi alvo incomodava-o sobretudo por ser acusado de discípulo de um filósofo que ele considerava incongruente, inconsequente, e ser remetido ao mero estatuto de “seguidor”. Não o satisfazia, sobretudo, a falta de uma moral, ou de uma boa moral, em Espinosa, na opinião dele evidentemente. Tomava como correctas a acusação de “ateu” que dirigiam a Espinosa, como, de resto, parecia repudiar veementemente o “ateísmo” de d’Holbach. Porém, apresentou a sua própria teoria como o melhor e mais perfeito “ateísmo esclarecido”.
Nesse tempo abundava uma literatura clandestina, circulavam panfletos e opúsculos sobre e contra o espinosismo, por vezes por meio de um hábil disfarce de concepções que se compreendiam, afinal, bem próximas de Espinosa. Na verdade, nem aqueles que atacavam Benedito, nem muitos daqueles que camufladamente o defendiam, conheceram realmente os textos do “príncipe dos filósofos”, como o qualificou G. Deleuze. Também o próprio Deschamps não se mostra leitor que dominasse todas as obras daquele. Talvez por isso, e porque Deschamps constrói uma dialéctica negativa, é que, julgamos nós, o emérito Professor André Robinet, de Poitiers, descura a influência de Espinosa no pensador beneditino de Poitou, como se pode ler no seu livro Dom Deschamps, le maître des maîtres du soupçon, aliás a melhor obra que se escreveu, paralelamente aos dois Colóquios que desde 1974 se realizaram, em um dos quais nós mesmos participámos (Léger-Marie Deschamps, un philosophe entre lumières et l’oubli”, Paris, L’Harmattan, 2001). Dessa comunicação, mantemos a tese, tal qual a defendemos nessa altura. O grande sistema pelo qual Deschamps se confrontou com as filosofias do seu tempo, o grande sistema contra o qual se confrontou, foi o sistema de Espinosa, ou melhor: aquilo que, em boa verdade, ele tomou injustamente como todo o sistema de Espinosa.
Pretendemos com esta dissertação não apenas trazer ao conhecimento um filósofo da envergadura de dom Deschamps, como, e principalmente, demonstrar que foi um dos mais importantes neo-espinosistas do século dezoito francês, senão o mais congruente e radical. Uma época crucial da civilização europeia, que o Movimento das Luzes marcou indelevelmente.
Esta dissertação é composta por duas partes: na primeira, expoe-se o sistema filosófico de dom Deschamps, estabelecendo paralelos com o sistema de Bento Espinosa, sobretudo, privilegiando a ÉTICA, e com aspectos que julgamos oportunos do pensamento de algumas figuras marcantes do Movimento das Luzes; na segunda parte, procede-se à análise do projecto utópico de dom Deschamps, inserindo-se este projecto em uma reflexão sobre as utopias. O autor desta dissertação está convicto de que as produções utópicas surgem ligadas a crenças mais ou menos poderosas, fluxos ideológicos, motivações profundas e mobilizadoras de elites ou de classes e outros grupos sociais. No contexto histórico do século XVIII e do Movimento das Luzes, a relevância com que se manifestam as produções utópicas (e falamos particularmente da sociedade francesa) surgem como expressão própria da crença no Progresso. O Progresso não se limitava a uma mera esperança, realmente os coevos observavam em muitos lados e de muitas formas manifestações palpáveis de progressos nas técnicas, nas ciências, nos bens de consumo. Sendo possível viver-se melhor, julgavam compreensivelmente que as ideias novas e os novos meios ao dispor dos homens permitiriam reconstruir o mundo e a vida. Os romances de viagens eram lidos com muito agrado; era deles que, em muitos casos, se alimentavam as utopias. Novelas do coração, dramas de família, diários de viagem, narrativas de lugares exóticos, projectos de reforma social, crítica de costumes, de toda esta larga variedade de géneros, se despertavam sentimentos e ideias. Grandes foram nessas áreas Montesquieu, Voltaire, Rousseau, Diderot, Morelly, Mably...
O reconhecimento público do sistema de dom Deschamps e o estudo crítico das suas ideias, contribuem, e já contribuiram, para olharmos para o século das Luzes com outros olhos. Foi, na verdade, um tempo de luzes e sombras, de contrastes e oposições, de dissidências e hostilidades inernas a um movimento que, afinal, nunca foi homogéneo. Já se conhecia bem a atitude “herética” de Rousseau, que se afastou dos Philosophes e de colaborador da Enciclopédia, e por razões bem distintas de outros que dela se afastaram por cautelas e temores. Há poucas décadas atrás surgiu-nos a “emergência intempestiva de dom Deschamps”que vem tornar mais difícil ainda “a determinação de um curso das coisas e de uma história das ideias”. Como compaginar um sistema tão absolutamente especulativo e metafísico com a atitude empirista que parecia triunfar, com o elogio da experimentação, com a grande física newtoniana, com uma ética liberal que vinha anunciar uma era de revoluções? Na verdade, o abade Condillac e o matemático D’Alembert não foram os únicos que entusiasmaram os espíritos progressistas, também o conseguiram Rousseau, o pré-romântico, Diderot, o barão d’Holbach. Quem precisamente terá mais marcado o Movimento terão sido os materialistas, que se esforçavam por construir uma nova ontologia, bem longe dos projectos de D’Alembert. Enfim, o século das Luzes foi também uma das épocas mais fecundas em utopias sociais, projectos revolucionários, liberais uns, anti-liberais outros. O chefe do “Movimento dos Iguais”, G. Babeuf, confessou-se discípulo de Diderot, julgando-o o verdadeiro autor do Code de la nature, de Morelly.
A revelação da obra de dom Deschamps contribuiu, e muito, para modificar o rosto do século dezoito, através de uma “mensagem única da filosofia francesa”.
Deste modo já não não surpreende agora descobrirmos um abade completamente descrente, que advogava um “ateísmo esclarecido”, um moralista generoso absolutamente convicto do seu ideário comunista, para quem a Cultura e a civilização haviam chegado ao seu termo, para cederem o lugar a uma sociedade onde a cultura, o Estado ea antiga moral, eram perfeitamente dispensáveis.
Tout e le Tout desigam o par de opostos que constituem o fundo da existência. Munido desta fórmula dom Deschamps construiu um sistema notável e singular. A bem dizer aquilo que o abade ambicionou, foi fortalecer o materialismo com uma nova ontologia, ou seja, com aqueles “princípios” sem os quais não se poderia deduzir e sustentar uma moral adequada à condição simultaneamente natural e social do homem.
Toda a filosofia de Deschamps explicita e desenvolve uma determinada intuição da existência pura, intuição a partir da qual forja a ideia do negativo e do positivo, que apresenta como sendo as nossas únicas ideias inatas. Bastaria este investimento numa determinada forma de inatismo, para sermos confrontados com um enorme desafio. A evidência primordial, o centro nuclear do sistema, é a intuição da unicidade fundamental da realidade, que ele designa, com os dispositivos retóricos do seu tempo, de “fin fond”.
Pois bem, o desafio que dedidimos enfrentar foi, não apenas apresentar este autor, mas também demonstrar nele a presença tutelar de um outro. A “sombra” a que fazemos referência no título, é realmente o espinosismo.
Denis Diderot, que não ignorava o espinosismo de modo algum, disse de dom Deschamps o seguinte, com aquele grande estilo que lhe era peculiar:
«Um monge chamado Dom Deschmps deu-me a ler uma das obras mais violentas e mais originais que eu conheço.»
Não ignoramos que as metafísicas de sistema sofreram profunda erosão desde o século XVIII, perdendo credibilidade e prestígio na comparação com o progresso científico, mais útil, mais técnico, mais irrefutável (aparentemente). O sistema de dom Deschamps não escaparia à Crítica kantiana, e David Hume não o teria poupado. Contudo, o sistema espinosano não apenas escapou e já beneficiou de várias ressurreições, como marcou de muitos modos o desenvolvimento das filosofias materialistas (ou naturalistas); e não apenas estas, porque sabemos a fortíssima presença de Espinosa no pensamento de G. W. F. Hegel. Dom Deschamps está longe de possuir a envergadura de Espinosa, mas demonstra, por um lado, a influência viva do espinosismo no interior das filosofias materialistas, bem diversas de resto, e, por outro, uma solução para o problema do Ser assaz interessante; tão interessante que ainda hoje é lícito discutir-se se Deschamps foi, ou não, um precursor de uma nova, e mais moderna portanto, dialéctica do Ser.
Vários outros aspectos do pensamento de dom Deschamps poderiam aqui ser relevados, mas iremos fazê-lo no decurso desta dissertação. Refiram-se rapidamente apenas mais dois tópicos: a intuição deveras promissora do que seja a Ideologia (não somente a sua aparência de erro e ilusão, mas, e é isto que é essencial, de efeito necessário de relações sociais de desigualdade e dominação que, deste modo, permanecem ocultas), e a intuição de que a filosofia é também linguagem, ou um puro trabalho sobre a linguagem que exprime adequadamente a existência, derivando daí que a verdade do mundo e da vida se encontre por meio de uma gramática. A fórmula do mundo aloja-se já nas mais básicas locuções do senso-comum: o sim e o não.
Biografia de Deschamps
Considerando que dom Deschamps é um autor quase desconhecido em Portugal, sobretudo pela produção filosófica nacional, achamos adequado inserir uma biografia, embora tal não seja usual em dissertações de doutoramento.
Lèger-Marie Deschamps nasceu em 10 de janeiro de 1716, em Rennes, o quinto de nove irmãos, oriundo de uma família relativamente modesta, que viu a sua situação de algum desafogo ser atingida gravemente por um terrível incêndio. Ingressa muito novo na ordem dos beneditinos, abadia de Saint-Melaine, de Rennes, em 8 de Setembro de 1733, cidade que abandona em 1734. Ignora-se ao certo onde terá recebido formação teológica, provavelmente nos mosteiros de Touraine e de Anjou, até 1743. Em 1745 o seu nome surge incluído no pessoal da abadia de Saint-Julien ; antes, transitara pelo vale do Loire onde se concentravam importantes mosteiros da ordem. Em Tours, colaborou na elaboração de uma história da região de Touraine. A partir de 1762 é destacado para o priorado de Montreuil-Bellay, perto de Saumur, na região de Poitou, nomeado seu procurador. Morre, provavelmente de cirrose, em 19 de abril de 1774.
Declara o próprio que começou a elaborar o seu sistema filosófico a partir dos seus 25 anos, tendo-lhe dedicado os dez anos seguintes. Todavia, tomando como testemunho fidedigno o relato de dom Patert, seu companheiro de abadia e amigo sincero, O Verdadeiro Sistema foi resuluado de um trabalho meditado durante mais de trinta anos, sucessivamente revisto e carescentado com novas explicações. No entanto, conforme declarações do próprio, o escopo principal – as Observations métaphysiques e as Observations morales - estaria terminado no início da década de cinquenta, tendo a obra sofrido posteriormente alterações de pouca monta. O Verdadeiro Sistema é composto de duas partes: As Observações metafísicas, e as Observações morais, todos os demais textos foram redigidos nas duas décadas que levou ainda de vida.
Poucos anos de idade o separavam de Rousseau, Diderot, Helvétius, d’Holbach. Todos alcançaram em vida uma notoriedade que ele jamais alcançou. Apesar disso, dom Deschamps não foi em vida um ilustre desconhecido: correspondeu-se com Helvétius, encontrou-se com Diderot, troucou algumas missivas com Rousseau, Voltaire, d’Alembert.
Orirundo do povo, o monge que nunca conquistou cargos importantes, viveu metade da sua vida no pequeno mosteiro de Montreuil-Bellay, lado a lado com a iséria aflitiva dos camponeses da região. Fisicamente era um dindivíduo corpulento, de temperamento impulsivo. A amaizade que nasceu entre ele e o marquês de Voyer mudou de algum modo o percurso e as ambições. O priemiro encontro verificou-se por volta de 1759. A sua abadia confinava com as vastas terras dos Argenson. O marquês era filho de um ministro da guerra de Luís XV e, por altura do primeiro encontro com Deshamps, já havia feito uma brilhante carreira militar (ilustrou-se na batalha de Fontenoy em 1745, e ascendera aos elevados cargos de governador real de Vincennes, governador militar de Poitou, e outros. O marquês, homem culto e amigo de Philosophes, serviu de intermediário entre Deschamps e alguns dos mais célebres iluministas. O seu temperamento melancólico, que parecia sofrer daquele “aborrecimento” existencial de que se queixaram tantos intelectuais e nobres dessa época, terá seguramente inspirado algumas das páginas mais visionárias do projecto utópico do seu amigo dom Deschamps, que extinguiria de vez as condições da infelicidade. Por outro lado, a fama de libertino não parece haver molestado qualquer escrúpulo moral do monge, o qual, de resto, parece ter apreciado as mulheres e a bebida.
Dom Deschamps fala com compaixão sincera em cartas trocadas com o seu amigo marquês, da brual miséria dos camponesescujas filhas se prostituiam para matar a fome, e que o procuravam constantemente para lhe solicitar auxílio, pedidos que ele remete frequentemente para o marquês. A sua utopia social teve eco na personalidade generosa, e algo atormentada, do grande aristocrata. Um dos seus descendentes haveria de lançar fogo ao próprio castelo no dealbar da Revolução de 1789, e protegeria um dos foragidos do decapitado Movimento dos iguais, o carbonário F. Buonarotti...
Isolado na província, numa minúscula abadia (com apenas dois abades), Deschamps estaria condenado a uma vida completamente provinciana e obscura. Não foi o caso, muito embora se possam atribuir-lhe, por via disso, alguns traços da sua obra e do seu pensamento. Tem sido motivo de perplexidade que Deschamps haja enveredado pela metafísica, com vocação de sistema. Não é de excluir a influência do seu modus vivendi. Em nossa opinião é de relevar tais factos, não apenas pelas dificuldades que encontrou, ou pela independência de que gozou, mas porque devem ser tidos em devida conta para a compreensão de uma forte personalidade que ambicionou afirmar-me num meio relativamente hostil, fora e contra os grandes centros de cultura e de civilização, crítico da Cidade, dos novos costumes, tendendo a considerar frívolos os debates de ideias, e inútil tudo aquilo que respeitamos como Cultura. É legítimo interrogarmo-nos se dom Deschamps não transfigurou o isolamento e as particularidades provincianas da sua vida numa disciplina e orientação de pensamento, austero, ascético, moralizante, numa espécie de ideal de sábio com vocação profética e evangelizadora. Psicologicamente a sua teimada convicção de haver descoberto a Verdade única e universal, prender-se-á de algum modo tanto com a sua formação teológica e as suas meditações solitárias monásticas, como com a imagem que foi forjando de si mesmo nas frequentes estadias no hospitaleiro castelo dos Ormes, propriedade de notabilíssimos condes e marqueses de França, que o escutavam com amizade e admiração. Os seus escritos e os seus comportamentos levam-nos a conceber um indivíduo que, consciente e decididamente se conduziu como um filósofo que transportava o significado último da existência, ao arrepio do filósofo mundano que se populariza então, e que Diderot tão bem soube exprimir. Até neste ponto a influência de Espinosa, que irei demonstrar, ter-se-á manifestado. Espinosa legou para a posteridade essa imagem de sábio desprendido dos bens mundanos. Temos que nos interrogar se nas similitudes com o grande pensador de Haia, filho de judeus portugueses, não se encontraria a presença viva de uma forte, mas bem dissimulada admiração.
Os beneditinos da Congregação de Saint-Maur não eram muito inclinados para metafísicas modernas, na sua formação pesavam sobretudo Platão e Aristóteles, Descartes estava ainda penetrando ao tempo da adolescência de Dom Deschamps, na forma redutora conveniente da escolástica. Espinosa havia sido silenciado pela reforma da ordem encetada por Dom Lami. O afastamento de Espinosa ter-se-á devido com certeza ao opúsculo crítico de Dom Lami, de 1696, intitulado Le nouvel athéisme renversé ou Réfutation du système de Spinoza. É de reter, porque iremos debruçar-nos sobre um texto de Deschamps de refutação do sistema de Espinosa.
Dom Deschamps foi marcado profundamente pela sua amizade com o marquês de Voyer d’Argenson. O castelo deste grande proprietário e grande senhor da corte de Luís XV, situado nas proximidades da abadia de Montreuil-Bellay, constituía um notável centro da vida literária da província. Servira de refúgio ao conde de Argenson, antigo secretário de Estado da Guerra, caído em desgraça em 1757, e amigo dos Philosophes. Diderot e d’Alembert dedicaram-lhe a Enciclopédia. A biblioteca do castelo era famosa. A mansão da ilustre família de admirados intelectuais, era apelidada como Academia dos Ormes.
Não foi com o velho conde que Deschamps estabeleceu amizade, foi com o filho dele, Marc-René, marquês de Voyer d’Argenson, distinto oficial militar de carreira que, até 1762, se havia ilustrado em diversas campanhas militares; tendo alcançado o comando militar da Alta-Alsácia e o cargo de governador de Vincennes é citado com elogios nas Memórias de Frederico da Prússia. Homem de grande cultura, como, de resto, era tradição na família: seu pai e seu tio haviam legado aos contemporâneos escritos de fina inteligência, inclusivamente sobre Portugal. René, ferido numa campanha militar, possuía uma personalidade inquieta e angustiada que dir-se-ia neurótica, e que reflectia bem as perturbações da grande nobreza da sua época, tocado profundamente pela desgraça política de seu pai, pela atmosfera de revolta e ressentimento em que fora educado. É legítimo admitir que o projecto deschampsiano utópico de uma sociedade feliz procurava solucionar também os conflitos da personalidade do controverso marquês, alvo de maldizeres e calúnias lançadas contra ela a partir de Paris, com origem nas invejas de uma nobreza decadente e corrupta.
A correspondência de Deschamps para o marquês inicia-se em 1763 e por ela vemos a sincera amizade que ligava os dois homens. E isto é grandemente significativo, pois que a imagem que fazemos do beneditino, homem grande e obeso, é a de um indivíduo tenaz, ousado, corajoso, capaz de ímpetos apaixonados, inclinado a comportamentos que roçavam a violência, implacável com os seus inimigos.
Montreuil-Bellay situava-se na periferia de uma região na qual o mercado se expandia, e onde surgiam as primeiras manufacturas. Os contrastes geográficos e económicos acentuavam-se rapidamente. Os camponeses de Montreuil-Bellay encontravam-se extremamente empobrecidos, a correspondência de Dom Deschamps relata casos de grande miséria. Uma ambiência social que influencia enormemente a consciência do beneditino. De um lado o vale do Loire, rico em belas vinhas, do outro as matas de Mauges, com uma agricultura de subsistência. Por fim Montreuil que entra em decadência, perdendo predominância com relação a Mauges, lentamente despovoada, desprovida de qualquer núcleo burguês, onde vai morrendo a anterior actividade industrial ligeira (curtumes, entre outras) a jusante do artesanato rural. O próprio comércio de vinhos e aguardentes que percorria o rio que a atravessava, troca Montreuil por Saumur. A população rural perde a única escola para os seus filhos, e não possui meios para pagar os impostos, os rapazes emigram, as raparigas prostituem-se ou demandam os conventos. Bandos de vagabundos pilham as redondezas. São estas misérias que chocam profundamente o coração e o espírito de Dom Deschamps. Não se verifica aqui uma ascensão do capitalismo, com o cortejo das suas misérias, mas, antes, é a burguesia nascente que abandona Montreuil. Estes factos e uma leitura atenta da utopia de Dom Deschamps proíbem-nos interpretações redutoras, do género de que o Autor se opunha ao desenvolvimento do capitalismo, a favor de um desenvolvimento sustentado nas estruturas senhoriais ou feudais. A utopia de Deschamps é uma utopia camponesa, que se compreende melhor à luz desta geografia social, afligida por irresolúveis contradições.
Bibliografia
A explanação e análise das obras de dom Deschamps justificam-se, não só pelo facto do pouco conhecimento e estudo de que ele goza entre nós, como pela razão de que o acervo completo das suas obras somente foi publicado em França há poucos anos atrás. As obras de dom Deschamps vêm identificadas nas notas reunidas no termo da dissertação, com as seguintes siglas:
O .Ph. : œuvres Philosophiques, introduction, édition critique et annotation par Bernard Delhaume, Avant-Propos de André Robinet, 2 tomos, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin,1993. Constitui a primeira edição completa das suas obras.
La Voix : La Voix de la Raison contre la raison du temps, et particulièrement contre celle de l’auteur du Système de la Nature, Par Demandes et Par Réponses. Bruxelas, Georges Frick, 1770.
Em 1863 um académico de nome Émile Beaussire, professor da Faculdade de Letras de Poitiers, descobriu e exumou Le Vrai Système, obra composta por diversos cadernos, cuja autoria se atribuía até então a dom Hugues Mazet, conservador da biblioteca municipal, em 1792, quando, na verdade, este fora somente o copista, que salvou a obra do mestre e mentor de uma minúscula seita da qual ele, dom Mazet, era membro. Esta copia é composta de três tomos, sob o título de La Vérité, ou le Vrai Système, datada de 1775, sem nome do autor. O tomo I, primeiro caderno, é composto pelos textos intitulados « Le Mot de l’énigme métaphysique et morale », e, no segundo caderno, « Précis en quatre thèses du mot de l’énigme métaphysique et morale », e as « Additions »; o tomo II, ou 3º caderno, contem « Le Mot de l’énigme métaphysique et morale, appliqué à la théologie et à la philosophie du temps, par demandes et par réponses ». Os dois volumes identificados por Beaussire constituíam na realidade apenas uma parte da obra; a maior parte do que faltava foi descoberta por uma jovem investigadora russa, quarenta e três anos mais tarde, Elena D. Zajceva (faleceu em Moscovo em 1967. A sua tradução do Vrai Système, revista e anotada por L.S.Gordon, foi somente publicada em 1973, em Moscovo, por Boguslavski, Gordon e Porchenev) – vários cadernos contendo as Observations métaphysiques, Observations Morales, Le Mot de l’énigme métaphysique et morale, Préface, Refléxions métaphysiques préliminaires, Chaîne des vérités dévelopées, Précis en quatre thèses du mot de l’énigme métaphysique et morale.
Le Vrai Système compõe-se de seis cadernos.
De acordo com as pesquisas do Professor B. Delhaume, podemos ficar certos de que Deschamps teria já constituído Le Vrai Système aos 45 anos de idade. Depois disso contactou com várias personalidades de relevo, como já fizémos referência, por intermédio do marquês de Voyer, com a intenção de tactear as possibilidades de publicação, sem sucesso porém.
Apenas uma parte da correspondência está publicada nas Oeuvres Philosophiques. O Professor da Universidade de Poitiers, Bernard Delhaume, já anunciou a publicação de toda a correspondência para breve.
O Prefácio de O Verdadeiro Sistema, foi corrigido depois de 1770, pois regista uma crítica ao Système de la Nature, de d’Holbach, publicado em 1770, sob o nome de Mirabaud.
Em 1771 uma descendente dos Argenson, descobriu no castelo dos Ormes, uma obra intitulada La vérité tirée du fond du puits, que veio a confirmar-se rapidamente ser de dom Deschamps, que se encontra publicada nas Obras Filosóficas. B. Delhaume mostra-se convencido de que este texto representa a forma prospectiva pela qual Deschamps desejava sondar os seus eventuais leitores, para, em seguida, transmitir a doutrina de O Verdadeiro Sistema.
Por conseguinte, dom Deschamps pôde publicar apenas dois opúsculos, mas jamais O Verdadeiro Sistema, o qual chegou ao conhecimento de um público muito restrito somente em plena segunda metade do século XIX. Esta edição, a edição de E. Beaussire, é fiel aos manuscritos, mas a introdução que deles faz é extremamente crítica. E. Beaussire era um académico profundamente anti-hegeliano, e viu no sistema de dom Deschamps um “antecedente” francês do hegelianismo, um precursor da dialéctica do filósofo de Berlim, assunto a que iremos voltar com mais demora. Foi, portanto, o hegelianismo que encontra e que o incomoda, e não Espinosa ou o espinosismo.
Dom Deschamps redigiu um texto com o qual pretendeu afastar as suspeições sobre um eventual compromisso com o espinosismo; na verdade fez quatro versões dessa Réfutation courte et simple du système de Spinoza, que enviou ao seu amigo marquês entre Março e Julho de 1766:«Songez que c’est à vous que je dois l’idée de cette Réfutation, et que cette idée est la lus exquise qui pût m’être suggérée pour faire tomber les armes des mains de tout croyant, et pour donner aux mécréants ce qui leur manquait, la vraie raison de l’être, ou, plutôt, pour les préparer à cette raison.»
Rousseau, d’Alembert e outros mais haviam encontrado o espinosismo nas peças do Système que Deschamps lhes havia mostrado. A carta parece indicar que o próprio marquês necessitava dessa refutação para aderir com mais confiança às ideias do monge. Refutar Espinosa, ou sjea, o espinosismo, constituía para Deschamps, a partir de certa altura (anos 66?) uma atitude indispensável e urgente para seduzir de todo o seu amigo, os ilustres convivas que se hospedavam regularmente no castelo dos Ormes, e desbravar caminho para a publicação da obra de uma vida.
Advertência
Optámos por dividir a nossa exposição em duas partes. Na Parte I expomos a ontologia do sistema, na Parte II procedemos à análise do seu projecto de uma utopia social. Na medida em que o sistema é fechado, circular e consequente, não pudémos evitar realizar algumas incursões nas ideias expostas na Parte II. Um dos eixos desta dissertação – a presença tutelar do espinosismo- é explicitada principalmente na Parte I. O mesmo sucede com a segunda intenção que foi colocar à reflexão o problema do(s) materialismo(s) no século XVIII, século das Luzes, a apartir das teses materialistas de dom Deschamps. Na medida em que os mais importantes materialistas da época não ignoraram de modo algum o monismo espinosista, que até teriam feito inflectir o espinosismo em direcção a um materialismo (os “espinosistas modernos”, na famosa qualificação de Diderot) conforme o julgam alguns intérpretes, julgamos nós que se justifica a relativamente extensa análise da heterogeneidade de tal corrente filosófica, sem subtrairmos a hipótese de existir nela um denominador comum.
O Verdadeiro Sistema
Parte I
Capítulo 1 – A Existência pura
Introdução
Numa época em que a vanguarda do pensamento e da cultura se orientava para a experiência, para a observação dos fenómenos naturais, para as ciências particulares, a linguagem e o corpo das ideias de dom Deschamps apresenta-se como um acontecimento aparentemente retrógrado. Que novidade poderia oferecer um sistema declaradamente fechado e definitivo, pelo qual tudo ficava dito e depois do qual nada mais haveria para investigar?
No entanto, iremos verificar que o seu sistema não fora o último nem o único na década de sessenta do século XVIII, embora haja sido o mais singular e ousado.
É entre os Philosophes que Deschamps encontrará resistências incontornáveis. O seu conceito de natureza, por exemplo, apresenta-se demasiado abstracto, generalista, quase a contra-corrente, aos olhos dos seus contemporâneos, que já davam passos na análise empírica e experimental. As especulações de Deschamps não suscitam interesse num d’Alembert por exemplo, e Voltaire manifesta uma recepção algo irónica e desprendida.
Dom Deschamps foi um metafísico de sistema. Buscou um princípio, ou fundamento, e dele deduziu uma série lógica de consequências.
O corpo principal das suas teses constitui o que ele intitulou La Vérité, ou Le Vrai Système. O O programa anuncia-se desde logo no título do primeiro caderno: a revelação de Le Mot de l’Énigme Métaphysique et Morale.
Devemos, por conseguinte, iniciar a nossa exposição pela definição primeira, pelo axioma fundamental na organização do sistema.
Os termos designam-se por O Todo (Le Tout) e Tudo (Tout).
Tout e Le Tout são os princípios do Ser e do pensar. Par de opostos, compõem o plano metafísico da noção nuclear de Existência ( Existence). Le Tout é o Uno, a Unidade, ser universal que une os entes e as coisas; é composto por “partes”, isto é, particularidades finitas que ele classifica como nuances ou modificações do todo. É o domínio da pura relatividade do devir. É o reino da relação entre partes. Pelo contrário, Tout é a negação das relações e, portanto, do devir. É assim que ele o classifica de Existência “em si”. Sem a negação não haveria a firmação de Le Tout, que é a Natureza.
Para Deschamps existe apenas uma e somente uma substância: a Existência. Pode ser apreendida sob o seu aspecto positivo. que é Le Tout, ou sob a seu aspecto negativo, a que ele chama Tout. Muito embora ele fale em dois seres, noutras fala num só. Porque então critica Espinosa, como iremos verificar?
Escreve Espinosa: « Entendo por substância o que existe em si e é concebido por si, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa pelo qual deva ser formado.»
Numa primeira abordagem, esta definição não é respeitada por dom Deschamps: «Tout, que de modo nenhum fala de partes, existe e é inseparável de Le Tout universal, que fala de partes, e do qual ele é a afirmação e a negação simultaneamente. Tout e Le Tout são os dois nomes do enigma da Existência, nomes que o grito da verdade distinguiu colocando-as na nossa linguagem.»
Há que optar: ou a substância, em rigor, apenas se aplica à Existência, ou ele admite duas.
«entendo por Tout, a existência em si, a existência por ela mesma, isto é a existência considerada como fazendo um só e mesmo ser que não se distingue mais então dos seres, como sendo o ser único, e, consequentemente, sem relação, ou, como já o disse, sem existência por meio de outra coisa senão por ela mesma. »
A definição de Tout corresponde, nestes termos, à definição clássica e rigorosa de substância, ou causa sui: aquilo que é em-si, sem necessitar de outra coisa (ou substância) para existir. Neste sentido, equivale à definição filosófica e teológica de Deus. Contudo, o problema situa-se entre Descartes e Espinosa: o primeiro, como se sabe, recorre à ambiguidade, isto é, à concepção “operatória” de duas, se não mesmo de três, substâncias: res cogitans, res extensa, e a substância divina, dotada esta de atributos especiais. Espinosa, garantidamente contra Descartes, afirma a unicidade da substância. Uma única substância, porém, dotada de dois atributos essenciais, entre outros: Pensamento e Extensão.
Parece, por conseguinte, que a única substância, para Deschamps, é a Existência, que ele designa também por Tout : “Tout, ou o ser único”
Entretanto, Le Tout é o “princípio », como ele escreve : “De Le Tout, que é o princípio”
Impõe-se, portanto, uma definição adequada e uma interpretação que sobreleve outras. Dom Deschamps mostra conhecer muito bem a problemática que envolve a definição de Substância. Malebranche era bem conhecido na ordem dos beneditinos, o cartesianismo seguramente, Espinosa, em segunda mão pelo menos, ou seja, já refutado. À sua maneira, com originalidade, encontra uma nova solução: a tese dos “dois contrários”, dos “dois últimos extremos possíveis”. A tese dos “dois pontos de vista”. O que seria para Espinosa a natura naturata, é para ele Le Tout. Sendo contrários entre si, Le Tout e Tout, tal solução “escapa” às “dificuldades” de Espinosa. Julgava ele.
Que entende Espinosa por substância?
«Entendo por substância o que existe em si e é concebido por si, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa pelo qual deva ser formado.»
E por atributo?
«Entendo por atributo o que o entendimento percebe da substância como constituindo a essência dela.»
Não existe qualquer ambiguidade na exposição e na argumentação de Espinosa: Não há duas substâncias com o mesmo atributo; não há duas ou mais substâncias com atributos diferentes; um ser absolutamente infinito deve ser necessariamente definido como um ser que é constituído por uma infinidade de atributos, cada um dos quais exprime determinada essência eterna e infinita.
A nosso ver, a inspiração mais fecunda vem do espinosismo. Apesar da fórmula dos contrários, assumida como eixo fundamental do sistema.
Exposta assim resumidamente a questão essencial, isto é, o problema da substância, erguem-se numerosas interrogações. Deschamps atacou-as de frente, fosse por meio de interlocutores, fosse por um notável esforço de exposição argumentativa. O Verdadeiro Sistema contém as teses e os seus desenvolvimentos e explicações, mas outros longos textos mais tardios apontam para a mesma direcção, sem quebras e sem revisões de fundo: definir o conceito de totalidade e deduzir as consequências. Às vezes com muita repetição, quase em círculo, pois que, de certo modo, um sistema assim é comparável a um círculo.
Os cadernos principais que consubstanciam o corpo e o cerne das suas ideias, intitulam-se La Vérité, ou Le Vrai Système, o Tomo I – Le Mot de l’énigme métaphysique et morale ; Epître à mês semblables les hommes ; Préface; Réflexions métaphysiques préliminaires ; Chaîne des vérités développées ; Précis en quatre thèses du mot de l’énigme métaphysique et morale ; Additions à l’appui de ce qui précède. O Tomo II – Le Mot de l’énigme métaphysique et moarale, appliqué à la théologie et à la philosophie du temps, par demandes et par réponses. O Tomo III –Observations morales . O Tomo IV – Observations métaphysiques. O Tomo V – Tentatives sur quesques-uns de nos philosophes, au sujet de la Vérité.
Deste modo, o essencial está contido nas Observações metafísicas e nas Observações morais, sendo que estas contêm, sobretudo, a solução utópica dos problemas existenciais dos homens.
No Prefácio, Deschamps alerta, desde logo, para que não o confundam com as “nossas semi-luzes filosóficas, tão justamente encaradas como perigosas, (porque) destroem sem estabelecer”, enquanto que a verdade do seu sistema “estabelece incontestavelmente”.
Não basta a crítica destrutiva, pois esta é o que faz a “filosofia reinante”, isto é, a filosofia das luzes na sua vertente mais violentamente anticlerical, que ameaça conduzir-nos para uma “revolução”, sempre a evitar como tão perigosa como inútil, pois “não impedirá o estado de leis divinas e humanas de subsistir, e o mal moral, do qual este estado é a causa, de existir com a mesma força, embora sob outros disfarces”
O ateismo só tem de comum com O Verdadeiro Sistema, o facto de rejeitarem ambos a religião, porém existe uma extrema diferença:” é que O Verdadeiro Sistema ao negar a moral do teísmo afirma a metafísica, donde extrai uma moral, enquanto que o ateísmo, porque não conhece princípio algum, nega um e outra, e deixa-nos com uma moral arbitrária”.
Porque a metafísica tem por objecto considerar os seres “em grande, em geral, em total; considerá-los naquilo que eles possuem todos de rigorosamente comum”.
Por conseguinte, Deschamps é rigorosamente um metafísico de sistema, e procede em conformidade: buscou e encontrou um fundamento, ou de acordo com as suas palavras: o fin fond da existência.
Na medida em que Deschamps organizou o seu sistema numa intensa atmosfera espinosista, achamos adequado descrever essa atmosfera. Afinal de contas, aquilo que pretendemos demonstrar é precisamente a presença do espinosismo em dom Deschamps, muito embora não exclusivamente.
1. 1. O espinosismo no Século XVIII
Ninguém escapa incólume a mais de cinquenta anos de censuras, torções, perseguição dos seus escritos, aleivosias sobre a sua vida e personalidade. Nada adiantaríamos de novo se disséssemos que Espinosa sofreu de tudo em vida e depois de morto. Muito poucos ombreiam com ele nessas histórias negras de que é feita a história das ideias.
Quando dom Deschamps declara haver terminado o seu sistema, à entrada da década de sessenta, já o próprio cartesianismo claudicava como fonte inspiradora dos seus contemporâneos. Sem esta crise das metafísicas, é mais difícil interpretar as ideias de dom Deschamps.
Os mais célebres Philosophes, Voltaire, d’Alembert, Diderot, d’Holbach, haviam lido Espinosa. Todos eles reagiram, de uma maneira ou doutra, ao ousado sistema do filho de portugueses.
O espinosismo, mal lido e compreendido o mais das vezes, é instrumentalizado na luta contra o pensamento mais conservador, e banido por este. Manuscritos clandestinos, bibliotecas discretas, reuniões conspirativas contra a Igreja instalada no poder, tudo serve, e o espinosismo é útil para o mais cerrado combate ao clericalismo.
«Espinosista, s.m. (Gram.), partidário da filosofia de Espinosa. Convém não confundir os espinosistas antigos com os espinosistas modernos. O princípio geral destes, é que a matéria é sensível, o que eles demonstram pelo desenvolvimento do ovo, corpo inerte, que, unicamente devido ao calor graduado, passa ao estado de ser sensível e vivo, e pelo crescimento de tudo que é animal que, no seu princípio, é apenas um ponto, e que, pela assimilação nutritiva das plantas, numa palavra, de todas as substâncias que servem à nutrição, torna-se um grande corpo sensível e vivo em um grande espaço. Desse facto concluem que somente existe a matéria,e que ela basta para tudo explicar; no resto, seguem o antigo espinosismo em todas as suas concequências.»
Diderot, autor desta citação, por um lado aceita sem reservas a ÉTICA, nas suas consequências, que são de monta, e inseparáveis dos postulados, axiomas e definições, por outro, satiriza um certo espinosismo no Jacques, le Fataliste. Terá lido na íntegra a ÉTICA, e no original? Os especialistas duvidam profundamente. Julgamos nós que Diderot satiriza, ou aponta-lhe os excessos, o fatalismo de d’Holbach, isto é, o modo como este utiliza a herança espinosista. Mas esta sátira parece claudicar, nas últimas palavras sentidas e elogiosas proferidas por Jacques relativamente ao seu capitão fatalista...O melhor seria, segundo Diderot, actualizar Espinosa com um novo vitalismo. O exemplo do “ovo”, que exprime o problema científico capital, é elucidativo : trata-se da questão essencial, isto é, da criação, do aparecimento da vida, da emergência do novo, qualitativamente novo, da capacidade criadoramente fecunda da natureza. E isto remete-nos para as apregoadas “dificuldades” do sistema de Espinosa, aparentes ou reais. Escutam-se aqui os ecos da famosa crítica de Pierre Bayle, enviesada, ao sistema de Espinosa: depois de haver caracterizado Espinosa como “um ateu de sistema”, considera que não é nessária uma longa e complicada disputa com ele, porque basta “refutar a proposição que está na base do seu sistema...:saber que Deus é a única substância que existe no universo, e que todas as outras são modificações desta substância»,« uma suposição tão estranha, que ela desloca a maior parte das noções comuns que servem de regra nas discussões filosóficas;...é a mais monstruosa hipótese que se possa imaginar, a mais absurda e a mais diametralmente oposta às noções mais evidentes do nosso espírito».
Não é um dado adquirido que Bayle haja lido Espinosa na totalidade, e sobram dúvidas sobre a interpretação de algumas das suas teses. Retomaremos o célebre artigo de P. Bayle em altura que nos parece mais oportuna.
A ideia, por exemplo, de que a filosofia de Espinosa se assemelhava ao pensamento oriental, ou do extremo oriente, seguira o seu caminho sem ninguém que se opusesse, o que é verdadeiramente surpreendente e coloca a um historiador da filosofia graves suspeitas sobre os modos como se fabricam os legados e os putativos herdeiros.
Desde Bayle e Malebranche, a Fénelon e ao Padre Tournemine, mestre de Voltaire. Descobrir coincidências genéricas é uma coisa, afirmar filiações é outra bem diversa.
À mistura com o pensamento científico que tenta abrir caminho, sopram os ventos a favor de modas, de mistérios, de superstições eruditas, de hilozoísmos antigos, de Giordano Bruno e Campanella restaurados, de filosofias orientais, de Cabala. Na profusão dos escritos mais medíocres ou mais ilustrados, Espinosa transforma-se numa espécie de prêt-à-porter, que, quanto mais se utiliza, mais se degrada. E sempre Bayle: a classificação da filosofia de Espinosa como puro panteísmo. Ate hoje, porque ainda agora lemos e escutamos tal identificação, ou para denegrir, ou para emprestar autoridade a novas utopias, ou simplesmente porque a tendência para reduzir e “compactar” um pensamento complexo e um sistema em uma fórmula cómoda, embora inútil e vazia, é recorrente.
Separar as águas, distinguir os panteísmos renascentistas e orientais, do materialismo e, neste pé, recuperar Espinosa, foi trabalho duro, mas minoritário, de alguns espinosistas do século dezoito. Trabalho nem sempre isento de assimilações apressadas que torciam convenientemente o pensamento espinosano. É justo, no entanto, reconhecer que os mais importantes corifeus quer do materialismo, quer do naturalismo, realizaram esforços notáveis para conservarem uma relação honesta com o espinosismo, ou com aquilo que tomaram como sendo as verdadeiras teses de Espinosa, rompendo com algumas delas sempre que as considerassem desadequadas aos novos contextos. O materialismo (que é, aliás, bem diverso) do século dezoito francês não é um puro espinosismo. O materialismo construiu os seus próprios caminhos.
Introduzir o movimento na matéria, por exemplo, eis a tarefa a que se dedicaram Diderot, d’Holbach, Robinet, naturalistas vários, deístas, panteístas, ateus. Eram os passos hesitantes das ciências da vida, lentamente sacudindo o lastro dos naturalismos e dos panteísmos.
O alvo dos ataques de boa parte dos textos publicados nesses anos, em edições anónimas ou com falsos nomes, é o antropomorfismo, indo-se buscar apoio na crítica da concepção antropomórfica de Deus, a Espinosa. No entanto, de Espinosa há pouco, e o que se faz tomar como espinsosismo é contrário à atitude espinosana : este respeitava a Bíblia, aqueles escritos não. São usuais as caricaturas de um Deus « ciumento » e « colérico », insiste-se na convicção de que a natureza não é imperfeita, pois que tudo decorre da Necessidade interna que ela contém, que Deus é Natureza, e esta é a soma, ou o conjunto, de todos os seres, de todas as propriedades e de todas as energias.
Certamente que Espinosa jamais escreveu em parte alguma que Deus equivalia à pura materialidade, e determinadas teses adulteravam gravemente o seu pensamento, revelando uma falta de cuidado, que se explica menos pela displicência e superficialidade, e mais pela intenção de forçar o caminho às ideias materialistas, mesmo que inconsistentes e contaminadas por panteísmos. Também nos parece evidente que o propósito principal, se não mesmo o único, destes escritos, era atacar a religião oficial e a Igreja. É o anti-clericalismo que está em marcha. O espinosismo, ou melhor, uma versão fraca e popular do espinosismo, foi utilizada como uma eficaz ferramenta ideológica e política pelos mais diferentes quadrantes ideológicos.
Queremos insistir neste ponto: as entorses que o sistema de Espinosa sofreu, e as críticas de que foi alvo, não se resumem àqueles, e foram muitos, que o recusaram e combateram, mas igualmente procederam assim aqueles que, em certos aspectos, até por ele se deixaram influenciar. Neste vasto grupo havemos de incluir o próprio Malebranche, que foi um dos maître-à-penser, e Pierre Bayle evidentemente. A tese Deus sive natura, propiciava as mais diversas interpretações. Para Malebranche, por exemplo, e isto foi muito significativo e carregado de consequências, a perfeição divina mostrava-se inconciliável com a expressão de Espinosa: Deus havia de ser um ente diferente e superior ao mundo por ele criado. Todas estas interrogações que temos vindo aqui a mencionar, estão presentes nos textos de Dom Deschamps. Ele mostra conhecê-las perfeitamente.
Pierre Bayle escreveu no Dicionário ( art. “Spinoza”): « Assim, no sistema de Espinosa, todos aqueles que dizem : Os Alemães mataram dez mil Turcos, falam mal e falsamente, a menos que eles queiram dizer que Deus modificado em Alemães tenha morto Deus modificado em dez mil Turcos ; e é assim que todas as frases pelas quais se exprime o que fazem os homens uns contra os outros só podem ter este sentido verdadeiro : Deus odeia-se a si mesmo, pede graças a si mesmo, e a si mesmo se recusa ; persegue-se, mata-se, come-se, caluinia-se, levanta-se sobre o cadafalso»”
Esta incompreensão de Deus sive natura, gravou-se indelevelmente nos vindouros. Espinosa foi convertido e reconvertido num panteísta. E num ateu puro e duro. Porém, quando falamos de Bayle não devemos esquecer o seu método expositivo e o seu estilo irónico, ou seja, não é inusitado admitir que ele, nesta frase, transmitia adequadamente o pensamento de Espinosa, através de uma hábil caricatura e dissimulação: a crítica espinosana do antropomorfismo não é veiculada?
A incompreensão revelada por Fénelon, por exemplo, que apenas conseguiu ver em Espinosa uma identificação de Deus com a totalidade das criaturas, é tanto mais curiosa quanto ele próprio acaba por argumentar no terreno construído pelo próprio Espinosa: Deus ou o Ser absoluto, infinito, não poderia ser composto de partes; o infinito de que fala, ou o “infinito infinitamente infinito” de Malebranche, corresponde, afinal, à substância em Espinosa e à anterioridade da substância relativamente às suas afecções...
A questão da eternidade dos modos, por um lado, e, por outro, da sua existência temporal, é outra face de uma controvérsia que gerou muitas confusões. A confusão entre Deus e as coisas não está presente de modo algum nas teses da ÉTICA, e todo o génio filosófico de Espinosa foi precisamente no sentido de evitá-la. De outro modo não faria qualquer sentido a figuração negativa que Espinosa construiu do indivíduo alienado e esquecido. Ou seja, Deus é a totalidade infinita, a ordem necessária e imanente, e não é, de modo algum, este ou aquele indivíduo, impelido pelo seu conatus a perseverar na existência particular, muitas vzes de modo egocêntrico, iludido pelo seu valor real, iludido pelo seu verdadeiro papel na ordem do mundo, ou submetido, inerme, resignado e infeliz.
Aquilo que a teologia adversária não queria, não poderia, aceitar, era a tese espinosana da necessidade. A todo o custo, impunha-se para ela a inclusão do livre-arbítrio do Criador e, por tabela, a distinção das criaturas relativamente ao Criador. É aqui que reside, em nosso ver, o carácter irredutível das posições. Ora, neste ponto, não há dúvidas : Espinosa orientou grande parte do seu esforço de argumentação contra as crenças no livre-arbítrio. O que surpreende e choca muitos é precisamente a arquitectura determinista, como usualmente se diz, do seu sistema. Uma natureza autoprodutiva, autoregulada, alheia aos valores, que dispensa sacerdotes para a descoberta da verdade, embora se tolerem para as questões de fé.
Foi também por estes caminhos de receio e de ortodoxia, de recusa ou incompreensão, que se estabeleceu e consolidou a fama de um Espinosa ateu, que realmente não o foi no rigor da terminologia. Esta má fama perturbou o próprio Dom Deschamps, que considera Espinosa como tal, e se esforça por livrar-se da mesma acusação. Em boa verdade, fica-se com a convicção de que, dos dois, era Deschamps realmente o ateu.
Pierre Bayle caracterizou, desde logo, Espinosa como « um ateu de sistema ». Situou a crítica na proposição da substância única, que se encontra na base do seu sistema, e passou em seguida a refutá-la. Todos os contornos desta atitude perduraram quase intactos até aos textos de refutação que Dom Deschamps irá redigir décadas mais tarde. É uma autêntica tradição, uma herança. Não é a obra genuína e íntegra do seu autor, não é o tratamento analítico e progressivo dos seus textos, mesmo que em tradução fiável, é uma interpretação, que hoje não recomendaríamos a ninguém, que perdura como uma instituição, uma verdade. Não é Espinosa que circula, é uma outra versão.
P. Bayle expõe deste modo o pensamento de Espinosa : «saber que Deus é a única substância que existe no universo, e que todos os outros seres são modificações desta substância.» Corresponde quase literalmente àquilo que Deschamps irá transcrever. E Bayle conclui: «uma suposição tão estranha, que subverte a maior parte das noções comuns que servem de regra nas discussões filosóficas; ...é a mais monstruosa hipótese que se possa imaginar, a mais absurda e a mais diametralmente oposta às noções mais evidentes do nosso espírito.»
O que está escrito, ficou escrito, a sua crítica e fez-se verdade de escola. Contudo, iríamos mal, se acreditássemos nas aparências do estilo. Pierre Bayle aperfeiçoou um estilo tão hábil que iria ser retomado vezes sem conta pelos bons espíritos do século XVIII. Se o século dezoito tem alguma particularidade em atitudes de interpretação, ela é, seguramente, este estilo fino, penetrante e irónico que Voltaire e Diderot souberam aperfeiçoar a um nível insuperado. Quem ler apressadamente toma a crítica como uma refutação cerrada sem margem para compromissos, quando o que se passa na verdade, é uma hábil estratégia de disssimulação. Os contemporâneos haveriam de saber ler entre linhas, interpretar o elogio sob o disfarce da ironia aparentemente implacável, a verdade sob o manto da retórica. Os tempos iam difíceis, e foram-se agravando adentro do século. Cada um fazia o seu serviço: os chefes da Igreja, os autores de panfletos anónimos, os espiões, os esbirros. Notar-se-á esse estilo, feito de cuidados e alçapões, nos artigos da Enciclopédia, particularmente nesse mestre que foi Diderot. O importante era sacudir a eventual acusação de ateísmo. São as palavras de Bayle, as sucessivas repetições das suas palavras, que atormentam dom Deschamps. Não é que ele receie, pelo menos nas páginas que nunca publicou, defender o ateísmo, mas não deseja na sua consciência “dar o flanco” às críticas consolidadas. Ele próprio admite a consistência destas. Ele próprio se esforçou por “corrigir” o sistema de Espinosa. São estas razões da razão pública e privada, que julgamos dever merecer a nossa atenção. Tentaremos estabelecer, até ao termo desta dissertação, que dom Deschamps se apresenta tal qual ele se confessa: um profeta iluminado por um “ateísmo esclarecido”, e que o seu sistema somente se compreende completamente à luz do espinosismo. Isto é, a metafísica de dom Deschamps, em pleno século, não se confronta com mais nenhuma outra metafísica, se não com a sombra de Espinosa. Forjaram-se outras e novas metafísicas, envolvidas por um naturalismo deísta, como a de Jean-Baptiste Robinet por exemplo (onde, aliás, se perfilam sinais da presença de espinosismo), mas aquela que poderia ser, do mesmo modo, classificada como a “mais monstruosa hipótese” e a mais absurda, seria a de dom Deschamps, se tivesse sido publicada na íntegra. Ele tinha consciência disso, e verificou-o nos encontros que teve com os mais diversos interlocutores. No entanto, não são de somenos importância as suas diferenças com as ideias expostas pelo próprio Espinosa.
Aquilo que o célebre P. Bayle ensinou a quem o quis entender, foi um método de raciocinar sobre ideias próprias e ideias de outros. O seu mérito não reside apenas nas informações que prestou aos iniciados, mas, sobretudo, na atitude pedagógica exigente de acreditarmos somente naquilo que a razão demonstra e esclarece. Se houvesse que escolher um pioneiro das Luzes francesas, escolhê-lo-íamos. Foi este o legado que Deschamps recolheu, e não os insultos, os gracejos, alguma ironia fácil, em que outros, bem mais do que Bayle, se comprazeram. Pensar no interior do sistema a refutar, não de fora, detectar-lhe as fragilidades, ambiguidades, contradições, eis o essencial. E importa considerar que Deschamps não foi seguidor, de modo algum do nominalismo de P. Bayle. Talvez por isso, pôde assimilar melhor a ontologia de Espinosa. Uma determinada forma de Bayle ser materialista, à maneira de Gassendi, restringia-lhe a ideia de extensão à realidade divisível, bem diferente da extensão abstracta e indivisível de que fala Espinosa, que categoriza esta como um atributo da substância infinita. Iremos verificar que efeitos produzirá esta leitura redutora sobre as soluções de Deschamps, originais mas não tanto como ele julga. Para Bayle, o sistema de Espinosa encerra um problema da unicidade da substância; daí deriva a sua objecção segundo a qual Espinosa tenta evitar a ideia refutável de um ser composto, substituindo a palavra “parte” pela palavra “modificação”. Estas aparentes fugas e contradições de Espinosa, serão encaradas por Deschamps como reais, o qual utiliza ambos os termos: partes e modificações, mas aplicáveis apenas ao todo físico e material, destacando, por isso mesmo, um outro todo “absolutamente absoluto”: o infinito. Ao julgar que refuta Espinosa e, ao mesmo tempo, descobre a solução melhor, atravessa para a outra margem através da ponte que o próprio Espinosa construiu. A solução está longe de ser a mesma, mas a diferenciação dos atributos encontra-se lá. O TUDO (Tout) é toda a Existência. Não equivale liminarmente à soma das modificações, mas, pelo contrário, à outra perspectiva com que se deve encarar a totalidade ordenada dos seres.
Condillac refere Espinosa no seu Traité des systèmes. O abade Condillac exerceu uma enorme influência nos rumos novos do pensamento, em particular nos philosophes, num novo exercício do pensar, que valoriza a experiência sensível e apouca as metafísicas de sistema. É todo um nominalismo que está em marcha. Nesta nova atitude, o sistema de Espinosa é um alvo especial da crítica das noções abstractas, sem fundamento na experiência, produtos da imaginação. De uma banda, os teólogos, de outra, os sensualistas, a perseguir os passos do empirismo inglês. Contudo, o ponto de vista dos últimos é mais ajustado, independentemente de ser ou não mais verdadeiro, queremos dizer que é uma crítica legítima vinda de quem leu seguramente o próprio autor. Condillac traduziu a primeira parte da ÉTICA. Aqui o trazemos para fornecer um elemento mais ao cenário ou ao meio no qual se movimenta o nosso beneditino.
Este panorama dá-nos a sensação de que Espinosa constitui um dos mais fascinantes enigmas da história das ideias no ocidente, que nos abala certezas cómodas que tivéssemos sobre uma pretensa autonomia integral das ideias relativamente aos outros fenómenos da vida colectiva. Um filósofo que todos julgam conhecer, e pouco ou nada conhecem em grande parte dos casos, cujas teses circulam o mais das vezes clandestinamente, que, em rigor, não são dele, que parece estar presente nas, ou sob, as novas concepções de naturalistas e materialistas, mas que quase nenhum assume. Surpreendente.
A influência do espinosismo conservou-se por essa Europa fora, mesmo que truncado e reduzido a uma caricatura, para se assistir, por fim, ao seu renascimento no termo já do século dezoito na Alemanha de Jacobi. É um longo e largo percurso que não podemos resumir neste capítulo. O que importa é adiantar para o nosso projecto este dado que é talvez mais uma interrogação : se admitirmos, como nós admitimos, que uma determinada corrente do materialismo francês do Século XVIII, encabeçada sobretudo por d’Holbach, levou a cabo uma separação relativamente ao espinosismo, sendo que esse corte lhe permitiu apoiar o ateísmo em bases materialistas, não abandonando a tese de uma substância única com diversos atributos ou propriedades gerais, não teria este acto propiciado uma leitura de um Espinosa não ateu? Não é esta leitura que iremos encontrar na filosofia alemã? E, enfim seria esta interpretação mais conforme ao rigor do Texto espinosano, ou assistimos, ao invés, a novas deturpações?
Seja como for, o que nos compete, neste trabalho, é demonstrar que dom Deschamps não tentou recuperar o “teísmo” de Espinosa; bem pelo contrário, tendo-o tomado definitivamente como um ateu, tratou de construir um “ateísmo esclarecido”. Entre o seu propósito e o de d’Holbach, ou de Diderot, não existem aqui divergências de fundo. As divergências são outras.
Em seguida, ensaiamos um breve resumo daquelas teses de Espinosa que mais úteis nos sejam para compreender as teses de dom Deschamps. A intenção é, agora, não um espinosismo de segunda ou terceira mão, mas tentar expor com o rigor que nos é possível as ideias principais contidas na ÉTICA.
1.2. Apresentação breve das ideias de Espinosa
Tem, por conseguinte, como objectivo esta exposição resumida da filosofia de Bento Espinosa clarificar aquelas teses e aqueles conceitos que mais se adequam ao nosso propósito de estabelecermos um paralelismo com O Verdadeiro Sistema, de dom Deschamps, de modo a que as semelhanças, e também naturalmente as diferenças, ganhem relevo demonstrativo. Evidentemente que qualquer exposição denuncia o ponto de vista de quem expõe, ainda que se baseie nos textos e na correspondência do Autor, tanto mais quando se trata de um Autor, como Espinosa, tão despojado de retórica autoreferente. Expomos, portanto, a nossa interpretação não tanto daquilo que Espinosa tinha em mente, mas segundo aquilo que ele efectivamente escreveu. Assim se evidenciarão, porventura, os acertos e desacertos da Refutação que dom Deschamps lhe dirige, ora porque pressupõe o conhecimento directo da obra, ora porque falha na medida em que simplesmente refuta um Espinosa deturpado.
O seu autor foi alguém que quis fazer da sua vida um projecto de máxima liberdade, sabendo que nunca a alcançaria nas condições que os outros a determinam, e desejou partilhar esse projecto connosco, sem impor, argumentando, definindo, analisando, desmontando muito daquilo que em nós julgamos mais sólido. Lutou por uma sociedade democrática, onde se pode pensar e dizer o mais livremente que ele julgava possível, mas percebeu perfeitamente que esta sociedade só é melhor porque se permite um pensamento mais liberto do simples obedecer – obedecer ao Estado, às regras consensuais-, muito embora viver em sociedade significa, quer queiramos quer não, obedecer a regras convencionais. As noções de mal e bem, de mérito e demérito, etc., exprimem isso mesmo : simples ou complexas regras, respeito, piedade, obediência, pois que todas estas noções adequam-se melhor ou pior à natureza humana e aos fins sociais historicamente determinados.
A vida de Espinosa é uma imagem positiva de afirmação e de amor à vida, que identifica com a alegria. Realizou uma crítica implacável das atitudes que nutrem ódio à vida, que se rodeiam de cultos da morte, do homem envergonhado, culpado, arrependido, invejoso, ressentido, que sufoca a vida com leis, propriedades, deveres, impérios, às quais Espinosa chama “traições” à vida, ao universo. O que há de pior no homem? A invenção da morte interior, esse universo sado-masoquista do escravo-tirano. Quanto de semelhante encontramos em dom Deschamps!
Qual é a tese teórica central do espinosismo? Acreditamos ser esta: há uma só substância que possui uma infinidade de atributos, Deus sive natura, sendo todos os seres apenas modos destes atributos ou modificações desta substância. Embora os atributos sejam infinitos, a inteligência limitada do homem só pode alcançar dois: a extensão e o pensamento. E mesmo aqui, não conhece tudo, e é pouco até o que conhece. Esforçar-se por conhecer é, portanto, uma paixão alegre, positiva. Unir-se ao todo, perceber o encadeamento de todas as coisas, das causas e dos efeitos, totalidade na qual tudo tem uma razão, um nexo, uma necessidade imanente. Assim sendo, é rejeitada a existência efectiva de qualquer entidade transcendente criadora e justiceira, remetem-se estas fantasmagorias para o império do desejo e da imaginação, da mecânica psicológica do medo e da servidão. Unicidade da substância, univocidade dos atributos, imanência absoluta, identidade entre o material e o pensamento (dois atributos distintos e paralelos da mesma substância). Como não ver aqui a tese de que tudo que existe é natureza, sendo o pensamento uma dimensão, gozando de autonomia, da mesma e única natureza? Espinosa passa páginas e páginas a recusar qualquer verdade objectiva a um Deus antropomórfico, à criação extra-natura, ao finalismo moral, ao dualismo, à transcendência. Como chegar, porém, a ser consciente de si mesmo, de Deus e das coisas, quando a nossa consciência parece inseparável das ilusões?
Como conseguir formar ideias adequadas, promotoras de sentimentos activos, positivos, quando parecemos condenados, pela nossa limitada natureza, a não ter senão ideias inadequadas?
Absoluta é só a substância una e única, infinitos, mas não absolutos, são os seus atributos (infinitos no seu género); Deus exprime a potência absoluta de existir e de agir, a potência absoluta de pensar e de compreender – duas potências do absoluto que são iguais e não se confundem com os atributos que conhecemos.
A acepção do conceito de Razão, em Espinosa, tem ocupado muitos comentadores. De entre muitos, preferimos seguir a análise desenvolvida por Maria Luísa Ribeiro Ferreira. A “razão abrangente”, a “razão constitutiva”, e citamos a autora, “sobreleva a representacional pois a categoria da representação é desvalorizada em detrimento da identificação, da sintonia com o Todo” A razão, para Espinosa, possui uma dimensão ontológica, é fundamento e causa.
Além destas acepções espinosanas da razão, esta é ainda um modo da acção dos homens. “Mas, a verdadeira capacidade de agir do homem, ou seja, a sua virtude é a própria Razão (pela proposição 3 da Parte III), que o homem contempla clara e distintamente”
Em dom Deschamps o termo “Razão” é utilizado como equivalente a “Entendimento”, que é superior à mera “inteligência” comum. Tal faculdade, do Entendimento, é plenamente potente, como se evidencia no título do sistema do beneditino : “O Verdadeiro Sistema”, ou seja, “A Verdade”. A Razão, que exprime a unidade do todo, exprime a outra dimensão do todo : o Tudo que é a Existência. Não existem sinais em dom Deschamps de que utilize a distinção espinosana entre razão e entendimento : no livro IV da ÈTICA, o entendimento é identificado com a razão “Por conseguinte é sumamente útil aperfeiçoar o entendimento ou a razão tanto quanto pudermos”; porém, no livro II, diz o seguinte : “De tudo o que acima foi dito, resulta claramente que nós temos muitas percepções e formamos noções universais : 1º Das coisas singulares que os sentidos representam mutiladas, confusas e sem ordem à inteligência ; por esta razão, tomei o hábito de chamar a essas percepções conhecimento pela experiência vaga.
2º Dos sinais, por exemplo, do facto de termos ouvido ou lido certas palavras, nos redordamos das coisas e delas formamos ideias semelhantes àquelas pelas quais imagibnamos as coisas. Para o futuro, chamarei a essas duas maneiras de considerar as coisas : conhecimento do primeiro género, opinião ou imaginação.
3º Finalmente, do facto de termos noções comuns e ideias adequadas das propriedades das coisas. A este género, darei o nome de Razão e conhecimento do segundo género.
Além destes dois géneros de conhecimento, há ainda um terceiro como o mostrarei a seguir, a que chamaremos ciência intuitiva. Este género de conhecimento procede da ideia adequada da essência formal de certos atributos de Deus para o conhecimento adequado da essência das coisas”.
Muito embora dom Deschamps não persiga linearmente as formulações de Espinosa, ele forjou um par de categorias com um papel decisivo no seu sistema: Tudo (Tout) e O Todo (Le Tout), ou, por equivalência, o Nada (Le Rien) e o universo; porém, a realidade última e verdadeira, o absolutamente absoluto como ele escreve por vezes, é a Existência; ora, a Existência é única. No primeiro caso, no par de contrários, temos um primeiro momento do desenvolvimento da verdade; mas esta distinção tem que ser superada, isto é, a negação envolve a identidade. A Existência é, ao mesmo tempo, uma coisa e o seu contrário. Este é um dos eixos principais da nossa dissertação. Esta posição filosófica é monista; apenas numa leitura superficial pode sugerir um dualismo. A Existência possui dois atributos ao alcance da nossa compreensão humana: ora como natureza-mundo, ora como nadificação absoluta. È a fórmula de Espinosa? Claro que não, de modo algum. E, no entanto, é um monismo sem sombra de dúvidas, como se irá demonstrar nas muitas páginas desta dissertação. Fala-se de uma realidade única, que pode ser encarada de duas maneiras. No contexto filosófico e cultural em que se move dom Deschamps, isto que fica dito, evoca necessariamente o espectro do espinosismo.
Que é o atributo, para Espinosa? É aquilo que o entendimento percebe da substância como constituindo a sua essência; não é uma maneira de ver entre outras possíveis, uma perspectiva, mas aquilo que é. Nem é, tão pouco, uma “emanação” da substância, pois que esta não é superior aos seus atributos. Cada atributo exprime uma determinada “essência”. Nem sequer o atributo reside no entendimento (não pertence ao reino dos produtos sociais da consciência); o atributo exprime-se e isto implica necessariamente um entendimento que o perceba ( tudo é natureza, tudo é, em essência, o mesmo)..
Nós apenas conhecemos dois atributos, e entretanto sabemos que existe uma infinidade. E porque sabemos? Sabemo-lo porque resulta necessariamente da definição de infinito, da definição de uma substância autoprodutiva. Apenas conhecemos dois porque só podemos conceber como infinitas as qualidades que envolvem a nossa essência: o pensamento e a extensão, enquanto somos espírito e corpo.
Sabemos que há uma infinidade de atributos, porque Deus é ele mesmo uma potência absolutamente infinita de existir, que não se deixa esgotar nem pelo pensamento nem pela extensão.
A natureza é “natura naturans” e “natura naturata”. Como natureza “naturans ”, é substância, ou Deus. É eterna, e infinita, causa e efeito, essência e existência. Nesta “essência” há, ou julgamos ver, um feixe (infinito?) de possibilidades, algo que nos obriga a evocar o conceito de “potencialidade”, em Aristóteles, conceito tão rico que hoje abre caminho de novo entre as ciências. Não transparece uma imagem fechada do mundo e da vida, mas perfila-se um largo horizonte de possíveis e de mudanças.
E há uma diferença entre essência e existência: nas coisas separadas, passageiras e finitas, a essência não coincide com a sua existência, mas na substância única, eterna e infinita, desprende-se necessariamente da sua essência a sua existência.
Por isso a existência de Deus (ou da substância) pode ser demonstrada, isto é, deduzida do conceito de essência de Deus (a natureza).
O ser da substância é, ao mesmo tempo, necessário e livre, já que não existe causa alguma que mova a substância à acção que não seja da sua própria essência. A imagem de uma racionalidade livre e socialmente ética revela-nos a imagem de um Deus livre, e não um Deus determinado a agir por fatalidade: um tal comportamento corresponde melhor a máquinas e a servos.
A coisa individual não se desprende da substância como de sua causa próxima. Só pode derivar de outra coisa finita. Por isso, não possui liberdade absoluta.
Os modos constituem o conjunto das coisas finitas; modo é aquilo que não existe por si mesmo, mas sim em outro, ou por outro. A substância é única, a sua essência exclui toda a pluralidade. Pelo contrário, os modos são infinitos. Pontos de uma recta. A natureza, como substância, existe em si mesma, por si mesma, com todas as suas propriedades, com independência e à margem da mente. A mente infinita poderia captar a substância – em todos os seus tipos e aspectos- como infinita. A nossa mente, porém, não é infinita. Por essa razão percebe a essência da substância como infinita somente em dois sentidos : primeiro, como extensão, e, segundo, como pensamento.
O homem, como objecto do conhecimento, não constitui excepção alguma na estrutura geral do mundo. Tudo que é humano, pode submeter-se à análise tal como qualquer outro fenómeno da natureza.
Daqui, Espinosa arranca para a ética. Ciência que deduz as suas normas das leis objectivas dos actos humanos, e não de valorações subjectivas. Naturaliza a ética, ao mesmo tempo que a “socializa”.
Foi, Bento Espinosa, um pioneiro entre os pioneiros, porque tratou a psicologia dos actos humanos como um físico estuda os fenómenos, buscando leis, ou seja, regularidades, reduções ao mais simples e fundamental, à “mecânica” (não no sentido pejorativo, mas antes naquele sentido de “mecanismos” de que falou S. Freud) das paixões ou afectos. Sublinhava com ênfase dois tipos : alegria e tristeza. Qual a sua causa? A tendência de todas as coisas a conservar a sua existência. Não nos guiamos sobretudo pela atracção do bem, nem pela rejeição do mal, mas sim pela tendência à autoconservação e ao benefício próprio. A virtude é exclusivamente potência humana, e esta é determinada somente pelo esforço com que o homem deseja conservar a sua existência. Nega a independência da vontade relativamente aos seus motivos, a nossa natureza é necessariamente dependente das paixões e dos afectos.
A coisa que existe necessariamente (ou é determinada) pode, ao mesmo tempo, ser livre se existe por necessidade somente da sua própria natureza. Neste sentido, é livre, em primeiro lugar, a substância Natureza, pois que a sua existência deve-se apenas à sua própria essência. Em segundo lugar, neste sentido também é livre o homem, podendo emancipar-se da escravidão, sob determinadas condições. Qualquer afecto pode deixar de ser um estado passivo, quando fazemos uma ideia clara e precisa dele, desde que o conheçamos. A liberdade é, portanto, o conhecimento da necessidade.
Conhecer não significa abandonar todos os afectos, permitir-se não sofrê-los. Tal como um mau hábito se cura adquirindo um outro hábito mais forte, assim o conhecimento se torna um afecto (afecção). O que é o afecto do amor? A alegria acompanhada pela ideia da sua causa exterior. E um tipo particular de amor, é o amor pelo conhecimento. Estes afectos podem, assim, lutar contra outros e vencê-los. A humanidade do homem é uma conquista, e o homem um campo de batalhas. A nossa exposição faz pressupor em Espinosa uma compreensão dialéctica de cada indivíduo na relação com os outros e consigo mesmo.
A alegria (proporcionada pelo conhecimento, por exemplo) pode, deste modo, conduzir-nos para uma máxima liberdade (rodeando-nos sempre de cautelas, ou de sistemas de alarme) – nem a inocência, nem a ingenuidade, cabem aqui, excepto nas crianças (que, por isso, precisam de protecção e educação). Nesta batalha dos afectos, usamos um espécie de linguagem bélica: repressão, astúcia, cautela, desconfiança. O homem é um ser activo e a vida uma série de actos de dominação/libertação, dependência/autonomia, criação/conservação.
Certamente que podemos considerar o tipo ideal de vida, em Espinosa, demasiado redutor, ou seja, se for lido deste modo: será livre somente o sábio que renunciou à vida material... Contudo, é admirável a coerência da sua vida com o seu pensamento, numa época em que os prazeres materiais eram já abundantes (sobretudo na Holanda progressiva e burguesa), e nada na sua biografia demonstra que ele houvesse aspirado aos negócios pelo seu lado lucrativo e aos rendimentos, contentando-se com uma situação digna mas frugal É irreprimível uma aproximação com o “cauteloso” Descartes, seu contemporâneo, que sempre foi um profundo individualista cioso do seu isolamento e conforto (era frágil de saúde também), pouco dado a cargos e honrarias, a amizades mundanas (que achava que eram perda de tempo e um insulto à inteligência),
A imaginação desempenha um importante papel na conduta humana, no entanto ocupa o último lugar, ou grau, na escala do conhecimento. “Não somos nós quem afirma ou nega algo de uma coisa, mas é ela própria que em nós afirma ou nega algo de si mesma”. “Ela” quem? A alma...Ou seja, a ideia, quando o é (verdadeira), auto afirma-se, pois que a verdade é necessidade, não é por simples vontade ou capricho que escolhemos esta ou aquela como verdadeira, ela é evidente; ou ainda, entendimento e vontade identificam-se no acto de conhecer; é absurdo que alguém diga : essa ideia é verdadeira, mas eu quero que ela seja falsa!. Podemos fugir da luz do dia, mas não eliminá-la. Não temos nós esta experiência de uma verdade que nos persegue porque nos magoa? Quando se sublinha o carácter necessário das coisas (e das causas), perdemos em liberdade?
A descoberta das ideias (ou são elas que nos descobrem a nós?) e a sua expressão, não acontece, no entanto, de fora para dentro, porque elas não são entes, mas actos do entendimento e da vontade; envolvem-se de consciência e de afectos.
São três os géneros de conhecimento, e, a cada um deles, corresponde determinada forma de consciência e determinados afectos. A equivocidade reina no primeiro género, o mais inferior. Aqui, das coisas, temos apenas sinais, ou signos, frágeis indicações, mais atmosféricas que os sinais de trânsito. Na Psicologia contemporânea dizemos ícones, esquemas, estereótipos. Ideias inadequadas e afectos-paixões correspondentes.
O segundo género é composto de noções comuns – ideias gerais. Ainda não são definições, porque estas cabem apenas no terceiro género; nem são princípios, pela mesma razão. O termo “cavalo” não explica, nem expõe a essência do animal ; os termos “amor”, “esperança”, etc. Mas produzem, por associação e analogia, afectos De simpatia ou antipatia. O primeiro género permite a sobrevivência; o segundo a integração e a convivência (obedecer, desejar, conhecer por meio da ciência). Com os dois géneros conseguimos alcançar certezas somente por mediações ; no terceiro, as ideias impõem-se pela evidência e precisão, por intuição. O método é conhecer pelas causas. A causa adequada é o critério do conhecimento verdadeiro. O conhecimento humano está sempre dependente do conhecimento das causas que produzem os efeitos; só uma mente divina poderia escapar a isto e “ver” o todo de uma só vez...Estamos condenados ao “encadeamento”. Por definição conhecer o efeito é conhecer a causa. A mente é suficientemente potente para vir a compreender que tudo é necessário, isto é, que o que existe foi determinado a existir e a produzir efeitos por meio de uma ligação infinita de causas. Apresenta-nos aqui uma atitude genética : a descrição de um fenómeno passa pela sua explicação.
Os conceitos obedecem, por conseguinte, a uma ordem genética de construção. Ambicionar captar a ordem lógica das coisas, é ambicionar a construção de sínteses; quando são adequadas, constituem o supremo acto da inteligência, e verifica-se nos produtos mais conseguidos dos grandes espíritos. As melhores definições são as que explicam a geração de uma coisa ( disse Hobbes, e Espinosa retoma). Que é um círculo? A rotação de uma recta. Não existem critérios a priori, extrínsecos à verdade e que permitiriam reconhecê-la ; é na medida que conhecemos que os critérios se estabelecem, durante e não antes. Se para forjar o ferro, os homens precisam de um martelo, este só se produz no acto de forjar, e no processo se vai aperfeiçoando. O papel da prática assume assim, em Espinosa, toda a sua importância. Atenção à génese, atenção ao processo, atenção à prática – eis exemplos de teses admiráveis e percursoras. Construir, progredir em acto, exprimir – tudo anúncios carregados de modernidade. Adoptamos esta leitura do pensamento de Espinosa, contra outras. Vemos Espinosa como um artesão, um operário, que foi, usando exemplos extraídos da sua actividade, e não apenas buscados à geometria. Um espantoso espírito, um príncipe dos filósofos, que, todavia (ou por isso mesmo), foi operário-artesão...Manuseando coisas delicadas, polindo, construindo, percebeu que aquilo que melhor define o homem é a produção, e, sem os produtores, não existiria mundo humano. A dignidade do trabalho criador ( mesmo que rotineiro e reprodutivo), a dignidade do trabalhador. Na organização de uma sociedade pacífica, os homens actuam desencadeando paixões positivas que fomentam a unidade do corpo social.
Há afectos que repugnam à razão – como a esperança e o medo, a sobrestima e o despeito, a comiseração, a indignação, a humildade, a tristeza, o arrependimento, o orgulho máximo. Mas há outras, como por exemplo o favor, o contentamento de si, a glória, que a favorecem e cujo exercício robustece as capacidades racionais. Devemos recorrer à imaginação para aumentarmos a potência da mente. A mente é também o poder, e a necessidade, de imaginar aquilo que aumenta a potência de agir do corpo. Ou seja, manipulemos as nossas paixões, e as dos outros, de modo a que as condutas não repugnem demasiado à razão. Valorizemos o conhecimento, mas saibamos que nenhum conhecimento modifica a fragilidade da condição humana, essas naturezas apaixonadas que vêm o melhor mas praticam o mal. Uma paixão só se combate com uma paixão mais forte. A razão não deve criar ilusões excessivas (apaixonadas...) sobre o seu poder de eliminar os afectos; ela própria deve, para melhor combater os piores, transformar-se em paixão, em afecto.
O conhecimento só por si não leva à acção. Espinosa (na ÉTICA) persegue um objectivo muito concreto: a procura da felicidade. Valorização de tudo que nos contenta, daí o valor supremo da alegria, é o desejo de ser feliz que comanda o processo ético. O mal não reside na Natureza, mas na nossa imaginação e nos nossos afectos tristes. O ser, a essência da Natureza é o bem; o ser e o dever ser coincidem.
O desejo diz respeito ao homem, mas está presente em todas as coisas sob a designação de “conatus”. É um esforço universal de perseverança e de resistência, e de apropriação, e é uma determinação da Substância, visto que esta é eminentemente activa. “Potentia” e “conatus” são equivalentes (“potentia sive conatus”). Conservação e manutenção do ser próprio, eis a essência de cada coisa. Em todo o real circula um desejo e uma afirmação de ser.
Que nos ensina a filosofia? Que a realidade última é infinita, que essa realidade tem de conter necessariamente em si mesma todo o ser. Deus não pode estar fora do mundo.
Relativamente ao método, como iremos verificar também em Deschamps, o que é mais importante não são os dispositivos técnicos da geometria, mas a dedução lógica de proposições extraídas de definições que expressam ideias claras e distintas e de axiomas evidentes por si mesmos. Entre os sistemas do século XVIII francês, naturalmente aqueles que conhecemos, o que mais se aproxima da exposição tipicamente espinosana, é o de dom Deschamps, ainda que ele não use a terminologia das “definições e axiomas”. É verdade que esta diferença, que não é tão acessória como isso, basta para estabelecer diferenças entre os métodos de ambos, contudo nem o método expositivo-demonstrativo, ou dedutivo, de Deschamps é escolástico (como já temos visto referir), nem a diferença mexe com o rigor lógico. De resto, dom Deschamps afirma amiúde a necessidade de se estabelecer um bom “princípio”, e quando critica os outros, o próprio Espinosa incluído, é o “princípio” deles, ou a sua ausência.
Relativamente à substância divina, em Espinosa, ela deve ser considerada como anterior tanto na ordem ontológica como na ordem das ideias. Em Deschamps assiste-se à anterioridade da categoria Tout. A Existência determina o nosso pensar, a nossa existência natural, a nossa linguagem, mesmo a mais comum. Quando dizemos sim e não, já intuimos o carácter contraditório da Existência. Pensamos nela porque existimos. Somos infelizes porque não a compreendemos.
A substância, para Espinosa, é “causa de si mesma”: explica-se por si mesma e não por meio de uma causa externa; a definição de substância implica, portanto, que a esta é completamente dependente de si mesma, não dependendo de nenhuma causa externa, nem para a sua existência nem para a dos seus atributos e modificações. Dizer tal coisa é dizer que a sua essência compreende a sua existência.
“Por ‘atributo’ entendo aquilo que o entendimento percebe como constituindo a essência de uma substância.” Por conseguinte, segue-se que, se duas substâncias possuíssem os mesmos atributos, possuiriam a mesma essência ; nesse caso não haveria razão para falar delas como “duas”, porque não poderíamos distingui-las. Porém, se não pode haver duas ou mais substâncias que possuam o mesmo atributo, a substância não pode ser limitada ou finita. Tem, pois, que ser infinita. Situamo-nos no âmago da Refutação do princípio de Espinosa, redigida por Deschamps, e que iremos abordar com minúcia.
A substância infinita tem que possuir infinitos atributos. “Quanta mais realidade ou ser possui uma coisa, tantos mais atributos terá.” Cada atributo expressa uma essência eterna e infinita.
Em Espinosa, Deus não se distingue da natureza; se se distinguisse, se existem outras substâncias que não fossem Deus, Deus não seria infinito.
Em Deschamps, aquilo que ele denomina Deus-não criador (Tout) distingue-se de Deus-criador (Le Tout)? É por isso que ele fala em “dois seres”, refutando Espinosa? Ou, de facto, Deus-criador e Deus-não criador não são mais do que as duas perspectivas com que podemos falar da Existência? Esta é a questão.
Os conceitos e as questões que mais aproximam dom Deschamps de Espinosa, parecem-nos ser o lugar determinante do conceito de natureza, de uma natureza dotada de uma ordem racional e necessária; uma concepção da totalidade contendo simultaneamente uma dimensão ontológica e gnosiológica; a adequação, ou não - ou o acordo- do corpo e da mente e de cada corpo com os demais, com esse todo; os dois atributos do todo: o infinito-eternidade e o finito-duração; os três géneros de conhecimento e, evidentemente, a possibilidade de transportar o conhecimento da substância única para uma radical reorientação da nossa existência.
Pelo contrário, a crítica radical da civilização e a consequente utopia da vida campesina, o mais absoluto igualitarismo que dissolve a individualidade, em Deschamps, parecem-nos distantes do pensamento espinosano; um projecto marcado pela especificidade histórica de uma sociedade e de uma época e, naturalmente, pela biografia concreta do monge filósofo.
Torna-se muito difícil aceitar que Deschamps fosse de todo insensível à personalidade e ao modo de vida de Espinosa: como é possível que não tenha visto nele um homem bom e sábio, cujas virtudes e modo de existência tanto se aproximam das virtudes que ele próprio, dom Deschamps, aconselha antes do estabelecimento da sociedade ideal - o estado de costumes -, e que serão, afinal, traços fortes e colectivos da moralidade que vingará nessa sociedade do porvir? Como não admitir que a salvação e a beatitude de que fala Espinosa não ecoam estridentemente no sistema de vida salvífico de dom Deschamps?
Além disso, Espinosa foi um perseguido pelos poderes dominantes, pelo dogmatismo e atté fanatismo religiosos, foi um excluído em vida e depois da morte. Espinosa teve de usar de cautela e os seus discípulos recorreram ao disfarce para transmitir as suas ideias, parecendo que as censuravam. É verdadeiramente improvável que tudo isto não tivesse aproximado Deschamps da vida e da herança do filósofo de Haia.
José Augusto Nozes Pires
Dom Deschamps ,
O filósofo e a sua sombra
Dissertação de doutoramento em Filosofia apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Torres Vedras
2003
AGRADECIMENTO :
Agradeço à Professora Doutora Maria Luísa Araújo de Oliveira Monteiro Ribeiro Ferreira a sua ajuda generosa, paciente e meticulosa, sem a qual muito dificilmente eu teria levado até ao fim esta dissertação.
Dom Deschamps : o filósofo e a sua sombra
«Não é senão porque eu sou no fundo a verdade que ei-la desenvolvida, e não é senão porque os meus semelhantes são-no tanto como eu, que aqueles, entre eles, capazes de me ler e de me entender dirão depois de me haverem lido, e compreendido, é ela, a coisa é evidente.»
Introdução
Léger-Marie Deschamps (1716-1774) foi um filósofo de origem francesa que interveio no movimento cultural das Luzes com excepcional originalidade. Era membro da ordem dos beneditinos. Na nossa tese de obtenção do grau de mestre, em 1997, explanamos com largueza bastante o percurso intelectual de dom Deschamps, membro de uma ordem regular poderosa ao tempo mas da qual não recebeu nunca quaisquer benesses. Viveu metade da sua vida numa minúscula e esquecida abadia da região de Poitiers, não muito distante do lugar onde nasceu René Descartes. Ficou obscuro pela mediocridade das funções que exerceu em plena província, pelo facto do seu sistema filosófico nunca ter sido publicado e, provavelmente, ficaria de qualquer maneira marginalizado pela singularidade extraordinariamente ousada do seu projecto. O estilo de redacção de dom Deschamps é bastante duro, muito longe da mestria e modernidade de um Rousseau ou de um Diderot. Apesar disso, lê-se hoje com menos dificuldade do que se lê o discurso do então célebre barão d’Holbach e, menos ainda, do que a generalidade dos escritos panfletários que abundantemente se publicavam na altura. A seguir à sua morte ficou rapidamente remetido ao esquecimento; contudo, não foi uma figura ignorada no seu tempo.
Tendo procurado as luzes, permaneceu na sombra. No entanto, outros mais fizeram as sombras desse século e desse movimento reformador que uma interpretação unilateral classificou em bloco como utilitarista e anti-metafísico; mas foi certamente um movimento que se julgou a si mesmo iluminado por uma Razão transparente que anunciava uma Era de progressos ilimitados. Foi seguramente uma época de conflitos e contrastes, de intensas batalhas ideológicas que exprimiam também contraditórios interesses económicos e políticos que iriam confrontar-se violentamente na última década do século. Foi certamente um Movimento de sombras e contrastes, encruzilhadas e ciladas, debates semiclandestinos em salões privados, nos cafés mundanos, de campanhas persecutórias, de espiões e esbirros, de delatores e funcionários corruptos, de prisões sem culpa formada e deportações apoiadas em simples calúnias.
A expressão «sombras» que utilizamos é aqui largamente polissémica. Em primeiro lugar exprime a escassa divulgação e popularidade da obra de dom Deschamps (apenas publicou dois opúsculos que obtiveram um muito fraco acolhimento); em segundo lugar, exprime a posição ambivalente de Deschamps relativamente ao Movimento das Luzes (alguns contemporâneos tomaram-no simplesmente como um conservador); em terceiro lugar, exprime a presença disfarçada de Espinosa na elaboração do seu pensamento.
Iremos demonstrar nesta dissertação que um beneditino, cuja obra foi descoberta somente um século depois, que criou uma seita de iluminados que pretendia rivalizar com os mações, teve uma intuição brilhante nos anos cinquenta. Munido dessa intuição atreveu-se a substituir, integrando e superando, todos os sistemas e todas as correntes de pensamento do seu tempo e, por meio de um projecto utópico surpreendente, atreveu-se a solucionar todos os problemas sociais e políticos de vez. Isto é, o sistema de dom Deschamps ambiciona resolver e completar os destinos da Filosofia e da História.
Pretendeu, em primeiro lugar, fornecer ao conceito de Todo ou Totalidade, que é uma noção nuclear das filosofias, uma nova formulação, denunciando e resolvendo contradições em que outros filósofos, segundo ele, se enredavam. O termo tout, ou grand tout, era recorrente nas diversas correntes que compunham o Movimento das Luzes.
Com a chave de uma dialéctica insólita mas que poderia vir a ser inovadora, dom Deschamps desafiava os seus contemporâneos a admitir, por via rigorosamente lógica e até gramatical, uma ideia não antropomórfica de Deus, uma concepção naturalista que harmonizasse o homem com a natureza, em que a morte não fosse uma tragédia mas uma necessidade da ordem natural das coisas, de uma ordem que ignora todo o bem e todo o mal. Alcançada a Verdade, abria-se a possibilidade de uma existência individual e colectiva permanentemente feliz. Ou seja: se desejarmos optar por uma forma de existência radicalmente diferente – mais autêntica- necessitamos primeiramente de modificar a perspectiva pela qual encaramos o mundo e a vida; dessa nova perspectiva resulta uma outra atitude existencial. Este é conteúdo do seu sistema. Por isso o designou de A Verdade, ou o Verdadeiro Sistema. É um sistema eminentemente ético.
Em segundo lugar, atribuía, por conseguinte, a tudo que existe uma ordem, um acordo interno e imanente entre todos os seres, desde o homem a tudo mais, sem graus fixos de valor e de hierarquia. O homem é um modo de ser da natureza, uma parte do todo universal. A morte, por exemplo, não equivale ao nada absoluto ou ao grau zero da existência, mas àquilo que ele chama “o menos da vida”.
Todas as coisas existem, entre o “mais” e o “menos”, como modificações internas de um Ser constituído por uma profunda contradição: é simultaneamente o todo material actual, positivo, perfeito e pleno de realidade física, movendo-se na duração temporal e no espaço, ou seja o universo ou natureza, e é o infinito, a eternidade, o indeterminado, o nada.
Um ser, substância ou todo, contraditório. Este é o núcleo duro do seu sistema. E porque o início explica o fim, o Autor move-se em círculos concêntricos. Os muitos cadernos insistem, repetem, regressam ao ponto de partida. Não se tratava de uma patológica obsessão, mas de esclarecimentos incansavelmente retomados em relação à matriz do sistema, a qual, a bem dizer, não sofreria modificações de relevo desde os anos iniciais em que foi elaborado. O Verdadeiro Sistema, assim denominado, foi a matriz, tudo o mais são registos de diálogos, textos que pretendia publicar para preparar a edição principal, explicações a ilustres hóspedes do seu amigo Marquês de Voyer, que residia nas proximidades da abadia de Montreuil-Bellay, correspondência... As dificuldades de recepção que encontrava nos seus interlocutores, obrigavam-no a repetir-se. Ele próprio queixa-se disso, e manifesta alguma arrogância intelectual. O que é evidente para ele, deveria sê-lo para todos os outros. A exposição, repetitiva, identifica-se, porém, com uma exposição didáctica, no sentido do mestre que ensina e ilumina, embora por vezes denuncie pouca paciência. Para nós, que expomos o seu sistema, é muito difícil evitarmos a repetição, a ameaça do movimento em círculos vai perseguir-nos seguramente.
Que sistema filosófico é esse? É um sistema aparentemente niilista, relativista nos valores e manifestamente aberto à existência do Nada, que impressionou os seus interlocutores, construído sobre a fórmula contraditória de um Deus simultaneamente positivo e negativo, que parece ter sido bebido nas teologias negativas. No entanto, esse Deus é apenas o mesmo nome com que ele designa uma coisa bem diferente: a Natureza. Neste esforço julgava haver transcendido os conflitos das filosofias e das ideologias políticas, mostrando como ora se afastavam, ora se aproximavam mais daqueles princípios que solucionavam o enigma da Existência. Julgava ele estar na posse da única filosofia genuína e absolutamente metafísica, pois que a teologia cristã não a possuía afinal, nem os deísmos e ateísmos que a esta se opunham. Um sistema de todos os sistemas, um dispositivo inclassificável de uma supra-metafísica, de um meta-discurso.
Num século onde as metafísicas estavam sendo alvo de ataques, do desprezo ou do silêncio de determinadas elites, também ele não as defendeu, tal qual eram, dando-nos, porém, um sistema, um dos mais metafísicos que se conhece, sobre o ser e o não-ser, que parece propor um regresso às origens da filosofia ocidental (todavia, Hegel irá retomá-lo). Crítico das correntes que abandonavam a metafísica, crítico do sensualismo e do empirismo, mas inclusivamente dos mais importantes expoentes das filosofias materialistas do seu século, integrou a metafísica como um “momento” do seu Sistema, isto é não lhe concedeu o plano supremo. Encarar metafisicamente os seres era entendê-los na reunião de um Todo material; porém, o pensar não terminava aí.
Tentou superar as filosofias da natureza em voga no seu tempo. Fique claro que o termo «natureza» exprime aquilo que se quiser, ou aquilo que se descreve conforme um determinado ponto de vista. Não lidavam então, nem ainda lidamos nós, com um referente unívoco, objectivo, exterior, cuja realidade se refecte no pensamento. Encontrava-se em pleno desenvolvimento uma atitude e uma concepção que se caracterizava por separar o pensamento desse Objecto, tratando a natureza como a «Coisa» externa que se podia conhecer e manipular por meio da técnica, subordinando-a aos fins humanos. De modo muito claro dom Deschamps opunha-se a esta fractura e a esta dominação, colocando os homens mais ao serviço da natureza do que o seu contrário. Ou seja, a natureza humana coincidia com a Natureza, e tudo que desta nos apartasse significa infelicidade. A civilização, por conseguinte, era um mal necessário (Melhor dizendo: havia sido), que se deveria e poderia abolir bastando para tanto que os homens optassem. O campo era bem melhor, e um campesinato idealizado projectava-se como um ideal utópico. Uma espécie de ecologia radical.
Distinguiu na especulação filosófica dois andamentos: por um lado, a formulação do conceito de O Todo( Le Tout), a soma de tudo que é realidade sensível e natural, e, por outro, a formulação de um conceito que se apresenta como absolutamente contrário do primeiro: Tudo (Tout), que equivale ao Nada. Este desdobramento do pensar especulativo em dois momentos – tese/antítese- propõe-se como uma supra-metafísica verdadeiramente original e ousada. Estranha aos figurinos da época. Embora não o haja formulado assim, era como se o Autor ultrapassasse os limites da metafísica para se alcandorar a uma ontologia. Uma metafísica do Todo e uma ontologia terminal do Tudo.
Crítico tanto das religiões reveladas como das doutrinas deístas e liberais, integrou todas as crenças, superando-as pela revelação de uma moral sem normas, de um Deus-Existência que equivale ao Nada, de uma Lei (natural) sem leis (humanas), de uma Felicidade gerada pela mais extrema igualdade. A Contradição do Ser conduzia à conclusão da mais cerrada Identidade. Um filósofo que se posicionava, de uma maneira extraordinariamente moderna, para além de todo o Bem e de todo o Mal.
Um dos eixos desta dissertação é demonstrar que dom Deschamps foi profundamente tocado pelas ideias de Espinosa, muito embora sob a forma, então corrente, de um espinosismo esquartejado por citações de segunda e terceira mão, interpretado, contaminado pela sátira, pela calúnia, pelo silêncio temeroso. Não foi Descartes, Malebranche ou Leibniz, Rousseau, d’Holbach, Diderot, ou qualquer outro seu contemporâneo, que lhe permitiu a revelação, a intuição original, nem foi, muito menos, a escolástica dos teólogos. Confrontou-se com quase todos. Opôs-se também a Espinosa ou àquele espinosismo que circulava em França, mas foi do autor da expressão Deus sive natura, do criador da fórmula natura naturans/natura naturata, que ele mais se aproximou. Daí a razão do título que demos a esta dissertação: Dom Deschamps, o filósofo e a sua sombra. Quizémos sugerir, desde logo, a presença denegada, e, por isso, bem mais visível, do genial autor da ÉTICA, filho de judeus portugueses. Negou-o? Recusou-o? Sim, certamente, redigindo até uma importante refutação, mas outro tanto fez com todos os demais, e neste, em particular, o “filho” precisou de “matar o Pai”. E isto não apenas por causa dos perigos que resultavam necessariamente de um parentesco com Espinosa, porque, se assim fosse, não se compreenderia a ousadia do projecto revolucionário de Deschamps. A sua utopia social era bem mais ousada que o projecto político de Espinosa. A acusação de que foi alvo incomodava-o sobretudo por ser acusado de discípulo de um filósofo que ele considerava incongruente, inconsequente, e ser remetido ao mero estatuto de “seguidor”. Não o satisfazia, sobretudo, a falta de uma moral, ou de uma boa moral, em Espinosa, na opinião dele evidentemente. Tomava como correctas a acusação de “ateu” que dirigiam a Espinosa, como, de resto, parecia repudiar veementemente o “ateísmo” de d’Holbach. Porém, apresentou a sua própria teoria como o melhor e mais perfeito “ateísmo esclarecido”.
Nesse tempo abundava uma literatura clandestina, circulavam panfletos e opúsculos sobre e contra o espinosismo, por vezes por meio de um hábil disfarce de concepções que se compreendiam, afinal, bem próximas de Espinosa. Na verdade, nem aqueles que atacavam Benedito, nem muitos daqueles que camufladamente o defendiam, conheceram realmente os textos do “príncipe dos filósofos”, como o qualificou G. Deleuze. Também o próprio Deschamps não se mostra leitor que dominasse todas as obras daquele. Talvez por isso, e porque Deschamps constrói uma dialéctica negativa, é que, julgamos nós, o emérito Professor André Robinet, de Poitiers, descura a influência de Espinosa no pensador beneditino de Poitou, como se pode ler no seu livro Dom Deschamps, le maître des maîtres du soupçon, aliás a melhor obra que se escreveu, paralelamente aos dois Colóquios que desde 1974 se realizaram, em um dos quais nós mesmos participámos (Léger-Marie Deschamps, un philosophe entre lumières et l’oubli”, Paris, L’Harmattan, 2001). Dessa comunicação, mantemos a tese, tal qual a defendemos nessa altura. O grande sistema pelo qual Deschamps se confrontou com as filosofias do seu tempo, o grande sistema contra o qual se confrontou, foi o sistema de Espinosa, ou melhor: aquilo que, em boa verdade, ele tomou injustamente como todo o sistema de Espinosa.
Pretendemos com esta dissertação não apenas trazer ao conhecimento um filósofo da envergadura de dom Deschamps, como, e principalmente, demonstrar que foi um dos mais importantes neo-espinosistas do século dezoito francês, senão o mais congruente e radical. Uma época crucial da civilização europeia, que o Movimento das Luzes marcou indelevelmente.
Esta dissertação é composta por duas partes: na primeira, expoe-se o sistema filosófico de dom Deschamps, estabelecendo paralelos com o sistema de Bento Espinosa, sobretudo, privilegiando a ÉTICA, e com aspectos que julgamos oportunos do pensamento de algumas figuras marcantes do Movimento das Luzes; na segunda parte, procede-se à análise do projecto utópico de dom Deschamps, inserindo-se este projecto em uma reflexão sobre as utopias. O autor desta dissertação está convicto de que as produções utópicas surgem ligadas a crenças mais ou menos poderosas, fluxos ideológicos, motivações profundas e mobilizadoras de elites ou de classes e outros grupos sociais. No contexto histórico do século XVIII e do Movimento das Luzes, a relevância com que se manifestam as produções utópicas (e falamos particularmente da sociedade francesa) surgem como expressão própria da crença no Progresso. O Progresso não se limitava a uma mera esperança, realmente os coevos observavam em muitos lados e de muitas formas manifestações palpáveis de progressos nas técnicas, nas ciências, nos bens de consumo. Sendo possível viver-se melhor, julgavam compreensivelmente que as ideias novas e os novos meios ao dispor dos homens permitiriam reconstruir o mundo e a vida. Os romances de viagens eram lidos com muito agrado; era deles que, em muitos casos, se alimentavam as utopias. Novelas do coração, dramas de família, diários de viagem, narrativas de lugares exóticos, projectos de reforma social, crítica de costumes, de toda esta larga variedade de géneros, se despertavam sentimentos e ideias. Grandes foram nessas áreas Montesquieu, Voltaire, Rousseau, Diderot, Morelly, Mably...
O reconhecimento público do sistema de dom Deschamps e o estudo crítico das suas ideias, contribuem, e já contribuiram, para olharmos para o século das Luzes com outros olhos. Foi, na verdade, um tempo de luzes e sombras, de contrastes e oposições, de dissidências e hostilidades inernas a um movimento que, afinal, nunca foi homogéneo. Já se conhecia bem a atitude “herética” de Rousseau, que se afastou dos Philosophes e de colaborador da Enciclopédia, e por razões bem distintas de outros que dela se afastaram por cautelas e temores. Há poucas décadas atrás surgiu-nos a “emergência intempestiva de dom Deschamps”que vem tornar mais difícil ainda “a determinação de um curso das coisas e de uma história das ideias”. Como compaginar um sistema tão absolutamente especulativo e metafísico com a atitude empirista que parecia triunfar, com o elogio da experimentação, com a grande física newtoniana, com uma ética liberal que vinha anunciar uma era de revoluções? Na verdade, o abade Condillac e o matemático D’Alembert não foram os únicos que entusiasmaram os espíritos progressistas, também o conseguiram Rousseau, o pré-romântico, Diderot, o barão d’Holbach. Quem precisamente terá mais marcado o Movimento terão sido os materialistas, que se esforçavam por construir uma nova ontologia, bem longe dos projectos de D’Alembert. Enfim, o século das Luzes foi também uma das épocas mais fecundas em utopias sociais, projectos revolucionários, liberais uns, anti-liberais outros. O chefe do “Movimento dos Iguais”, G. Babeuf, confessou-se discípulo de Diderot, julgando-o o verdadeiro autor do Code de la nature, de Morelly.
A revelação da obra de dom Deschamps contribuiu, e muito, para modificar o rosto do século dezoito, através de uma “mensagem única da filosofia francesa”.
Deste modo já não não surpreende agora descobrirmos um abade completamente descrente, que advogava um “ateísmo esclarecido”, um moralista generoso absolutamente convicto do seu ideário comunista, para quem a Cultura e a civilização haviam chegado ao seu termo, para cederem o lugar a uma sociedade onde a cultura, o Estado ea antiga moral, eram perfeitamente dispensáveis.
Tout e le Tout desigam o par de opostos que constituem o fundo da existência. Munido desta fórmula dom Deschamps construiu um sistema notável e singular. A bem dizer aquilo que o abade ambicionou, foi fortalecer o materialismo com uma nova ontologia, ou seja, com aqueles “princípios” sem os quais não se poderia deduzir e sustentar uma moral adequada à condição simultaneamente natural e social do homem.
Toda a filosofia de Deschamps explicita e desenvolve uma determinada intuição da existência pura, intuição a partir da qual forja a ideia do negativo e do positivo, que apresenta como sendo as nossas únicas ideias inatas. Bastaria este investimento numa determinada forma de inatismo, para sermos confrontados com um enorme desafio. A evidência primordial, o centro nuclear do sistema, é a intuição da unicidade fundamental da realidade, que ele designa, com os dispositivos retóricos do seu tempo, de “fin fond”.
Pois bem, o desafio que dedidimos enfrentar foi, não apenas apresentar este autor, mas também demonstrar nele a presença tutelar de um outro. A “sombra” a que fazemos referência no título, é realmente o espinosismo.
Denis Diderot, que não ignorava o espinosismo de modo algum, disse de dom Deschamps o seguinte, com aquele grande estilo que lhe era peculiar:
«Um monge chamado Dom Deschmps deu-me a ler uma das obras mais violentas e mais originais que eu conheço.»
Não ignoramos que as metafísicas de sistema sofreram profunda erosão desde o século XVIII, perdendo credibilidade e prestígio na comparação com o progresso científico, mais útil, mais técnico, mais irrefutável (aparentemente). O sistema de dom Deschamps não escaparia à Crítica kantiana, e David Hume não o teria poupado. Contudo, o sistema espinosano não apenas escapou e já beneficiou de várias ressurreições, como marcou de muitos modos o desenvolvimento das filosofias materialistas (ou naturalistas); e não apenas estas, porque sabemos a fortíssima presença de Espinosa no pensamento de G. W. F. Hegel. Dom Deschamps está longe de possuir a envergadura de Espinosa, mas demonstra, por um lado, a influência viva do espinosismo no interior das filosofias materialistas, bem diversas de resto, e, por outro, uma solução para o problema do Ser assaz interessante; tão interessante que ainda hoje é lícito discutir-se se Deschamps foi, ou não, um precursor de uma nova, e mais moderna portanto, dialéctica do Ser.
Vários outros aspectos do pensamento de dom Deschamps poderiam aqui ser relevados, mas iremos fazê-lo no decurso desta dissertação. Refiram-se rapidamente apenas mais dois tópicos: a intuição deveras promissora do que seja a Ideologia (não somente a sua aparência de erro e ilusão, mas, e é isto que é essencial, de efeito necessário de relações sociais de desigualdade e dominação que, deste modo, permanecem ocultas), e a intuição de que a filosofia é também linguagem, ou um puro trabalho sobre a linguagem que exprime adequadamente a existência, derivando daí que a verdade do mundo e da vida se encontre por meio de uma gramática. A fórmula do mundo aloja-se já nas mais básicas locuções do senso-comum: o sim e o não.
Biografia de Deschamps
Considerando que dom Deschamps é um autor quase desconhecido em Portugal, sobretudo pela produção filosófica nacional, achamos adequado inserir uma biografia, embora tal não seja usual em dissertações de doutoramento.
Lèger-Marie Deschamps nasceu em 10 de janeiro de 1716, em Rennes, o quinto de nove irmãos, oriundo de uma família relativamente modesta, que viu a sua situação de algum desafogo ser atingida gravemente por um terrível incêndio. Ingressa muito novo na ordem dos beneditinos, abadia de Saint-Melaine, de Rennes, em 8 de Setembro de 1733, cidade que abandona em 1734. Ignora-se ao certo onde terá recebido formação teológica, provavelmente nos mosteiros de Touraine e de Anjou, até 1743. Em 1745 o seu nome surge incluído no pessoal da abadia de Saint-Julien ; antes, transitara pelo vale do Loire onde se concentravam importantes mosteiros da ordem. Em Tours, colaborou na elaboração de uma história da região de Touraine. A partir de 1762 é destacado para o priorado de Montreuil-Bellay, perto de Saumur, na região de Poitou, nomeado seu procurador. Morre, provavelmente de cirrose, em 19 de abril de 1774.
Declara o próprio que começou a elaborar o seu sistema filosófico a partir dos seus 25 anos, tendo-lhe dedicado os dez anos seguintes. Todavia, tomando como testemunho fidedigno o relato de dom Patert, seu companheiro de abadia e amigo sincero, O Verdadeiro Sistema foi resuluado de um trabalho meditado durante mais de trinta anos, sucessivamente revisto e carescentado com novas explicações. No entanto, conforme declarações do próprio, o escopo principal – as Observations métaphysiques e as Observations morales - estaria terminado no início da década de cinquenta, tendo a obra sofrido posteriormente alterações de pouca monta. O Verdadeiro Sistema é composto de duas partes: As Observações metafísicas, e as Observações morais, todos os demais textos foram redigidos nas duas décadas que levou ainda de vida.
Poucos anos de idade o separavam de Rousseau, Diderot, Helvétius, d’Holbach. Todos alcançaram em vida uma notoriedade que ele jamais alcançou. Apesar disso, dom Deschamps não foi em vida um ilustre desconhecido: correspondeu-se com Helvétius, encontrou-se com Diderot, troucou algumas missivas com Rousseau, Voltaire, d’Alembert.
Orirundo do povo, o monge que nunca conquistou cargos importantes, viveu metade da sua vida no pequeno mosteiro de Montreuil-Bellay, lado a lado com a iséria aflitiva dos camponeses da região. Fisicamente era um dindivíduo corpulento, de temperamento impulsivo. A amaizade que nasceu entre ele e o marquês de Voyer mudou de algum modo o percurso e as ambições. O priemiro encontro verificou-se por volta de 1759. A sua abadia confinava com as vastas terras dos Argenson. O marquês era filho de um ministro da guerra de Luís XV e, por altura do primeiro encontro com Deshamps, já havia feito uma brilhante carreira militar (ilustrou-se na batalha de Fontenoy em 1745, e ascendera aos elevados cargos de governador real de Vincennes, governador militar de Poitou, e outros. O marquês, homem culto e amigo de Philosophes, serviu de intermediário entre Deschamps e alguns dos mais célebres iluministas. O seu temperamento melancólico, que parecia sofrer daquele “aborrecimento” existencial de que se queixaram tantos intelectuais e nobres dessa época, terá seguramente inspirado algumas das páginas mais visionárias do projecto utópico do seu amigo dom Deschamps, que extinguiria de vez as condições da infelicidade. Por outro lado, a fama de libertino não parece haver molestado qualquer escrúpulo moral do monge, o qual, de resto, parece ter apreciado as mulheres e a bebida.
Dom Deschamps fala com compaixão sincera em cartas trocadas com o seu amigo marquês, da brual miséria dos camponesescujas filhas se prostituiam para matar a fome, e que o procuravam constantemente para lhe solicitar auxílio, pedidos que ele remete frequentemente para o marquês. A sua utopia social teve eco na personalidade generosa, e algo atormentada, do grande aristocrata. Um dos seus descendentes haveria de lançar fogo ao próprio castelo no dealbar da Revolução de 1789, e protegeria um dos foragidos do decapitado Movimento dos iguais, o carbonário F. Buonarotti...
Isolado na província, numa minúscula abadia (com apenas dois abades), Deschamps estaria condenado a uma vida completamente provinciana e obscura. Não foi o caso, muito embora se possam atribuir-lhe, por via disso, alguns traços da sua obra e do seu pensamento. Tem sido motivo de perplexidade que Deschamps haja enveredado pela metafísica, com vocação de sistema. Não é de excluir a influência do seu modus vivendi. Em nossa opinião é de relevar tais factos, não apenas pelas dificuldades que encontrou, ou pela independência de que gozou, mas porque devem ser tidos em devida conta para a compreensão de uma forte personalidade que ambicionou afirmar-me num meio relativamente hostil, fora e contra os grandes centros de cultura e de civilização, crítico da Cidade, dos novos costumes, tendendo a considerar frívolos os debates de ideias, e inútil tudo aquilo que respeitamos como Cultura. É legítimo interrogarmo-nos se dom Deschamps não transfigurou o isolamento e as particularidades provincianas da sua vida numa disciplina e orientação de pensamento, austero, ascético, moralizante, numa espécie de ideal de sábio com vocação profética e evangelizadora. Psicologicamente a sua teimada convicção de haver descoberto a Verdade única e universal, prender-se-á de algum modo tanto com a sua formação teológica e as suas meditações solitárias monásticas, como com a imagem que foi forjando de si mesmo nas frequentes estadias no hospitaleiro castelo dos Ormes, propriedade de notabilíssimos condes e marqueses de França, que o escutavam com amizade e admiração. Os seus escritos e os seus comportamentos levam-nos a conceber um indivíduo que, consciente e decididamente se conduziu como um filósofo que transportava o significado último da existência, ao arrepio do filósofo mundano que se populariza então, e que Diderot tão bem soube exprimir. Até neste ponto a influência de Espinosa, que irei demonstrar, ter-se-á manifestado. Espinosa legou para a posteridade essa imagem de sábio desprendido dos bens mundanos. Temos que nos interrogar se nas similitudes com o grande pensador de Haia, filho de judeus portugueses, não se encontraria a presença viva de uma forte, mas bem dissimulada admiração.
Os beneditinos da Congregação de Saint-Maur não eram muito inclinados para metafísicas modernas, na sua formação pesavam sobretudo Platão e Aristóteles, Descartes estava ainda penetrando ao tempo da adolescência de Dom Deschamps, na forma redutora conveniente da escolástica. Espinosa havia sido silenciado pela reforma da ordem encetada por Dom Lami. O afastamento de Espinosa ter-se-á devido com certeza ao opúsculo crítico de Dom Lami, de 1696, intitulado Le nouvel athéisme renversé ou Réfutation du système de Spinoza. É de reter, porque iremos debruçar-nos sobre um texto de Deschamps de refutação do sistema de Espinosa.
Dom Deschamps foi marcado profundamente pela sua amizade com o marquês de Voyer d’Argenson. O castelo deste grande proprietário e grande senhor da corte de Luís XV, situado nas proximidades da abadia de Montreuil-Bellay, constituía um notável centro da vida literária da província. Servira de refúgio ao conde de Argenson, antigo secretário de Estado da Guerra, caído em desgraça em 1757, e amigo dos Philosophes. Diderot e d’Alembert dedicaram-lhe a Enciclopédia. A biblioteca do castelo era famosa. A mansão da ilustre família de admirados intelectuais, era apelidada como Academia dos Ormes.
Não foi com o velho conde que Deschamps estabeleceu amizade, foi com o filho dele, Marc-René, marquês de Voyer d’Argenson, distinto oficial militar de carreira que, até 1762, se havia ilustrado em diversas campanhas militares; tendo alcançado o comando militar da Alta-Alsácia e o cargo de governador de Vincennes é citado com elogios nas Memórias de Frederico da Prússia. Homem de grande cultura, como, de resto, era tradição na família: seu pai e seu tio haviam legado aos contemporâneos escritos de fina inteligência, inclusivamente sobre Portugal. René, ferido numa campanha militar, possuía uma personalidade inquieta e angustiada que dir-se-ia neurótica, e que reflectia bem as perturbações da grande nobreza da sua época, tocado profundamente pela desgraça política de seu pai, pela atmosfera de revolta e ressentimento em que fora educado. É legítimo admitir que o projecto deschampsiano utópico de uma sociedade feliz procurava solucionar também os conflitos da personalidade do controverso marquês, alvo de maldizeres e calúnias lançadas contra ela a partir de Paris, com origem nas invejas de uma nobreza decadente e corrupta.
A correspondência de Deschamps para o marquês inicia-se em 1763 e por ela vemos a sincera amizade que ligava os dois homens. E isto é grandemente significativo, pois que a imagem que fazemos do beneditino, homem grande e obeso, é a de um indivíduo tenaz, ousado, corajoso, capaz de ímpetos apaixonados, inclinado a comportamentos que roçavam a violência, implacável com os seus inimigos.
Montreuil-Bellay situava-se na periferia de uma região na qual o mercado se expandia, e onde surgiam as primeiras manufacturas. Os contrastes geográficos e económicos acentuavam-se rapidamente. Os camponeses de Montreuil-Bellay encontravam-se extremamente empobrecidos, a correspondência de Dom Deschamps relata casos de grande miséria. Uma ambiência social que influencia enormemente a consciência do beneditino. De um lado o vale do Loire, rico em belas vinhas, do outro as matas de Mauges, com uma agricultura de subsistência. Por fim Montreuil que entra em decadência, perdendo predominância com relação a Mauges, lentamente despovoada, desprovida de qualquer núcleo burguês, onde vai morrendo a anterior actividade industrial ligeira (curtumes, entre outras) a jusante do artesanato rural. O próprio comércio de vinhos e aguardentes que percorria o rio que a atravessava, troca Montreuil por Saumur. A população rural perde a única escola para os seus filhos, e não possui meios para pagar os impostos, os rapazes emigram, as raparigas prostituem-se ou demandam os conventos. Bandos de vagabundos pilham as redondezas. São estas misérias que chocam profundamente o coração e o espírito de Dom Deschamps. Não se verifica aqui uma ascensão do capitalismo, com o cortejo das suas misérias, mas, antes, é a burguesia nascente que abandona Montreuil. Estes factos e uma leitura atenta da utopia de Dom Deschamps proíbem-nos interpretações redutoras, do género de que o Autor se opunha ao desenvolvimento do capitalismo, a favor de um desenvolvimento sustentado nas estruturas senhoriais ou feudais. A utopia de Deschamps é uma utopia camponesa, que se compreende melhor à luz desta geografia social, afligida por irresolúveis contradições.
Bibliografia
A explanação e análise das obras de dom Deschamps justificam-se, não só pelo facto do pouco conhecimento e estudo de que ele goza entre nós, como pela razão de que o acervo completo das suas obras somente foi publicado em França há poucos anos atrás. As obras de dom Deschamps vêm identificadas nas notas reunidas no termo da dissertação, com as seguintes siglas:
O .Ph. : œuvres Philosophiques, introduction, édition critique et annotation par Bernard Delhaume, Avant-Propos de André Robinet, 2 tomos, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin,1993. Constitui a primeira edição completa das suas obras.
La Voix : La Voix de la Raison contre la raison du temps, et particulièrement contre celle de l’auteur du Système de la Nature, Par Demandes et Par Réponses. Bruxelas, Georges Frick, 1770.
Em 1863 um académico de nome Émile Beaussire, professor da Faculdade de Letras de Poitiers, descobriu e exumou Le Vrai Système, obra composta por diversos cadernos, cuja autoria se atribuía até então a dom Hugues Mazet, conservador da biblioteca municipal, em 1792, quando, na verdade, este fora somente o copista, que salvou a obra do mestre e mentor de uma minúscula seita da qual ele, dom Mazet, era membro. Esta copia é composta de três tomos, sob o título de La Vérité, ou le Vrai Système, datada de 1775, sem nome do autor. O tomo I, primeiro caderno, é composto pelos textos intitulados « Le Mot de l’énigme métaphysique et morale », e, no segundo caderno, « Précis en quatre thèses du mot de l’énigme métaphysique et morale », e as « Additions »; o tomo II, ou 3º caderno, contem « Le Mot de l’énigme métaphysique et morale, appliqué à la théologie et à la philosophie du temps, par demandes et par réponses ». Os dois volumes identificados por Beaussire constituíam na realidade apenas uma parte da obra; a maior parte do que faltava foi descoberta por uma jovem investigadora russa, quarenta e três anos mais tarde, Elena D. Zajceva (faleceu em Moscovo em 1967. A sua tradução do Vrai Système, revista e anotada por L.S.Gordon, foi somente publicada em 1973, em Moscovo, por Boguslavski, Gordon e Porchenev) – vários cadernos contendo as Observations métaphysiques, Observations Morales, Le Mot de l’énigme métaphysique et morale, Préface, Refléxions métaphysiques préliminaires, Chaîne des vérités dévelopées, Précis en quatre thèses du mot de l’énigme métaphysique et morale.
Le Vrai Système compõe-se de seis cadernos.
De acordo com as pesquisas do Professor B. Delhaume, podemos ficar certos de que Deschamps teria já constituído Le Vrai Système aos 45 anos de idade. Depois disso contactou com várias personalidades de relevo, como já fizémos referência, por intermédio do marquês de Voyer, com a intenção de tactear as possibilidades de publicação, sem sucesso porém.
Apenas uma parte da correspondência está publicada nas Oeuvres Philosophiques. O Professor da Universidade de Poitiers, Bernard Delhaume, já anunciou a publicação de toda a correspondência para breve.
O Prefácio de O Verdadeiro Sistema, foi corrigido depois de 1770, pois regista uma crítica ao Système de la Nature, de d’Holbach, publicado em 1770, sob o nome de Mirabaud.
Em 1771 uma descendente dos Argenson, descobriu no castelo dos Ormes, uma obra intitulada La vérité tirée du fond du puits, que veio a confirmar-se rapidamente ser de dom Deschamps, que se encontra publicada nas Obras Filosóficas. B. Delhaume mostra-se convencido de que este texto representa a forma prospectiva pela qual Deschamps desejava sondar os seus eventuais leitores, para, em seguida, transmitir a doutrina de O Verdadeiro Sistema.
Por conseguinte, dom Deschamps pôde publicar apenas dois opúsculos, mas jamais O Verdadeiro Sistema, o qual chegou ao conhecimento de um público muito restrito somente em plena segunda metade do século XIX. Esta edição, a edição de E. Beaussire, é fiel aos manuscritos, mas a introdução que deles faz é extremamente crítica. E. Beaussire era um académico profundamente anti-hegeliano, e viu no sistema de dom Deschamps um “antecedente” francês do hegelianismo, um precursor da dialéctica do filósofo de Berlim, assunto a que iremos voltar com mais demora. Foi, portanto, o hegelianismo que encontra e que o incomoda, e não Espinosa ou o espinosismo.
Dom Deschamps redigiu um texto com o qual pretendeu afastar as suspeições sobre um eventual compromisso com o espinosismo; na verdade fez quatro versões dessa Réfutation courte et simple du système de Spinoza, que enviou ao seu amigo marquês entre Março e Julho de 1766:«Songez que c’est à vous que je dois l’idée de cette Réfutation, et que cette idée est la lus exquise qui pût m’être suggérée pour faire tomber les armes des mains de tout croyant, et pour donner aux mécréants ce qui leur manquait, la vraie raison de l’être, ou, plutôt, pour les préparer à cette raison.»
Rousseau, d’Alembert e outros mais haviam encontrado o espinosismo nas peças do Système que Deschamps lhes havia mostrado. A carta parece indicar que o próprio marquês necessitava dessa refutação para aderir com mais confiança às ideias do monge. Refutar Espinosa, ou sjea, o espinosismo, constituía para Deschamps, a partir de certa altura (anos 66?) uma atitude indispensável e urgente para seduzir de todo o seu amigo, os ilustres convivas que se hospedavam regularmente no castelo dos Ormes, e desbravar caminho para a publicação da obra de uma vida.
Advertência
Optámos por dividir a nossa exposição em duas partes. Na Parte I expomos a ontologia do sistema, na Parte II procedemos à análise do seu projecto de uma utopia social. Na medida em que o sistema é fechado, circular e consequente, não pudémos evitar realizar algumas incursões nas ideias expostas na Parte II. Um dos eixos desta dissertação – a presença tutelar do espinosismo- é explicitada principalmente na Parte I. O mesmo sucede com a segunda intenção que foi colocar à reflexão o problema do(s) materialismo(s) no século XVIII, século das Luzes, a apartir das teses materialistas de dom Deschamps. Na medida em que os mais importantes materialistas da época não ignoraram de modo algum o monismo espinosista, que até teriam feito inflectir o espinosismo em direcção a um materialismo (os “espinosistas modernos”, na famosa qualificação de Diderot) conforme o julgam alguns intérpretes, julgamos nós que se justifica a relativamente extensa análise da heterogeneidade de tal corrente filosófica, sem subtrairmos a hipótese de existir nela um denominador comum.
O Verdadeiro Sistema
Parte I
Capítulo 1 – A Existência pura
Introdução
Numa época em que a vanguarda do pensamento e da cultura se orientava para a experiência, para a observação dos fenómenos naturais, para as ciências particulares, a linguagem e o corpo das ideias de dom Deschamps apresenta-se como um acontecimento aparentemente retrógrado. Que novidade poderia oferecer um sistema declaradamente fechado e definitivo, pelo qual tudo ficava dito e depois do qual nada mais haveria para investigar?
No entanto, iremos verificar que o seu sistema não fora o último nem o único na década de sessenta do século XVIII, embora haja sido o mais singular e ousado.
É entre os Philosophes que Deschamps encontrará resistências incontornáveis. O seu conceito de natureza, por exemplo, apresenta-se demasiado abstracto, generalista, quase a contra-corrente, aos olhos dos seus contemporâneos, que já davam passos na análise empírica e experimental. As especulações de Deschamps não suscitam interesse num d’Alembert por exemplo, e Voltaire manifesta uma recepção algo irónica e desprendida.
Dom Deschamps foi um metafísico de sistema. Buscou um princípio, ou fundamento, e dele deduziu uma série lógica de consequências.
O corpo principal das suas teses constitui o que ele intitulou La Vérité, ou Le Vrai Système. O O programa anuncia-se desde logo no título do primeiro caderno: a revelação de Le Mot de l’Énigme Métaphysique et Morale.
Devemos, por conseguinte, iniciar a nossa exposição pela definição primeira, pelo axioma fundamental na organização do sistema.
Os termos designam-se por O Todo (Le Tout) e Tudo (Tout).
Tout e Le Tout são os princípios do Ser e do pensar. Par de opostos, compõem o plano metafísico da noção nuclear de Existência ( Existence). Le Tout é o Uno, a Unidade, ser universal que une os entes e as coisas; é composto por “partes”, isto é, particularidades finitas que ele classifica como nuances ou modificações do todo. É o domínio da pura relatividade do devir. É o reino da relação entre partes. Pelo contrário, Tout é a negação das relações e, portanto, do devir. É assim que ele o classifica de Existência “em si”. Sem a negação não haveria a firmação de Le Tout, que é a Natureza.
Para Deschamps existe apenas uma e somente uma substância: a Existência. Pode ser apreendida sob o seu aspecto positivo. que é Le Tout, ou sob a seu aspecto negativo, a que ele chama Tout. Muito embora ele fale em dois seres, noutras fala num só. Porque então critica Espinosa, como iremos verificar?
Escreve Espinosa: « Entendo por substância o que existe em si e é concebido por si, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa pelo qual deva ser formado.»
Numa primeira abordagem, esta definição não é respeitada por dom Deschamps: «Tout, que de modo nenhum fala de partes, existe e é inseparável de Le Tout universal, que fala de partes, e do qual ele é a afirmação e a negação simultaneamente. Tout e Le Tout são os dois nomes do enigma da Existência, nomes que o grito da verdade distinguiu colocando-as na nossa linguagem.»
Há que optar: ou a substância, em rigor, apenas se aplica à Existência, ou ele admite duas.
«entendo por Tout, a existência em si, a existência por ela mesma, isto é a existência considerada como fazendo um só e mesmo ser que não se distingue mais então dos seres, como sendo o ser único, e, consequentemente, sem relação, ou, como já o disse, sem existência por meio de outra coisa senão por ela mesma. »
A definição de Tout corresponde, nestes termos, à definição clássica e rigorosa de substância, ou causa sui: aquilo que é em-si, sem necessitar de outra coisa (ou substância) para existir. Neste sentido, equivale à definição filosófica e teológica de Deus. Contudo, o problema situa-se entre Descartes e Espinosa: o primeiro, como se sabe, recorre à ambiguidade, isto é, à concepção “operatória” de duas, se não mesmo de três, substâncias: res cogitans, res extensa, e a substância divina, dotada esta de atributos especiais. Espinosa, garantidamente contra Descartes, afirma a unicidade da substância. Uma única substância, porém, dotada de dois atributos essenciais, entre outros: Pensamento e Extensão.
Parece, por conseguinte, que a única substância, para Deschamps, é a Existência, que ele designa também por Tout : “Tout, ou o ser único”
Entretanto, Le Tout é o “princípio », como ele escreve : “De Le Tout, que é o princípio”
Impõe-se, portanto, uma definição adequada e uma interpretação que sobreleve outras. Dom Deschamps mostra conhecer muito bem a problemática que envolve a definição de Substância. Malebranche era bem conhecido na ordem dos beneditinos, o cartesianismo seguramente, Espinosa, em segunda mão pelo menos, ou seja, já refutado. À sua maneira, com originalidade, encontra uma nova solução: a tese dos “dois contrários”, dos “dois últimos extremos possíveis”. A tese dos “dois pontos de vista”. O que seria para Espinosa a natura naturata, é para ele Le Tout. Sendo contrários entre si, Le Tout e Tout, tal solução “escapa” às “dificuldades” de Espinosa. Julgava ele.
Que entende Espinosa por substância?
«Entendo por substância o que existe em si e é concebido por si, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa pelo qual deva ser formado.»
E por atributo?
«Entendo por atributo o que o entendimento percebe da substância como constituindo a essência dela.»
Não existe qualquer ambiguidade na exposição e na argumentação de Espinosa: Não há duas substâncias com o mesmo atributo; não há duas ou mais substâncias com atributos diferentes; um ser absolutamente infinito deve ser necessariamente definido como um ser que é constituído por uma infinidade de atributos, cada um dos quais exprime determinada essência eterna e infinita.
A nosso ver, a inspiração mais fecunda vem do espinosismo. Apesar da fórmula dos contrários, assumida como eixo fundamental do sistema.
Exposta assim resumidamente a questão essencial, isto é, o problema da substância, erguem-se numerosas interrogações. Deschamps atacou-as de frente, fosse por meio de interlocutores, fosse por um notável esforço de exposição argumentativa. O Verdadeiro Sistema contém as teses e os seus desenvolvimentos e explicações, mas outros longos textos mais tardios apontam para a mesma direcção, sem quebras e sem revisões de fundo: definir o conceito de totalidade e deduzir as consequências. Às vezes com muita repetição, quase em círculo, pois que, de certo modo, um sistema assim é comparável a um círculo.
Os cadernos principais que consubstanciam o corpo e o cerne das suas ideias, intitulam-se La Vérité, ou Le Vrai Système, o Tomo I – Le Mot de l’énigme métaphysique et morale ; Epître à mês semblables les hommes ; Préface; Réflexions métaphysiques préliminaires ; Chaîne des vérités développées ; Précis en quatre thèses du mot de l’énigme métaphysique et morale ; Additions à l’appui de ce qui précède. O Tomo II – Le Mot de l’énigme métaphysique et moarale, appliqué à la théologie et à la philosophie du temps, par demandes et par réponses. O Tomo III –Observations morales . O Tomo IV – Observations métaphysiques. O Tomo V – Tentatives sur quesques-uns de nos philosophes, au sujet de la Vérité.
Deste modo, o essencial está contido nas Observações metafísicas e nas Observações morais, sendo que estas contêm, sobretudo, a solução utópica dos problemas existenciais dos homens.
No Prefácio, Deschamps alerta, desde logo, para que não o confundam com as “nossas semi-luzes filosóficas, tão justamente encaradas como perigosas, (porque) destroem sem estabelecer”, enquanto que a verdade do seu sistema “estabelece incontestavelmente”.
Não basta a crítica destrutiva, pois esta é o que faz a “filosofia reinante”, isto é, a filosofia das luzes na sua vertente mais violentamente anticlerical, que ameaça conduzir-nos para uma “revolução”, sempre a evitar como tão perigosa como inútil, pois “não impedirá o estado de leis divinas e humanas de subsistir, e o mal moral, do qual este estado é a causa, de existir com a mesma força, embora sob outros disfarces”
O ateismo só tem de comum com O Verdadeiro Sistema, o facto de rejeitarem ambos a religião, porém existe uma extrema diferença:” é que O Verdadeiro Sistema ao negar a moral do teísmo afirma a metafísica, donde extrai uma moral, enquanto que o ateísmo, porque não conhece princípio algum, nega um e outra, e deixa-nos com uma moral arbitrária”.
Porque a metafísica tem por objecto considerar os seres “em grande, em geral, em total; considerá-los naquilo que eles possuem todos de rigorosamente comum”.
Por conseguinte, Deschamps é rigorosamente um metafísico de sistema, e procede em conformidade: buscou e encontrou um fundamento, ou de acordo com as suas palavras: o fin fond da existência.
Na medida em que Deschamps organizou o seu sistema numa intensa atmosfera espinosista, achamos adequado descrever essa atmosfera. Afinal de contas, aquilo que pretendemos demonstrar é precisamente a presença do espinosismo em dom Deschamps, muito embora não exclusivamente.
1. 1. O espinosismo no Século XVIII
Ninguém escapa incólume a mais de cinquenta anos de censuras, torções, perseguição dos seus escritos, aleivosias sobre a sua vida e personalidade. Nada adiantaríamos de novo se disséssemos que Espinosa sofreu de tudo em vida e depois de morto. Muito poucos ombreiam com ele nessas histórias negras de que é feita a história das ideias.
Quando dom Deschamps declara haver terminado o seu sistema, à entrada da década de sessenta, já o próprio cartesianismo claudicava como fonte inspiradora dos seus contemporâneos. Sem esta crise das metafísicas, é mais difícil interpretar as ideias de dom Deschamps.
Os mais célebres Philosophes, Voltaire, d’Alembert, Diderot, d’Holbach, haviam lido Espinosa. Todos eles reagiram, de uma maneira ou doutra, ao ousado sistema do filho de portugueses.
O espinosismo, mal lido e compreendido o mais das vezes, é instrumentalizado na luta contra o pensamento mais conservador, e banido por este. Manuscritos clandestinos, bibliotecas discretas, reuniões conspirativas contra a Igreja instalada no poder, tudo serve, e o espinosismo é útil para o mais cerrado combate ao clericalismo.
«Espinosista, s.m. (Gram.), partidário da filosofia de Espinosa. Convém não confundir os espinosistas antigos com os espinosistas modernos. O princípio geral destes, é que a matéria é sensível, o que eles demonstram pelo desenvolvimento do ovo, corpo inerte, que, unicamente devido ao calor graduado, passa ao estado de ser sensível e vivo, e pelo crescimento de tudo que é animal que, no seu princípio, é apenas um ponto, e que, pela assimilação nutritiva das plantas, numa palavra, de todas as substâncias que servem à nutrição, torna-se um grande corpo sensível e vivo em um grande espaço. Desse facto concluem que somente existe a matéria,e que ela basta para tudo explicar; no resto, seguem o antigo espinosismo em todas as suas concequências.»
Diderot, autor desta citação, por um lado aceita sem reservas a ÉTICA, nas suas consequências, que são de monta, e inseparáveis dos postulados, axiomas e definições, por outro, satiriza um certo espinosismo no Jacques, le Fataliste. Terá lido na íntegra a ÉTICA, e no original? Os especialistas duvidam profundamente. Julgamos nós que Diderot satiriza, ou aponta-lhe os excessos, o fatalismo de d’Holbach, isto é, o modo como este utiliza a herança espinosista. Mas esta sátira parece claudicar, nas últimas palavras sentidas e elogiosas proferidas por Jacques relativamente ao seu capitão fatalista...O melhor seria, segundo Diderot, actualizar Espinosa com um novo vitalismo. O exemplo do “ovo”, que exprime o problema científico capital, é elucidativo : trata-se da questão essencial, isto é, da criação, do aparecimento da vida, da emergência do novo, qualitativamente novo, da capacidade criadoramente fecunda da natureza. E isto remete-nos para as apregoadas “dificuldades” do sistema de Espinosa, aparentes ou reais. Escutam-se aqui os ecos da famosa crítica de Pierre Bayle, enviesada, ao sistema de Espinosa: depois de haver caracterizado Espinosa como “um ateu de sistema”, considera que não é nessária uma longa e complicada disputa com ele, porque basta “refutar a proposição que está na base do seu sistema...:saber que Deus é a única substância que existe no universo, e que todas as outras são modificações desta substância»,« uma suposição tão estranha, que ela desloca a maior parte das noções comuns que servem de regra nas discussões filosóficas;...é a mais monstruosa hipótese que se possa imaginar, a mais absurda e a mais diametralmente oposta às noções mais evidentes do nosso espírito».
Não é um dado adquirido que Bayle haja lido Espinosa na totalidade, e sobram dúvidas sobre a interpretação de algumas das suas teses. Retomaremos o célebre artigo de P. Bayle em altura que nos parece mais oportuna.
A ideia, por exemplo, de que a filosofia de Espinosa se assemelhava ao pensamento oriental, ou do extremo oriente, seguira o seu caminho sem ninguém que se opusesse, o que é verdadeiramente surpreendente e coloca a um historiador da filosofia graves suspeitas sobre os modos como se fabricam os legados e os putativos herdeiros.
Desde Bayle e Malebranche, a Fénelon e ao Padre Tournemine, mestre de Voltaire. Descobrir coincidências genéricas é uma coisa, afirmar filiações é outra bem diversa.
À mistura com o pensamento científico que tenta abrir caminho, sopram os ventos a favor de modas, de mistérios, de superstições eruditas, de hilozoísmos antigos, de Giordano Bruno e Campanella restaurados, de filosofias orientais, de Cabala. Na profusão dos escritos mais medíocres ou mais ilustrados, Espinosa transforma-se numa espécie de prêt-à-porter, que, quanto mais se utiliza, mais se degrada. E sempre Bayle: a classificação da filosofia de Espinosa como puro panteísmo. Ate hoje, porque ainda agora lemos e escutamos tal identificação, ou para denegrir, ou para emprestar autoridade a novas utopias, ou simplesmente porque a tendência para reduzir e “compactar” um pensamento complexo e um sistema em uma fórmula cómoda, embora inútil e vazia, é recorrente.
Separar as águas, distinguir os panteísmos renascentistas e orientais, do materialismo e, neste pé, recuperar Espinosa, foi trabalho duro, mas minoritário, de alguns espinosistas do século dezoito. Trabalho nem sempre isento de assimilações apressadas que torciam convenientemente o pensamento espinosano. É justo, no entanto, reconhecer que os mais importantes corifeus quer do materialismo, quer do naturalismo, realizaram esforços notáveis para conservarem uma relação honesta com o espinosismo, ou com aquilo que tomaram como sendo as verdadeiras teses de Espinosa, rompendo com algumas delas sempre que as considerassem desadequadas aos novos contextos. O materialismo (que é, aliás, bem diverso) do século dezoito francês não é um puro espinosismo. O materialismo construiu os seus próprios caminhos.
Introduzir o movimento na matéria, por exemplo, eis a tarefa a que se dedicaram Diderot, d’Holbach, Robinet, naturalistas vários, deístas, panteístas, ateus. Eram os passos hesitantes das ciências da vida, lentamente sacudindo o lastro dos naturalismos e dos panteísmos.
O alvo dos ataques de boa parte dos textos publicados nesses anos, em edições anónimas ou com falsos nomes, é o antropomorfismo, indo-se buscar apoio na crítica da concepção antropomórfica de Deus, a Espinosa. No entanto, de Espinosa há pouco, e o que se faz tomar como espinsosismo é contrário à atitude espinosana : este respeitava a Bíblia, aqueles escritos não. São usuais as caricaturas de um Deus « ciumento » e « colérico », insiste-se na convicção de que a natureza não é imperfeita, pois que tudo decorre da Necessidade interna que ela contém, que Deus é Natureza, e esta é a soma, ou o conjunto, de todos os seres, de todas as propriedades e de todas as energias.
Certamente que Espinosa jamais escreveu em parte alguma que Deus equivalia à pura materialidade, e determinadas teses adulteravam gravemente o seu pensamento, revelando uma falta de cuidado, que se explica menos pela displicência e superficialidade, e mais pela intenção de forçar o caminho às ideias materialistas, mesmo que inconsistentes e contaminadas por panteísmos. Também nos parece evidente que o propósito principal, se não mesmo o único, destes escritos, era atacar a religião oficial e a Igreja. É o anti-clericalismo que está em marcha. O espinosismo, ou melhor, uma versão fraca e popular do espinosismo, foi utilizada como uma eficaz ferramenta ideológica e política pelos mais diferentes quadrantes ideológicos.
Queremos insistir neste ponto: as entorses que o sistema de Espinosa sofreu, e as críticas de que foi alvo, não se resumem àqueles, e foram muitos, que o recusaram e combateram, mas igualmente procederam assim aqueles que, em certos aspectos, até por ele se deixaram influenciar. Neste vasto grupo havemos de incluir o próprio Malebranche, que foi um dos maître-à-penser, e Pierre Bayle evidentemente. A tese Deus sive natura, propiciava as mais diversas interpretações. Para Malebranche, por exemplo, e isto foi muito significativo e carregado de consequências, a perfeição divina mostrava-se inconciliável com a expressão de Espinosa: Deus havia de ser um ente diferente e superior ao mundo por ele criado. Todas estas interrogações que temos vindo aqui a mencionar, estão presentes nos textos de Dom Deschamps. Ele mostra conhecê-las perfeitamente.
Pierre Bayle escreveu no Dicionário ( art. “Spinoza”): « Assim, no sistema de Espinosa, todos aqueles que dizem : Os Alemães mataram dez mil Turcos, falam mal e falsamente, a menos que eles queiram dizer que Deus modificado em Alemães tenha morto Deus modificado em dez mil Turcos ; e é assim que todas as frases pelas quais se exprime o que fazem os homens uns contra os outros só podem ter este sentido verdadeiro : Deus odeia-se a si mesmo, pede graças a si mesmo, e a si mesmo se recusa ; persegue-se, mata-se, come-se, caluinia-se, levanta-se sobre o cadafalso»”
Esta incompreensão de Deus sive natura, gravou-se indelevelmente nos vindouros. Espinosa foi convertido e reconvertido num panteísta. E num ateu puro e duro. Porém, quando falamos de Bayle não devemos esquecer o seu método expositivo e o seu estilo irónico, ou seja, não é inusitado admitir que ele, nesta frase, transmitia adequadamente o pensamento de Espinosa, através de uma hábil caricatura e dissimulação: a crítica espinosana do antropomorfismo não é veiculada?
A incompreensão revelada por Fénelon, por exemplo, que apenas conseguiu ver em Espinosa uma identificação de Deus com a totalidade das criaturas, é tanto mais curiosa quanto ele próprio acaba por argumentar no terreno construído pelo próprio Espinosa: Deus ou o Ser absoluto, infinito, não poderia ser composto de partes; o infinito de que fala, ou o “infinito infinitamente infinito” de Malebranche, corresponde, afinal, à substância em Espinosa e à anterioridade da substância relativamente às suas afecções...
A questão da eternidade dos modos, por um lado, e, por outro, da sua existência temporal, é outra face de uma controvérsia que gerou muitas confusões. A confusão entre Deus e as coisas não está presente de modo algum nas teses da ÉTICA, e todo o génio filosófico de Espinosa foi precisamente no sentido de evitá-la. De outro modo não faria qualquer sentido a figuração negativa que Espinosa construiu do indivíduo alienado e esquecido. Ou seja, Deus é a totalidade infinita, a ordem necessária e imanente, e não é, de modo algum, este ou aquele indivíduo, impelido pelo seu conatus a perseverar na existência particular, muitas vzes de modo egocêntrico, iludido pelo seu valor real, iludido pelo seu verdadeiro papel na ordem do mundo, ou submetido, inerme, resignado e infeliz.
Aquilo que a teologia adversária não queria, não poderia, aceitar, era a tese espinosana da necessidade. A todo o custo, impunha-se para ela a inclusão do livre-arbítrio do Criador e, por tabela, a distinção das criaturas relativamente ao Criador. É aqui que reside, em nosso ver, o carácter irredutível das posições. Ora, neste ponto, não há dúvidas : Espinosa orientou grande parte do seu esforço de argumentação contra as crenças no livre-arbítrio. O que surpreende e choca muitos é precisamente a arquitectura determinista, como usualmente se diz, do seu sistema. Uma natureza autoprodutiva, autoregulada, alheia aos valores, que dispensa sacerdotes para a descoberta da verdade, embora se tolerem para as questões de fé.
Foi também por estes caminhos de receio e de ortodoxia, de recusa ou incompreensão, que se estabeleceu e consolidou a fama de um Espinosa ateu, que realmente não o foi no rigor da terminologia. Esta má fama perturbou o próprio Dom Deschamps, que considera Espinosa como tal, e se esforça por livrar-se da mesma acusação. Em boa verdade, fica-se com a convicção de que, dos dois, era Deschamps realmente o ateu.
Pierre Bayle caracterizou, desde logo, Espinosa como « um ateu de sistema ». Situou a crítica na proposição da substância única, que se encontra na base do seu sistema, e passou em seguida a refutá-la. Todos os contornos desta atitude perduraram quase intactos até aos textos de refutação que Dom Deschamps irá redigir décadas mais tarde. É uma autêntica tradição, uma herança. Não é a obra genuína e íntegra do seu autor, não é o tratamento analítico e progressivo dos seus textos, mesmo que em tradução fiável, é uma interpretação, que hoje não recomendaríamos a ninguém, que perdura como uma instituição, uma verdade. Não é Espinosa que circula, é uma outra versão.
P. Bayle expõe deste modo o pensamento de Espinosa : «saber que Deus é a única substância que existe no universo, e que todos os outros seres são modificações desta substância.» Corresponde quase literalmente àquilo que Deschamps irá transcrever. E Bayle conclui: «uma suposição tão estranha, que subverte a maior parte das noções comuns que servem de regra nas discussões filosóficas; ...é a mais monstruosa hipótese que se possa imaginar, a mais absurda e a mais diametralmente oposta às noções mais evidentes do nosso espírito.»
O que está escrito, ficou escrito, a sua crítica e fez-se verdade de escola. Contudo, iríamos mal, se acreditássemos nas aparências do estilo. Pierre Bayle aperfeiçoou um estilo tão hábil que iria ser retomado vezes sem conta pelos bons espíritos do século XVIII. Se o século dezoito tem alguma particularidade em atitudes de interpretação, ela é, seguramente, este estilo fino, penetrante e irónico que Voltaire e Diderot souberam aperfeiçoar a um nível insuperado. Quem ler apressadamente toma a crítica como uma refutação cerrada sem margem para compromissos, quando o que se passa na verdade, é uma hábil estratégia de disssimulação. Os contemporâneos haveriam de saber ler entre linhas, interpretar o elogio sob o disfarce da ironia aparentemente implacável, a verdade sob o manto da retórica. Os tempos iam difíceis, e foram-se agravando adentro do século. Cada um fazia o seu serviço: os chefes da Igreja, os autores de panfletos anónimos, os espiões, os esbirros. Notar-se-á esse estilo, feito de cuidados e alçapões, nos artigos da Enciclopédia, particularmente nesse mestre que foi Diderot. O importante era sacudir a eventual acusação de ateísmo. São as palavras de Bayle, as sucessivas repetições das suas palavras, que atormentam dom Deschamps. Não é que ele receie, pelo menos nas páginas que nunca publicou, defender o ateísmo, mas não deseja na sua consciência “dar o flanco” às críticas consolidadas. Ele próprio admite a consistência destas. Ele próprio se esforçou por “corrigir” o sistema de Espinosa. São estas razões da razão pública e privada, que julgamos dever merecer a nossa atenção. Tentaremos estabelecer, até ao termo desta dissertação, que dom Deschamps se apresenta tal qual ele se confessa: um profeta iluminado por um “ateísmo esclarecido”, e que o seu sistema somente se compreende completamente à luz do espinosismo. Isto é, a metafísica de dom Deschamps, em pleno século, não se confronta com mais nenhuma outra metafísica, se não com a sombra de Espinosa. Forjaram-se outras e novas metafísicas, envolvidas por um naturalismo deísta, como a de Jean-Baptiste Robinet por exemplo (onde, aliás, se perfilam sinais da presença de espinosismo), mas aquela que poderia ser, do mesmo modo, classificada como a “mais monstruosa hipótese” e a mais absurda, seria a de dom Deschamps, se tivesse sido publicada na íntegra. Ele tinha consciência disso, e verificou-o nos encontros que teve com os mais diversos interlocutores. No entanto, não são de somenos importância as suas diferenças com as ideias expostas pelo próprio Espinosa.
Aquilo que o célebre P. Bayle ensinou a quem o quis entender, foi um método de raciocinar sobre ideias próprias e ideias de outros. O seu mérito não reside apenas nas informações que prestou aos iniciados, mas, sobretudo, na atitude pedagógica exigente de acreditarmos somente naquilo que a razão demonstra e esclarece. Se houvesse que escolher um pioneiro das Luzes francesas, escolhê-lo-íamos. Foi este o legado que Deschamps recolheu, e não os insultos, os gracejos, alguma ironia fácil, em que outros, bem mais do que Bayle, se comprazeram. Pensar no interior do sistema a refutar, não de fora, detectar-lhe as fragilidades, ambiguidades, contradições, eis o essencial. E importa considerar que Deschamps não foi seguidor, de modo algum do nominalismo de P. Bayle. Talvez por isso, pôde assimilar melhor a ontologia de Espinosa. Uma determinada forma de Bayle ser materialista, à maneira de Gassendi, restringia-lhe a ideia de extensão à realidade divisível, bem diferente da extensão abstracta e indivisível de que fala Espinosa, que categoriza esta como um atributo da substância infinita. Iremos verificar que efeitos produzirá esta leitura redutora sobre as soluções de Deschamps, originais mas não tanto como ele julga. Para Bayle, o sistema de Espinosa encerra um problema da unicidade da substância; daí deriva a sua objecção segundo a qual Espinosa tenta evitar a ideia refutável de um ser composto, substituindo a palavra “parte” pela palavra “modificação”. Estas aparentes fugas e contradições de Espinosa, serão encaradas por Deschamps como reais, o qual utiliza ambos os termos: partes e modificações, mas aplicáveis apenas ao todo físico e material, destacando, por isso mesmo, um outro todo “absolutamente absoluto”: o infinito. Ao julgar que refuta Espinosa e, ao mesmo tempo, descobre a solução melhor, atravessa para a outra margem através da ponte que o próprio Espinosa construiu. A solução está longe de ser a mesma, mas a diferenciação dos atributos encontra-se lá. O TUDO (Tout) é toda a Existência. Não equivale liminarmente à soma das modificações, mas, pelo contrário, à outra perspectiva com que se deve encarar a totalidade ordenada dos seres.
Condillac refere Espinosa no seu Traité des systèmes. O abade Condillac exerceu uma enorme influência nos rumos novos do pensamento, em particular nos philosophes, num novo exercício do pensar, que valoriza a experiência sensível e apouca as metafísicas de sistema. É todo um nominalismo que está em marcha. Nesta nova atitude, o sistema de Espinosa é um alvo especial da crítica das noções abstractas, sem fundamento na experiência, produtos da imaginação. De uma banda, os teólogos, de outra, os sensualistas, a perseguir os passos do empirismo inglês. Contudo, o ponto de vista dos últimos é mais ajustado, independentemente de ser ou não mais verdadeiro, queremos dizer que é uma crítica legítima vinda de quem leu seguramente o próprio autor. Condillac traduziu a primeira parte da ÉTICA. Aqui o trazemos para fornecer um elemento mais ao cenário ou ao meio no qual se movimenta o nosso beneditino.
Este panorama dá-nos a sensação de que Espinosa constitui um dos mais fascinantes enigmas da história das ideias no ocidente, que nos abala certezas cómodas que tivéssemos sobre uma pretensa autonomia integral das ideias relativamente aos outros fenómenos da vida colectiva. Um filósofo que todos julgam conhecer, e pouco ou nada conhecem em grande parte dos casos, cujas teses circulam o mais das vezes clandestinamente, que, em rigor, não são dele, que parece estar presente nas, ou sob, as novas concepções de naturalistas e materialistas, mas que quase nenhum assume. Surpreendente.
A influência do espinosismo conservou-se por essa Europa fora, mesmo que truncado e reduzido a uma caricatura, para se assistir, por fim, ao seu renascimento no termo já do século dezoito na Alemanha de Jacobi. É um longo e largo percurso que não podemos resumir neste capítulo. O que importa é adiantar para o nosso projecto este dado que é talvez mais uma interrogação : se admitirmos, como nós admitimos, que uma determinada corrente do materialismo francês do Século XVIII, encabeçada sobretudo por d’Holbach, levou a cabo uma separação relativamente ao espinosismo, sendo que esse corte lhe permitiu apoiar o ateísmo em bases materialistas, não abandonando a tese de uma substância única com diversos atributos ou propriedades gerais, não teria este acto propiciado uma leitura de um Espinosa não ateu? Não é esta leitura que iremos encontrar na filosofia alemã? E, enfim seria esta interpretação mais conforme ao rigor do Texto espinosano, ou assistimos, ao invés, a novas deturpações?
Seja como for, o que nos compete, neste trabalho, é demonstrar que dom Deschamps não tentou recuperar o “teísmo” de Espinosa; bem pelo contrário, tendo-o tomado definitivamente como um ateu, tratou de construir um “ateísmo esclarecido”. Entre o seu propósito e o de d’Holbach, ou de Diderot, não existem aqui divergências de fundo. As divergências são outras.
Em seguida, ensaiamos um breve resumo daquelas teses de Espinosa que mais úteis nos sejam para compreender as teses de dom Deschamps. A intenção é, agora, não um espinosismo de segunda ou terceira mão, mas tentar expor com o rigor que nos é possível as ideias principais contidas na ÉTICA.
1.2. Apresentação breve das ideias de Espinosa
Tem, por conseguinte, como objectivo esta exposição resumida da filosofia de Bento Espinosa clarificar aquelas teses e aqueles conceitos que mais se adequam ao nosso propósito de estabelecermos um paralelismo com O Verdadeiro Sistema, de dom Deschamps, de modo a que as semelhanças, e também naturalmente as diferenças, ganhem relevo demonstrativo. Evidentemente que qualquer exposição denuncia o ponto de vista de quem expõe, ainda que se baseie nos textos e na correspondência do Autor, tanto mais quando se trata de um Autor, como Espinosa, tão despojado de retórica autoreferente. Expomos, portanto, a nossa interpretação não tanto daquilo que Espinosa tinha em mente, mas segundo aquilo que ele efectivamente escreveu. Assim se evidenciarão, porventura, os acertos e desacertos da Refutação que dom Deschamps lhe dirige, ora porque pressupõe o conhecimento directo da obra, ora porque falha na medida em que simplesmente refuta um Espinosa deturpado.
O seu autor foi alguém que quis fazer da sua vida um projecto de máxima liberdade, sabendo que nunca a alcançaria nas condições que os outros a determinam, e desejou partilhar esse projecto connosco, sem impor, argumentando, definindo, analisando, desmontando muito daquilo que em nós julgamos mais sólido. Lutou por uma sociedade democrática, onde se pode pensar e dizer o mais livremente que ele julgava possível, mas percebeu perfeitamente que esta sociedade só é melhor porque se permite um pensamento mais liberto do simples obedecer – obedecer ao Estado, às regras consensuais-, muito embora viver em sociedade significa, quer queiramos quer não, obedecer a regras convencionais. As noções de mal e bem, de mérito e demérito, etc., exprimem isso mesmo : simples ou complexas regras, respeito, piedade, obediência, pois que todas estas noções adequam-se melhor ou pior à natureza humana e aos fins sociais historicamente determinados.
A vida de Espinosa é uma imagem positiva de afirmação e de amor à vida, que identifica com a alegria. Realizou uma crítica implacável das atitudes que nutrem ódio à vida, que se rodeiam de cultos da morte, do homem envergonhado, culpado, arrependido, invejoso, ressentido, que sufoca a vida com leis, propriedades, deveres, impérios, às quais Espinosa chama “traições” à vida, ao universo. O que há de pior no homem? A invenção da morte interior, esse universo sado-masoquista do escravo-tirano. Quanto de semelhante encontramos em dom Deschamps!
Qual é a tese teórica central do espinosismo? Acreditamos ser esta: há uma só substância que possui uma infinidade de atributos, Deus sive natura, sendo todos os seres apenas modos destes atributos ou modificações desta substância. Embora os atributos sejam infinitos, a inteligência limitada do homem só pode alcançar dois: a extensão e o pensamento. E mesmo aqui, não conhece tudo, e é pouco até o que conhece. Esforçar-se por conhecer é, portanto, uma paixão alegre, positiva. Unir-se ao todo, perceber o encadeamento de todas as coisas, das causas e dos efeitos, totalidade na qual tudo tem uma razão, um nexo, uma necessidade imanente. Assim sendo, é rejeitada a existência efectiva de qualquer entidade transcendente criadora e justiceira, remetem-se estas fantasmagorias para o império do desejo e da imaginação, da mecânica psicológica do medo e da servidão. Unicidade da substância, univocidade dos atributos, imanência absoluta, identidade entre o material e o pensamento (dois atributos distintos e paralelos da mesma substância). Como não ver aqui a tese de que tudo que existe é natureza, sendo o pensamento uma dimensão, gozando de autonomia, da mesma e única natureza? Espinosa passa páginas e páginas a recusar qualquer verdade objectiva a um Deus antropomórfico, à criação extra-natura, ao finalismo moral, ao dualismo, à transcendência. Como chegar, porém, a ser consciente de si mesmo, de Deus e das coisas, quando a nossa consciência parece inseparável das ilusões?
Como conseguir formar ideias adequadas, promotoras de sentimentos activos, positivos, quando parecemos condenados, pela nossa limitada natureza, a não ter senão ideias inadequadas?
Absoluta é só a substância una e única, infinitos, mas não absolutos, são os seus atributos (infinitos no seu género); Deus exprime a potência absoluta de existir e de agir, a potência absoluta de pensar e de compreender – duas potências do absoluto que são iguais e não se confundem com os atributos que conhecemos.
A acepção do conceito de Razão, em Espinosa, tem ocupado muitos comentadores. De entre muitos, preferimos seguir a análise desenvolvida por Maria Luísa Ribeiro Ferreira. A “razão abrangente”, a “razão constitutiva”, e citamos a autora, “sobreleva a representacional pois a categoria da representação é desvalorizada em detrimento da identificação, da sintonia com o Todo” A razão, para Espinosa, possui uma dimensão ontológica, é fundamento e causa.
Além destas acepções espinosanas da razão, esta é ainda um modo da acção dos homens. “Mas, a verdadeira capacidade de agir do homem, ou seja, a sua virtude é a própria Razão (pela proposição 3 da Parte III), que o homem contempla clara e distintamente”
Em dom Deschamps o termo “Razão” é utilizado como equivalente a “Entendimento”, que é superior à mera “inteligência” comum. Tal faculdade, do Entendimento, é plenamente potente, como se evidencia no título do sistema do beneditino : “O Verdadeiro Sistema”, ou seja, “A Verdade”. A Razão, que exprime a unidade do todo, exprime a outra dimensão do todo : o Tudo que é a Existência. Não existem sinais em dom Deschamps de que utilize a distinção espinosana entre razão e entendimento : no livro IV da ÈTICA, o entendimento é identificado com a razão “Por conseguinte é sumamente útil aperfeiçoar o entendimento ou a razão tanto quanto pudermos”; porém, no livro II, diz o seguinte : “De tudo o que acima foi dito, resulta claramente que nós temos muitas percepções e formamos noções universais : 1º Das coisas singulares que os sentidos representam mutiladas, confusas e sem ordem à inteligência ; por esta razão, tomei o hábito de chamar a essas percepções conhecimento pela experiência vaga.
2º Dos sinais, por exemplo, do facto de termos ouvido ou lido certas palavras, nos redordamos das coisas e delas formamos ideias semelhantes àquelas pelas quais imagibnamos as coisas. Para o futuro, chamarei a essas duas maneiras de considerar as coisas : conhecimento do primeiro género, opinião ou imaginação.
3º Finalmente, do facto de termos noções comuns e ideias adequadas das propriedades das coisas. A este género, darei o nome de Razão e conhecimento do segundo género.
Além destes dois géneros de conhecimento, há ainda um terceiro como o mostrarei a seguir, a que chamaremos ciência intuitiva. Este género de conhecimento procede da ideia adequada da essência formal de certos atributos de Deus para o conhecimento adequado da essência das coisas”.
Muito embora dom Deschamps não persiga linearmente as formulações de Espinosa, ele forjou um par de categorias com um papel decisivo no seu sistema: Tudo (Tout) e O Todo (Le Tout), ou, por equivalência, o Nada (Le Rien) e o universo; porém, a realidade última e verdadeira, o absolutamente absoluto como ele escreve por vezes, é a Existência; ora, a Existência é única. No primeiro caso, no par de contrários, temos um primeiro momento do desenvolvimento da verdade; mas esta distinção tem que ser superada, isto é, a negação envolve a identidade. A Existência é, ao mesmo tempo, uma coisa e o seu contrário. Este é um dos eixos principais da nossa dissertação. Esta posição filosófica é monista; apenas numa leitura superficial pode sugerir um dualismo. A Existência possui dois atributos ao alcance da nossa compreensão humana: ora como natureza-mundo, ora como nadificação absoluta. È a fórmula de Espinosa? Claro que não, de modo algum. E, no entanto, é um monismo sem sombra de dúvidas, como se irá demonstrar nas muitas páginas desta dissertação. Fala-se de uma realidade única, que pode ser encarada de duas maneiras. No contexto filosófico e cultural em que se move dom Deschamps, isto que fica dito, evoca necessariamente o espectro do espinosismo.
Que é o atributo, para Espinosa? É aquilo que o entendimento percebe da substância como constituindo a sua essência; não é uma maneira de ver entre outras possíveis, uma perspectiva, mas aquilo que é. Nem é, tão pouco, uma “emanação” da substância, pois que esta não é superior aos seus atributos. Cada atributo exprime uma determinada “essência”. Nem sequer o atributo reside no entendimento (não pertence ao reino dos produtos sociais da consciência); o atributo exprime-se e isto implica necessariamente um entendimento que o perceba ( tudo é natureza, tudo é, em essência, o mesmo)..
Nós apenas conhecemos dois atributos, e entretanto sabemos que existe uma infinidade. E porque sabemos? Sabemo-lo porque resulta necessariamente da definição de infinito, da definição de uma substância autoprodutiva. Apenas conhecemos dois porque só podemos conceber como infinitas as qualidades que envolvem a nossa essência: o pensamento e a extensão, enquanto somos espírito e corpo.
Sabemos que há uma infinidade de atributos, porque Deus é ele mesmo uma potência absolutamente infinita de existir, que não se deixa esgotar nem pelo pensamento nem pela extensão.
A natureza é “natura naturans” e “natura naturata”. Como natureza “naturans ”, é substância, ou Deus. É eterna, e infinita, causa e efeito, essência e existência. Nesta “essência” há, ou julgamos ver, um feixe (infinito?) de possibilidades, algo que nos obriga a evocar o conceito de “potencialidade”, em Aristóteles, conceito tão rico que hoje abre caminho de novo entre as ciências. Não transparece uma imagem fechada do mundo e da vida, mas perfila-se um largo horizonte de possíveis e de mudanças.
E há uma diferença entre essência e existência: nas coisas separadas, passageiras e finitas, a essência não coincide com a sua existência, mas na substância única, eterna e infinita, desprende-se necessariamente da sua essência a sua existência.
Por isso a existência de Deus (ou da substância) pode ser demonstrada, isto é, deduzida do conceito de essência de Deus (a natureza).
O ser da substância é, ao mesmo tempo, necessário e livre, já que não existe causa alguma que mova a substância à acção que não seja da sua própria essência. A imagem de uma racionalidade livre e socialmente ética revela-nos a imagem de um Deus livre, e não um Deus determinado a agir por fatalidade: um tal comportamento corresponde melhor a máquinas e a servos.
A coisa individual não se desprende da substância como de sua causa próxima. Só pode derivar de outra coisa finita. Por isso, não possui liberdade absoluta.
Os modos constituem o conjunto das coisas finitas; modo é aquilo que não existe por si mesmo, mas sim em outro, ou por outro. A substância é única, a sua essência exclui toda a pluralidade. Pelo contrário, os modos são infinitos. Pontos de uma recta. A natureza, como substância, existe em si mesma, por si mesma, com todas as suas propriedades, com independência e à margem da mente. A mente infinita poderia captar a substância – em todos os seus tipos e aspectos- como infinita. A nossa mente, porém, não é infinita. Por essa razão percebe a essência da substância como infinita somente em dois sentidos : primeiro, como extensão, e, segundo, como pensamento.
O homem, como objecto do conhecimento, não constitui excepção alguma na estrutura geral do mundo. Tudo que é humano, pode submeter-se à análise tal como qualquer outro fenómeno da natureza.
Daqui, Espinosa arranca para a ética. Ciência que deduz as suas normas das leis objectivas dos actos humanos, e não de valorações subjectivas. Naturaliza a ética, ao mesmo tempo que a “socializa”.
Foi, Bento Espinosa, um pioneiro entre os pioneiros, porque tratou a psicologia dos actos humanos como um físico estuda os fenómenos, buscando leis, ou seja, regularidades, reduções ao mais simples e fundamental, à “mecânica” (não no sentido pejorativo, mas antes naquele sentido de “mecanismos” de que falou S. Freud) das paixões ou afectos. Sublinhava com ênfase dois tipos : alegria e tristeza. Qual a sua causa? A tendência de todas as coisas a conservar a sua existência. Não nos guiamos sobretudo pela atracção do bem, nem pela rejeição do mal, mas sim pela tendência à autoconservação e ao benefício próprio. A virtude é exclusivamente potência humana, e esta é determinada somente pelo esforço com que o homem deseja conservar a sua existência. Nega a independência da vontade relativamente aos seus motivos, a nossa natureza é necessariamente dependente das paixões e dos afectos.
A coisa que existe necessariamente (ou é determinada) pode, ao mesmo tempo, ser livre se existe por necessidade somente da sua própria natureza. Neste sentido, é livre, em primeiro lugar, a substância Natureza, pois que a sua existência deve-se apenas à sua própria essência. Em segundo lugar, neste sentido também é livre o homem, podendo emancipar-se da escravidão, sob determinadas condições. Qualquer afecto pode deixar de ser um estado passivo, quando fazemos uma ideia clara e precisa dele, desde que o conheçamos. A liberdade é, portanto, o conhecimento da necessidade.
Conhecer não significa abandonar todos os afectos, permitir-se não sofrê-los. Tal como um mau hábito se cura adquirindo um outro hábito mais forte, assim o conhecimento se torna um afecto (afecção). O que é o afecto do amor? A alegria acompanhada pela ideia da sua causa exterior. E um tipo particular de amor, é o amor pelo conhecimento. Estes afectos podem, assim, lutar contra outros e vencê-los. A humanidade do homem é uma conquista, e o homem um campo de batalhas. A nossa exposição faz pressupor em Espinosa uma compreensão dialéctica de cada indivíduo na relação com os outros e consigo mesmo.
A alegria (proporcionada pelo conhecimento, por exemplo) pode, deste modo, conduzir-nos para uma máxima liberdade (rodeando-nos sempre de cautelas, ou de sistemas de alarme) – nem a inocência, nem a ingenuidade, cabem aqui, excepto nas crianças (que, por isso, precisam de protecção e educação). Nesta batalha dos afectos, usamos um espécie de linguagem bélica: repressão, astúcia, cautela, desconfiança. O homem é um ser activo e a vida uma série de actos de dominação/libertação, dependência/autonomia, criação/conservação.
Certamente que podemos considerar o tipo ideal de vida, em Espinosa, demasiado redutor, ou seja, se for lido deste modo: será livre somente o sábio que renunciou à vida material... Contudo, é admirável a coerência da sua vida com o seu pensamento, numa época em que os prazeres materiais eram já abundantes (sobretudo na Holanda progressiva e burguesa), e nada na sua biografia demonstra que ele houvesse aspirado aos negócios pelo seu lado lucrativo e aos rendimentos, contentando-se com uma situação digna mas frugal É irreprimível uma aproximação com o “cauteloso” Descartes, seu contemporâneo, que sempre foi um profundo individualista cioso do seu isolamento e conforto (era frágil de saúde também), pouco dado a cargos e honrarias, a amizades mundanas (que achava que eram perda de tempo e um insulto à inteligência),
A imaginação desempenha um importante papel na conduta humana, no entanto ocupa o último lugar, ou grau, na escala do conhecimento. “Não somos nós quem afirma ou nega algo de uma coisa, mas é ela própria que em nós afirma ou nega algo de si mesma”. “Ela” quem? A alma...Ou seja, a ideia, quando o é (verdadeira), auto afirma-se, pois que a verdade é necessidade, não é por simples vontade ou capricho que escolhemos esta ou aquela como verdadeira, ela é evidente; ou ainda, entendimento e vontade identificam-se no acto de conhecer; é absurdo que alguém diga : essa ideia é verdadeira, mas eu quero que ela seja falsa!. Podemos fugir da luz do dia, mas não eliminá-la. Não temos nós esta experiência de uma verdade que nos persegue porque nos magoa? Quando se sublinha o carácter necessário das coisas (e das causas), perdemos em liberdade?
A descoberta das ideias (ou são elas que nos descobrem a nós?) e a sua expressão, não acontece, no entanto, de fora para dentro, porque elas não são entes, mas actos do entendimento e da vontade; envolvem-se de consciência e de afectos.
São três os géneros de conhecimento, e, a cada um deles, corresponde determinada forma de consciência e determinados afectos. A equivocidade reina no primeiro género, o mais inferior. Aqui, das coisas, temos apenas sinais, ou signos, frágeis indicações, mais atmosféricas que os sinais de trânsito. Na Psicologia contemporânea dizemos ícones, esquemas, estereótipos. Ideias inadequadas e afectos-paixões correspondentes.
O segundo género é composto de noções comuns – ideias gerais. Ainda não são definições, porque estas cabem apenas no terceiro género; nem são princípios, pela mesma razão. O termo “cavalo” não explica, nem expõe a essência do animal ; os termos “amor”, “esperança”, etc. Mas produzem, por associação e analogia, afectos De simpatia ou antipatia. O primeiro género permite a sobrevivência; o segundo a integração e a convivência (obedecer, desejar, conhecer por meio da ciência). Com os dois géneros conseguimos alcançar certezas somente por mediações ; no terceiro, as ideias impõem-se pela evidência e precisão, por intuição. O método é conhecer pelas causas. A causa adequada é o critério do conhecimento verdadeiro. O conhecimento humano está sempre dependente do conhecimento das causas que produzem os efeitos; só uma mente divina poderia escapar a isto e “ver” o todo de uma só vez...Estamos condenados ao “encadeamento”. Por definição conhecer o efeito é conhecer a causa. A mente é suficientemente potente para vir a compreender que tudo é necessário, isto é, que o que existe foi determinado a existir e a produzir efeitos por meio de uma ligação infinita de causas. Apresenta-nos aqui uma atitude genética : a descrição de um fenómeno passa pela sua explicação.
Os conceitos obedecem, por conseguinte, a uma ordem genética de construção. Ambicionar captar a ordem lógica das coisas, é ambicionar a construção de sínteses; quando são adequadas, constituem o supremo acto da inteligência, e verifica-se nos produtos mais conseguidos dos grandes espíritos. As melhores definições são as que explicam a geração de uma coisa ( disse Hobbes, e Espinosa retoma). Que é um círculo? A rotação de uma recta. Não existem critérios a priori, extrínsecos à verdade e que permitiriam reconhecê-la ; é na medida que conhecemos que os critérios se estabelecem, durante e não antes. Se para forjar o ferro, os homens precisam de um martelo, este só se produz no acto de forjar, e no processo se vai aperfeiçoando. O papel da prática assume assim, em Espinosa, toda a sua importância. Atenção à génese, atenção ao processo, atenção à prática – eis exemplos de teses admiráveis e percursoras. Construir, progredir em acto, exprimir – tudo anúncios carregados de modernidade. Adoptamos esta leitura do pensamento de Espinosa, contra outras. Vemos Espinosa como um artesão, um operário, que foi, usando exemplos extraídos da sua actividade, e não apenas buscados à geometria. Um espantoso espírito, um príncipe dos filósofos, que, todavia (ou por isso mesmo), foi operário-artesão...Manuseando coisas delicadas, polindo, construindo, percebeu que aquilo que melhor define o homem é a produção, e, sem os produtores, não existiria mundo humano. A dignidade do trabalho criador ( mesmo que rotineiro e reprodutivo), a dignidade do trabalhador. Na organização de uma sociedade pacífica, os homens actuam desencadeando paixões positivas que fomentam a unidade do corpo social.
Há afectos que repugnam à razão – como a esperança e o medo, a sobrestima e o despeito, a comiseração, a indignação, a humildade, a tristeza, o arrependimento, o orgulho máximo. Mas há outras, como por exemplo o favor, o contentamento de si, a glória, que a favorecem e cujo exercício robustece as capacidades racionais. Devemos recorrer à imaginação para aumentarmos a potência da mente. A mente é também o poder, e a necessidade, de imaginar aquilo que aumenta a potência de agir do corpo. Ou seja, manipulemos as nossas paixões, e as dos outros, de modo a que as condutas não repugnem demasiado à razão. Valorizemos o conhecimento, mas saibamos que nenhum conhecimento modifica a fragilidade da condição humana, essas naturezas apaixonadas que vêm o melhor mas praticam o mal. Uma paixão só se combate com uma paixão mais forte. A razão não deve criar ilusões excessivas (apaixonadas...) sobre o seu poder de eliminar os afectos; ela própria deve, para melhor combater os piores, transformar-se em paixão, em afecto.
O conhecimento só por si não leva à acção. Espinosa (na ÉTICA) persegue um objectivo muito concreto: a procura da felicidade. Valorização de tudo que nos contenta, daí o valor supremo da alegria, é o desejo de ser feliz que comanda o processo ético. O mal não reside na Natureza, mas na nossa imaginação e nos nossos afectos tristes. O ser, a essência da Natureza é o bem; o ser e o dever ser coincidem.
O desejo diz respeito ao homem, mas está presente em todas as coisas sob a designação de “conatus”. É um esforço universal de perseverança e de resistência, e de apropriação, e é uma determinação da Substância, visto que esta é eminentemente activa. “Potentia” e “conatus” são equivalentes (“potentia sive conatus”). Conservação e manutenção do ser próprio, eis a essência de cada coisa. Em todo o real circula um desejo e uma afirmação de ser.
Que nos ensina a filosofia? Que a realidade última é infinita, que essa realidade tem de conter necessariamente em si mesma todo o ser. Deus não pode estar fora do mundo.
Relativamente ao método, como iremos verificar também em Deschamps, o que é mais importante não são os dispositivos técnicos da geometria, mas a dedução lógica de proposições extraídas de definições que expressam ideias claras e distintas e de axiomas evidentes por si mesmos. Entre os sistemas do século XVIII francês, naturalmente aqueles que conhecemos, o que mais se aproxima da exposição tipicamente espinosana, é o de dom Deschamps, ainda que ele não use a terminologia das “definições e axiomas”. É verdade que esta diferença, que não é tão acessória como isso, basta para estabelecer diferenças entre os métodos de ambos, contudo nem o método expositivo-demonstrativo, ou dedutivo, de Deschamps é escolástico (como já temos visto referir), nem a diferença mexe com o rigor lógico. De resto, dom Deschamps afirma amiúde a necessidade de se estabelecer um bom “princípio”, e quando critica os outros, o próprio Espinosa incluído, é o “princípio” deles, ou a sua ausência.
Relativamente à substância divina, em Espinosa, ela deve ser considerada como anterior tanto na ordem ontológica como na ordem das ideias. Em Deschamps assiste-se à anterioridade da categoria Tout. A Existência determina o nosso pensar, a nossa existência natural, a nossa linguagem, mesmo a mais comum. Quando dizemos sim e não, já intuimos o carácter contraditório da Existência. Pensamos nela porque existimos. Somos infelizes porque não a compreendemos.
A substância, para Espinosa, é “causa de si mesma”: explica-se por si mesma e não por meio de uma causa externa; a definição de substância implica, portanto, que a esta é completamente dependente de si mesma, não dependendo de nenhuma causa externa, nem para a sua existência nem para a dos seus atributos e modificações. Dizer tal coisa é dizer que a sua essência compreende a sua existência.
“Por ‘atributo’ entendo aquilo que o entendimento percebe como constituindo a essência de uma substância.” Por conseguinte, segue-se que, se duas substâncias possuíssem os mesmos atributos, possuiriam a mesma essência ; nesse caso não haveria razão para falar delas como “duas”, porque não poderíamos distingui-las. Porém, se não pode haver duas ou mais substâncias que possuam o mesmo atributo, a substância não pode ser limitada ou finita. Tem, pois, que ser infinita. Situamo-nos no âmago da Refutação do princípio de Espinosa, redigida por Deschamps, e que iremos abordar com minúcia.
A substância infinita tem que possuir infinitos atributos. “Quanta mais realidade ou ser possui uma coisa, tantos mais atributos terá.” Cada atributo expressa uma essência eterna e infinita.
Em Espinosa, Deus não se distingue da natureza; se se distinguisse, se existem outras substâncias que não fossem Deus, Deus não seria infinito.
Em Deschamps, aquilo que ele denomina Deus-não criador (Tout) distingue-se de Deus-criador (Le Tout)? É por isso que ele fala em “dois seres”, refutando Espinosa? Ou, de facto, Deus-criador e Deus-não criador não são mais do que as duas perspectivas com que podemos falar da Existência? Esta é a questão.
Os conceitos e as questões que mais aproximam dom Deschamps de Espinosa, parecem-nos ser o lugar determinante do conceito de natureza, de uma natureza dotada de uma ordem racional e necessária; uma concepção da totalidade contendo simultaneamente uma dimensão ontológica e gnosiológica; a adequação, ou não - ou o acordo- do corpo e da mente e de cada corpo com os demais, com esse todo; os dois atributos do todo: o infinito-eternidade e o finito-duração; os três géneros de conhecimento e, evidentemente, a possibilidade de transportar o conhecimento da substância única para uma radical reorientação da nossa existência.
Pelo contrário, a crítica radical da civilização e a consequente utopia da vida campesina, o mais absoluto igualitarismo que dissolve a individualidade, em Deschamps, parecem-nos distantes do pensamento espinosano; um projecto marcado pela especificidade histórica de uma sociedade e de uma época e, naturalmente, pela biografia concreta do monge filósofo.
Torna-se muito difícil aceitar que Deschamps fosse de todo insensível à personalidade e ao modo de vida de Espinosa: como é possível que não tenha visto nele um homem bom e sábio, cujas virtudes e modo de existência tanto se aproximam das virtudes que ele próprio, dom Deschamps, aconselha antes do estabelecimento da sociedade ideal - o estado de costumes -, e que serão, afinal, traços fortes e colectivos da moralidade que vingará nessa sociedade do porvir? Como não admitir que a salvação e a beatitude de que fala Espinosa não ecoam estridentemente no sistema de vida salvífico de dom Deschamps?
Além disso, Espinosa foi um perseguido pelos poderes dominantes, pelo dogmatismo e atté fanatismo religiosos, foi um excluído em vida e depois da morte. Espinosa teve de usar de cautela e os seus discípulos recorreram ao disfarce para transmitir as suas ideias, parecendo que as censuravam. É verdadeiramente improvável que tudo isto não tivesse aproximado Deschamps da vida e da herança do filósofo de Haia.
1.3. Os conceitos de O Todo e Tudo em dom Deschamps
Passemos à exposição e análise crítica do pensamento singular de dom Deschamps. Vimos já que nele, como sistema metafísico que o é assumidamente, a noção de substância é nuclear, ou seja, é o princípio e o fundamento. Expor a filosofia de Deschamps é necessariamente falar dos conceitos de TODO, no plural.
O termo de todo (tout) é contemporâneo, é mesmo uma das marcas paradigmáticas do pensamento do século. Encontramo-la como matriz no célebre Testamento do pároco Jean Meslier, no livro O Homem-Máquina de La Mettrie, no extenso tratado Da Natureza de Jean-Baptiste Robinet, nas obras de Denis Diderot, do barão d’Holbach (“il n’existe rien au-delà du grand tout”), do próprio Rousseau, em diversos autores sem projecção especial, em textos anónimos e clandestinos. É uma espécie de palavra mágica, contentor do que se quisesse transportar, noite onde todos os gatos são pardos, invólucro ora de ideias brilhantes, como nos autores referidos acima, ora de profusas confusões.
O referente do termo tout, ou grand tout, é sempre a natureza. O termo ( e as suas diversas conexões) não surge inopinadamente, é uma espécie de tanque para onde desaguam heranças filosóficas do século dezassete, mas é também um cadinho onde se misturam e fervem intenções naturalistas muito próprias do século das Luzes. Se não o termo, pelo menos a ideia de totalidade cósmica, associada à controvérsia da substância única ou múltipla, preocupou particularmente Descartes, Espinosa, Gassendi, Malebranche, inclusivamente o próprio Pierre Bayle. Sob a designação de matéria, é a ideia recorrente do materialismo, em qualquer das suas versões.
Dom Deschamps não utiliza com frequência o termo substância, mas, sim, o termo Tout. É esta fórmula substitutiva - O Todo, em vez de Substância - com maiúscula, que faz do sistema de dom Deschamps um sistema fortemente característico, mas não caracteriza menos - sem maiúscula – o “sistema da natureza” do barão d’Holbach e seus discípulos. Na medida em que o livro deste - Système de la nature - é publicado em 1771, e é nesta obra que a expressão grand tout mais vezes surge e desempenha um papel primacial, então é de concluir que Deschamps não lhe foi pedir o termo de empréstimo, mesmo que se saiba perfeitamente que as ideias do barão, e do seu círculo, circulavam antes da obra ser publicada. Visto que dom Deschamps não reconhece a paternidade da noção de Todo a mais alguém senão a ele mesmo, entende-se, contudo, claramente, que ele utiliza o termo com o novo sentido e lugar que ele lhe fornece, confrontando-se com os significados que outros lhe atribuem. Por outro lado, dom Deschamps insiste frequentemente na afirmação de que não é o criador ex nihilo dos termos que utiliza, admitindo que outros estiveram bem próximos da Verdade, proferiram ideias verdadeiras, exprimiram, como ele escreve, “gritos da verdade”.
A Thèse I, do Précis en quatre thèses du mot de l’énigme métaphysique et morale, diz o seguinte :
« Le Tout universal é um ser que existe. É o fundo do qual os seres sensíveis são as nuances.”
A análise de Deschamps persegue um fio lógico condutor: se existem partes, segue-se, consequentemente, que existem “somas” dos elementos particulares, “colectivos” ou noções conjuntivas gerais. Os “todos” hão de reunir-se numa totalidade última, absolutamente abrangente. «Mas qual a verdade mais verdadeira do que a da existência do ser nomeado o universo?»
Um nome “colectivo” é uma “generalidade”, mas sobre este “geral” é sempre possível sobrepor outro nome “geral”. A Terra constitui um globo pertencente a uma totalidade mais vasta, o universo. Resumida a questão deste modo, nada se anunciaria no horizonte da linguagem, excepto quando se traz para a liça a física de Newton e a abordagem anti-metafísica dos novos naturalistas. A Física científica, em primeiro lugar, porque fortalece a hipótese de Bruno de um universo infinito, e enfraquece a noção de uma totalidade fechada; a atitude empirista, em segundo lugar, porque retoma, com mais energia, a crítica dos “universais”, considerando-os simples nomes com validade meramente lógica. Deschamps, em contra-corrente, defende a validade dos conceitos, com teúdos objectivos:«A árvore em geral não existe de modo nenhum, segundo o vosso entendimento, é como vós didissésseis que a generalidade das árvores não existisse de modo algum. Então que é a a´rvore em geral senão a generalidade das árvores? Ora, se a generalidade das árvores existe, porque não há-de existir a generalidade dos seres, ou, o que vale o mesmo, o ser em geral?»
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Um dos textos mais importantes da obra de dom Deschamps é o próprio prefácio que redigiu à exposição do texto principal, La Vérité ou le Vrai système, muito provavelmente no termo da década de sessenta, numa altura em que ainda tencionaria certamente publicá-lo. É tanto mais elucidativo, quanto demonstra a solidez das suas convicções; muito embora apresentem correcções, são elas ligeiras, o núcleo permanece intacto desde uma década antes pelo menos, e apesar das intensas discussões na mansão hospitaleira do marquês de Voyer, com grandes figuras da intelectualidade francesa.
No Prefácio escreve o seguinte : “ entendo por Le Tout, o todo do universo, o universo, a matéria, o mundo, a natureza, o ser uno pelos seres em número que o compõem, a existência considerada por relação, o princípio e o termo, o começo e o fim, a causa e o efeito, o movimento e o repouso, o pleno e o vazio, o bem e o mal, a ordem e a desordem, &c.”
Por conseguinte, nada parece mais fácil e linear: se dizemos “coisas”, “partes”, etc., também havemos de dizer o conjunto, a conjunção, o todo. Ao nível da gramática da língua, e da própria semântica normal e usual, tudo isto é claro. Não vemos que fossem outros os caminhos que conduziram os seus contemporâneos a utilizarem tão frequentemente a expressão grand tout, com base precisamente na linguagem. Sucede, porém, que “partes” e “todo” podem não ser mais que nomes...
Dom Deschamps enfrenta o tremendo desafio e, com aquele racionaismo ousado que vemos manifestarem tantos bons espíritos do seu tempo, julga haver descoberto a solução:
« A soma dos seres, [que é] efectivamente de uma outra natureza em relação a estes, tomados parcial e distributivamente, jamais foi considerada nem em si nem relativamente aos seres em particular ; e é somente isto que era necessário considerar para encontrar a verdade.»
Tal soma é puramente ideal, ou intelectual, pela sua natureza, reconhece Deschamps, contudo «existe incontestavelmente» e »possui dois aspectos contrários, dois aspectos dos quais um nega o outro, o aspecto positivo, ou relativo, da primeira relação, que exprime o ser uno, ou Le Tout, e o aspecto negativo que exprime o ser único, ou Tout ; o aspecto do finito, o único ser metafísico, e o do infinito, ou do Nada, que o nega. Tout é esta soma, tudo é Tout pela não-separação efectiva de cada coisa com todas as outras coisas, embora cada coisa pareça possuir uma existência à parte.»
Esta categoria de inseparabilidade «que faz uma mesma coisa de todas as coisas, um universo de todos os seres, ou, o equivalente, que faz que todas as coisas possuam no fundo a mesma existência, é a Existência, a mesma em tudo e em toda a parte, é, para nos referirmos ao homem, que não é mais o homem mas o ser, o Entendimento, o intelecto, a pura concepção, a ideia inata, os sentidos de concerto e de acordo; e é por meio da inteligência, faculdade puramente física, que esta Existência, ou o intelecto, podia ser desenvolvida. Nós fizémos desta Existência que não morre de modo nenhum, conjuntamente com as engrenagens da nossa máquina, que são as nossas ideias adquiridas, os nossos pensamentos e as nossas sensações, uma alma que sobrevive ao nosso corpo.”
Esta longa citação justifica-se porque, como de resto ele próprio o diz nesta nota, é um “esboço” da sua “verdade primeira”, a qual, nesta “cadeia” que dá o título, se argumenta e desenvolve. O trecho contém o essencial das teses de dom Deschamps.
Damos conta, desde logo, da escrita dura e algo penosa do nosso autor. Por essa altura escrevia-se muito melhor, e estamos em crer que Deschamps ressente-se dessa “incapacidade”, um assomo de ressentimento contra os literatos, e muita impaciência quando verifica a todo o momento que não é compreendido...excepto pelo seu amigo marquês, do qual não conhecemos contra-argumentação alguma, e por muito poucos discípulos. Mais renitente nos parece a esposa do marquês, conforme se constata em um manuscrito...
Este esboço do sistema provoca muitas interrogações. Mas apeguemo-nos por ora à ideia de Le Tout.
“Não os imiteis, ó sábio leitor que procurais esclarecer-vos; e dizei aqui qual é a verdade mais simples : A Soma dos Seres Existe, Não vos restarás depois senão saber o que é esta soma, e chegareis ao termo bastando para tanto que me leias : não me tereis entendido, se não ficardes convencido. » Esta afirmação de Deschamps situa o problema: o todo é da ordem das ideias somente, ou existe efectivamente? É apenas uma noção útil, instrumental, isto é, uma categoria abstracta, ou é uma substância? Dizendo melhor: a substância?
Ao tempo de Deschamps, concretamente nas décadas de sessenta e setenta, o termo “tout” era sobejamente utilizado, como já o afirmámos. O filósofo d’Holbach, na obra publicada em 1771, Le Système de la nature, refere-se largamente ao grand tout; no entanto, reside no conceito uma profunda ambiguidade: não concluimos com clareza se d’Holbach o considera uma simples ideia, mais ou menos operatória, se o considera com uma existência efectiva. Numa primeira análise parece que neste, como em muitos mais dos modernos, trata-se de uma ideia, uma criação intelectual, pois que não pode ser observada e experimentada; mas uma ideia também pode ser “real”, não apenas enquanto “coisa” do intelecto, mas na medida em que refere a realidade dos conjuntos, e do conjunto dos conjuntos. Não existe somente aquilo que é um dado dos sentidos.
Em dom Deschamps a “soma dos seres” existe no sentido de que é a unidade do mundo, a totalidade objectiva que reune e relaciona entre si todos os seres.
« O Nada é um ser: é Tout ; o sensível, encarado como conceito geral ou metafísico, é um ser: é Le Tout; estes dois seres, Tout e Le Tout, são o mesmo ser, são a Existência observada na sua soma, sob os seus dois aspectos essencialmente contrários, sob o aspecto do não e do sim; sob o aspecto que não diz respeito a partes e sob aquele que o diz; sob o aspecto que nega os outros seres com excepção dele mesmo e sob o aspecto que os afirma. “
Se existem partes, há de existir a soma, a totalidade. Expresso desta maneira, poucos não estariam então de acordo com este argumento lógico. Porém tanto este fragmento, como, sobretudo, todo o texto do seu Verdadeiro Sistema, e complementos, não permitem que reduzamos a sua argumentação a uma coisa assim tão pobre. Se nem mesmo o filósofo Hegel foi justo ao reduzir o pensamento de d’Holbach a um “todo” superficial, mais injustos seríamos nós se resumissemos dom Deschamps a uma fórmula frouxa de uma totalidade composta de partes.
Muito mais complicada é a “gramática”, no tópico que se refere ao “sim” e “não”. A contenda não está nas palavras, mas nos conceitos; a dificuldade maior encontra-se na definição de existência efectiva. O ser O Todo (Le Tout) existe efectivamente? A resposta é afirmativa: essa totalidade, na medida em que é o universo, natural ou material, existe objectivamente. A metafísica dá conta da realidade objectiva deste mundo.
No sistema de Deschamps, O Todo (Le Tout) é uma das duas palavras (les deux mots) do “enigma”: enigma da existência, enigma da filosofia; e é por isso que este é tão simples e fácil de decifrar, segundo ele. Dizemos “todo e tudo” e não pensamos nas consequências. Porém, se pensarmos com o entendimento (se filosofarmos), eis que a solução nos é repentinamente revelada. E, então, temos de extrair as respectivas consequências.
O conceito de O Todo (Le Tout), em Deschamps, remete-nos para duas questões essenciais: a primeira é compreender como se alcança e organiza este conceito. A segunda, prende-se com a noção de matéria e, portanto, com a expressão filosófica de materialismo. Por outras palavras: o plano gnoseológico e o plano ontológico.
Dom Deschamps, com excepção do texto que já referimos de “refutação” de Espinosa, raramente nomeia os filósofos e os sistemas que ele, afinal, ambiciona haver ultrapassado. As nomeações mais usuais dirigem-se a d’Holbach (a quem atribui o nome de Mirabaud, pseudónimo sob o qual se ocultava o barão) e a Espinosa. Segundo a nossa opinião, os dois incomodam-no particularmente, na exacta medida em que ele compreende perfeitamente as afinidades que possui com eles, a importância que eles possuem ao tempo, e a necessidade de disfarçar alguma coisa para não se ver comprometido com os sistemas mais “radicais” da sua época. A verdade é que, sendo ele mesmo ainda mais “radical”, esforça-se, no entanto, por propor uma moral, dimensão que faltaria aos dois primeiros para poderem vir a ser admitidos.
Porque é que o conceito de Le Tout desempenha neste contexto um papel decisivo? Pela razão de que a sua definição “exige”, no sentido lógico, a passagem para o seu contrário, o conceito de Tout, que poderíamos traduzir por “Tudo”. É nesse passo que Deschamps julga ultrapassar as insuficiências de d’Holbach e de Espinosa, ou seja por meio da distinção entre Le Tout e Tout.
O objectivo da metafísica é, assim, aprofundar a diferença, que já é evidente na linguagem comum, entre os dois termos. A lógica e a linguagem comum já exprimem “gritos da verdade” (expressão que é utilizada também por d’Holbach). O senso comum, a linguagem comum, já contém o gérmen da verdade. O par Le Tout/Tout é o fruto maduro da escalada filosófica. Não é preciso, portanto, romper com o discurso, enveredar por uma linguagem esotérica, seja pela gíria dos metafísicos e místicos, seja pelo jargão dos cientistas. Segundo ele a “gramática metafísica” é a expressão racional de elementos que já existem na gramática comum: é o caso do “sim” e do “não”.
As nossas línguas naturais são compostas de termos físicos, morais e metafísicos. A linguagem exprime, desde logo, as três formas de ligação a tudo e a todos: fisicamente pela identidade natural, moralmente pelas leis sociais, metafisicamente através de Le Tout.
O uno, Le Tout, exprime o composto, enquanto Tout não fala de partes: o infinito, a eternidade, o nada, não se compõem de partes... Esta é a chave, infindavelmente repetida. Este é o núcleo da linguagem comum, antes mesmo de ser tão civilizada como o é agora no estado avançado das leis. Deschamps descobriu-o e quer dele fazer o cadinho da Verdade.
Os seres singulares constituem somente partes de outras partes, colectivos compreendidos, por sua vez, na generalidade de toda a generalidade que é Le Tout. A inteligência percepciona este indivíduo singular, Pedro ou Paulo. Porém, apenas o entendimento percebe que ele está em perfeita interdependência com todos os seres. Do menos ao mais, cada indivíduo, cada ser, é uma relação, um ponto de luz numa série em movimento.
O que é o plano metafísico? É o físico encarado colectivamente. Quando se exprime por termos “colectivos gerais positivos”, é o uno e o todo. Quando antepomos o artigo “o” ao Todo, falamos no colectivo geral de toda a generalidade, na soma absoluta. Da coisa ou indivíduo singulares à totalidade superlativa, o mundo.
Conceber conjuntos até conceber totalidades, uma espécie de taxinomia aristotélica.
As noções gerais hão de necessariamente formar uma noção global final, um todo que faz a unidade. A lógica das categorias.
Deschamps não concede nada à fé e ao irracional. A intuição da Existência pertence ao cume de uma escalada, do geral ao ainda mais geral. Seria aristotelismo (e escolástica), não fora a certeza que ele possui de que Le Tout, sendo maior e melhor que as partes, contem mais realidade que o indivíduo singular. A substância primeira é a totalidade.
A intuição da unicidade fundamental da realidade é o prémio.
Le Tout é composto de seres e coisas diferentes que se atraem e repelem. Le Tout é o mundo dos opostos, contidos na expressão ”do mais ao menos”. Contudo, na realidade, os opostos cpnstituem todos o mesmo Ser. Os seres encarados como massa e como relação, eis Le Tout.
A existência entende-se , por um lado, como Le Tout, ou seja sob o seu aspecto positivo e, por outro, sob o aspecto negativo, isto é, Tout. Positivo porque exprime existências sensíveis; negativo, porque é vazio delas. Quando dizemos “sim”, exprimimos o positvo da existência, o “não”, quando exprimimos a sua vertente negativa. O universo é Le Tout, o infinito não-sensível é Tout.
Le Tout é, portanto, a totalidade absoluta, universal, a soma de todos os seres particulares, das coisas sensíveis, as quais se escalonam segundo uma ordem que vai do mais extremo “menos” ao mais extremado “mais”. É a ordem da unidade: ordem das determinações fenoménicas conjuntas. Satisfaz de modo mais adequado, segundo Deschamps, do que a crença em Deus criador.
Que nos diz Espinosa?
Que da definição mesma de Deus (Natureza), segue-se que ele existe. Pois que se se dissesse que ele (ela) não existe, não a concebíamos como uma substância. O que é substância existe necessariamente Na medida em que a substância é causa de si, a sua essência envolve a existência.
O argumento ontológico em Deschamps não corresponde à formulação dualista cartesiana, mas não se aplica também rigorosamente à sua formulação espinosana. A tese espinosana envolve uma substância única, que existe necessariamente e que, também necessariamente, é infinita. Com dom Deschamps entramos numa outra fórmula, diferente (e nova na Filosofia): a substância única pode e deve desdobrar-se em dois significados contrários – Le Tout e Tout. Todo o seu sistema roda em cima deste eixo. É aquilo que o distingue de todos os demais filósofos do seu tempo que muito falam no “todo”. Aceitar que existem duas substâncias para Dom Deschamps, ou, em boa verdade, apenas uma, separada, ou encarada, como contraditória em si mesma, eis uma das orientações desta dissertação.
Le Tout é um ser que existe; é o “fundo” do qual os seres sensíveis são as nuances. É a unidade de todos os corpos da natureza. Le Tout universal, é o universo. É o movimento e o tempo. É a matéria.
Primeiro lanço, embora prenhe de interrogações.
Segundo: este ser não é esta ou aquela corporeidade, esta ou aquela parte, um determinado corpo e o seu movimento. É a totalidade deles e das leis que os regem. Le Tout é maior que a simples soma.
Terceiro lanço: Le Tout é um ser puramente “relativo”, no sentido literal – relaciona-se com as partes, é a unidade, o conjunto das relações destas entre si, depende delas e estas do todo unitário. É a ordem das causalidades. É o absoluto, mas não é o Infinito, precisamente porque é composto e relativo, e é o tempo, o espaço, o movimento, mas não é a eternidade.
Chegados aqui, perguntar-se-á: atingimos o vértice? Nada mais há a pensar, excepto investigar esta totalidade e as relações que entretece?
Não. A Razão, o Entendimento, não parou ainda, não esgotou o fôlego. Le Tout obriga a admitir um outro Todo.
Segundo dom Deschamps é possível conceber um todo sem partes, um ser sem relações, que não é finito (soma das coisas finitas), mas infinito; que não é o tempo (ou o resultado dos tempos), mas a eternidade; que não é o ser uno, a soma unitária das coisas encaradas como sendo em número, mas o ser único. Que não é a matéria que existe na composição dos corpos materiais, mas imaterial, ou seja não-física. Um todo individual, e não plural e soma, e incapaz de criar. O ser que existe por si mesmo, e não em função dos seres que o constituem. E como não é o sensível (reunião dos seres sensíveis), como não é material, nem cria coisa alguma, é o nada.
É a negação do sensível, do relativo, daquilo que “é”. À objecção dos adversários, Deschamps condescende: sim, é uma ideia puramente negativa. Por isso mesmo é que é o Nada.
A ambiguidade não está na formulação, garante Deschamps, corresponde à própria dualidade e polaridade implícitas na lógica da linguagem humana e do espírito: do sim que exige um não, do não que fornece consistência ao sim. Ou seja, está na lógica bipolar, no próprio raciocínio, nessa dialéctica da refutação, na contrariedade essencial. Quem erra é quem julga que o Finito pode ser Infinito, o Tempo pode ser a Eternidade, o Uno pode ser a Unicidade. Para garantirmos a verdade (sensível e lógica) da Natureza, necessitamos do seu contrário. Quem errou foram os teólogos que inventaram um ser oposto, mas dotado de qualidades humanas (ou sobrehumanas), de criar, pensar, e agir no mundo natural. É urgente esvaziar estes erros. Não ignorando este esforço da humanidade, esta inclinação, não ignorando a contradição, mas assumindo-a, eliminando as contradições dos teólogos. O Infinito eterno é realmente diferente, porém existe. Porque se não existisse, não existiria o Finito e Temporal. Para além do “Deus criador”, existe o Nada, isto é, Deus não criador.
Deschamps tencionava, deste modo, superar as teses tanto dos teólogos como dos materialistas comuns. É preciso admitir, segundo ele, alguma veracidade, legitimidade, nos sistemas dos primeiros, respeitar, sobretudo, a inclinação religiosa da humanidade. Sim, além do universo puramente material, existe qualquer coisa mais, que torna compreensíveis as ilusões religiosas. Porém, a utilidade desse desdobramento do Ser é afirmar, pela negativa, a verdade deste mundo. Essa qualquer coisa mais – a expressão é nossa e não de Deschamps -, não o Ente dos entes, nem transcendente, nem criador. A ilusão religiosa encontra-se aqui, nesta crença. Na verdade, o mais é o mesmo. É a Existência.
No verão de 1769, Deschamps encontrou-se com Diderot. Deschamps deu-lhe a ler uma parte importante da sua obra, as Observations Morales, e talvez mais, Diderot retribuiu com uma cópia do seu Système de la nature. Como é nesse verão que Diderot redige os diálogos contidos no livro “Rêve de d’Alembert”, é muito provável que estes denotem a influência das conversas e dos textos de Deschamps, mas não falemos disto por enquanto. Em o “Système”, Denis Diderot afirma a unicidade da substância, isto é, que apenas existe um único indivíduo, que é o todo; que permanece sempre, enquanto todas as coisas passam e mudam; portanto, se o todo é o conjunto de todas as coisas que mudam sem cessar, então o todo é mudança perpétua; assim, o movimento é uma propriedade essencial do todo.
Diderot, nesse livro, trabalha com mestria o conceito de todo, mas atribui-lhe uma função útil que pretende evitar qualquer tentação fechada e dogmática. O todo é um horizonte, como tal é incognoscível. Nesta posição não colide com D’Holbach e, mesmo, com d’Alembert , com os iluministas em geral. A Matéria, embora existente e constituinte de tudo, é uma noção útil para conter toda a experiência. Estamos instalados na finitude e no relativo.
Deschamps defende uma interpretação diferente. Le Tout e Tout são plenamente cognoscíveis, são mesmo condições de toda a cognoscibilidade, estão presentes na estrutura da própria linguagem, do pensamento humano. E existem como seres. As partes não se entendem sem a totalidade que as une, e este Le Tout remete-nos logicamente para a sua pura contradição.
O grand tout, de d’Holbach, é o mundo material, a natureza ; serve-lhe para negar qualquer ente espiritual, criador, transcendente. Deschamps reitera essa mundaneidade sem intervenção externa, mas atribui a essa entidade lógica a designação de Le Tout. A entidade não é apenas lógica, mas existencial. No entanto, a Existência não termina aqui. Se terminasse, terminava no Finito e excluía o Infinito.
A energia sensível e o movimento das matérias é o leit-motiv de d’Holbach, as duas perspectivas pelas quais se nos depara a Existência, são a cúpula e o eixo do sistema de Deschamps. A verdade absolutamente absoluta que ilumina as outras verdades. Deschamps divorcia-se da corrente geral, opõe-se-lhe, julga que laboram num erro grave. Prefere um materialismo de novo tipo. Metafísico e supra-metafísico. O primeiro axioma é a formulação verdadeira de Le Tout e de Tout.
1.4. O conceito de unidade
Analisámos o conceito de Le Tout. A ideia que traduz, ou veicula, é a de unidade. Unidade material do mundo, unidade do Ser. No entanto, porque atribui ao Le Tout a unidade ( l’être Un) e ao Tout, a unicidade?
A procura da unidade é uma intenção flagrante do programa de Dom Deschamps. Unir ou acordar, homens e natureza, ordem do mundo e ordem do entendimento, colocar a vida sob a alçada da Razão, constituem tarefas centrais do monge. Como temos visto a totalidade cinde-se em duas, uma cisão interna, porque, na verdade, só deve falar-se de uma Existência. A natureza é um todo, é só uma - o uno – e organiza-se segundo uma determinada ordem necessária – o Acordo dos seres entre si. Porém, o que se vê é uma profunda desigualdade (social, moral); torna-se, portanto, possível e necessário, e urgente, estabelecer (não se trata de restabelecer, pois que nunca existiu) a unidade dos homens entre si, pondo-os a viver segundo a ordem da (sua) natureza.
Na medida em que a metafísica tem por objecto a coisa em geral, Dom Deschamps retoma a tradição: “O metafísico é aquilo que é[o] geral de toda a generalidade”.
Muito embora o século dezoito use (e abuse) do termo “o todo”, a noção de totalidade, acompanhada dos seus sinónimos “unidade” e “ordem”, apresenta-se como um caminho que muitos filósofos trilharam, desde sempre. Palavras vãs, vazias, dirão os mais ferverosos empiristas; e, mesmo os mais moderados, recusam realidade substantiva a tais universais tratados ilusoriamente como ideias inatas. O confronto chegará, como se sabe, às mãos de Kant, que não o evita.
Nenhum filósofo que se preze podia então escamotear, e não escamoteou jamais, o laço que se entretece entre a interrogação “Existe um todo único objectivo e ordenado?”, e a investigação do fundamento do Pensar. Nem todos, porém, enfrentaram com vigor e clareza bastante estas questões, sendo que o século dezoito francês é um bom laboratório que exibe ideias brilhantes, mas também uma aflitiva confusão.
Dom Deschamps foi um filósofo exemplar, na ousadia de enfrentar pertinentes problemas da filosofia, na clarividência que demonstra de haver entendido perfeitamente quais são, e no rigor que procurou para a sua solução original.
Com esse propósito estudou os Philosophes, seus contemporâneos, e concluiu que as suas teses eram inconsequentes. Ficavam a meio do caminho. Meias-luzes, eis como classifica a filosofia de vanguarda do seu tempo.
Pensar o universal é próprio da ciência. Ora, porque noutras épocas a ciência não se distinguia da filosofia, e a epistéme era a meta, é oportuno dizer-se que ambas, agora distintas, não perseguem outra coisa senão a verdade, que apenas no universal se dá, se formula; dizer-se também que a ciência e a filosofia, tal como a epistéme, somente se verifica quando o que se diz é passível de comunicação.
Os Philosophes desejavam a ciência da e pela experiência. Depressa a experiência científica – da física newtoniana – se converteu no ideal do verdadeiro saber. Assim, as categorias abstractas, tomadas como essências e verdades, lembravam demasiado os dogmas para poderem ser admitidas. Úteis para determinadas coisas, inúteis para a ciência. O universal não se dá aos sentidos. Pensar o geral é pensar metafisicamente, eis o auto-elogio de Deschamps, e o motivo de escárnio de alguns. A verdade, poré, é que o monge entendera que as leis e a regularidades da natureza não se apreendem somente pelos cinco sentidos, às vezes é mesmo contra eles. Nunca refere Galileu, mas podia fazê-lo. O problema, portanto, é esse: porque razão as leis da natureza, descobertas pelo homem, são objectivas e verdadeiras? Também o entendeu perfeitamente Diderot, mas Deschamps faz da resposta um sistema.
“ O metafísico, longe de ter como objecto o homem em particular, de resto para o esclarecer sobre ele próprio, só pode ter por objecto a consideração dos seres em grande, em geral, na totalidade; considerá-los naquilo que eles todos possuem rigorosamente de comum, naquilo de que se pode dizer igualmente de cada um deles, naquilo que os identifica, naquilo que eles são aos olhos do Entendimento[...]”. O que ele designa de metafísico, corresponde ao plano que designaríamos plano da ciência. Naquele tempo não se via, com os olhos, que a Terra era redonda e andava à volta do sol, mas já se sabia que era esta a verdade.
O geral das generalidades não é uma mera generalidade, como o é um bosque; o todo é anterior às partes. Um exército não é mais que a soma de indivíduos singulares - o conjunto dos soldados -, isto é um plural. Porém, O Todo (Le Tout) universal – o todo metafísico – é a unidade, a ordem do conjunto, e, neste sentido, não é mais uma pluralidade, mas, em rigor, um Indivíduo.
Há que saber unificar o que aparece desunido, separado, atomizado, saber descortinar em cada indivíduo singular – para além da sua realidade própria – aquilo que o põe de acordo com tudo o mais, quer se trate de que todos são corpos e organismos, e inteligência e linguagem, quer se trate de constatar que tudo que existe é matéria de muitos modos.
A natureza é tudo, fora dela nada mais existe.
Muitos dos problemas da filosofia resolvem-se pela análise da linguagem, é o que julga dom Deschamps. Dá conta não apenas que a filosofia é uma forma de dizer, mas também que é uma forma de dizer que alcança sentido quando, ou porque, se submete a determinadas regras; que é a forma de dizer a verdade, mas é também modos diversos de dizer a mentira, ou construir erros e meias verdades; que é uma forma de dizer distinta da linguagem “ordinária”, mas que não se opõe a esta por rupturas sem mediações. Alimenta a utopia da “linguagem universal”, clara, limpa, unívoca. Uma ciência bem construída não é senão uma língua bem feita. A clarificação lógica dos conceitos é a principal finalidade. Por conseguinte, a filosofia há de ser uma doutrina, mas é simultaneamente uma actividade. O discurso da verdade constrói uma meta-linguagem depurada logicamente, tem como função o esclarecimento. É uma mâeutica, e é também uma pragmática: a partir do momento em que ficamos esclarecidos, passaremos a agir de outro modo. Porém, ao invés dos filósofos da análise da linguagem, nossos contemporâneos, dom Deschamps persegue a crença que eles abjuram: a metafísica, para ele, faz todo o sentido. Não se importa de correr o risco de tomar como unívocos os equívocos da linguagem. Na linguagem ordinária está contido o gérmen da linguagem esclarecida sobre o mundo e a vida. A linguagem é a casa do ser...
Um texto de Deschamps intitula-se a “Palavra do Enigma metafísico e moral, aplicado à teologia e à filosofia do tempo...”. A palavra-chave, a palavra esclarecedora que soluciona o enigma da existência. Resvalamos para muito perto de uma mística da natureza, uma mística do Todo. Se se diz que a teologia é a Palavra divina decifrada pelo teólogo, a Metafísica é também a Palavra, mas não a divina. O negativo e o positivo compõem a ordem do conhecimento racional; depois disso, nada mais se pode dizer, o tudo termina no nada, no indizível. “tout est Tout, et tout est dit.”
Esta impossibilidade do discurso (do conhecimento racional especulativo e discursivo) não exprime Deus, um ser espiritual, não exprime nenhum ente transcendente ignotus. Exprime a impossibilidade de categorizar o Infinito e a Eternidade.
Não se pode conhecer a infinitude da existência. Só podemos viver nela. E seria melhor que existissimos em harmonia com a natureza.
A descoberta da Verdade não pode ser outra coisa senão o uso da boa lógica e uma boa interpretação da gramática. As verdades absolutas são eternas, porque alcançam e exprimem a eternidade.
Possuímos ideias adquiridas, sociologicamente contextualizadas, que estruturam uma interpretação do mundo que está sempre conforme os interesses dos poderosos. As sementes da Verdade ficaram sempre obscurecidas, contradizem-se umas às outras, e tanto é confusa e falsa a opinião do homem vulgar, como a erudição manipuladora do teólogo. As raízes da dominação localizam-se na apropriação privada, mas desde logo, desde a origem, consolidam-se, legitimam-se, por estratagemas vários que visam ocultar, obscurecer, silenciar, o “grito da verdade”. A linguagem foi e é um instrumento de falsificação.
A simples gramática. O mero léxico comum, a espontânea linguagem, revela-nos a presença da verdade. Os seus sintomas, os seus sinais, manifestam-se no simples e usual “sim” e “não” .
A linguagem comum serve para desunir usualmente, pelo menos assim tem sucedido. Exprime a desunião dos sentidos e a desunião dos homens entre si. Certamente que as religiões e as leis inventaram-se para unir; contudo, tal intento, mesmo que fosse honesto, sai sempre frustrado, porque a igualdade não é respeitada, Uma união de homens realmente desiguais entre si, não pode ser uma verdadeira união. É uma união imposta, forçada, repressiva. Que terrível infelicidade, quando, afinal, tudo apela para a semelhança, a reciprocidade, a unidade! Le Tout é a pura manifestação objectiva da Unidade.
As partes não possuem realidade em si mesmas, existem na medida em que exprimem a mesma essência. São modos de ser em relação dependente com o todo.
1.5. A categoria do único
O Prefácio, redigido por dom Deschamps, que preparia o leitor para a exposição de “O Verdadeiro Sistema”, contém definições fundamentais. Entre outras, a definição de Tout. Na medida em que este conceito é o par contraditório de Le Tout, teremos de referir novamente este último conceito para “deduzir” o outro.
Seguindo o seu pensamento: quando falamos em Le Tout, queremos enunciar uma totalidade, um somatório de elementos ou partes. “Eu entendo por Le Tout, o todo do universo, o universo, a matéria, o mundo, a natureza, o ser uno pelos seres em número que o compõem, a existência considerada como relação, o princípio e o termo, o começo e o fim, a causa e o efeito, o movimento e o repouso, o pleno e o vazio, o bem e o mal, a ordem e a desordem, etc.” . Com este sentido o conceito não se distingue substancialmente dos significados atribuídos ao todo pelos demais filósofos seus contemporâneos.Mas é a partir daqui que dom Deschamps introduz uma diferença: “e entendo por Tout, a existência em si, a existência por ela mesma, isto é a existência considerada como não fazendo senão um só e mesmo ser que, então, não se distingue mais dos seres, pois que é o ser único, e, consequentemente, sem relação, ou, como já o disse, sem existência por meio doutra coisa senão por ela mesma”
Tout é, portanto, o contrário de Le Tout. É o ser único, porque não é o todo relativamente às suas partes, não é o ser-para mas o ser em-si. É o não: não-matéria (i-material), não-finito (in-finito), não-duração (eternidade). Se Le Tout é o ser uno (“un”), Tout é único. A unidade é diferente da unicidade. No primeiro caso une-se alguma coisa, une-se o que é divisível, no segundo caso, nada há para unir. Não nega esta ou aquela parte, modificação, “nuance”, determinação : é o outro todo. Dizendo melhor: a outra face. É a Existência toda e em si. Le Tout é a ordem das determinações, Tout é o vazio. No interior do primeiro existe criação, no outro nada se cria. É estéril. Dois nomes para exprimir a substância: o finito não é o infinito. Infinito significa negação do finito. Se a palavra eternidade não exprime o mesmo que duração (o tempo que é mudança, começo e termo de qualquer coisa), então são necessárias duas palavras, duas palavras diferentes e, até, contrárias. Esta semântica é ontológica: quando pensamos a duração limitada e implacável de cada ente que existe (sensivelmente, fisicamente), concebemos o sem-fim, a imortalidade. Um conceito atrai o outro. É um exemplo puro de raciocínio, tanto como tem sido expressão de um desejo universal. Estas duas palavras exprimem duas realidades contraditórias. A Realidade é a mesma e somente uma, mas constituída por duas vertentes. A Verdade é contraditória, o Ser desdobra-se em dois. Indubitavelmente que aqui se perfila uma dialéctica.
Quando pensamos em um Deus, pensamo-lo como criador. Nesse caso para quê conservar o uso da palavra Deus, se Le Tout é a natureza criadora? Então, nesta nova linguagem, o Deus não-criador é Tout. Sem relações, sem determinações, sem propriedades fundamentais como a do movimento, este todo nada cria.
A ideia de totalidade universal positiva, obriga-nos (e abriga) à ideia do Nada. Somente é possível compreender realmente o mundo, por meio desta alteridade. Somente é possível dizer-se o sim, na medida em que se pensa o não.
André Robinet diz na sua obra sobre o sistema de dom Deschamps : ” Le fin fond du Vrai Système repose sur la négativité existentielle. Une Ethique à la Deschamps n’aurait pu commencer par un De Deo, mais aurait dû s’ouvrir par un De Nihilo. »
Escreve B. Delhaume na Introdução à sua edição das “Obras Filosóficas” de dom Deschamps : “ La Vérité, ou Existence en soi, est le fond même de l’esprit, elle opère la fusion du positif dans le négatif ; intériorité radicale, elle ne peut être elle-même que pour elle-même, elle ne peut enclore sa propre réalité dans quelque espression ou discours que ce soit. Tout et Le Tout, existence négative et existence positive, sont les deux faces, dissociées par le discours, de l’unique réalité qui est l’Existence en soi, qui est Tout. Tout, réalité et vérité totales, Existence en soi, n’est dit existence négative que par opposition au monde, au Tout ; en soi, en son essence, il n’est pas négatif, il n’est pas néant d’existence mais existence pure du néant, qui est négation de toute forme particulière, déterminée d’existence. »
No Prefácio da autoria de Deschamps a que fizémos referência, escreve ele:
“ Le Tout e Tout possuem somente uma existência ideal, para o dizer aqui, mas esta existência advém da sua própria essência, e eles não são menos a Existência, como o farei ver. É de Le Tout, o qual é a verdade metafísica, e que é o objecto da primeira relação, que decorre a verdade moral, sobre a qual não deixarei nada por esclarecer. Tout, ou o ser único, não fornece nenhuma consequência, pela razão de que ele é a negação de Le Tout, o qual é o princípio. »
Le Tout é o meio, o centro, o encadeamento que liga os extremos.Porque Le Tout é o mais e o menos, mas entre os dois extremos há diferença, distância. Po exemplo: o menos que é o passado e o mais que é o futuro; metafisicamente falando, só existe o presente, porque os dois tempos, o passado e o futuro, é o mesmo tempo apenas “nuancé différemment”. Ou como a vida e a morte: esta é o menos de vida, onde a vida menos existe naquele corpo, embora forneça alimento a outras formas de vida. Dentro de Le Tout (a natureza) não se deve falar de estados absolutos. “O mais e o menos absolutos reentram um no outro e não são senão um, e é a sua unidade que é o seu meio.”Não existe o branco senão porque existe o negro, o quente porque existe o frio, a força centrípta porque existe a força centrífuga, a luz porque existem as trevas...
1.6. Deus-criador e Deus não-criador
A habilidade de Deschamps para tentar integrar e superar os sistemas filosóficos dominantes não é pequena. Veja-se como utiliza a terminologia teológica para os fins do seu sistema:
“Deus criador e as suas criaturas não são outra coisa que Le Tout e as suas partes, consideradas separadamente, consideradas como existindo: Le Tout pelas suas partes e as suas partes por meio dele; tal como qualquer todo particular que seja, enquanto considerado simplesmente, relativamente às suas partes.”
Consequentemente, Deus não-criador é Tout. A contradição de Tout com Le Tout integra a natureza contraditória do Deus teológico: Aquele ser que cria e ao mesmo tempo transcende, como ser infinito e eterno, aquilo que cria, porque Ele não foi criado. Esta contradição da fórmula teológica traduz, no entanto, um “grito da Verdade”: a natureza contraditória da Existência absolutamente absoluta. Le Tout e Tout. Onde está arredada qualquer transcendência.
“Para bem se desenvolver a noção que se tem de Le Tout e de Tout, que se pense em primeiro lugar na generalidade das coisas, sem fazer abstracção de alguma coisa que o seja em particular, e encontrar-se-á Le Tout, isto é o ser positivo, que existe pelos seres, como os seres por ele; o ser que só se distingue dos seres que o compõem por meio de cada um deles, porque eles todos são ele, como ele é todos. Daí, isto é desta unidade, que eu diga o mesmo que digo de Deus criador: ele era os dois extremos, e estes dois extremos não eram senão um.”
Deschamps admite uma contradição, mas exclui a contradição da teologia, na medida em que exclui a divindade antropomórfica e a sua natureza transcendente. Deschamps distingue, mas exclui o dualismo.
“O infinito é e não pode ser outra coisa que Deus considerado simplesmente como Deus, considerado antes de toda a criação: porque, ainda uma vez mais, que é Deus, considerado assim, senão um ser puramente negativo, um ser por si, isto é que não existe por meio de outra coisa de modo algum; um ser independente, que é sem qualquer relação, sem nenhuma comparação; que não possui outra razão da sua existência senão ele mesmo; que não sofre começo nem fim; que não é causa nem efeito e que, consequentemente, nega dele o que é positivo e mais ou menos positivo, aquilo que existe pormeio de outra coisa, aquilo que comporta dependência, relação, comparação [...]”.
O “Deus-negativo” não é uma novidade absoluta na história da religião monoteísta e da teologia ocidental. A novidade encontra-se no facto de que este “Deus” não o é verdadeiramente. É a infinitude, um dos atributos da natureza. O Nada, que lhe é equivalente, a primeira coisa que nadifica é o “Ser Supremo”, o Deus transcendente e pessoal. O Deus moral, sobretudo. Não nadifica (não anula) a natureza, porque não podemos, nem devemos, sair desta para alcançar o ponto de vista da eternidade. Por conseguinte, se houve influência das “teologias negativas” sobre o pensamento de Deschamps, este não ficou preso no círculo dessa especulação. Conduziu-a, outrossim, às últimas consequências: um Deus negativo é a pura contradição de Deus positivo, o não-criador e a criação. O Todo é esse Deus que se procura «de uma outra natureza do que a nossa», um Deus que se procura que seja «primeiro princípio do físico e do moral, que seja criador [...] que seja primeira causa; que seja a suprema perfeição, o soberano bem, a ordem absoluta, a própria harmonia; que seja o começo, o meio e o fim: summus, medius et ultimus; que seja um em três modos de ser»; Tudo é esse Deus «infinito, impenetrável, indivisível, independente, para si, sem composição alguma [...]um Deus que seja único e em três modos de ser, que encerre tudo nele, o metafísico, e o físico, o universo e as partes encaradas no sentido distributivo»
Na sua obra magistral, Dom Deshcmps, le maître des maîtres du soupçon, o Professor André Robinet dedica algumas áginas às teologias negativas, estabelecendo aproximação com as teses de Deschamps; refere particularmente Bruno e Nicolau de Cusa, o defensor daquela lúcida ou sábia ignorância que só ela permite aceder à alegre fruição do impossível que é negativamente infinito e ao qual nenhum nome convém.. Nós próprios realizámos um paralelismo com as teses de Mestre Eckhart, na nossa tese de mestrado, na medida em que este acentua o valor da não-ciência do Cusano, e o abandono, consequente, do desejo pelos bens materiais. É completamente legítimo estabelecer-se uma “démarche riéniste», como escreve Robinet, que remontaria até muito atrás e incluiria vários outros pensadores dos séculos dezassete e dezoito. Seria um percurso muito interessante, se por ele houvessemos optado, pois mergulhariamos na nossa actualidade. O beneditino bem preparado e estudioso que foi dom Deschamps, não poderia deixar de conhecer esses autores, com os quais teria aprendido o papel da categoria do negativo na alta especulação. Resolvemos, porém, conter a nossa dissertação nos limites do razoável; em cotrapartida, alongar-nos-emos na parte que versa a Utopia. O nosso esforço principal foi aplicado no paralelismo das teses de dom Deschamps com o espinosismo, sobretudo no capítulo intitulado “A Refutação”, que trata do texto de Deschamps com esse nome que ele escreveu contra Espinosa.
1.7. O Monismo
Entrosando os tópicos já expostos, podemos classificar o sistema de dom Deschamps como um monismo. Um sistema monista singular pela invenção de uma dualidade cuja função é reafirmar a tese de uma substância única. Na verdade, não só não admite, como afasta a possibilidade teórica da existência de duas substâncias. A substância é a Existência, simultânea e contraditoriamente una e única, una porque absorve a unidade material do mundo, única porque exprime a realidade do infinito e da eternidade. A Existência é esse todo que é tudo, a duração temporal e a eternidade sem duração, o uno finito e causal que é o mundo físico e a sua inserção na infinitude. Um monismo que não é panteísmo, mas naturalismo, ou materialismo. Deschamps só admite um género de substância e compreende a totalidade como unicidade. Um monismo vincadamente materialista, porque o ser que ele admite não é o espírito. Ora, não conhecemos outro representante do monismo metafísico moderno senão o próprio Espinosa.
1.8. A Santíssima Trindade
A totalidade do real é conhecida por meio de três ordens, ou níveis, sucessivamente mínimos e máximos, ou de adequação crescente: a primeira, mais imediata, é a ordem facultada pelos sentidos, a ordem do físico, que é percepcionada como desordem; a segunda, é a ordem dos opostos, da totalidade dos seres, e é alcançada pelo nível conceptual metafísico, por uma espécie de apercepção; a terceira, é a ordem da negação radical, da pura Contradição, e é alcançada pela intuição, que equivale a um nível supra metafísico, pois não encontramos outro termo mais adequado.
Esta formulação corresponde a uma trindade. Segundo ele, evoca a Santíssima Trindade, mas aquela é mais adequada, porque não é teológica como esta.
« É pela ideia da própria perfeição, pela ideia de Le Tout, com o qual nós comparamos incessantemente os seres particulares que são as suas partes, embora julguemos comparar quando apenas comparamos os seres uns com os outros, que nós temos a ideia de que nada é perfeito na natureza mas somente mais ou menos perfeito. Dizemos dos seres que eles são mais ou menos perfeitos, mais ou menos bem, mais ou menos harmónicos, etc., mas não que eles são mais ou menos infinitos, eternos, imensos, etc., e isso pela razão de que sempre sentimos que estes atributos negativos não eram atributos de relação, de comparação, et que o Deus perfeito não era o Deus infinito, que o ser por meio de outra coisa não era o ser por si, que Le Tout não era Tout. É também por efeito deste sentimento íntimo que o ser designado Deus criador, ou o Verbo, em vez de ser chamado Le Tout, é tanto objecto do nosso culto religioso como o é o ser designado seu Pai, ou o Pai eterno, em vez de nomear-se como Tout. O Pai, o Filho e o Espírito-Santo, refiro-me à Trindade-Unidade da religião cristã, ou, se se preferir, de Platão e dos Egípcios [refere-se ao número três], é um dogma nascido numa metade da ideia inata de Tout, de Le Tout, e das partes, três coisas que são a Existência, e metade da ideia inata de Le Tout, que é uma em três coisas, que é os dois extremos e o meio metafísicos, summus, medius et ultimus, como se diz de Deus. Segue-se daí que a ideia de uma trindade possui uma dupla fonte, pois que ela se encontra igualmente no negativo e no positivo, no Tout que é simultaneamente Tout, Le Tout e as suas partes, e em Le Tout, que é os dois extremos e o meio metafísicos.»
Deschamps apresenta-nos três graus de realidade: do ser em-si; do ser metafísico; dos seres físicos. Três existências: metafísica, física e em-si . A religião não está errada pelo facto de utilizar a magia do número três, a qual, de resto, é mais antiga que os monoteísmos modernos. Está errada porque fez da trindade uma Santíssima Trindade por via antropomórfica, isto é, pessoalizou-a. Se conseguirmos pensar sem sair nunca da Natureza, a trindade encontramo-la no interior daquela. A religião não inventou puras falsidades, falsificou algumas verdades. Este estilo à Deschamps talvez seja mais compreensivo e interessante do que as diatribes anti-religiosas do seu tempo.
Capítulo 2. – Do conhecimento da Existência
2.1. Os géneros de conhecimento
Deparamo-nos, por conseguinte, com três graus de realidade. As três ordens da realidade alcançam-se por meio de três graus de conhecimento. Três faculdades humanas: a sensibilidade (os sentidos), a razão (dos juízos e raciocínios) ou inteligência, e o entendimento. O comum dos homens fica-se entre as percepções sensíveis e os colectivos particulares ou generalidades (ex : uma árvore e a floresta, um soldado e um exército), as matérias, nuances, partes, modificações; com um pouco mais de esforço alcança-se o patamar metafísico que a razão faculta (a soma dos agrupamentos colectivos, a reunião dos conjuntos, Le Tout, as relações imanentes a esta totalidade universal, realidade que se exprime pelo conceito de Matéria, de Natureza – é o patamar da filosofia e da ciência; e, por fim, o Entendimento, a via adequada do conhecimento do Absoluto.
“Entendo por Entendimento : o intelecto, a ideia inata, as ideias-mãe, a pura concepção, os sentidos de concerto e de acordo, o fundo da Existência, […] e que eu já disse que os homens possuem em comum com todos os seres. O Entendimento é a Existência, o homem é tal ou tal existência particular, e quando eu disser o Entendimento do homem, ou o nosso Entendimento, para me conformar com a nossa maneira de falar, não entenderei por isso nada que seja particular ao homem, É a sua inteligência, as suas ideias, os seus pensamentos, etc., que lhe são particulares.”
O Entendimento é a Razão, esse termo tão usual na época. Porém, Deschamps atribui-lhe dois significados que os Philosophes utilizaram: o entendimento são as “ideias inatas”, as “ideias-mãe”, a ”pura concepção”, e é também, “os sentidos de concerto e de acordo”, isto é, “o fundo da Existência”. E sublinha enfaticamente :” O Entendimento é a Existência”. Aquilo que é particular a cada homem é a sua inteligência própria (entre o mais e o menos), as suas ideias e os seus sentimentos. Mas o homem é capaz de entender a totalidade e o significado último da existência. I. Kant estabelecerá a distinção entre entendimento e razão, que Hegel conservará, embora com outros usos. Dom Deschamps distingue inteligência, de entendimento. Este equivale à Razão absoluta, à razão suprema, ou supra-metafísica. A inteligência também é a razão, mas não esta. Ser absolutamente racional é compreender a Existência ocntraditória, entender que O Todo (Le Tout) é distinto das suas modificações e que, por sua vez, se abre para para a sua negação. Entender que em no todo existe uma profunda ligação, experiência que já as religiões propunham, é fazer ouvir em nós o sentido inato do concerto e do acordo. Uma espécie de sexto sentido.
A Verdade não pertence à ordem das determinações, do empírico e das propriedades do mundo empírico; nem sequer apenas do pensar metafísico, porque vai mais longe do que este pensamento do todo. A Verdade não resulta do pensamento sobre um objecto particular, por mais geral que seja, nem sobre esta ou aquela relação ou propriedade geral da matéria. E não é exclusivamente um pensamento sobre a natureza concebida como um todo. Se assim fosse, de alguma maneira equivaleria ao “grand tout” de d’Holbach. A Verdade é a pura contradição. Não podemos contemplar a verdade da existência como um sujeito contempla o Objecto exterior: ela emerge de nós e nós imergimos nela. Não partimos do cogito para o Mundo. É o fundo do espírito, o último fundo (fin fond) do espírito e da existência. Não é a inteligência que é suficiente porque somente o entendimento permite que acedamos à unidade absoluta, à harmonia de tudo. A Verdade é esta mesma harmonia, concerto ou acordo. A ordem cósmica. A inteligência serve um uso prático, instrumental, combinatório. Portanto, não pode intuir a Verdade. Pela inteligência constatamos a desigualdade, aceitamo-la como uma facto adquirido, irremediável, podemos até argumentar a favor deste facto, porque não vemos outra alternativa. Estamos neste estado encurralados. Tudo muda, as coisas passam, a morte é a morte, a vida é a vida, tememos, valoramos, acalentamos esperanças. Ainda que acreditemos que somente existe a natureza, ainda que conheçamos algumas das suas leis necessárias e indiferentes ao destino dos homens, não concebemos outro estado senão este. Atolamo-nos no Finito sem o ponto de vista da eternidade. Podemos melhorar a nossa situação, formular reformas, mas não penetramos na raiz dos nossos problemas morais (sociais e políticos). A inteligência (a razão tomada neste sentido) ainda que una mais do que os sentidos separados, não nos informa, porém, sobre a real e profunda união de todos os seres, união cósmica. O entendimento, pelo contrário, é o concerto e o acordo de todos os seres.
Le Tout e Tout, ou a Existência contraditória, é a realidade completa, pois que a Existência é o fundo comum de todos seres.
Como escreveu B. Delhaume : “A intuição da unicidade fundamental da realidade é o eixo do percurso filosófico de Deschamps”
Deschamps é um filho do seu tempo, porque acolhe um conceito tipificado de Razão, a “Razão das Luzes”, a “Razão suprema”, aquela quase (ou sem o quase) deificação da Razão que será tão característica do século, e tão pré-crítica, segundo Kant. Apesar disso (do facto de ninguém conseguir evitar a sua época), o Autor atribui-lhe um algo que vai colidir frontalmente com a atitude mais típica dos pensadores das Luzes, e que é, preto no branco, a afirmação de que existem ideias inatas, a ideia inata do acordo essencial e imanente de todas as coisas, isto é que exprime a ordem fundamental da natureza, o concerto do Mundo (que evoca o estoicismo), a unidade, a união, como ele escreve quase compulsivamente. Quando nos limitamos ao uso diário e pragmático da inteligência, e, sobretudo, da sensibilidade (física) não alcançamos o “fundo da Existência”, não deciframos o seu enigma, obscurecemos a Palavra. Ora, isto só pode significar que Deschamps é de uma extrema coerência, porque rejeita o lugar e o papel da experiência (sensível, como era pensada ao tempo) como origem do conhecimento, e os sentidos como mediação entre o cognoscente e o Objecto. Por isso, se a simples erudição ensina-nos pouco, a experiência (seja pelas simples vivências, seja pelas ciências particulares) não nos oferece, só por si, o significado real e oculto do mundo e da vida. Qualquer uma dessas formas fornece-nos porventura um bom conhecimento das partes, mas não do todo, e sua pura contradição, principalmente.
No entanto, está ao alcance de qualquer um descobrir a solução, a palavra salvadora, a luz natural, porque a semente encontra-se nele, e sempre se encontrou. Neste quadro argumentativo, a tentação é sempre a fórmula platónica. Se mais não houvesse, este seria motivo bastante para classificar Deschamps como não-aristotélico.
O Entendimento vence o quadro das oposições e oferece-nos a evidência das evidências. À maneira setecentista (Descartes, Espinosa, Malebranche), o(s) primeiro(s) princípio(s) descobrem-se, dão-se como evidência, essa luz do espírito. Estamos mergulhados em plena intuição. O universal, enquanto primeiro princípio e enquanto substância, dá-se pela intuição, e é tão evidente (luminoso) que não pode deixar de ser pura verdade. Crítica dos sentidos (desunidos), crítica da inteligência. Pensar metafisicamente, ou seja, conceber o supremo colectivo ( o Mundo) de todos os colectivos gerais , é pensar pelo entendimento. Desenha-se claramente uma hierarquia dos conhecimentos: três géneros, três graus. Ainda que esta hierarquia não possa ser exclusivamente imputada a Espinosa, na intenção da leitura que vamos fazendo do pensamento de Deschamps, inclinamo-nos a aproximá-lo daquele.
2.2 O conhecimento intuitivo
A inteligência é um modo de conhecimento sempre parcial, unilateral, ainda que possa ser conveniente ( a expressão é espinosana, Deschamps recorre normalmente ao termo “útil”, que é outra expressão muito usual na sua época) para fins práticos. Deschamps empresta ao termo “inteligência” um sentido amplo –os animais também possuem inteligência –e um sentido específico – os seres humanos concebem noções comuns e ideias gerais. A inteligência abarca também a imaginação, que sendo naturalmente útil (e inevitável à condição humana), é, todavia, responsável por muitos dos nossos erros e ilusões. Todos os erros, na filosofia, na teologia, radicam na inteligência e na imaginação, que fabricam crenças falsas, hábitos resistentes e viciosos, codificam os costumes, dificultam, em suma, o acesso à verdade. A inteligência é o sentido prático, adaptativo, é compreender-se como causa de determinados efeitos e efeito de determinadas causas. Qualquer organismo que possua um cérebro qualquer, é inteligente a seu modo. É a existência primeira de um cérebro que determina a existência do ser inteligente. Munidos dessa condição, e pelo facto de sermos “animais sociais razoáveis”, podemos, e devemos, ascender ao mais elevado pensamento. Pensar por conceitos, e por conceitos adequados. Pensar o próprio pensamento. A nossa inteligência apenas produz efeitos físicos. Não se queira que ela seja de uma outra natureza que os seus efeitos.
«A existência universal encarada na sua totalidade pode ser objecto dos sentidos na sua prticularidade, como a existência encarada em particularidades? Não, sem dúvida, pois que ela não seria então, contra a sua natureza, senão a existência encaradas em partes, senão esta existência sobre a qual somente os sentidos particulares intervêm, como sendo da mesma natureza que ele. Portanto, a existência universal é o objecto de uma outra faculdade em nós, de uma faculdade da qual nós reconhecemos com a maior das evidências que é de uma outra natureza que a existência encarada em partes, daí que existam duas faculdades em nós, uma para o metafísico e a outra para o físico, ou, para dizê-lo melhor, daí que nós existamos metafisicamente e físicamente ao mesmo tempo: pois o que são estas duas faculdades, senão estas duas existências das quais uma é a nuance, é nós como homens, mas como massa universal, ou, o que significa o mesmo, como partes desta massa. Segue-se daí que o universal a parte rei e o universal a parte mentis são a mesma coisa, e que as disputas sobre os dois universais apenas têm lugar por efeito da ignorância, que estabeleceu uma distinção entre elas.»
Pensa-se por causa do cérebro, e somos capazes de comunicação por causa dele. É a metáfora do “clavicórdio”( clavecin), tão cara a La Mettrie, d’Holbach, e Diderot. Fibras, teclas, signos da linguagem, cérebro, matéria, há aqui ressonâncias (até em sentido literal) do homem-máquina. Mas estaríamos enganados se acreditássemos que a metáfora cartesiana se repetia na metáfora de La Mettrie, quanto mais de dom Deschamps... Esta “máquina” não é maquinal, puro mecanismo comandado, massa inerte; o esforço em encontrar outros nomes para o funcionamento do cérebro, já é revelador. O corpo humano sente, percepciona, organiza, é selectivo e toma consciência dos seus sentimentos, imagina, erra porque ilude-se ou porque crê nos sentidos. É um superior engenho que executa. Que transforma o mundo. Que interpreta a vida, com certeza, ainda que nem sempre adequadamente; que fabrica objectos, e também inventa um Deus criador. Um Deus inteligente, hábil artesão, engenhoso arquitecto, que, porém, não existe, senão como imagem das ilusões e projecções do humano corpo. É esta inteligência, de filósofos até, que não quer admitir o concerto, a união, que não quer admitir a realidade existencial do absoluto. Percebe as diferenças, mas não entende a união, a semelhança, a coincidência dos opostos; e isso é grave, é mesmo a mais gravosa ignorância, fonte de todos os males, psicológicos e sociais.
Não nos parece existir aqui menos filosofia do que em algumas grandes filosofias do Fundamento. Sempre o recurso à Evidência do Fundamento, à Intuição clarividente e simples da Verdade, que se quer absoluta e derradeira, para que ela o seja em toda a sua inteireza, univocidade e universalidade.
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A inteligência desune os elementos uns dos outros, corta, separa, analisa. Somente a Razão maiúscula permite uni-los. O Entendimento, enquanto grau superlativo da razão. O Entendimento é a unidade essencial do espírito, e este exprime a unidade essencial do mundo e da vida. Capta a essência, porque ele mesmo é co-essencial à Existência. Ao submeter as ideias à unidade de O Todo, intui e expressa a unidade fundamental de todas as coisas. A unidade do pensar equivale à unidade do mundo objectivo, externo. O Pensamento exprime a unidade do Ser. Exprime porque é essencialmente idêntico.
André Robinet diz que, em dom Deschamps, « l’entendement est une faculté existentielle, ce que confirmera l’opposition de Deschamps à Scot et à Spinoza » (21). Deschamps, segundo Robinet, situa o entendimento como faculdade primeira, antes de todas outras, primeiro pensa-se o todo antes de conceber-se a inteligência do particular. Não creio que a hierarquia seja da ordem cronológica, mas, antes, da ordem ontológica, da ordem do pensar verdadeiro. O vulgo, no cumprimento das suas obrigações diárias, não lida com o todo, isto é, com o pensar metafísico. Não porque não necessita dele (para ser feliz, era mesmo disso que precisaria), mas porque não está habituado, acostumado. Que todo o mundo possui essa luz natural, certamente, porque a ideia é inata, mas é claramente um terceiro género de conhecimento ao qual não se pode recorrer por mera e espontânea vontade..
Mas será tudo isto tão oposto a Espinosa?
Para Espinosa, o Entendimento é infinito, muito embora seja um modo do atributo-pensamento. É infinito porque exprime a essência do atributo, ainda que não exprima a essência de Deus. Leia-se “Deus ou natureza”, para que se possa rejeitar qualquer tentação de antropomorfizar Deus (isto é a natureza). Deus não “entende”, assim como não possui ”vontade”. Compreenda-se : não existe um entendimento divino, não se deve falar e acreditar nisso. Se assim não procedermos, caímos em todos os equívocos (da linguagem comum, do pensar comum). Nem legislador, nem criador ex nihilo. Deus produz (produz-se) tal como se compreende a si mesmo, e compreende tudo que produz ipso factu; ele é também (e como poderia ser de outro modo?) potência infinita que produz a sua própria compreensão. Compreende a necessidade da sua produção e compreende necessariamente tudo que dela decorre. Ou seja, Deus é acto, e sendo acto puro, é a forma desse acto. A forma é o entendimento. O nosso entendimento integra-se, faz parte, do entendimento divino. Na medida em que o entendimento infinito é um modo (formal), o nosso entendimento não compreende tudo de Deus (ou o tudo que é Deus). Conhecer tudo do tudo do todo, é completamente inalcansável. Tudo que se disser para além dos nossos limites, é mera retórica da imaginação, é puro desejo, e tomba-se inadvertidamente no antropomorfismo. Porém, tudo que conhecemos de Deus (natureza) é adequado, isto é, verdadeiro. A ideia adequada de Deus (ou natureza) funda todo o conhecimento adequado, do terceiro género. A ideia adequada de Deus não é pura abstracção. Os géneros de conhecimento são modos de existência. O primeiro género define-se pelos signos, signos equívocos, indicações que são úteis mas inadequadas, onde as paixões fazem o seu trabalho, negativo vulgarmente. O segundo género trabalha com noções comuns, tais como de causa-efeito, relações; são ideias gerais, aplicam-se aos indivíduos singulares, aos grupos, às séries, mas não às essências. Existe uma diferença de natureza entre o segundo e o terceiro género : embora falemos de Deus com o primeiro destes dois, não exprimimos dele uma ideia adequada, enquanto noção comum não é uma ideia verdadeira.
Dom Deschamps não utiliza a argumentação espinosana, certamente que não. Não se vislumbra tal coisa, seja extraída da Reforma do Entendimento, seja da Ética. Em momento algum desta dissertação dizemos que o sistema dele é uma recriação do sistema de Espinosa; dizemos, antes, que ele bebe na atmosfera espinosista do seu tempo, melhor dizendo, de um determinado espinosismo. Seria mais cómodo falar-se em coincidências, mas não o dizemos. Dizemos que existem aproximações suspeitas. De um autor que sabemos influenciado por outro não dizemos que ele o repete, dizemos que o interpreta a seu modo, segundo a sua época, a sua personalidade, o tipo de leituras que realizou, segundo as suas intenções e motivações.
A classificação do conhecimento em “físico”, “inteligente”, e “intelectual” (dos sentidos, da inteligência, do entendimento), conforme as características que lhes atribui, não pode deixar de evocar Espinosa.
A natureza – a Existência – não precisa de nós para se conhecer, não nos criou para esse fim (não existe qualquer finalidade); nós é que precisamos de compreender a sua essencialidade, qual seja? O acordo imanente e a eternidade. E viver de acordo com essa única e unívoca forma de existência necessária. Viver na igualdade do acordo essencial, sabendo que somos somente uma parte de um todo que é finito e infinito. Fora disto, reinam ficções, desejos, paixões. Paixões tristes, ou, como diria Espinosa, negativas. Porque a suprema beatitude, ou felicidade, residirá na comunidade de iguais, em harmonia com a natureza, diz dom Deschamps.
2.3. O estilo da exposição e o método
O estilo de escrita e exposição de dom Deschamps não exibe grande eloquência por casualidade ou absoluta incapacidade. Numa época em que a retórica, normalmente enfatuada, era o timbre de inúmeras publicações, dom Deschamps opta pela dura sobriedade. Quem acaso haja lido publicações da época, tanto anónimas como não, verificou o estilo enfático, exclamativo e retórico, que então se utilizava vulgarmente. Os defensores da ortodoxia católica faziam-no de uma maneira geral, os seus adversários igualmente. Cada época tem o seu estilo. Mesmo figuras tão importantes como d’Holbach, o utilizam, ainda que menos mediocremente. Foi também esse estilo, e não apenas as ideias, que aborreceram deveras filósofos de vários quadrantes geográficos nos finais do século. Tal enquadramento é necessário para relatizarmos as coisas, e compreendermos a repugnância de dom Deschamps. Sem que com isso se justifique a sua exposição muitas vezes dura. Dom Deschamps não foi, realmente, um escritor brilhante. Pensemos em Rousseau e Diderot, cada um deles com tamanho brilho que ainda hoje tanto parecem agradar a um público que já nada tem que ver com o público do século dezoito. Onde dom Deschamps se mostra mais exuberante, imaginativo, e agradável, é nos cadernos intitulados “Observações morais”, ou seja, onde descreve a comunidade utópica. Poderia sê-lo nas teses de metafísica e respectiva argumentação? É bem difícil responder com segurança, quando sabemos quão árdua é a leitura da “Lógica” de Hegel...
Mesmo ao próprio Rousseau, a quem ele reconhece um brilho de excepção, Deschamps não poupa :”Amemos a eloquência de que ele é capaz, assim como toda a harmonia, para nos arrancar graciosamente do estado violento em que nos encontramos : mas desconfiemos disso : não é ela filha da verdade”. Não basta, pois, concluir que o monge não possuía o engenho que faz o bom escritor, será preciso admitir que ele reprovava a eloquência em favor de uma exposição sob a forma de teses, demonstrações, desenvolvimentos e refutações, e esta opção passaria a ser da ordem da lógica. Apesar de em nada copiar o modo geométrico de Espinosa, a opção por um método sistemático, em que o adjectivo, e parco, não serve para adornar mas para qualificar, em que o apelo às emoções e aos sentidos é extremamente contido, também aqui ousamos aproximar ambos, muito embora nunca seria isto que o converteria num espinosista...
Os dispositivos semânticos e os enunciados de que se serve dom Deschamps são basicamente os seguintes : Os “todos particulares”, ou “partes”, cuja soma constitui “o todo universal” ; A tese primeira, portanto a definição ou o princípio, qualifica o “todo universal” : “é um ser que existe” e “é o fundo do qual os seres sensíveis são as nuances”. A tese segunda, afirma que o todo universal “é de uma outra natureza” e, por conseguinte, não se pode ver ou figurar, mas somente conceber. O outro termo que utiliza é o da “generalidade”: “generalidades particulares” que vêm a constituir a “generalidade universal”.. O “todo universal” é o “geral de todas as generalidades”, é, portanto, dito no singular, ou, por outras palavras, é o Sujeito. Nenhum sentido físico o capta, são, antes, todos “de acordo e de conserto” que o concebem. Sendo o Sujeito universal, possui todos os predicados; portanto, é a unidade de todas as oposições. A noite não é o dia, mas o todo universal é a luz e as trevas, e cada uma se define por oposição recíproca. Nenhuma coisa, nenhum fenómeno, é completamente independente, daí precisamente ser fenómeno. Aos nossos sentidos um ser pode aparentar ser único e singular, mas na verdade não é. Única e singular somente a Existência, ou seja, a totalidade infinita que afirma a unidade de todos os fenómenos. O sistema é rigoroso: o Princípio unifica os opostos, os contrários.
As primeiras teses de Deschamps assemelham-se em vários aspectos às primeiras definições da ÉTICA, com as suas explicações. De resto, redigiu inclusivamente um compacto texto sob o título de Précis en quatre thèses du mot de l’énigme métaphysique et morale. Certamente que este estilo de demonstração e exposição é clássico, não foi inventado por Espinosa. Já existia muito antes e, posteriormente, foi utilizado soberbamente por Leibniz e Malebranche, tendo sido este último uma importante influência na formação filosófica de muitos franceses, particularmente dos monges beneditinos. Existem evidentemente diferenças, e substanciais entre ambos, pois que radicam no modo geométrico que caracteriza singularmente a ÉTICA de Espinosa, mas nenhum outro metafísico do século das Luzes, que saibamos, se aproxima tanto da lógica utilizada na ÉTICA, desenvolvendo-se em enunciados gerais, ou primeiros princípios, e postulados ou consequências. Clarificando: não é por isto que o método de dom Deschamps (dos cadernos que constituem a exposição do sistema:La Vérité, ou le vrai système) é espinosano (Descartes foi o modelo, e falo-nos disso precisamente no seu Discurso do Método), o que queremos dizer é que Deschamps, ao arrepio de muitos do seu tempo, teima em recorrer ao método analítico-sintéctico por considerar que este é, simultaneamente, o método de exposição e de demonstração, isto é, o conteúdo exige essa forma. Basta citar como exemplo a Thèse I, do Précis: «Le Tout universel est un être qui existe. C’est le fond dont les êtres sensibles sont les nuances.»
2.4. Um sobre-racionalismo
Para dom Deschamps o Entendimento equivale, por conseguinte, à Razão, mas aquilo que o distingue, segundo pensa, dos outros arautos da Ilustração, é a potência meta-física que ele concede ao entendimento. A razão, utilizada pelos Philosophes, aparece reduzida ao carácter físico dos fenómenos naturais, segundo a sua crítica. É uma crítica dirigida aos sensualistas em geral, empiristas dizemos nós, mas que abrange os materialistas sem metafísica, como d’Holbach. Os cientistas não escapam, portanto, a esta crítica.
Pelo entendimento, ou seja, pela Razão (com esta capacidade que I. Kant virá a recusar), alcançamos o fundamento : “Se soubessemos alguma coisa do fundo das coisas, saberíamos tudo”, diz Deschamps. Os cientistas estudam a física, os filósofos verdadeiros fazem metafísica.
É para ele absolutamente incontestável que de nada podemos ficar seguros por meio da observação sensível, e esta é uma “verdade metafísica”.
Diz-se que a verdade só pode existir per mentem, que ela não possui realidade fora das nossas ideias, “ou, para falar com mais generalidade, só pode existir nas coisas aquilo que nós nelas colocamos”. Pois bem, isso é certo, mas...não é a Razão comum a todos nós? Portanto porque não há de ser a verdade perfeitamente alcançável? Ao limitar a Razão no homem, que pretendem os seus intérpretes? Que somos incapazes de conhecer Deus, tal como ele se conhece...Ora, ninguém até hoje provou essa impossibilidade. “Conhecer Deus como ele se conhece a si próprio, equivaleria incontestavelmente a ser-se Deus: portanto, a palavra conhecer (connaître) só quer dizer ser (être)”. Certamente que esta proposição, que nega tal conhecimento ao homem, está certa; porém, somente no sentido do “homem físico, ou particular”; se considerarmos, pelo contrário, o homem pelo seu Entendimento, pelo fundo que ele possui de comum com todos os seres, e se considerarmos Deus como sendo este fundo e nada mais, então o homem equivale a Deus, porque não são mais que o mesmo ser. Ou seja, não façamos mais de Deus uma imagem subjectiva, uma imagem de nós mesmos, mas veja-se como aquilo que ele é: Le Tout e Tout, a existência relacional e a existência sem relação. A humanidade é Deus. É ela que possui as qualidades que atrubímos a Deus. Ou ainda: somente existe a natureza, e a humanidade é parte dela.
Em rigor, a palavra connaître não serve os fins da metafísica, pois que “exprime uma faculdade física”. Este é o nosso erro. É por isso que queremos conhecer Deus da mesma maneira que conhecemos uma árvore. Por meio, afinal, de “ideias adquiridas”.
À boa maneira metafísica, dom Deschamps arranca para a conclusão lógica de que a verdade se encontra nas ideias inatas, ou por meio delas: “Não é mais um composto de ideias adquiridas, é a própria ideia inata, ideia que é o esse e não o esse tale, que é o fundo da Existência, da qual fizémos um Deus, fazendo-o de resto à nossa imagem, dando-lhe as nossas virtudes que, como os nossos vícios, só existem por causa do nosso estado de leis, dando-lhe a nossa inteligência e até a nossa forma.” Parece-nos óbvio que este termo “inato” que ele utiliza não exprime em rigor uma determinada “ideia”, isto é, uma noção, um nome, um conceito; exprime a totalidade, o mundo natural que nos fornece a vida, a Existência genérica que nos permite a existência concreta e particular. É o Ser, do qual nós somos os entes, ou as nuances, ou as modificações.
Por conseguinte, apenas pelo entendimento somos capazes de alcançar a verdade ; essa Existência que é a verdade positiva e a negativa. Pela inteligência vulgar, analítica, que soma e junta, continuamos a viver entre contradições insolúveis, em aporias; pelo entendimento constatamos que a Verdade absoluta é contraditória, precisamente, ou melhor necessariamente, para que se possa admitir como simultaneamente una e única. Repetindo esta tese de Deschamps, à guisa de conclusão de alguns dos capítulos desta dissertação, pretende-se integrar dom Deschamps plenamente no programa das Luzes. Um programa optimista que ambicionava estabelecer sem falhas e sem concessões o primado da razão. Quando Deschamps censura os Philosophes de estabelecerem apenas umas “meias-luzes”, significa que eles não foram até ao fim do mais absoluto racionalismo. Nem extrairam uma moral consequente, nem alcançaram a verdade suprema. Por isso não utilizam o conceito de Existência, porque nunca a compreenderam. Por um lado, são metafísicos sem o saberem e, por outro (ou por causa disso mesmo), não são capazes de superarem o próprio plano da metafísica. Pelo método discursivo chegamos à metafísica (primeiro grau da racionalidade), pela intuição (aí sim, a luz da verdade) atingimos a síntese da contradição, isto é, a Existência pura. Como classificar este degrau? Meta-discurso, meta-racionalidade ou sobre-racionalidade? Julgamos que, independentemente das explicações do próprio, independentemente da pertinência das críticas à insuficiente racionalidade discursiva dos Philosophes, independentemente do seu intento gabado de haver formulado um novo grau ou género de conhecimento, dom Deschamps restabelece nem mais nem menos que o papel atribuído à intuição na história da filosofia. Remonte ou não a Heráclito, tivesse sido ou não um dispostivo fundamental do pensamento platónico, dom Deschamps herdou-o de várias fontes comuns e divergentes: Descartes, Espinosa, Leibniz, Malebranche...No entanto, porque o seu monismo singular só encontra eco no espinosismo, o valor que atribui à intuição parece.nos bem mais próximo da posição espinosana, do que de qualquer outra.
2.5. A gramática como primeira linguagem do Ser
André Robinet cita neste passo Dom Deschamps :” C’est par le développement seul de la vérité métaphysique, ou ce qui va au même par l’exacte grammaire métaphysique, qu’on peut détruire le système de Spinoza, également que tout système métaphysique », interpretando-o deste modo : « Il ne s’agit pas, dès ce préliminaire, de prendre place dans la postérité spinoziste, ni d’approfondir le spinozisme, mais bien de le nier, ainsi que tout autre système métaphysique que « le vrai système » adopte en le rendant caduc »
A. Robinet parece acreditar nas palavras de Deschamps, tomando à letra a vontade de “negar” o sistema de Espinosa, incorrendo num paradoxo : porque é que então classifica Deschamps (de resto, brilhantemente) como “le maître des maîtres du soupçon”?
À época todos eram suspeitos, a dissimulação era largamente praticada, a cautela uma divisa comum. O monge ateu, o beneditino “sans église”, jamais de outro modo poderia proceder. E qual era o mais odiado (odioso) dos sistemas? O sistema de Espinosa. É sincero Deschamps quando apostrofa a inconsequência moral, a ausência de “moral” no sistema de Espinosa (conforme a versão postas a circular)? Sobre a sua sinceridade não temos qualquer dúvida. As suas intenções são outras, o seu projecto é bem diferente. Mesmo que ele conhecesse, que não conheceu seguramente, todos os livros de Espinosa, não é de crer que mudasse muito o seu projecto. Nesse sentido, nega, recusa, critica, aspectos importantes do espinosismo (daquilo que ele conhecia como sendo de Espinosa); contudo, o espinosismo aflora aqui e acolá; é no espinosismo que ele encontra argumentos, ideias fortes, andaimes para construir o seu próprio edifício. Apoia-se nele para o corrigir, quase cem anos depois.
Os conceitos de Le Tout e Tout não são, desde logo, ideias comuns, do vulgo, nem sequer dos filósofos, no entanto a verdade late debaixo do acervo das ficções e nos códigos linguísticos. Grita, literalmente. Os princípios da teologia, apesar das contradições em que se envolvem, exibem essas evocações do ser verdadeiro.
Com as palavras se diz a verdade, com elas se mente. No estado selvagem não sabíamos nada de nada. A nossa linguagem ordinária usa o “todo” mas para outros fins. Acredita-se, por exemplo, num Deus antropomórfico, um Rei reinando sobre súbditos.
Existimos fisicamente como ligados a colectivos, a totalidades, a esta ou aquela raça, género, corpos entre corpos. Existimos moralmente, isto é, socialmente, ligados pelas leis, pelos costumes, pelas crenças. Existimos metafisicamente, como ligados ao “tudo”, à Existência, ao Nada.
A nosso ver é curioso que André Robinet haja visto também ( sublinho, pois que vimos o mesmo quando lemos pela primeira vez o sistema de Deschamps, sem ainda termos lido na altura o livro de Robinet) que “a distinção entre tout et le tout tem que ver com uma diferença de perspectivas sobre o ser e não com um artifício aplicado ao ser”, isto é, o ser é singular, o que corresponde à minha leitura, o que introduz uma concepção muito interessante sobre a natureza contraditória do ser ( a mesmidade que se cinde, que contem em si uma contradição, e deixa por esclarecer cabalmente se a contradição é objectiva ou subjectiva), e não constatasse como demasiado próxima esta tese da tese espinosana da substância única...
A tese em que nós nos baseamos é esta: a concepção oitocentista francesa que afirma a existência de um todo natural, regido por leis internas e necessárias, com origem em si mesmo, sem finalidade outra que não sejam as suas próprias regularidades, que não admite nem coexiste com outro ser que o transcenda, tal concepção herda do espinosismo alguma coisa. E sabe-se que isso é constatável nos escritos de d’Holbach, de Diderot, de Jean Baptiste Robinet; a presença do espinosismo está suficientemente aclarada em variadíssimos autores do século, mesmo que estes não invoquem nem o nome nem a herança. Faltava demonstrá-lo nos textos, nas teses, de dom Deschamps. É esta a minha tarefa. Que realizo com tanto mais agrado, quanto o espinosismo de dom Deschamps é mais pessoal, original, do que o de d’Holbach. E mais coerente, do que o d deísta Jean-Baptiste Robinet.
Não podemos aplicar divisões artificiais na orientação ideológica dos pensadores do século dezoito. Eles mantêm-se fiéis a um certo optimismo apologético dos grandes sistemas do século dezassete. Mais do que nunca, e até com uma urgência manifesta, pretendem convencer, sendo a filosofia um instrumento e um palco por excelência. E isto é tanto mais relevante quanto não constatamos hoje o vigor desses debates, queremos dizer : nem já nos é possível sentir e transmitir o vigor das batalhas ideológicas do século dezoito, nem hoje se repete tal coisa.
As Luzes, pesa embora a sua relativa heterogeneidade, aprofundam a abertura de espírito e a tolerância, o posicionamento crítico, a orientação dessacralizadora, que já vinha do século anterior. A filosofia política abandonou, de vez, a teologia como matriz fundadora, os valores perdem a sua origem transcendente, na natureza humana (qual seja) investiga-se os fundamentos (os decretos naturais) das leis e dos costumes.
A intervenção pública dos intelectuais não é académica, ou quase nunca o é; chega a ser mesmo e não poucas vezes, panfletária. Circulam de mão em mão cópias de cartas, de discursos, de artigos, trechos de tratados sistemáticos. É nesta atmosfera que se põem a correr versões, quantas vezes truncadas, redutoras e radicalizadas, do Deus-Natureza sujeito a leis regulares e fixas, e outras ideias atribuídas a Espinosa.
Como escreve Maria Luísa R. Ferreira: “ Contra o teologismo e finalismo, que considera serem graves preconceitos, Espinosa institui uma “ratio” expressiva, que se revela à medida que se diz, animada de uma “potentia” que a faz agir expandindo-se. Muito mais do que representacional, a “ratio” espinosana é integrativa, cósmica. O homem é parte, elo ou cadeia do Todo. A “ordo rerum” e a “ordo idearum” permutam-se. A verdade confunde-se com o Ser pois a ideia é real. É da racionalidade da Natureza que deriva a humana.”
Todavia, aquilo que se herda pode multiplicar-se ou simplesmente esbanjar-se. O século dezoito não tem exactamente as mesmas preocupações do século anterior, nem as mesmas orientações ideológicas. As camadas mercantis prosperam e, quando não têm a prosperidade que ambicionam, conspiram, agitam-se; as novas formas de enriquecimento penetraram já nas esferas da classe politicamente dominante; o industrialismo moderno, capitalista, dá os primeiros passos. Um tempo novo anuncia-se, e, à maneira do “Ano Novo”, censura e satiriza o “Ano Velho”; é o presente e o futuro que mobilizam o agir; é um novo conceito de tempo, de historicidade, de progresso; é a França pré-revolucionária que se levanta.
Todas estas considerações, as quais, de resto, se repetem porventura no decurso da nossa dissertação, têm por propósito estabelecer uma afirmação de fundo: a razão possui o poder de interpretar o mundo e iluminar a acção; não somente interpretar, mas, sobretudo, permitir agir de um modo adequado. É este o significado existencial e ético que dom Deschamps lhe atribui. A sua única finalidade não é, portanto, meramente teórica, mas práxica. É um propósito comum às principais figuras da vanguarda das Luzes. Mudar as mentalidades, mudar os costumes, mudar as instituições.
Supomos que em Espinosa o conhecimento da união que a mente possui com a natureza (como se lê no Tratado da Reforma do Entendimento) só fica resolvido na Ética, obra que temos preferido seguir neste paralelismo do Dom Deschamps com o grande filósofo de Haia.
Sabe-se que o nível de análise gnosiológica não esgota a finalidade do sistema de Espinosa ; ele completa-se propriamente com a ética, com um projecto de ser e de viver. Portanto, abre-se para um outra forma de existência. Todos os actos e afecções devem ser orientados para a ideia clara de Deus, para o “amor intelectual de Deus”. O fim é a salvação. A “ciência intuitiva” é o último grau, ou degrau, da escalada metódica para atingir a beatitude.
Sabe-se também que na Ética Espinosa distingue a razão do entendimento, aplicando-se este ao caminho seguro, ou sendo este a expressão do método adequado. Não pretendemos discutir os meandros e as dificuldades das teses de Espinosa sobre aquilo que ele realmente considera ser o entendimento, por um lado, e a razão por outro. Poderíamos admitir que razão (no sentido amplo) e ciência intuitiva, constituem a mesma compreensão adequada de Deus e, portanto, o guia mais adequado de comportamento. Ou poderíamos admitir apenas um sentido estrito para a razão, interpretando-a como uma capacidade específica do entendimento,uma e não todas.
No prefácio ao livro V da Ética, Espinosa trata como equivalentes a razão e a mente :”potência da mente ou da razão”. Entretanto, no livro II, no escólio II da proposição XL, atribui o nome de Razão o grau de conhecimento do segundo género, a seguir ao qual virá então a ciência intuitiva, isto é o terceiro e último género.
Ora, parece-nos que nada disto colide com as teses de Dom Deschamps. Também este utiliza por vezes indistintamente tanto o nome de razão, isto é no sentido amplo. Contudo, quando se trata de ser preciso, distingue inteligência racional de entendimento. Por exemplo, quando censura a insuficiência dos outros filósofos, admite perfeitamente que também eles usam da razão...Então, que lhes falta? A intuição. “eles não querem de modo nenhum a verdade metafísica, a existência universal como ser, a igualdade moral...”
O Entendimento (Deschamps utiliza normalmente maiúsculas) é o intelecto, a concepção pura. A inteligência designa apenas as ideias particulares de cada homem, visto que pensar é próprio dos homens. Porém, para compreender que somos meras partes da Existência, que ela absorve tudo e todos, que ela é também eternidade, então, para tanto, é necessário entender. Não se trata de uma supra-razão, com pouco ou nenhum sentido, mas, cremos nós, de elevar a Razão à sua potência máxima.
Assim também pensamos quando aproximamos a definição das noções comuns - “communes”- de Espinosa, com os “colectivos” e “colectivos gerais”, de Deschamps. As “communes” são propriedades comuns dos corpos e são, ao mesmo tempo, as ideias pelas quais se exprimem essas propriedades. Não são puras abstracções. A ideia de “conveniência” que existe entre os corpos, em todos os corpos, lembra a expressão utilizada por Deschamps do “acordo”, e, sobretudo, a ideia de que os corpos podendo apresentar-se opostos, não são, contudo, absolutamente diferentes, podendo dizer-se que se diferenciam “apenas” pelo “mais ou menos”. Em Espinosa as noções comuns revelam a “concatenatio”; sem a verificação deste encadeamento necessário e objectivo não existe a ideia clara de Deus, ou seja a ordem do mundo.
O que é comum aos corpos unifica-nos segundo leis, estas exprimem as leis objectivas. Todavia, tanto para Espinosa , como para Deschamps, as noções comuns ainda não são as ideias superlativas; a razão conhece ou pode conhecer as primeiras, mas permanecendo aí não alcança as essências gerais, não acede à ciência intuitiva. Para Deschamps, é pelo nível mais alto e último, que se ascende à realidade da Existência : a essência é o Acordo, o fin fond é o TUDO (Tout), que é o nada. Porém este nada não equivale à paralisia, ao pessimismo, mas à acção, ou seja, à decisão racional de viver tal qual a natureza nos determina : em comunidade de iguais.
Julgamos que a distinção que Espinosa estabelece entre a razão e o entendimento, manifesta a sua presença na crítica que Deschamps dirige às demi-lumières : os Philosophes fazem uso da razão, mas um uso insuficiente.
Segundo Espinosa o entendimento, ainda que infinito, não constitui a essência de Deus, é apenas um modo do atributo-pensamento. Esta estratégia espinosana é uma das estratégias, e de modo nenhum a menor em consequências, do filósofo para eliminar o antropomorfirmo em que caiem todos aqueles que atibuem o entendimento, e a vontade, à essência de Deus.”O entendimento de Deus, portanto, enquanto é concebido como constituindo a essência de Deus, é realmente a causa das coisas, tanto da sua essência como da sua existência.” Quando escrevemos que para Deschamps a superlativa instância da actividade do conhecimento é ter-se uma “ideia clara de Deus”, aproxima-lo também aqui de Espinosa, pois que, neste, podemos tomar como equivalentes os termos “ideia de Deus” e “entendimento divino”.”no que respeita ao modo infinito que é o entendimento de Deus, é possível sintetizar em quatro pontos a sua actuação : enquanto “ratio existendi” de todas as coisas, enquanto critério de verdade, como totalidade integradora, e, finalmente, permitindo a consciencialização da eternidade dos modos finitos.”É de reter esta ideia do entendimento divino como totalidade integradora e como critério de verdade, para o objectivo que nos propomos de estabelecer analogias entre o espinosismo e o pensamento de Deschamps. Embora este utilize mais vezes o termo Existência, e menos o termo Deus, são, no entanto, equivalentes ou sinónimos, aquele que compreender a Existência, compreenderá tudo...
Capítulo 3. – Um criticismo radical
3.1. A crítica de toda a religião
“Dizer que não existe Deus de maneira alguma, é dizer que não existe de maneira alguma um ser moral, um ser supremo à imagem do qual nós fossemos feitos como seres morais, é usar da razão contra a fé. Porém se entendermos também por isso que não existe de maneira alguma o ser universal, o ser metafísico, falaremos contra a razão, diremos uma absurdidade.”
A « razão » da religião, é fé e não razão. Ser racional é, não apenas rejeitar a fé, mas admitir a existência objectiva do todo, nas suas versões positiva e negativa, ao qual podemos chamar a forma adequada do Deus verdadeiro. O ateísmo vulgar não “conquistará jamais as nações “, e o povo, enquanto recusar toda e qualquer forma do Ser. Vai contra a inclinação espontânea, e desarma os povos de uma moralidade.
“ O ateísmo, ao negar um Deus, nega um princípio, e o princípio mais fecundo para os homens sob o estado de leis ; ora, se ele não postula nada em lugar deste princípio que ele nega, é realmente verdade que não possui um princípio. Ele coloca aí a Natureza : mas o que é A Natureza ? É isto que o ateísmo não diz coisa alguma : porque não entende que seja o mesmo que dizer as leis, que explicar o mecanismo dela até um determinado ponto. É sobre a natureza em grande, no seu todo, nela mesma, encarada em massa, encarada em bloco, e não sobre as suas leis, que lhe lanço esta questão, é sobre o finito e o infinito, estes dois seres metafísicos, enquanto que tal ou tal ser é físico, que lhe peço que me satisfaça.”
Aqui radica a posição crítica de dom Deschamps dirigida aos ateus em geral e aos philosophes em particular. Ora, é evidentemente uma crítica, neste caso, dirigida sobretudo aos materialistas. Não evoca (repare-se: não dizemos “invoca”)- no sentido literal: não re-soa - a antipatia de Espinosa pelos ateus, alguns dos quais eram proeminentes arautos setecentistas do materialismo? Não se poderia dizer de Espinosa o mesmo que Deschamps diz de si mesmo: não sou materialista, sou talvez melhor “imaterialista”?
Sendo dom Deschamps insofismavelmente ateu, que tipo de ateu critica outros ateus? A sua resposta, várias vezes nos textos reafirmada, exprime-se na fórmula original :”ateu esclarecido”. “Um ateísmo esclarecido, longe de ser perigoso, é tudo o que os homens podem desejar de mais vantajoso ; porque, vencendo com ele a sua ignorância sobre o fundo das coisas e demonstrando-lhes a verdade moral e a possiblidade de praticá-la, torná-los-á como nunca tão felizes como foram infelizes. A felicidade, que é o gozo contínuo, só pode existir na terra através do estado de costumes com fundamento em um princípio, e é o ateísmo esclarecido o único que pode conduzir a este estado. Mas o quê, é um ateu que combate os ateus? Eu não disse um única palavra contra eles que não fosse consequente com o meu ateísmo. Todavia, este título odioso de ateu calha mal àquele que somente destrói a moral do teísmo, e que, demonstrando a metafísica do teísmo, deduz a verdadeira moral e aniquila o mal moral na sua fonte!”
Um contacto apenas parcial com as teses de dom Deschamps incorre no risco de falsificar o seu pensamento. Toda a sua obra é uma clara crítica da divindade antropomórfica e da religião em geral, uma crítica da transcendência de qualquer ser, uma desconstrucção dos dogmas teológicos do cristianismo, e a denúncia, bem ao gosto do século, dos conúbios da Igreja com a monarquia absoluta. Deschamps é ateu, se com isto se quer significar não uma mera indiferença ou recusa, mas uma crítica fundada e argumentada. Deschamps é um materialista, mas um materialista singular, no seu tempo, pois que pretende ir mais longe que o simples anti-clericalismo. O seu propósito, deveras filosófico, é superar a teologia com uma nova metafísica, sabendo aproveitar o “grito da verdade” que a teologia contém.
Dom Deschamps, para a sua crítica do antropomorfismo, não precisou de beber nos livros de Espinosas, uma profusão de livros e panfletos que erigiam a crítica do antropomorfismo como leit-motiv chegavam-lhe às mãos facilmente. Não recorre a nenhuma citação literal do texto espinosano, nem refere, nessa crítica ao antropomorfismo e à religião, o nome de Espinosa como seu antecessor ilustre. De resto, nenhuma das obras de Espinosa, quer a Ètica, quer o Tratado Teológico-Político, é referida. No entanto, o nome de Espinosa é referido em muitas e diversas publicações anónimas e clandestinas. Mas o próprio Voltaire, que leu a Ética, refere Espinosa, não escondendo o profundo impacto que lhe provocou.
3.2. A crítica de toda a cultura
O que mais surpreende em dom Deschamps não é a crítica da religião, porquanto essa atitude correspondeu a uma marca categorial que tipificou o Movimento das Luzes, muito em particular os seus expoentes materialistas. Utilizando uma expressão hoje muito corrente, podemos dizer que isso mesmo pertenceu ao paradigma dessa época, e referimo-nos em especial ao anti-clericalismo. Aquilo que verdadeiramente surpreende na teoria do monge é o seu combate implacável contra a cultura. A exposição mais patente encontra-se na descrição da sociedade futura, ou utópica, o “estado de costumes”. Em tal sociedade, sem Estado, sem leis e sem normas morais, a beatitude, a felicidade, dispensa aquilo que há de mais emblemático na cultura: os livros! «Há-de ser preciso, para entrar aí [na futura sociedade], queimar não apenas os nossos livros, os nossos papéis de crédito ou outros, mas destruir tudo o que nós apelidamos de belas artes.»
Quando tudo se compreender, tudo se aceitar da vida tal qual ela é, não há mais nada para se pesquisar. Não é mais necessário torturarmo-nos com interrrugações angustiosas sobre a existência. Bastará existir. Simplesmente.”Afastados que estão os homens do modo em que deveriam pensar e viver, eles obrigam-se necessariamente a filosofar e a moralizar continuamente, mas logo que que seja estabelecido este modo tudo ficará dito, não se filosofará, não se moralizará mais; porque razão se fará isso, a partir do momento em que não haverá mais matéria para tal?»
Esta posição evidencia, ou denuncia, uma concepção da filosofia, por exemplo, como uma busca da verdade absoluta e derradeira. E nisto há todo um programa platónico. A sombra mais remota, e matricial, que se perfila sob o sistema absolutamente ético de Deschamps é a de Platão, não de Aristóteles. O modolo utópico mais primogénito é o da República.
Na segunda parte desta dissertação mostraremos como, neste lance surpreendente, assume especial relevo a enorme influência dos dois Discursos de Rousseau.
No século em que se louvou tanto a instrução, na época que foi designada como da Ilustração, num tempo que anunciava a aurora da educação universal, ergue-se uma voz contra a corrente. Enquanto vivermos sob as leis, é vantajoso o saber; quando dispensarmos as leis e abolirmos as hierarquias e as classes, extirparmos as raízes da infelicidade do género humano, poremos de lado como inúteis os mais belos artefactos da indústria humana, os fulgores do génio filosófico. Quando, sobretudo, colhermos a Verdade contida nesse livro dos livros, o Sistema de dom Deschamps...
Esta enorme arrogância do nosso filósofo - de resto, não foi nem o primeiro, nem o último, a ostentá-la- não anula a penetração da sua tese, que exprime não só uma compreensão muito fina da psicologia da actividade filosófica e artística, como também um conceito do útil que desafia os nossos hábitos e que se coloca com alguma frequência na história das ideias, tanto europeia como de outros continentes e civilizações. Queremos dizer com isto o seguinte: não é a primeira vez que, à luz seja de opções religiosas e monásticas de vida, seja à luz de uma crítica filosófica ao valor ilusório de determinadas formas de existência, se desvaloriza a cultura livresca ou outra. Como se sabe, a sabedoria para algumas correntes de pensamento do Oriente, não se encontra através das formas institucionais do saber.
Aquilo que torna interessante o ponto de vista de dom Deschamps é a análise e a exposição que faz das razões porque se produz determinada cultura. A tese com que ele nos interpela é, afinal, sobre o que verdadeiramente tornaria feliz a nossa existência colectiva, isto é, sobre aquilo que realmente nos é útil. Estejamos ou não de acordo com a sua solução, os seus postulados desafiam o nosso pensar. Particularmente a nós, que assistimos, ou praticamos, a uma contínua, e já longa, crítica dos efeitos da tecno-ciência...
O conceito do útil pertence ao núcleo duro, digamos assim, do pensamento iluminista. De uma maneira geral entendia-se como útil tudo aquilo que se encontrava de acordo com a natureza humana (e isso constitui o leit-motiv das obras de Helvétius); tendia-se, porém, a associar ao útil o bem-estar material, os benefícios da civilização urbana; ou seja, abriam caminho com velocidade crescente os valores burgueses. É contra esta última versão do conceito que dom Deschamps se levanta. Como se anunciasse profeticamente – não se via ele como um profeta? – os malefícios vindouros do industrialismo e do mercantilismo.
A crítica deschmpsiana das ilusões e da vanidade de certos saberes, faz lembrar o Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdão, e necessariamente evoca-nos o famoso livrinho do grande amigo de Erasmo, Tomás More: A Utopia. Os utopianos não praticam a filosofia tal como nós, libertos que estão de certas loucuras...
O monge é cauteloso, tenta evitar a idealização de sociedades extintas ou a cópia de modelos fantasiados de sociedades do Novo Mundo; ainda assim, sugere a comparação com a vida no tempo dos patriarcas; ou seja, o que ele descarta como inúteis são aquelas artes que t raduzem o excesso, o luxo e o acessório. Prende-se a uma noção de utilidade que satisfaça as primeiras e verdadeiras necessidades humanas. “Os nossos livros, por assim dizer, pedem um livro que provará que eles são em demasia e que ele ele mesmo será demasiado, uma vez que os homens sejam por ele esclarecidos»
Claro está que, tomado à letra, este programa é quase uma aberração para os patamares civilizacionais em que nos encontramos; importa, contudo, constatar nas produções utópicas uma certa doce de provocação, ou uma vertente mobilizadora das conciências. A utopia de Deschamps colide com as utopias que hão-de vir, nos inícios do século sgeuinte, industrialistas e positivistas como a do célebre Saint-Simon. No entanto, com o andar dos tempos, surgirão utopias muito semelhantes, como aquela bem conhecida que William Morris formulou, News From Nowhere. Nela se descreve a cidade de Londres num futuro longínquo, reduzida a vilarejos campesinos sem os malefícios da indústria e da acumulação do capital.
Capítulo 4.- O conceito de Matéria
4.1. A Natureza
O pensamento filosófico do século dezoito oscilou sempre, a nosso ver, entre um programa de delimitação das áreas de pesquisa por via experimental, e uma proclamação de uma Razão (a maiúscula.é deliberada) que reune o todo num quadro explicativo que não descura as leis descobertas pela ciência. D’Alembert e os discípulos de Condillac propõem um modelo empirio-matemático que dispensa, ou despreza mesmo, as generalizações especulativas; apesar disso, o grande físico Laplace irá, já para os finais do século, propor, como fruto maduro da razão iluminada, a arquictetura do universo no seu todo. Essa ambição é inelutável, seja pelos esforços dos grandes naturalistas que visam descobrir as leis gerais da vida (de Buffon (1707/1788) até ao avô de Charles Darwin), seja pelos esforços dos newtonianos que desenham um universo finito e determinístico.
Prossegue-se a investigação física da natureza, mas, como sabemos, com muita lentidão em França, em comparação com a Inglaterra de I. Newton e, em ambos os países, permanece uma pré-química. Um naturalismo raramente experimental; um estreito mecanicismo até em alguns dos melhores filósofos. Embora lentos, os progressos na fundação e desenvolvimento de novas ciências iam fazendo, porém, o seu próprio caminho. As leis estabelecidas por Newton, divulgadas em França por Voltaire, entre outros, provocavam um enorme fascínio na comunidade letrada, com profunda influência no conteúdo dos debates, dos escritos publicados, nas comunicações em conclaves, nas instituições académicas. As leis de Newton mostravam-se suficientemente válidas para configurar um Universo inteiro, um novo universo, e isto não foi de somenos importância no desenrolar dos debates sobre a natureza, sobre a definição de famoso “tout”. As leis descobertas por Newton introduzem um elemento completamente novo nas elocubrações sobre o Mundo, um corte entre aquilo que se escrevia antes dele e depois dele.
Duas concepções de Natureza se confrontavam: a de uma totalidade que dependia de uma Causa, ou Finalidade, exterior, não intrínseca, e uma concepção materialista de Natureza. Voltaire, na peugada de Newton, e muitos outros ilustres Philosophes, partilhavam da primeira concepção; eram os “deístas”, na sua arrumação geral. Neste contexto, parece-nos muito claro o propósito tanto de de d’Holbach como de Deschamps: despojar a natureza de qualquer finalidade que não fosse “natural”, isto é, uma natureza despojada de qualquer projecção antropomórfica.
Por essa razão d’Holbach tanto designa a natureza grand tout (sem maiúsculas), como “matéria”, sem maiúscula, para que não se evoque erradamente nenhum ser transcendente. O mesmo autor define a natureza – o universo, a matéria – como um “encadeamento”, de corpos, de forças, de fenómenos. Já foi sublinhado por diversos autores o notável esforço de d’Holbach e seus companheiros no sentido de afastar a especulação metafísica da natureza, e até no sentido de diminuir tanto quanto possível os contornos mecanicistas-fisicistas da definição do “grande todo”. Uma constatação fica adquirida: o ponto de vista de Descartes, e seus discípulos, é contrariado.
Contudo, uma proposição cartesiana de importãncia capital deu nova forma à relação do homem com a natureza, tanto no plano do conhecimento especulativo, como do conhecimento prático. Sendo a ideia de natureza uma ideia pagã, como nos explicou Jean Ehrard no seu belo e famoso livro , atrevemo-nos nós a deduzir que a ideia de Descartes retoma a ideia clássica, embora em novos moldes com certeza. Parafraseando J. Ehrard, a partir de então «a necessidade natural exclui a Providência, a bondade da natureza ignora o pecado», como já sucedera entre os gregos clássicos. Não está nos nossos propósitos expôr a história da Ideia de Natureza; mesmo assim, formulamos duas questões que, quer em separado quer em conjunto, exigiriam um tratado:
- A concepção cartesiana da natureza-máquina marcou indelevelmente o percurso do materialismo, ou dos naturalismos de modo geral, tanto através da herança cartesiana, como do legado espinosano. Atente-se que esta formulação é simplesmente genérica; por conseguinte, não procedemos aqui à diferença das duas concepções. Pretendemos enfatizar as noções de uma natureza dotada de uma mecânica autónoma, separada da vontade humana e despida de valores, que se oferece à experiência e ao uso.
- O Movimento cultural das Luzes pode interpretar-se como um porfiado esforço em busca da verdadeira natureza humana, e, neste particular, merecem relevo os programas dos materialistas –La Mettrie, d’Holbach, Diderot, e esse caso tão singular que foi Helvétius- e dos empiristas (Condillac). O auto-excluído Rousseau merece, neste contexto, um lugar à parte, original e profundamente influente a posteriori.
Sucede que, nesta procura da verdadeira fórmula para a articulação harmoniosa homem-natureza, dom Deschamps avançou com ideias originais, como se pretendesse um meio termo (juste milieu) entre o mecanicismo de alguns materialistas (ou o sensualismo de alguns empiristas) e a antureza idealizada de Rousseau. A sua utopia social é a clara demonstração desta tese.
Consideremos, pois, que os materialistas do século dezoito encontram-se suficientemente estudados, ainda que hoje em dia pouco recordados. O nosso propósito aqui não é descobrir nada de novo sob o sol, mas introduzir uma variante nesse materialismo (de d’Holbach e Diderot, em especial). A variante do materialismo de dom Deschamps.
O nosso autor comunga de algumas intenções comuns: emancipação do género humano relativamente a poderes estranhos, ilusórios ou fácticos; revisão da noção de matéria como sendo algo inerte e passivo, e, principalmente, aquele outro significado sobre o qual se desenvolviam preconceitos discriminatórios : matéria “vil”, que somente ganha valor como matéria-prima, mas um valor relativo, tal como se despreza o trabalho manual. A tentativa de fundar os direitos humanos, a equidade jurídica e os valores morais positivos, na natureza, é o legado do século anterior, que se prossegue sem desfalecimentos, porque o que está em causa são questões de capital importância política ( e económica).
Todo o materialismo baseia-se na asserção geral de que a unidade do mundo consiste na sua materialidade.
É a tese também de d’Holbach. Porém, a tese de Deschamps, não é completamente idêntica. Segundo ele, esta definição é inconsequente, devido a uma formulação demasiado estreita do todo material. A unidade real do mundo, que é a sua materialidade, necessita que se dê um passo mais, necessita de uma espécie de legitimação moral, que Dom Deschamps atribui ao infinito, isto é ao nada.
A intenção dele é manifesta, porque ele mesmo a proclama: revestir a crítica da religião da armadura de uma boa metafísica. Somente assim se venceriam os adversários. Contra-atacá-los quando desfiguram a crítica da religião, caluniando os ateus (naturalistas de uma maneira geral) de quererem que o homem regresse às cavernas, à bruteza, à animalidade. Supomos, e apenas podemos supor, que Deschamps terá eventualmente interpretado os desaires de Helvétius como um fracasso pessoal deste, por ter oferecido o flanco aos inimigos. Dirá o mesmo do grupo de d’Holbach.
É sintomático que Deschamps não despreze o termo “materialismo”, como, aliás, não despreza o termo “ateísmo”. Podemos avançar a afirmação de que, do mesmo modo que se quer a ele próprio o único “ateu esclarecido”, assim também se julgaria um “materialista esclarecido”. Esclarecido em quê ? Pela metafísica (a dele, evidentemente).
O materialismo não se confunde com o sensualismo puro, nem mesmo com o empirismo, embora haja quem os confunda a ambos. Poder-se-á discutir se Helvétius era mais um sensualista do que em rigor um materialista; mas não se duvida, porventura, de que o materialismo de d’Holbach é um esforço consciente de se distinguir do mero sensualismo. Seja como for, no caso de Deschamps tal desiderato é completamente flagrante. A pior acusação que se lhe poderia fazer era ele enveredar pelo sensualismo, que, aliás, fartamente censura.
“ Para possuir uma moral, era necessário reconhecer duas substâncias, como o fez a religião, que apenas se enganou no modo como as vê. Estas duas substâncias, segundo ela, são Deus e a matéria ; e segundo a Verdade é A Matéria, ser metafísico, e da matéria, ou tal e tal matéria, ser físico. Para além destas duas substâncias, existe a substância em si, ou para si, substância estéril, sobre a qual a religião igaulmente se enganou, embora conhecesse a sua existência, porque dela fez um Deus existindo antes do tempo, antes da matéria, e criador da matéria.”
Nota-se um abuso da categoria de substância, mas tolera-se no contexto. Não são parcas as vezes em que na exposição do seu sistema, Deschamps defende a fórmula das duas substâncias, que ele opõe ao sistema dito de Espinosa (da Substância única); porém, “il y a la substance en soi, ou par soi”, a única que, a bem dizer, merece a designação de substância. Ora, esta, ou seja, o infinito, o nada, aquilo que nada cria ou produz, de que nada se compõe, não enjeita a realidade material do mundo, não se encontra fora da Matéria composta de seres materiais, de forças, de regularidades, de determinismos, de relações de natureza material. Portanto, a matéria é a natureza e as suas leis internas, a materialidade do mundo fica estabelecida: a Matéria é una; contudo, não é única. Neste passo, um teísta, ou mesmo um deísta, interroga-se e aguarda: que existe mais? O Ente espiritual criador? De modo algum. Deschamps combate em duas frentes, os dois extremos. Para além da unidade material do mundo, existe o infinito, o nada. Desiludam-se: o nada é efectivamente incapaz de criar. Qual é, então, a necessidade de formular o infinito, o nada? Situar-se num “meio termo” entre os adversários e os extremos? Eliminar de vez as disputas, nadificando tudo? Ou postular que o todo não se esgota no Finito? Por conseguinte, se este mundo que habitamos é finito, nada disto contraria a hipótese de que sejamos um mero aconecimento de um infinito. No entanto, esta hipótese não é dirigida contra o universo finito newtoniano, pelo menos nos seus escritos nenhum argumento físico-matemático assoma. A Infinitude deschampsiana não arranca desse contexto, ainda que possa ser relevante, pela sua originalidade, a contra-corrente da enorme influência que Newton vai conquistando.
Materialismo insólito, quero crer que verdadeiramente invulgar ao tempo; e, como não estamos acostumados a lidar com esta concepção de um materialismo que admite a existência do Nada, parece-nos, porventura, incongruente, sem referente. Para nós, é por isso, e por outras razões, que o sistema dele se oferece interessante. Marginal.
Entendemos por materialismo a concepção do mundo que afirma o primado da matéria sobre o espírito, em conjunto com uma concepção do conhecimento para a qual o pensamento reflecte a matéria; não confundir o princípio invariável do materialismo com tal ou tal forma histórica de filosofia materialista.
Se definirmos o materialismo como sendo aquela filosofia que valoriza a matéria, fundamento de toda a realidade, e que, simultaneamente, valoriza os sentidos como fonte primeira de todo o conhecimento, interrogamo-nos sobre a inserção plena de dom Deschamps em tal corrente; e ainda mais se considerarmos, como devemos considerar, que o materialismo em geral estima sobremaneira a ciência, base de toda a verdade provada. Pelo contrário, já não temos qualquer hesitação em inserir o nosso autor no programa do(s) materialismo(s), que se apresenta como tenaz adversário de tudo aquilo que ele considera superstição e despotismo, hipocrisia moral e opressão das consciências. A tentativa de classificar Deschamps como materialista é, afinal de contas, tão ádua como a de classificar do mesmo modo Bento Espinosa.
Espinosa tinha consciência de pertencer a uma corrente da filosofia com antecedentes remotos em Epicuro e Demócrito, perseguida por uma outra sempre que ela criticava os preconceitos religiosos.
As posições de Espinosa relativamente a questões de importância capital, aproximam-no do campo dos filósofos materialistas, por exemplo no debate com as teses cartesianas sobre o entendimento e a vontade, recusando o dualismo e a ficção do livre-arbítrio, ou ainda na famosa fórmula do Deus sive natura.
A crítica de Espinosa aos cartesianos não servia propósitos exclusivamente teóricos, tratava-se, antes e sobretudo, do confronto entre determinadas formas de idealismo e a ciência moderna, entre os preconceitos e os erros idealistas que não molestavam os poderes dos poderosos. A batalha contra a superstição, como estando ao serviço dos despotismos, foi prosseguida e inensificada pelos filósofos das Luzes, embora com estilos e motivações diferentes, como se verificaram entre Rousseau e os Philosophes, e entre estes e Mably ou Deschamps.
Não vemos razão bastante para não classificar de materialista a tese espinosana que recusa à consciência humana, à forma e ao conteúdo do pensar de cada um, um lugar independente do Ser e um papel determinante sobre a Natureza, isto é, parece-nos muito mais legítimo reportá-la à tese materialista de que é o ser que determina a consciência, e não o inverso. E estariamos tentados a ir mais longe: todo o seu sistema, pelo grande esforço de congruência interna, pela posição primeira em que coloca a Substância única - Deus ou natureza – (e reportamo-nos à Ética), não se estriba precisamente em um “naturalismo” que o compromete com a corrente materialista?
Quer queiramos, quer não, não podemos negar validade à afirmação de que existe um traço fundamental da filosofia, para além da diversidade dos sistemas e da complexidade da argumentação, que se exprime pela oposição milenar de duas linhas : o idealismo e o materialismo, as quais se levantam e se digladiam perante o problema das relações entre o Ser e o Pensamento.. Conforme a resposta que dão, os filósofos dividem-se naqueles que afirmam o carácter primordial do espírito relativamente à natureza, e que admitem, em última instância, uma criação do mundo qualquer que seja e, aqueloutros que consideram a natureza como elemento primordial.
Apesar das diferenças que temos vindo a estabelecer entre os sistemas de Espinosa e de dom Deschamps (embora a insistência deste em demarcar-se do outro, é já por si muito suspeita), não nos inibe, com base nas semelhanças, de classificar de materialistas as respostas de ambos ao problema fundamental da filosofia; e isso, que não é pouco, aproxima-os irrevogavelmente.
A noção espinosana de causalidade imanente, de unidade de Deus e do universo, ainda que exprima alguma influência neoplatónica e estóica, com os seus ecos renascentistas, não poderá evitar acabar por ser interpretada de modo materialista pelos materialistas que o vão lendo, logo no século dezoito. Espinosa não enfileirou com o grupo de Gassendi, nem se deixou arrigimentar pelos libertinos, certamente, mas estes, e os sucessores, utilizaram-no conforme quiseram. O materialismo do século dezoito não é idêntico ao materialismo do século anterior. Para essas inflexões, ou correcções, o espinosismo muito contribuiu.
A unidade da substância é a unidade da natureza, e é a unidade do pensamento e do ser ; entre estes – pensamento e extensão – introduz-se uma estrita correspondência, permitindo-se, assim, eliminar qualquer transcendência ou a necessidade de um princípio supremo que lhes emprestaria existência e unificação. Por outro lado, o tipo de ordem que Espinosa estabelece no mundo, é de uma ordem natural que não necessita de mais nada senão dela própia para existir, isto é, nehuma outra ordem intervém. A extensão e os seus “modos” e as suas leis, exprimem a totalidade do real. Por fim, o “modo finito” que é o homem, é apenas um elemento mais no encadeamento natural das coisas, sem qualquer privilégio especial relativamente aos outros seres naturais. O tema do “conatus” espinosano tem sido um filão inesgotável tanto para os filósofos materialistas, como para cientistas da natureza humana, da psicologia, neurologia, antropologia.
Quisesse ou não Espinosa, queiram-no ou não alguns dos seus intérpretes modernos, o destino materialista de Espinosa tem que ver com os efeitos que a sua filosofia implicava. Neste sentido é de somenos importância classificarmos Espinosa, ou não, de materialista.
4. 2. Um expoente do materialismo das Luzes: D’Holbach
Dom Deschamps é um monge que de seu nada possui. Ao contrário dos Philosophes que possuem propriedades: Diderot, proprietário em Langres; Montesquieu, Buffon, d’Holbach, Quesnay, Véron de Forbonnais, Voltaire, dispõem de importantes fortunas. D’Holbach e Montesquieu são barões, Jaucourt e Tourgot são cavaleiros. Nem Rousseau, nem Deschamps, se incluem nestas listas. Interrogamo-nos sobre a influência em ambos desse facto.
Sabe-se que d’Holbach foi sempre muito próximo de Diderot, no trabalho e na amizade, e como eram afins as suas posições materialistas, naturalistas, utilitaristas, e as suas posições perante a sociedade civil, o poder político, a religião e a Igreja. A “escola” de d’Holbach, a sua “sinagoga”, na Rua Royale, acompanha, pelo ritmo e pela colaboração, a vida da Enciclopédia. Aos sábados, d’Holbach e Diderot, discutem “se a ideia e a crença de um Deus bom e benfeitor não é uma causa de corrupção na moral”. Dom Deschamps nunca participou, e nunca, que se saiba, foi convidado. Temo-los agrupado sob o termo de Philosophes, e é assim que a eles se refere Deschamps, como se fossem um grupo homogéneo; ora, é sabido que não o foram, as discordâncias foram muitas, particularmente quando a Enciclopédia e os seus mentores começaram a ser violentamente perseguidos e até encarcerados como sucedeu a Diderot. Voltaire e d’Alembert afastaram-se. Não fosse a têmpera excepcional de Diderot e a publicação teria terminado prematuramente.
Da vida e dos escritos de d’Holbach resulta a certeza de que ele foi um incurável anticlerical. Diderot foi mais moderado, chegando, por vezes, a censurar amigavelmente o seu companheiro de lutas e tertúlias.
A publicação do Sistema da Natureza, de d’Holbach, marca a década de 70, embora já circulasse em manuscritos, em Londres, com o pseudónimo de Mirabaud. É a este “Mirabaud” que se dirige Dom Deschamps.
O barão materialista conheceu bastante bem a obra de Espinosa.
Um dos temas centrais que mais interessa a d’Holbach é a questão do sensualismo de Condillac (amigo de Diderot e dele próprio). Para o sensualismo, como o nome indica, a sensação é o elemento base, elemento simples mas fundador do aspecto físico, gnosiológico, psicológico, moral, do indivíduo humano, e, inclusivamente, desempenha um papel fundamental na dimensão abstracta do intelecto. Sobre este elemento simples constituem-se, ou a ele se reduzem, a lógica, a moral, a natureza, a existência. Contrariamente a Condillac, d’Holbach não aceita jamais que a sensação seja um elemento substancial; é apenas uma relação, um tipo de movimento próprio de uma forma de organização da matéria; é esta que lhe subjaz. A sensação é, por conseguinte, uma propriedade da matéria, que é concebida, assinale-se, de um modo redutoramente fisiológico. Daí, porventura, um escopo para o determinismo que caracteriza o sistema de d’Holbach ( “fatalismo”, como chamarão, em jeito de crítica, Diderot e outros). A determinação hereditária, por exemplo, é uma presença visível no pensamento do barão, e é esta determinação que marca os limites da perfectibilidade humana (tese que ele opõe a Helvétius e Condillac). Este realismo, que roça um determinismo algo pessimista, converte d’Holbach num escritor muito pouco aberto a projectos utópicos.
Seguimos este percurso, para que se vão tornando claras as similitudes de d’Holbach e de Deschamps, mas, principalmente, as suas diferenças, que explicam a antipatia de Deschamps pelo barão.
Contudo, para que não se tome à letra as censuras de Deschamps, convém adiantar que d’Holbach, entre todos os materialistas, foi, juntamente com Diderot e Deschamps, um espírito inclinado para a metafísica, ou, se preferirmos, para a ontologia. A sua tese sobre a Matéria, sendo claramente materialista, é uma fórmula de pura ontologia.
Aquando da publicação do Système de la Nature, a reacção de Voltaire foi significativa, mas não cabe aqui referi-la, nem mesmo a crítica penetrante do amigo Diderot. Cabe sim assinalar a crítica dura de Dom Deschamps. O beneditino não antipatizava com d’Holbach como pessoa e como figura de referência, supomos até que terão sido amigos , ou, pelo menos, o monge terá procurado conquistá-lo para as suas teses e para a publicação do Verdadeiro Sistema ; por motivos que não estão esclarecidos, o contacto interrompeu-se. Os opúsculos publicados por Deschamps e o acervo dos seus escritos, grande parte do qual quase todos os frequentadores do Castelo de Ormes conheciam, revelam um tom agressivo relativamente a M. Mirabaud. O opúsculo publicado, La Voix de la raison du Temps et particulièrement contre celle de l’auteur du Système de la Nature ( 1770), é dirigido, como o título indica, contra d’Holbach. O livro de d’Holbach foi naturalmente lido e discutido nos serões cultos dos Argenson. É tentador imaginarmos a cena da qual o nosso dom Deschamps desejava ser o protagonista, argumentando, com aquele tom de quem decide da verdade definitiva, contra um célebre filósofo ausente...
Em que assenta a crítica de Deschamps? Na metafísica inconsequente, ou mesmo na falta dela, do autor do Sistema da Natureza. Ou seja, Deschamps não louva minimamente o labor metafísico de d’Holbach. Censura-lhe exactamente o erro de permanecer no “físico”, no particular, sem ser capaz de definir o universal (universal objectivo e existente, e não simplesmente mental); censura-lhe o método (embora não lhe chame, evidentemente, “empirista”) de tentar construir o universal a partir da indução, digamos assim, sobre generalizações sucessivas dos “colectivos”, por via da pura abstracção. Como temos visto, o método de Deschamps ( segundo a sua opinião claro está) não assenta exclusivamente na generalização, nas abstracções sucessivas, pois que o termo máximo, em extensão, exprime uma forma de existência, ou seja, é próprio da essência da substância, existir efectivamente. Não é esse o caminho para alcançar o universal verdadeiro, nem há propriamente falando “caminho” por meio de degraus ascendentes, pois que o universal – Le Tout e Tout - apreende-se pela intuição. Dom Deschamps acusa o autor de utilizar a mesma técnica da escolástica e da teologia ; ele, d’Holbach, o mais impenitente anti-religioso! De facto, o autor do Sistema da Natureza acusara a teologia por construir entes a partir de imagens sensíveis, com base no alargamento até ao infinito das qualidades sensíveis, operação típica de infinitização e divinização das qualidades humanas (o antropomorfismo que ambos, d’Holbach e Deschamps, abominavam); operação típica negativa (de negações em negações, ou, se preferirmos, de positividades em positividades cada vez mais extensas) que conduz directamente à crença em espectros e fantasmas. Todo o debate se situa neste ponto capital : Deschamps acredita (julga ter descoberto) na existência de uma inclinação natural e linguística, do ser humano, e numa faculdade inata intuitiva para o universal, “grito da verdade” que se manifesta no sentimento religioso dos povos e que os padres manipulam.; ora, d’Holbach ergue todo o seu trabalho na rejeição de qualquer “sentido interno”, sexto sentido ou coisa semelhante, que julga, e bem, estar na origem da crença em fantasmas sobrenaturais; ele quer um materialismo limpo, coerente, radical. A fisiologia explicaria, ou esperava que viesse a explicar, grande parte do comportamento humano. Posta assim a questão, muitos inclinar-se-iam para a posição de d’Holbach, pese embora a certeira crítica que lhe fez Deschamps, a qual, aliás, ficou praticamente desconhecida. Simplesmente, o beneditino não utiliza a essa intuição vital e interna para atribuir existência a um Deus transcendente, criador, antropomórfico, moral, etc., mas, pelo contrário, para captar a realidade existencial de um Deus-natureza, simultaneamente material e infinito (ou infinitamente negativo). A existência metafísica apreende-se directamente, sem mediação do elemento físico e sensível. Portanto, se d’Holbach não acredita em Deus, Deschamps acredita num : no dele.
Se utilizarmos a linha de análise de Hegel diremos que o materialismo do século XVIII aprofundou o caminho adequado à boa filosofia : a liberdade e a perseguição de uma unidade pensada; contudo, não ultrapassou o estádio de aspiração. Limitou-se a uma investigação da unidade, mas permaneceu no nível das representações e não do Conceito. Procurou a unidade da substância, tentou formular a unidade de dois mundos que se encontravam cindidos, sem que, porém, conseguisse formular um princípio, principalmente o princípio que desse corpo à totalidade (fecunda na sua dialéctica interna de contradições); não se soltou do finito, incapaz de se libertar da ideia de que os sentidos constituem o lugar do fundamento. Unidade abstracta, resultado inconsequente. Esta incompetência configura a marca do materialismo do século XVIII : o ateísmo. Exemplifica-se pelo resultado do sistema de d’Holbach: o “ser supremo” não é mais do que uma essência vazia. A afirmação ontológica não consegue encontrar, porém, outro apoio senão numa gnosiologia empirista e numa antropologia sensualista.
O filósofo Hegel compreendeu perfeitamente as duas vias da filosofia iluminista francesa: a linha agnóstica e a linha ontológica. A primeira poder-se-á ilustrar pelo pensamento de d’Alembert, traçando limites às ambições do entendimento humano; a segunda, pelo próprio sistema de d’Holbach.
Por outro lado, podemos, na peugada de Hegel, caracterizar a filosofia do século como uma busca permanente da “utilidade”, sendo que este “Útil” é quase sempre assimilado à felicidade, particularmente nos materialistas.
Para sermos justos, dever-se-á dizer que os materialistas (La Mettrie, d’Holbach), são moderados e críticos das ambições e da soberba daqueles que esperam da razão e do saber humano muito mais do que aquilo que o ser humano é capaz. Esta crítica dos moralismos irrealistas é uma crítica da moral dominante, do Estado e da Religião. Por isso mostram-se avessos a utopias, todas elas e de sinais opostos.
Situado neste contexto, dom Deschamps é um materialista heterodoxo. Não o único, se lembrarmos os casos de Jean Meslier e Mably. Mas explica as suas censuras ao grupo de d’Holbach e, de uma maneira geral, à corrente que se convenciona apelidar de materialistas. Ele, que é materialista, não quer, de modo algum, que o identifiquem com os materialistas à maneira de d’Holbach.
4.3. Uma filosofia do Tudo e do Nada
Aquilo que se mostra mais insólito nas teses de Dom Deschamps é, seguramente, a afirmação de que o nada existe. Trabalhar com tal noção não era novidade absoluta. O par ser/nada constitui, afinal, um elemento recorrente na filosofia tanto ocidental como de outras paragens, e é mesmo o problema fundamental da metafísica. O nada antes de existir alguma coisa, é uma asserção conhecida. Agora, afirmar-se a sua existência, a existência do não-ser, apresenta-se como um autêntico paradoxo, pois o que é, é, e o que não é, não é. Existir é ser alguma coisa. O paradoxo é ainda maior quando se afirma que o nada existe conjuntamente com o ser (cheio, positivo, determinado). Daí que alguns leitores nossos contemporâneos dos textos de Deschamps tenham visto algo que prenunciava admiravelmente o existencialismo.
Para Dom Deschamps as palavras fazem a diferença. Tudo é a Existência, o nada e o todo material. Uma existência é negativa, a outra, positiva. Por conseguinte, o nada não é um conceito vazio, é, antes, aquilo que se afirma, ou melhor que permite afirmar a existência positiva. É um jogo de conceitos que necessitam do contraditório. Quando afirmamos algo, negamos, contraditamos um outro algo. É a antiga asserção da escolástica, que Espinosa cita. Definir é contrariar. É uma questão de sentido. O mundo só ganha sentido se admitirmos o contrário dele mesmo. É também uma questão de ateísmo pleno: quando Deus deixa de fazer sentido, de ser necessário para atribuição do sentido do mundo e da existência mundana, não resta mais nada senão o próprio universo e o próprio infinito. O nada é, diz ele, a negação desta ou daquela coisa sensível. Ora, o nada é também o Tudo (Tout). Porque TUDO (Tout) é a negação da existência sensível; donde os seus atributos: o infinito que nega o finito, o eterno que nega os tempos; o único que nega a soma numérica dos seres; o em-si que nega os seres que existem na relação interdependente.
“O mais profundo axioma é que o todo é Tudo (tout est Tout). Este axioma diz tudo o que existe de sensível, todos os tempos, ou todos os seres em massa, abstracção de toda a relação, diz a eternidade, ponto de vista sob o qual não existe mais distinção entre os seres, nem do todo nem das partes : mas um só e mesmo Ser, negativo de todo outro ser, mas o infinito que é Tout.”
Na natureza, ou existência material do mundo, entre as partes ou modificações da substância Le Tout, não devemos dizer o nada, mas, antes, o menos, porque tudo que existe, existe mais ou menos na realidade, é mais ou menos real; é a presença, mais ou menos, da existência (isto é, da substância), que confere mais ou menos realidade a uma coisa, a um ser; assim, onde existe menos existência é na morte. Aquilo que o senso comum designa como realidade, vida, física do mundo, é, afinal, uma realidade tão mutável, tão dependente e interdependente, tão fugidia e enganadiça, como diria o nosso Padre António Vieira, e todos os moralistas, que a aparência se confunde com ela. Não pode constituir a única realidade, porque não saberíamos de qual delas falamos: da vida, da morte, do menos que é a morte, nesse continuum sem saltos? O nada não pode existir, como estado distinto, no interior da totalidade natural. Le Tout é uma entidade positivamente determinada, e o nada não possui determinação alguma. Portanto, o vazio absoluto não existe porque então seria uma “parte”, ou uma “modificação”, da natureza, da Matéria, o que seria um absurdo. Por conseguinte, ou o Nada existiu realmente, mas no passado, antes da Existência, como querem os teólogos, isto é antes da criação divina, ou apenas pode existir enquanto aspecto da Existência, como o outro atributo da substância.
Tudo ou Nada. Existência sem relação, sem tempos, sem fenómenos. Não há discurso mais metafísico que este. A Eternidade não pode ser um tempo, uma parte, uma modificação.
A existência do Nada não fazia sentido para os Philosophes. Era uma pura construção do espírito. Porém, a questão do vazio era um quebra-cabeças. No século XVIII o vácuo no sentido que a Física lhe atribuía, fazia todo o sentido; mas já mutíssimo menos no plano metafísico. E não fazia sentido também para Descartes, Hobbes e Espinosa, no século dezassete. Nem para os anti-metafísicos, nem para a metafísica de Espinosa. Ora pois, por que razão dom Deschamps faz introduzir tal conceito no seu sistema, com função operatória tão vincada?
Surpreende que Diderot haja admirado o sistema do beneditino, quando com ele se encontrou mais do que uma vez no decurso do verão de 1769. Diderot não nos deixou escrito algum que relatasse esse importante diálogo, e aguardamos a publicação da Correspondência toda de dom Deschamps.. Em que termos teria Deschamps “convencido” o famoso escritor, então já declaradamente materialista e ateu?
“Quando pensamos tudo somos obrigados a pensar nada”, escreve W. Gombrowicz, a propósito de Hegel. È uma boa maneira de explicar as primeiras páginas da Lógica, de Hegel. E nada vem mais a propósito, na medida em que o filósofo de Berlim procurava superar a antiga metafísica. Só que não se vê como um obscuro pensador de oitocentos, em plena França das Luzes, encontra os caminhos do devir. Nem ele os encontrou, nem Espinosa descobriu o papel da negatividade...
Colocar-se-ia dom Deschamps num lugar de charneira? Isto é, entre Espinosa e Hegel? É uma tese ousada, que apenas peca pela nossa tendência para a revisão a posteriori da história das ideias.
A dialéctica de Dom Deschamps não é a de Hegel. Contudo, é uma dialéctica. Os dois primeiros estados da humanidade, ou seja, da cultura e da política, hão-de ser superados pelo último: o estado dos costumes. E é neste contexto que nos é permitido entender cabalmente a intenção do beneditino.Dom Deschamps utiliza uma outra lógica, que não a tradicional. Esta apoiava-se no princípio da identidade : A é A, A equivale a A, etc. A de dom Deschamps ensina-nos que um par de contraditórios equivalem-se entre si, constituem a mesma realidade, o que parecia então bem estranho: o TUDO equivale a NADA. Tudo e Nada são a mesma coisa : a Existência. Este Nada, que não é nadificação, não provoca angústia existencial, com sabor a estranheza, alienação, ou náusea. Proporciona, pelo contrário, a salvação da humanidade. Uma espécie de beatitude, termo tão caro a Espinosa. Saber tudo e viver numa espécie de eternidade. A beatitude, em Deschamps, é conservar-se livre de toda a determinação. Ou seja, o Tout é mesmo isso : puro de toda a determinação.
Certamente que no estado das leis vive-se alienado, divide-se erroneamente a realidade em entidades fixas e rígidas, em existências estanques, vive-se acreditando tenazmente em ilusões, mas esta insatisfação existencial –melancolia e fastio – pode, isso sim, conduzir-nos para a descoberta de que o axioma verdadeiro é que Tudo é Nada. Na nadificação existencialista não existe qualquer essência, Fundamento ou Substância, e é por isso que é nadificação. Em Deschamps, Tout, ou Le Rien, é infinitude e eternidade.
Vejamos alguns trechos de um diálogo transcrito por dom Deschamps, entre o célebre Abade Yvon (colaborador da Enciclopédia), a marquesa de Voyer, e ele próprio, em um serão de 7 de Outubro de 1772:
“Qual é o sistema do senhor Robinet?”, pergunta a marquesa; “O “riénisme”, madame, segundo ele mesmo o disse ao Senhor marquês de Voyer”, responde o Abade; “O “riénisme”? Que é isso de “riénisme”?”; “È não acreditar em nada.”. Resposta de dom Deschamps :
“ Em nada das doutrinas comuns, senhor Abade, em nenhuma delas, mas não no Nada, na existência negativa: porque é a crença no Nada, ou nessa existência, que é verdadeiramente o riénisme. Segue-se daí que o riénisme, considerado como crença, como doutrina, tal como o devemos considerar, não é acreditar em nada : mas crer no Nada. Quando o senhor Robinet disse que ele não acreditava mais em nada : ele não entendia a existência negativa, através da palavra nada, pois que ele jamais nela acreditou, jamais teve dela o menor conhecimento. Se ele viesse a crer no Nada, e depois disso não acreditasse mais, ele poderia dizer que não acreditava mais em nada ; contudo, quando nela se acredita uma vez só, a evidência obriga a acreditar sempre”
È claro que o bom abade protestou “Que linguagem! Por mim, não entendo nada!”.
Não era caso para menos.
Perante a perspicácia da marquesa, o abade admite mas riposta: se o senhor Robinet aceita todo o sistema de dom Deschamps, mas não o Nada, está a ser inconsequente, pois se admitirmos a existência de Le Tout, a existência positiva, teremos de admitir a existência negativa, ou Tout, ou seja a existência do Nada (Rien).
O abade, que informa estar desde há tempos a copiar os manuscritos de dom Deschamps para uso do marquês, confessa que não entende as teses do autor. Confissão que é desde logo aproveitada pelo monge para fazer uma autêntica tirada de dogmatismo sincero : antes de entender as suas teses, o mundo vive na ignorância...a seguir é a luz!
O abade, dialogando com a marquesa, aquiesce (com que gosto deve ter escrito isto o bom beneditino!) que o sistema de dom Deschamps é “a obra mais engenhosa e a mais consequente”... mesmo assim, recusa o princípio em que ela assenta, isto é, a existência negativa. Significa isto que aquele que recusar este “princípio”, recusa o sistema. O abade não exagera : é o próprio visado que insiste permanentemente. De resto, não se passará outro tanto com qualquer outro sistema? E não ataca ele os philosophes e as suas filosofias precisamente por não serem consequentes? Isto é por não possuírem um “princípio”? Ele sabe perfeitamente, e di-lo frequentemente, que a característica forte da metafísica é o princípio em que se apoia, não o tendo não é metafísica. É por esta e outras razões que dom Deschamps censura Espinosa (na realidade, o espinosismo que dom Deschamps conhece) : pelo princípio, ou seja, pela “substância única”. Como procuramos demonstrar no decorrer desta dissertação, em boa verdade e em rigor, dom Deschamps não critica, nem lhe repugna, a substância única, mas, antes, que a substância, o Ser ou o Princípio, não haja de possuir necessariamente uma perspectiva positiva e outra negativa, isto é, um atributo positivo e outro negativo, se preferirmos utilizar categorias caras a Espinosa. É o Mesmo encarado sob duas formas, como se a Extensão espinosana se transmudasse em O Todo (Le Tout), e Pensamento em O Nada. O Ser, aquilo que é o todo (positivo, como normalmente é encarado pela filosofia) e o Nada – o Ser negativo. Deschamps não transcreve evidentemente a tese espinosana, até porque Espinosa não utiliza as categorias do positivo e negativo. Pelo contrário, em Deschamps a categoria do negativo é crucial : Tout é negativo porque não possui qualquer determinação e serve para, negando Le Tout, reafirmar a existência deste. É o infinito e a eternidade, precisamente porque não é determinável nem determina coisa alguma. É “estéril” e “vazio” como ele próprio o diz.
No mesmo diálogo que citamos, é-nos relatado que, a certa altura do serão, o abade Yvon retira-se. É então que dom Deschamps profere uma tirada contra o abade, que, se não é ofensiva, anda lá perto. Em resumo, classifica o filosofar deste, e de muitos mais ao que se supõe, como puramente “livresco”:”È da essência de todos os escribas da sua espécie de se crisparem contra uma especulação que destrói a sua existência reduzindo a sua escrevinhadura a zero.”
Esta crítica, que pode ter como destinatários tanto os philosophes como os teólogos, revela perfeitamente a atitude do beneditino: é um monge sem crença em Deus, “sem Igreja”, que interiorizou a Mensagem, que exige consequência moral entre aquilo em que se acredita e aquilo que se faz, que exige, sobretudo, uma outra coerência na ideologia. A filosofia não pode ser, e continuar a ser, uma mera especulação livresca, teorética, um entretenimento, um emprego, um modo de alcançar pequenas glórias, mas uma existência, uma orientação moral de vida. Este conteúdo ético do conceito de existência, está sempre presente. Daí a utopia social que ele vai deduzir dos princípios metafísicos.
Ora, sendo assim, porque razão o conceito de Nada (Rien) não haveria de conter, ou propor, uma valência ética? O “nihilismo” de dom Deschamps é profundamente ético. Não podemos separá-lo longa tradição ética da filosofia, principalmente depois de séculos de filosofia cristã. Não podemos deixar de evocar as “teologias negativas”, o “Deus negativo” do Mestre Eckart, seus antecessores e sucessores.
“É uma ideia negativa, replicar-se-á ainda, mas a ideia do infinito, do ser que nega o finito e os seres finitos, é uma ideia negativa, e no entanto admitimos que o infinito existe ; portanto isso não é uma razão, lá porque a ideia do Nada é negativa, para que o Nada não exista.”
Dom Deschamps utiliza dois argumentos principais em defesa da existência do Nada: o primeiro é a afirmação de que o nada opõe-se ao sensível. Se Le Tout é todas coisas sensíveis, é a soma delas e, portanto, é um composto de matérias, Tout corresponde àquilo que era o antes da criação, corresponde à ideia de Deus não-criador e de um universo incriado, ou ainda não criado ; não podendo ser uma Pessoa, somente pode ser o infinito. O segundo argumento refere-se às noções de infinito e de eterno : se temos admitido que Deus é precisamente o ser, o único ser, que é simultaneamente infinito e eterno, e se nele acreditamos, então porque não acreditar que o Nada existe, embora possua uma existência negativa? Depois da argumentação que elimina o Ser antropomórfico, não deita fora o bébé com a água do banho. As aporias teológicas contêm algo de verdade: se o infinito e a eternidade constituem ideias resistentes na cultura humana, é porque manifestam alguma verdade lógica e existencial. Esta é uma base essencial sobre a qual se estriba a convicção de dom Deschamps. Com este argumento ele julga, julgava, que poderia convencer os seus interlocutores, particularmente os crentes, teístas ou deístas. De facto, é um excelente argumento. Um deísta, por exemplo, como foram tantos ao tempo, na medida em que acreditava, pela razão, pela inteligência, que Deus existe, e é (o) Infinito, não deveria pensar mais um pouco, não deveria conduzir a lógica, o movimento do pensamento, até ao fim? Não deveria concluir que o termo in-finito é uma negação? Que é negação do “sensível”, pois que sendo negação do finito, há-de ser, portanto, das matérias finitas? E então se acredita que a negação existe, não tem ele que admitir a existência do nada? Ou seja, a existência negativa? O proselitismo de dom Deschamps, porque foi um prosélito e a sua ocupação filosófica um autêntico proselitismo, tem os pés assentes neste território da mais pura lógica, verbal, gramatical, conceptual. Esta vertente foi mesmo uma das vertentes que mais nos chamou a atenção. A outra foi a utopia que ousou propor ao seu tempo. Desde sempre soubemo-lo: dom Deschamps não foi um filósofo de envergadura, um portentoso génio à maneira de Espinosa, por exemplo, contudo ele tem ainda, julgamos nós, um interesse relevante, pelo trabalho não apenas com os conceitos, mas também com os termos e as palavras, a linguagem, e nisto parece-nos bem moderno. E possui um grande interesse ainda e hoje, porque representa um ponto de vista crítico no Movimento das Luzes, não do seu exterior, mas do seu interior.
Os escolásticos não procediam de modo semelhante; com raras excepções, tratava-se aí de “escolástica pura”, ou seja, de meros jogos de heurística, ou pretensa heurística, sobre palavras; tratava-se de algum modo de uma orientação que Espinosa tão bem critica no seu “Tratado Teológico-Político”. Não cremos francamente que dom Deschamps se reduza a tal figurino, ainda que alguns dos seus interlocutores, como d’Alembert, insinuassem tal coisa. Quer acreditemos ou não naquilo que ele afirma, o monge beneditino sem igreja, é hábil na crítica e na desconstrução. E, sendo hábil, é convicto; e, sendo convicto, é um moralista.
Viria a propósito, plenamente em nosso entender, o ponto de vista do filósofo alemão, Jacobi, para o qual o pensamento de Espinosa ilustra bem as filosofias sem saída, que desembocam no niilismo...Tal opinião até nem será completamente original, é mais um resultado previsível de cem anos de deturpações do pensamento espinosano, por um lado, e, por outro, de atracção-rejeição por um sistema que recusa qualquer “saída” religiosa e antropomórfica.
Toda a determinação é negação, escreve Espinosa a Jelles (Carta 50). Os atributos são distintos, pois que cada um é infinito no seu género, não se definem por oposição uns aos outros. São essencialmente positivos e, por isso, existem necessariamente. Os seres e as partes do todo, esses sim, são finitos, limitados, determinados. Limitados na sua essência, determinados na sua existência. Expressões do negativo. Conveniência ou desconveniência das partes entre si. Cada ser afirma sempre uma necessidade, uma força de existir. Tal força é positiva. Não faltando nada a cada coisa, a negação é nada. Modo de um atributo infinito, à sua natureza não lhe falta nada que pertença a outra natureza. A natureza de uma coisa não pode exigir nada enquanto não existe. Não pode ter existido criação ex niilo.
A existência de um atributo absolutamente negativo, que se opõe, por isso, ao atributo absolutamente positivo, segundo as teses de dom Deschamps, eis qualquer coisa que encolerizaria um pacífico Espinosa. Com tais discípulos assim, não era preciso ter inimigos.
4. 4. Diálogo com um naturalista: Jean-Baptiste Robinet
Jean-Baptiste René Robinet, nascido em Rennes em 1773 e falecido em 1820, foi um dos interlocutores de dom Deschamps; no espólio encontra-se transcrito um diálogo..
Podemos encontrar, nesta transcrição dos diálogos de “D.D.” –dom Deschamps- com “M.R.” –Robinet-, e manuscritos por Dom Mazet (com certeza sob o ditado de dom Deschamps) reservas de monta avançadas por “M.R.” relativamente às teses de “D.D.” , reunidas nestas palavras: ”Parece-me que nos princípios de D.D. a existência em si, a existência negativa, é uma realidade. É preciso com efeito que isso seja uma realidade ou uma quimera.”. E isto apesar dos esclarecimentos prestados pelo convicto autor, para o qual não há nada de mais simples do que a diferença entre tudo et o todo... O que importa neste caso destacar das respostas de “D.D.”, é a tese que temos vindo a enfrentar: a Existência possui duas maneiras essencialmente contrárias de ser vista, ou seja por ela mesma e em si mesma ou por aquilo que a compõe. Encarada por ela mesma, é Tudo que não exprime as partes (qui ne dit point de parties); se é olhada por aquilo que a compõe, é O Todo que exprime as partes. A descoberta da verdade consiste em ver a Existência sob estes dois aspectos e desenvolvê-los em seguida, segundo dom Deschamps. O primeiro é o aspecto negativo, o segundo, o positivo. Deschamps reconehce que são abstracções, sem dúvida que o são, mas não escolásticas; não se oferece outr alternativa àqueles que abandonaram a crença em um Deus moral e inteligente, que não seja conceber a Existência como tudo e o todo...; não é o infinito um ser negativo? então, não temos outra alternativa senão pensá-lo com uma ideia negativa...
Robinet: «Ele não dirá que o ser único individual, que é o Nada, segundo ele, seja uma quimera, é um ser, e um ser é uma realidade, mesmo nos princípios de D.D., para mim custa-me a crer que o Nada seja um ser.”
Robinet, apesar de tudo, manifestou vontade de conhecer melhor o sistema de Deschamps. A influência do marquês de Voyer deve ter pesado nesta atitude cheia de boa-vontade de Robinet.
Considera (ou reconhece?) que o sistema do beneditino de Saumur, “É de toda a metafísica que já vi, a mais refinada, a mais subtil, a mais sedutora, a mais fina: porque considero muito hábil o sistema que descascando (épluchant) todos os outros sistemas os transforma nele próprio.”, diz dirigindo-se ao marquês de Voyer. Oferece-se para publicar a obra de Deschamps nos suplementos da Encyclopédie de que ele é um dos editores, com a condição de que o autor a resuma, suprima as repetições redundantes, introduza um pouco mais de ordem e de precisão. Dom Deschamps reage com nenhuma humildade, defendendo o significado das redundâncias e o conjunto do seu sistema tal como está exposto, manifestando desconfiança pelas intenções de Robinet, insistindo que é a Verdade que lhe interessa, ou seja, convencer os leitores, incluindo o próprio Robinet, e não seduzir. Dom Deschamps, para nós, deixa claro, aqui e noutras ocasiões, que é um homem dominado por uma ideia forte que transforma num dogma, dotado de uma grande ambição: conquistar os outros para o seu sistema, através da razão, sistema que ensina aos demais a verdadeira filosofia da existência. Um profeta, missionário, que encarna perfeitamente os ideais das Luzes, e que crê firmemente que o seu programa é o mais ético e o mais lógico de todos, pois seria o seu resultado mais coerente e radical.
O núcleo duro da controvérsia com Robinet centra-se no facto deste não entender, ou recusar, a existência real do Nada (Rien). O autor afirma que Robinet não percebeu o essencial do seu sistema, sem rodeios. “Eu não atribuo a realidade de existência ao Nada (Rien), o que eu digo é que o Nada é a negação de toda a realidade de existência” . O Nada existe ou não? “M.R. (Robinet) engana-se seguramente: primeiramente porque dos dois seres que D.D.(dom Deschamps) estabelece, um é real e o outro não o é de modo algum, e ambos existem no Entendimento(l’Entendement), que é ambos, que é a Existência, Tudo sendo Tudo. M.R. engana-se ainda: ele devia ler e reler que o real, ou a realidade, é um atributo que somente possui existência por meio do seu oposto, pelo aparente, ou pela aparência, e, consequentemente, é puramente relativo, única maneira de ser positivo, única maneira de ser o que ele é, isto é o real, que diz a mesma coisa que o positivo. Segue-se daí que este atributo só pode convir à existência relativa, a O Todo (Le Tout), que exprime as partes( qui dit des parties) e, consequentemente, que ele tem a sua negação na existência sem relação (sans rapport), no Tudo (Tout), que não exprime partes (qui ne dit point de parties) de modo algum, no Nada (Rien), no nada (néant): ora se ele tem a sua negação nesta Existência (Existence), a única individual (individuelle), na Existência em si (en soi), ou negativa, não se pode dizer que ele [ o atributo de realidade] convenha a esta existência.”
O nada ( o infinito, Tudo) existe, mas existe sem ser real, pois que real é aquilo que possui determinações, ou seja, aquilo cuja definição se aproxima da categoria de substância primeira, de Aristóteles. Por conseguinte, o Nada não é, nem pode ser, uma forma da Matéria, um hiato abissal da natureza, um “ainda” não é: Deschamps não recoloca o Nada como estado anterior do mundo, momento prévio da Criação – o que conduzi-lo-ia a admitir um Criador ex nihilo. Haverá muita obscuridade nas páginas de dom Deschamps, mas muito dificilmente o leitor avisado encontrará incongruências, contradições flagrantes, ausência de objectivos claros e sempre perseguidos. A tese de que o Mundo é real, completo, cheio ou pleno de realidades físicas, é incontornável, e afirma uma concepção naturalista do mundo e da vida. Porque ele acredita que este Mundo é a única realidade, a natureza é criadora de si mesma. Então o Nada somente pode existir como, ou através, da negação do atributo positivo que convém a O Todo, isto é ao Mundo material. Estamos na mais pura lógica, em pleno território de conceitos, governado pelo “Entendimento”. Algo como uma espécie de logomaquia.
Se o “único ser metafísico” é o finito, a totalidade que é o Mundo – existência que só o é por meio de tal ou tal ser físico, esta existência é o físico tomado na sua generalidade e relatividade-, o que é então o Nada? Que classificação atribuir-lhe se apenas lidamos, na filosofia, com o Físico e o Metafísico? Em retórica seria apetecível designá-lo como supra ou meta-metafísico, mas que ganharíamos com isso?
Preferimos, pois, designar o Nada como o outro aspecto do Ser Absoluto. É a tese que defendemos sobre a interpretação adequada do pensamento de dom Deschamps.
Por conseguinte, Tudo e Nada (Tout e Rien ) são a mesma coisa. Identidade absoluta. Não se pode desejar uma identificação de dois contrários mais completa e absorvente. Porém, o Tudo que é a Existência, existe na medida em que existe a realidade (postiva, absoluta), nenhum dos dois lados pode ser sem o outro, por via lógica alcançamos O Todo, em seguida Tudo, enfim o Nada. Esta solução não é, de modo algum, a solução espinosana da substância única infinita. Espinosa não seguiu este caminho. Contudo, não foi impossível abri-lo. Dom Deschamps ousou. Para resolver aquilo que ele considerava uma aporia do pensamento espinosano.
“O Nada é um ser: é Tudo; o sensível, encarado na generalidade, ou metafisicamente, é um ser: é O Todo; e estes dois seres, Tudo e O Todo, não são senão o mesmo ser, não são senão a Existência vista na sua soma, sob os seus dois aspectos essencialmente contrários, sob o aspecto do não e sob o aspecto do sim; sob o aspecto que não exprime de modo algum as partes e sob aquele aspecto que as exprime; sob o aspecto que nega todos os outros seres que não sejam ele mesmo e sob aquele que os afirma. Pode-se razoavelmente negar estes dois aspectos à Existência, na medida em que é evidente que ela pode ser vista com abstracção das partes que a compõem e sem esta abstracção; na medida em que é evidente que ela é única ou una, sem relação ou com relação, o infinito ou o finito, Tudo ou O Todo, conforme se faça ou não esta abstracção?”
Robinet insistirá, contudo, na pergunta que nos parece a nós ser realmente crucial: «Porquê conciderar o universo sem relação? Porquê atribuir uma entidade a puras negações». É a interrogação que se impõe àquele que tenta situar-se no quadro de um sistema que se estriba numa identidade lógica puramente contraditória, para aqueles que, como Robinet, se movimentam conceptualmente no território delimitado pelo pensamento das Luzes. A noção de “Tout” estava perfeitamente admitida, constituía mesmo a noção chave; digladiavam-se entre si, empunhando-a, adversários tão opostos e teimosos como aqueles que defendiam uma natureza sem ou com Deus, criada por um deus pessoal e moral, ou por um deus-arquitecto e indiferente à sorte de cada um. O “grand tout” do barão d’Holbach contra o Bom-Deus de Rousseau, e a “ficção útil” de Voltaire e de Hume. D’Alembert, o fino matemático, admitia, sem repugnância, a noção de totalidade, desde que fosse nos estritos limites de um “nome”, nunca uma entidade. Para muitos dos philosophes, de d’Holbach a Diderot, o “grand tout” era um ser, o Ser dos seres, a Matéria que tudo envolvia e tudo criava, no seu movimento eterno, pulsando de sensibilidade e pululando de formas várias de Vida. Até aí tudo bem. Todavia, porque razão temos de atribuir uma entidade a puras negações? Esta interrogação de Robinet é a inetrrogação que todos fazem, aqueles que leram Deschamps, aqueles cuja correspondência com o monge se encontra registada e publicada. A interrogação exprime, de modo geral e, ao mesmo tempo, fundamental, a recusa dos pensadores das Luzes, a recusa em ir mais além pela via lógica seguida por Deschamps, para ir até esse nada que é tudo. Recusa que exprime a atitude corrente de que a metafísica estava definitivamente desacreditada. No entanto, no interior deste movimento, do Movimento das luzes, degladiavam-se (cordialmente, mas nem sempre) duas concepções diferentes sobre o que fosse a metafísica: o círculo ilustrado por d’Alembert rejeitava substancialidade aos “seres de razão”, cuja utilidade se circunscrevia ao uso lógico do pensar; o círculo dos materialistas, liderado por d’Holbach, admitia a substancialidade da natureza (matéria) como um todo. Tanto os primeiros , como os segundos, não conseguiam evitar ambiguidades no seu discurso: a crença num Deus inteligente, os primeiros, a antipatia pela metafísica os segundos. Se considerarmos, sem tolerância, que são, não ambiguidades, mas contradições puras e simples, entendemos então a crítica de Deschamps. Exactamente contradições é que ele encontra nos discursos dos seus adversários.
A razão de fundo é extra lógica. De outro modo: trata-se de uma outra, de uma nova lógica. Aquilo que poderia permitir, mas não permitiu, a dom Deschamps, convencer os demais, era a questão ética, a partir do ponto de vista lógico ou racional. E a questão ética surge exposta na utopia que propõe. A sua visão utópica de uma sociedade sem classes, esclarece-nos a obscuridade do seu sistema lógico. Por um lado, ela é o seu resultado, por via dedutiva, por outro, ela é o começo, a chama que ilumina o sistema. O resultado já se encontra no começo, como se aprende em G.F.W.Hegel. Um sistema de ética, que apresenta um significado para a existência humana, um sentido para a vida, um projecto para uma sociedade feliz.Tanto o liberalismo mitigado de d’Alembert, como o liberalismo mais reformista de d’Holbach, estão em articulação com as posições filosóficas deles mesmos. Do seu sistema d’Holbach deduziu uma ética, a qual, aliás, abrange grande parte da sua obra publicada; e entendendo-a como ética-política, então não trata a sua obra senão disto mesmo.
Por conseguinte, o sistema de Deschamps é também uma proposta, um projecto de ética-política. Este projecto é um radical revolucionamento social. Necessitou de uma lógica diferente. E este é um ponto capital.
E conduz-nos a pensar que a “Refutação”, pelo beneditino, da Ética, de Espinosa, tem esse propósito principal, se não exclusivo: dotá-la de uma ética...A bem dizer, de uma outra Ética. A noção de “Rien” desempenha, portanto, um papel necessário, no ponto de vista ético. Ou seja, a noção contraditória de Existência. Ora, como se sabe, a Ética de Espinosa começa com uma metafísica do ser e termina com uma ética.
Jean-Baptiste Robinet fez publicar na Holanda, tinha 26 anos, uma grossa obra em quatro tomos, com início em 1761. Alguns leitores atentos, Voltaire entre eles, consideraram-na uma defesa do materialismo e do sistema de Espinosa acrescentado de um sistema do mundo. Paul Vernière é de opinião que, nesta obra, De la Nature, o autor pretende « apoiar uma filosofia vitalista da natureza sobre uma metafísica da transcendência”. Jogando com uma concepção unitária de natureza, defende que toda a matéria é animal, por mais estranho que hoje nos pareça...na realidade visava colmatar a lacuna principal do materialismo: como surge a vida da matéria bruta? Resolvia o problema injectando vida (organização) em todas as formas de matéria. O que importa trazer aqui é a sua metafísica, não toda, mas categorias e teses que possamos pôr em paralelo com Deschamps. A clássica crítica de Bayle, seguida por Condillac entre outros, pesava sobre a atitude destes homens no confronto com Espinosa; referimo-nos à tese de uma única substância. A interrogação que esses críticos colocavam era sempre a mesma: porquê estabelecer uma única substância e não duas, ou mais? Por conseguinte, Robinet defendia, por um lado, a unidade do mundo material (fazendo-se eco do princípio de organização) e, por outro, hesitava em relação á unicidade da substância. Escolheu a solução do dualismo. Sobre a natureza paira um Deus criador ( causa), independente, embora ignotus. Esta última caracterização não exprime somente uma impotência para dizer o que quer que seja de Deus, mas rejeitar e criticar todo e qualquer antropomorfismo. Entre os argumentos que utiliza, encontramos alguns com a marca de Espinosa: “ Espinosa não mereceria os nomes odiosos com que o difamaram em vida e pelos quais a sua obra fica desonrada, se ele não tivesse outra intenção senão fazer ver quanto é falso e perigoso fazer Deus inteligente, bom e sábio, porque existe bondade, sabedoria e inteligência no mundo.». Afasta-se, porém, de Espinosa, marcando a diferença profunda de natureza entre Deus e o mundo. Conservando, por mais paradoxal que seja, a crença no criacionismo, avança com as seguintes palavras que nos chamaram a atenção: « A duração da natureza não se assemelha em nada à existência eterna de Deus. A natureza e o seu autor existem em duas ordens de coisas tão completamente diferentes que não possuem nada de comum nem de análogo.» Estas teses manifestem grande novidade sobre as teses tradicionais ?não, seguramente; mas estes e outros argumentos constituem um mapa aproximado dos debates e um pano de fundo para a meditação de dom Deschamps. Não temos qualquer dúvida de que este leu, em parte ou no todo, os quatro tomos do De la Nature, de Robinet, muito embora não possamos provar, até à data, com a correspondência do monge. A obra de Robinet é referida por Deschamps, mas ele, ou o copista, subtraiu-lhe o De. Evidentemente que Deschamps deu a ler o seu sistema ao ex-jesuíta muito provavelmente depois de haver lido este, quando, não sabemos ao certo. Acreditando nas palavras de Deschamps, o sistema deste já se encontrava elaborado na altura em que foi conhecido o primeiro tomo de Robinet (1761), sendo que os outros três saíram quatro e mais anos depois.
Em suma, à tese de Espinosa segundo a qual devemos distinguir a “natura naturante” e a “natura naturada” no Deus sive natura, Robinet volta a opor uma coexistência entre o Tempo e a Eternidade, a coisa criada e o seu criador. A Natureza não é Deus, não teve um começo nem terá um fim muito embora não seja eterna (?), é maior que tudo e não é, porém, infinita (?). Contradições. «Como aliar aliar o infinito com o finito, o perfeito com o imperfeito, na medida em que um exclui necessariamente o outro ?», pergunta ; respondendo que « somos deuses, todas as essências são divinas em si »… E remata : «o unierso é Deus.». Em que ficamos ? Verniére, que estudou os quatro tomos do De la Nature, afirma que “não é tanto Espinosa que ele visa, mas toda a doutrina da imanência.”. Robinet oscila, portanto, entre uma apetência, bastante retórica, pelo panteísmo e uma acautelada reafirmação da transcendência. No fim de contas, não seria mais cómodo fazer a economia de uma divindade tão distante e ignota? Não extraiu tal conclusão porque não desejou, ou desejou-a mas temeu as consequências? Naquele tempo a segunda estratégia era, apesar da ousadia de alguns, a mais vulgar e previsível. Contudo, entre as duas temos descoberto com surpresa uma outra: a da dissimulação.
O esvaziamento da noção de Deus parece estar a caminho. A hipótese de um Deus no pensamento juvenil de Robinet oferece-se desprovida de utilidade. Foi isso mesmo que alguns dos seus leitores concluíram – Grimm, por exemplo, que, na Correspondance littéraire (1761) escreve :« O seu resultado reduz-se a provar que os homens não formar uma ideia nítida de um Ser supremo...Temo que todos os laboriosos esforços de M. Robinet ... reduzam.se a convidar os leitores a dispensarem-na também.». E Dammiron classificará a concepção de Robinet de “nihilithéisme” . Na verdade, o que sentimos quando tomamos contacto com estes sistemas filosóficos da época, tão diversos na aparência mas atravessados por correntes comuns, é que no interior do movimento das Luzes, cujas fronteiras são muito difíceis de delimitar, abre caminho uma atitude, sinuosa mas contumaz, de maior interesse e louvor pela natureza, do que pela figura metafísica de Deus. Separação da ciência e da religião, e separação da igreja e do Estado? Esgotamento e defecção da metafísica?
Seja como for, Robinet confronta-se com as antinomias, tanto quanto Deschamps e outros se confrontaram. Deschamps chama-lhes “contradições”, referindo-se à teologia e ao teísmo, mas também aos ateus. Deschamps absorve-as, integra-as no seu sistema; Robinet revela-as, tanto mais quanto delas procura fugir. Ora, quem as enfrentou pela vez primeira na modernidade, senão o próprio Espinosa? Isto é, os dois planos, o da duração e o da eternidade, do finito e do infinito, da extensão e do pensamento? Dir-se-á que o fez por se inspirar no Descartes pioneiro. Pois será. Do que não há dúvidas é que foi Espinosa que procurou a solução da unicidade e do imanentismo. Reafirmando sempre que não pretendia negar Deus, isto é recusando a acusação de “ateu”, tentou evitar as armadilhas deste debate (teísmo/ateísmo), anulando, no seu sistema, o Deus da transcendência, o Deus moral, e fez deslocar os seus outros atributos para a unidade da Substância. Pareceu, assim, fechar um ciclo de seculares controvérsias, e abrir um novo. É neste ciclo, neste quadro, que vemos a sua presença em diversos autores franceses pós-cartesianos. O Deus de Robinet, como diz Vernière, torna-se nas suas mãos esvaziado de determinações, carregado de negações. Espinosa “contaminou” deveras a atmosfera...Porque não abandonar esse Deus vazio e negativo e aceitar antes a solução de Espinosa?
O monge Deschamps não fez exactamente isto. Porém não se recusou a aceitar a solução rigorosamente espinosana pelas mesmas razões de Robinet e muitos mais. A estes condicionava-os a necessidade de figurarem uma Causa, ou Ordem, cósmicas, e muito provavelmente também condicionava-os o clima repressivo da sociedade em que viviam. Dom Deschamps levou às últimas consequências o raciocínio, e extraiu as consequências éticas ou existenciais. O Deus negativo é Nada, ou melhor ainda: é esse infinito do qual nada podemos dizer, excepto que é o outro plano da realidade natural.
«Ele (Robinet) não reparou que não podia admitir O Todo sem admitir Tudo, ou o Nada. Verá sem dúvida, o que será para ele bem mais evidente, que não pode admitir Tudo, se o admitir, sem admitir O Todo.», diz dom Deschamps. Com que singela convicção! E com que ecos derivados recebemos a fórmula spinozista da natureza naturante e da natureza naturada!
A verdade é que Robinet admite «o todo», como já o admitira na sua própria obra publicada. Não vê sequer obstáculo de maior em admitir «tudo». O que lhe repugna é aceitar o «nada». Ora, se ele se mostra capaz (ou, pelo menos, denuncia) de admitir o projecto ético de Deschamps, porque razão não admite que este projecto é «consequência» dos «princípios», isto é, dos conceitos de «tudo» e de «o todo»?
“Porquê atribuir uma entidade a puras negações? » - Tal interrogação não se aplica também ao próprio Robinet ? Não bastaria dar mais um passo? Mergulhado na atmosfera do tempo, Deschamps ousa extrair a conclusão: um Deus esvaziado de atributos actuantes, um Deus negado no fim de contas, vale mais que exista como sendo o mundo e a infinitude, um isto que vai devindo e um nada prenhe de outras possibilidades. Constitui um elemento do pensar, mais do que isso: um resultado; é o próprio pensamento na sua essencialidade, isto é, a razão, o Entendimento, como ele o designa. É o fruto maduro de séculos de controvérsias e de meditação, o lastro profundo da mente dos povos, um desejo, uma crença, uma vontade. Aquilo que se deve rejeitar, aquilo em que os povos e os seus filósofos falharam, foi no antropomorfismo, ou seja, fabricaram um Deus à nossa imagem e semelhança. Legado de Espinosa. Ideia crítica das mais típicas e fundamentais do Movimento das Luzes. Barricada dos adversários daquela monarquia de direito divino, fartos de tanta ignorância e superstição, e, sobretudo, da manipulação do povo ignaro pelos padres “impostores” e pelos reis a quem aqueles serviam de amparo, e esta última função talvez apenas Deschamps a haja formulado. Instituir a tolerância, separar as Igrejas do Estado, liberalizar os costumes, desenvolver a economia, seria o programa das Luzes. No entanto, dom Deschamps não foi defensor de mais liberalismo sob a direcção de déspotas iluminados, nem de um Governo monárquico-constitucional, nem sequer republicano. Como iremos ver, o monge foi conduzido para uma solução política muito diversa, que o torna singular.
Toda a gente possui a ideia de Tudo – afirmará, de resto bastas vezes, que é uma ideia “inata”, é o mesmo que dizer “natural”. Erradamente fizemos sempre desta ideia comum o nosso projecto moral e social atribuindo-o a um ser transcendente. Esta afirmação da força, da potência, imanente de uma ideia de todalidade, é completamente incompatível com as teses de Espinosa? Não corresponde à estratégia normal de se buscar um plano, um fundamento, que nos autorize a universalizar a Verdade e a torná-la acessível? Quais as razões aduzidas pelo próprio Espinosa para o facto de haver-se imaginado um Deus antropomórfico? O medo, a ignorância, o desejo...e a adulteração de uma única realidade potente, simultaneamente temporal e eterna, finita e infinita, particular e totalizadora.
Argumenta Deschamps: se eu formulasse o finito, pediam-me logo o infinito...pois que um é condição do outro, e está sempre na ponta da língua. “Não se pode deixar nenhuma porta aberta à existência de um Deus, estando como está esta existência tão enraizada que ela se encontra no espírito dos homens ; e seria deixar uma se deixarmos atrás de si a noção do infinito sem que a desenvolvessemos. É isto que fez o ateísmo, até agora, e aquilo que tornou inúteis todos os seus esforços contra o teísmo (…)». Estas palavras são deveras de capital importância e claras quanto aos seus propósitos. É um novo e outro ateísmo que ele pretende fundamentar; forte e invulnerável. Realmente convenhamos que nos debates teísmo/ateísmo o problema do infinito era, dos ateus, o seu «calcanhar de aquiles». E foi exactamente por causa disso, ou também por sua causa, que o filósofo Hegel se esforçará por explicar o infinito. Dotando o Ser de um dinamismo, de uma “subjectividade”, que Hegel não encontrou, injusta e erradamente, no Ser de Espinosa.
Ou seja, Deschamps esforça-se por corrigir Espinosa através da resolução do formidável problema do infinito ( ou da dupla atribuição da categoria de Todo); julgando tê-lo conseguido, acreditou ter acrescentado uma verdadeira ética à Ética espinosana.
“A existência do Nada parece-me uma simples subtileza, mesmo uma contradição.», teima Robinet.
Não é abusivo imaginarmos esta réplica de Deschamps: “Ora, ora, que paciência tenho que ter para aturar estes philosophes ! Não são capazes de um arroubo lógico, de se guindarem ao simples raciocínio consequente: se admitem o finito como uma totalidade, hão-de admitir forçosamente o infinito que mais não é do que a negação do mesmo...” Subtilezas”, pensa Robinet.
O interlocutor é, apesar de tudo, tão temerário ( ou tão condescendente?), que não apenas admite o todo universal ( o que é vulgar no seu tempo, de resto), como admite o “estado de costumes”! Este, como iremos abordar, é a expressão mais radical, segundo Deschamps, de uma sociedade sem propriedade...Contudo, não consegue digerir a noção, e a sua utilidade no sistema, do Nada. “Não posso resolver-me a dar existência a Tudo, ao Nada, ao néant, ao infinito, que são puras negações do ser e da existência.», insiste. Não podemos evitar a evocação anacrónica dos debates acerca da filosofia Existencialista...Também aqui se diz ( se irá dizer) que o “néant” constitui um atributo da existência.
Como podemos atribuir existência a puras e simples negações absolutas daquilo mesmo que existe efectivamente?
No entanto, dom Deschamps não afirma que esta ou aquela coisa física particular existe para logo em seguida negar que exista. No domínio destas coisas apenas admite que elas se opõem, que são diferentes e contrárias; que, apesar disso, se compõem da mesma massa universal, a Matéria. O plano do Contraditório no qual ele se coloca, tem que ver somente com as duas totalidades, esse plano que sendo “metafísico”, O Todo, e (já) não metafísico, Tudo, não sabemos nós como classificá-lo. Plano ontológico, que perspectiva a existência em dois sentidos: material e moral. A Natureza (o universo, a Matéria) é desprovida de qualquer finalidade moral. O facto de todas as coisas se encontrarem unidas em uma totalidade «cheia», não demonstra na Natureza qualquer dispositivo moral, porque esse finalismo conduzir-nos-ia à crença em um plano moral e, portanto, a um Deus moral. Assim sendo, é o homem (ser social) que empresta significados morais. A infinitude serve como contraponto, referência e horizonte. Se a Natureza é una, se tudo acaba por concordar entre si, devemos extrair daí as devidas consequências. Se esta natureza se prolonga, ou se situa, no mistério da eternidade, da infinitude, que outra conclusão devemos extrair necessariamente senão a de que nada em nós mesmos é eterno, que não vale a pena lutarmos até à morte por ilusões, ou que a tristeza existencial pela «falta», é inútil e gratuita? Parece existir no pensamento de Deschamps uma filosofia da resignação; porém, não é fatalismo, é, sobretudo, um pensamento que se opõe às teologias que desenham na natureza humana uma «falta original». Neste sentido, o pensamento de Deschamps está também aqui mais próximo de Espinosa.
«Parece-me que o essencial do sistema poderia dispensar essa abstracção.», teima Robinet, referindo-se ao Nada. E, pouco depois, adianta outra objecção oportuna e penetrante: «Dizer que o Nada existe, que este Nada é Deus: é conservar um nome quando se elimina a coisa.»
Na verdade dom Deschamps não afirma que o Nada é o «velho» Deus: o que diz é que «se fez um Deus de Tout e du Tout, do infinito e do finito, do Nada e do sensível, do ser de relação e do ser sem relação, fazendo-o à nossa imagem física e moral, figurando-o como inteligente e vingador.»
Este diálogo, do qual chegou aos nossos dias uma cópia pela mão do discípulo de Deschamps, dom Hugues Mazet, é, portanto, uma transcrição diferida; não podendo ser evidentemente um registo em tempo real, mas, antes, uma construcção a posteriori com todos os riscos que isso acarreta, parece-nos, apesar disso, esforçar-se por respeitar a pessoa e as objecções do interlocutor Jean-Baptiste Robinet. Demonstra, sobretudo, duas coisas: que um homem profundamente conquistado pelas novas ideias difundidas pelas Luzes, recusa a noção de Nada, que lhe surge inopinadamente, inútil, sobrecarregada de metafísica, que não clarifica o sistema, bem pelo contrário; e que dom Deschamps insiste com o argumento da congruência do seu sistema, ou seja, que não se pode admitir a justeza de uma ética como aquela que ele propõe, sem admitir, ao mesmo tempo, a contraditoriedade do Ser, ou da substância. Daí que tomemos como adequada a nossa interpretação segundo a qual o sistema de Deschamps se funda na convicção de que existe apenas uma substância, ou Ser, dotada de dois atributos principais, pois que ela é simultaneamente finita e infinita, dependendo do ponto de vista por meio do qual a entendemos. Ora, numa interpretação estritamente lógica, a realidade finita, que é o Mundo, não pode esgotar toda a infinitude. Por conseguinte, a substância infinita há-de exprimir-se em outros atributos e, estes, em outros modos, uns e outros completamente desconhecidos, mas necessários. Sucede que isto não está escrito em parte alguma do texto do nosso autor. Ponhamos as coisas a claro: o que dizemos devia suceder, mas não sucede, e porquê? Porque Deschamps esclarece repetidamente que elevada a totalidade do mundo ao seu grau superlativo ou extremo, ou seja a Existência (o Ser, a Substância única, em si e para si), convertemos a primeira em Nada, na exacta medida em que procedemos por esvaziamento dos seus conteúdos sensíveis, isto é, das suas determinações fenoménicas. Assim sendo, que atributos mais é que a substância única pode possuir? Somente pode possuir dois : o Finito e o Infinito. Porém, como é que o Infinito ( a eternidade) não admite outras possibilidades atributivas, embora absolutamente desconhecidas? A verdade é que isto não é dito uma única vez pelo filósofo. O Nada é mesmo aquilo que é: o Nada. Por outras palavras: o infinito e a eternidade são nada. A nós parece-nos que isto nos conduz para uma teologia sem Deus, uma meta-teologia, e um mistério insondável. Pensar TUDO e pensar Nada, é a mesma coisa, o mesmo pensamento, o vértice máximo. Deschamps não cede ao teísmo e ao deísmo neste lance. Façamos a seguinte operação: privilegiemos dois núcleos temáticos que interessam a teístas e deístas – a existência do Mal e a existência do infinito - , para o primeiro problema dom Deschamps propõe a revolução social, para o segundo subtrai-lhe a figura divina. A infinitude é tudo que existe, porque tem de existir necessariamente, mas que está para além da nossa compreensão. Na verdade, ninguém pode vir a conhecer o que seja em concreto a infinitude; ela é, por definição, indeterminável e, portanto, incognoscível. Esta impotência humana não remete, porém, o ser humano para a submissão resignada perante um mistério com forma antropomórfica (uma realeza supara humana), mas, sim, para a assumpção da sua condição humana terrena e natural. Sem terrores gratuitos, sem obediência a figuras fantásticas, sem especulações teológicas inúteis, sem fatalismos. Numa palavra: sem metafísicas. Porque dom Deschamps também se opõe, como os ilumistas em geral, às especulações metafísicas, isto é, que se enredam em contradições, que se afadigam a apresentar provas da existência de um Deus moral e criador, que se ocupam mais do Além do que transformar o aquém. Ou seja, dom Deschamps é um metafísico que pretende eliminar (dizendo melhor: superar) as antigas metafísicas. Derrotá-las no mesmo plano. Desprezá-las, ou mostrar-se indiferente, alcançaria apenas uma meia vitória. Atribuir à natureza o ontos todo, seria abandonar aos adversários o território da eternidade e da infinitude. Tanto mais perigoso quanto é aí que se resolve, de uma maneira ou doutra, a questão ética principal.
Capítulo 5. Negação e contradição
5.1. A Negação.
Toda a determinação (física) é, por definição, limitada, ou seja, é essencialmente limite. Para Deschamps, como para Espinosa, a realidade inteira e absoluta não é contida nem expressa apenas pela extensão (matéria) ou apenas pelo pensamento. A verdade não pode encontrar-se num ou noutro, separadamente; a verdade é a sua unidade; a extensão e o pensamento são atributos da Substância infinita. A verdade é a Existência única.
Vimos como se organizava, segundo a nossa interpretação, a crítica de Deschamps ao materialismo de d’Holbach, pelo facto de não ter escapado aos vícios do sensualismo, pelo facto de conduzir a formulação do universal por meio de mediações – através de negações sucessivas do particular -, por haver, finalmente, construído meras generalidades sem substância.
Agora, iremos um pouco mais longe.
Dom Deschamps, a nosso ver, ensaiou algo que deveria ter suscitado todo o interesse aos vários intérpretes franceses, e até russos ( ou melhor: soviéticos), que se debruçaram sobre o seu pensamento, porém não suscitou. Queremos dizer que o beneditino filósofo ensaiou introduzir a negação no interior mesmo da unidade. Ora, nenhum outro filósofo do século das Luzes se aproximou deste esforço, deste propósito. E porquê ? porque estavam enredados em demasia num método de análise que privilegiava os sentidos, a materialidade determinada das coisas que se percepcionam, e porque agiam com excessiva desconfiança em relação à metafísica. Em suma, o empirismo bloqueou-lhes o caminho de acesso a uma Unidade substancial, una e única, constituída pela Contradição.
Numa fórmula sucinta: ou porque abandonaram a investigação de um “princípio”, lição e meta decisiva de toda a grande filosofia, ou porque aquilo que julgavam um princípio não era mais do que um puro abstracto vazio, não foram capazes de conceber a negação da determinação como negando-se a si mesma, como negação absoluta. O método experimental que tentaram desenvolver, com muitos êxitos aliás, a valorização da sensibilidade e da fisiologia, a ênfase que colocavam na mecânica e dinâmica dos corpos, barrou-lhes o caminho. A ciência experimental tem destes limites, sobretudo quando se baseia no empirismo..
Pois bem, o que vamos, em seguida, afirmar, é paradoxal: Se admitirmos que a crítica que dirigimos (tentando compreender a posição de dom Deschamps) se aplica não apenas a neo-espinosistas, como d’Holbach, mas também ao próprio Espinosa (daí uma origem das dificuldades dos herdeiros), como se compreende que Deschamps tivesse sido um neo-espinosista ? Pela importante razão de que o nosso autor tentou corrigir uns e outro, e isto não nos parece, em filosofia, que equivalha a uma rejeição em bloco do legado dos mestres. Pelo contrário, há de equivaler, melhor ou pior, a uma enriquecimento da herança, e não a um esbanjamento de filho pródigo.
Por outras palavras: o espinosismo conduziu a um determinado materialismo , para o qual a substância é a Natureza, enquanto categoria que surge como resultado da abstracção pelo entendimento dos dados de experiência, um universal onde toda a diferença é negada e pelo qual se retira autonomia ao espírito. Mas conduziu a um outro tipo de materialismo que formulou um conceito de grand tout que se apresenta como uma profunda Contradição. O “trabalho do negativo”, a negatividade, em momento algum, alcança tanto propósito como no sistema de Deschamps. É o sistema que mais e melhor converteu a Contradição no seu vértice e no seu eixo, diferentemente de todos aqueles que evitaram sempre a contradição como mandavam as regras da lógica, ou apenas as admitiram ao nível das oposições entre as coisas particulares.
Por conseguinte, não farei o mesmo que alguns intérpretes dos sistema do monge de Poitiers, que remeteram para o olvido, com algum desprezo, a tese de Beaussire que deu especial ênfase à Contradição no interior do sistema, muito embora se precipitasse na declaração excessiva de que tal anunciava um Hegel de origem francesa, antes do dito.
O académico Émile Beaussire exumou Dom Deschamps por volta de 1865, mérito que ninguém durante o século seguinte lhe recusou, nem disputou. Publicou as partes do sistema a que teve acesso, sob o título Antécédents de l’Hegélianisme dans la Philosophie Française, Dom Deschamps, Son Système et son École , que compreendia uma extensa introdução. Beaussire era anti-hegeliano, fruto de uma época da filosofia francesa que se caracterizou pela disputa entre os neo-hegelianos de orientação espiritualista e os espiritualistas anti-hegelianos. Beaussire não pretendeu somente dar provas do seu labor académico de investigador, mas fez acompanhar os escritos com uma longa crítica, eivada de preconceitos ideológicos contra aquilo que ele reputava consequência do hegelianismo : o comunismo em particular e os socialismos em geral...
A diatribe é a seguinte : o socialismo funda-se nos próprios princípios de Hegel, tais como os entende “a extrema-esquerda da escola”, ou seja, a abolição radical da propriedade e da família, e a supressão de um Deus pessoal, inteligente e moral; para eles « Apenas existe, tanto na humanidade como na natureza, a evolução progressiva da ideia, que é a mesma coisa que o ser, e que, na sua marcha, através dos seus diversos momentos, põe e suprime sucessivamente todas as contradições.»
Certamente que se poderia estabelecer, sem preconceitos, uma linha na evolução do pensamento democrático de orientação socialista que poderia remontar a Espinosa e aos espinosistas materialistas, passando, em seguida, por Hegel, Feueurbach, Marx. Se vários espinosistas flectiram em direcção a projectos de emancipação social do género humano, ainda que Bento Espinosa não lhes ofereça abundantes elementos; se teóricos dessa filosofia política (de resto bem ampla e diversa) retiraram dos materialismos de d’Holbach, Helvétius, Diderot, ingredientes em seu apoio; se, last but not least, a influência (e respectivas rupturas) de Hegel foi marcante em Feueurbach e Marx, respectivamente (e destacamos a reconhecida presença de Espinosa no sistema deste), então não seria estulto de todo em todo traçar essa linha evolutiva. Porém, é tal a envergadura de labor demonstrativo, pelo traçado sinuoso dos percursos divergentes/convergentes, todo ele feito de leituras e interpretações, pela extracção sucessiva de consequências políticas a partir de uma ontologia materialista, a qual, o mais das vezes, não contém tais consequências, que exigiria um volumoso livro. Por ora, o que importa é relativizar e contextualizar a atitude crítica de Beaussire e enaltecer-lhe o mérito tanto de haver exumado do pó do castelo de Ormes os manuscritos de dom Deschamps, como de ter detectado a existência de uma formulação dialéctica do ser, no sistema do nosso beneditino ateu e “comunista”. Julgo que tal enunciado não é tão descabido como quase todos os comentadores o julgaram até hoje.
E penso assim por duas razões principais: primeira, porque o sistema hegeliano não corresponde à redução tese/antítese/síntese com que Beaussire e outros o desfiguraram de algum modo, numa espécie de mecânica espiritualista que faz muito pouco sentido; segunda, porque a fórmula da Contradição em Deschamps, não é apenas uma hábil solução lógico-especulativa para um difícil problema que tinha em mãos, mas a única saída, com fundamento ontológico, para esse terceiro estado social que a humanidade tem de alcançar mais cedo ou mais tarde.
Dom Deschamps expõe nas Observações Morais (parte segunda e consequente do Verdadeiro Sistema) um quadro evolutivo da humanidade, constituído por três momentos ou fases («estados», como os designou) : o primeiro corresponde ao «estado selvagem», durante o qual não existia ainda a propriedade privada e um governo político centralizado; o segundo corresponde ao «estado de leis», a partir do qual se introduz a apropriação privada das riquezas e consequente organização legal, os primeiros Estados monárquicos; o terceiro há-de corresponder ao abandono da propriedade, qualquer que ela seja, à eliminação do Estado, qualquer que ele seja e, portanto, de leis. Pois bem: já o investigador russo B.F. Porchnev interpretara a teoria dos “três estados” (selvagem, de leis e o dos costumes), como uma “necessidade dialéctica” da utopia de Deschamps. Todavia, não basta reconhecer no sistema um movimento (histórico) que do menos conduz ao mais e ao melhor, é preciso ir mais longe, ao cerne da lógica do sistema. É aqui que se colocou, e bem, Beaussire, muito embora com farto exagero em nossa opinião. A totalidade contraditória de Deschamps não abre, não consegue abrir-se, para a dialecticidade do real histórico. A síntese não é o devir progressivo da Ideia, a sua auto construção, o seu desdobramento, mas o conceito nadificador de Tout, o infinito, que equivale logicamente ao indeterminado, ao nada estéril. Apesar disto, é legítimo excluir todas as formulações dialécticas da filosofia no decurso de dezenas de séculos antes de Hegel? A única dialéctica adequada é a de Hegel, e tudo o mais, antes e depois, são aproximações mais ou menos ingénuas? De modo algum. De resto, se a evolução da história termina, em Deschamps, com o «terceiro estado», também a evolução hegeliana da Consciência se encaminha para um fim, o Absoluto.
Dom Deschamps opera com uma concepção trinitária: o plano físico da parte ou das partes (do particular singular), o plano da Totalidade (soma) ou da Inteligência (o geral das generalidades, o domínio de Le Tout, da Matéria, enfim, da metafísica), e o plano do supra-metafísico, meta-linguístico, intuitivo, o domínio do Tudo-Nada (Tout). Afirma que esta trindade foi pensada pela religião de modo errado por meio da fórmula da Santíssima Trindade: O Deus antropomórfico –transcendente, criador- que é a presuntiva unidade de três seres. A concepção trinitária de Deschamps encontra a sua correspondência nos «três estados»: o primeiro equivale às relações sociais primitivas (a desunião sem união); o segundo à etapa das leis, da «união na desunião», a terceira à beatífica união na união, a sociedade sem propriedade, sem leis e sem Governo. Ou seja, o plano físico da existência, o plano metafísico de um todo na sua soma de oposições internas, e o plano ontológico, ou supra-metafísico, da Existência na sua completa verdade: despojamento, simplicidade, sociabilidade estreita e harmoniosa, união dos homens com a natureza, fim das ilusões.
A unidade dos contrários (le tout e tout) não conduz à pura contemplação e ao mero conservadorismo (tal como se entende: permanência daquilo que está). Contém um movimento, ou de desejo de profunda mudança a todos os níveis, e exige uma decisão radicalmente existencial: eliminar o “estado de leis” e viver na verdadeira Existência, isto é, na felicidade constante. Conduz a uma atitude bem mais do que simplesmente reformadora, gradualista, porque é revolucionária. Quer a apreciemos, ou não.
O movimento do pensar corresponde ao movimento do ser. O sistema de Deschamps organiza-se a partir da ontologia, dela deduzindo-se uma ética.
O insucesso dos materialistas, segundo Deschamps, traduz-se pelo uso que fizeram da “inteligência”: ela é útil, mas tende a fixar, a separar e a entificar, cada ser, cada fenómeno; abstrai, isto é, não capta a ligação essencial deste acontecimento com outros acontecimentos, deste indivíduo com os demais; onde cinde, não vê a unidade, a relação. Instala-se no finito, irremediavelmente.
Aquilo que em Deschamps parece anunciar o hegelianismo é a fonte comum de ambos: o espinosismo. Se Espinosa não foi um panteísta, ao contrário do que Bayle afirmou, outro tanto não foram dom Deschamps e Hegel.
«...se a ideia de uma filiação hegeliana não é, em rigor, uma ideia a manter, em que medida a metafísica deschampsiana –a única, a bem dizer, do século dezoito francês –pode, ou não, atrair um tipo de pensamento dialéctico, extraído da sua matriz teológica, para um novo uso constitutivo, a negação e a contradição?», escreveu Pierre Méthais
Esta é uma penetrante ideia a reter. Foi o que fizemos.
Aristóteles já havia dito que definir é negar. Dom Deschamps não é aristotélico. Este papel da definição não lhe basta. É precisamente apenas este o papel que lhe reservam os philosophes.
No decurso da história da filosofia processa-se uma reflexão, de índole cada vez mais abstracta, sobre uma ideia cada vez mais abstracta : Deus-Uno-Todo-Infinito, e este absolutamente indeterminado eclode, no século XVIII, na noção de Être Suprême, numa caminhada que conduz o teísmo ao deísmo; noção tão esvaziada, tão indiferente, que se nadifica gradualmente; Deus termina ingloriamente como um nada que é tudo e um tudo que é nada; Deus morreu...Ao mesmo tempo desenvolve-se uma outra orientação substitutiva e compensatória: humanização da natureza, naturalização do homem, exaltação dos poderes do seu entendimento (mesmo que limitado, e por isso mesmo), dos seus direitos à vida terrena, aos prazeres, ao trabalho, ao enriquecimento, à felicidade pessoal e colectiva.
A desantropomorfização da divindade é compensada pela humanização do homem.
Deschamps puxa a ideia de Deus até ao infinito no qual todas as determinações temporais não fazem qualquer sentido na eternidade. Deus é negado, converte-se em “rien”. Toma nas mãos a formulação deísta moderna no ponto a que estes deístas haviam chegado na sua análise racionalista: Deus existe, mas não é mais um Deus pessoal e moral, mas uma infinitude transcendente, indeterminável e incognoscível. Dom Deschamps termina o processo: a transcendência é abolida em nome da completa imanência.
Utiliza habilmente as contradições do Deus ternário dos teístas e a formulação dos deístas (que valorizavam a natureza), eleva a contradição ao estatuto de núcleo duro do seu sistema. Não vale a pena adorar um infinito que é Nada (Voltaire emaranhou-se neste dilema), que não intervém (Rousseau procurará a via do sentimento, do tal sentimento interno que tanto agradava a Deschamps, que ele substitui pelo sexto sentido), que é o nada. Nietzsche diria, porventura, que Deschamps contribuiu para a morte de Deus, seria até o seu executor derradeiro, eliminando, ou resolvendo, as contradições dos teístas e dos deístas. Neste cenário hipotético, dom Deschamps conduzir-nos-ia para a morte de todos os valores. Contudo, não era esta a cena da situação objectiva das elites culturais que queriam romper com a sociedade do Antigo Regime, à época: de uma maneira gerneralizada os mentores do Movimento das Luzes não só propunham novos valores, como estes novos valores exprimiam os interesses de uma camada social que viria a triunfar no século seguinte. Se esta nova classe social viria a contribuir, ou não, para a “morte dos valores” de que fala Nietzsche e, portanto, se o Movimento racionalista das Luzes viria a desempenhar um decisivo papel para esse resultado, esse é um outro problema, muito a jusante ( no sentido literal) da década de sessenta do século dezoito. Mesmo assim, cabe perguntar porque razão Deschamps não demonstrava optimismo e confiança na escala dos novos valores que a nova consciência europeia defendia, como sejam o direito de enriquecimento pessoal, de fruição dos bens e dos prazeres? Porque razão não confiava numa reforma da legalidade que provocasse simultaneamente uma reforma dos costumes? Uma cabal explicação somente se poderá encontrar na segunda parte desta dissertação.
5. 2. Omnis determinatio est negatio
Toda a determinação é negação. Afirmar que uma coisa é determinada, é determinar aquilo que ela nega. Esta coisa determinada chega ao pensamento por meio da negação. O Deus da religião cristã nega a matéria, é um ser-outro que, porém, a criou. Dom Deschamps conserva a Negação, mas elimina o Deus pessoal e moral. Conserva do mesmo modo a diferença: a Matéria ( enquanto soma de coisas e seres mortais) não é o infinito, o qual, de resto, é o Nada. O infinito, não sendo o Sol e os seus planetas, não é a (esta) Matéria. O sistema de Deschamps tenta conjugar o materialismo com o imaterialismo. Poder-se-á concluir que acaba por não ser uma coisa, nem outra, mas isso seria redutor , um mero imperativo dos rótulos, quando se trata, como neste caso, de um esforço de superação que nos parece deveras notável. Um verdadeiro desafio, ou convite, ao diálogo entre teístas (aliás, bem diversos), deístas, e ateus. Direi mesmo e sem ironia: um desafio dirigido aos agnósticos...Em suma, qual a “substância” do Infinito?
É pela negação do físico que acedemos ao todo metafísico, criador, inteiramente positivo, absolutamente material, e, por isso, finito; é a sua negação que instaura a sua realidade existencial. Tout existe e é inseparável da totalidade das matérias. O Todo é um atributo que se exprime por múltiplos modos, relativamente aos quais ele é, simultaneamente, a afirmação da realidade destes e a sua semelhança de fundo, porque é sempre mais do que os modos possíveis, é a sua necessidade e a sua possibilidade, o seu acordo, a sua unidade fundamental. Toda a natureza é material e rege-se por leis gerais, a Vida é sempre mais do que a minha morte, ela continua e até de mim se alimentará.
No entanto, O Todo é o Finito que postula, que exige, a afirmação e a existência do infinito, que, porém, é a negação dele mesmo.
«[Tudo] o nome que nega e afirma simultaneamente o sim, [ Tudo que é] o ser imaterial», «o ser que existe por si mesmo, e com o qual não se pode senão negar o que se afirma do outro», «o Nada,o próprio néant, que é unicamente e que não pode ser senão a negação do sensível ; que é a existência negativa, da qual não se tinha ideia senão pela positiva, sem excepção de Espinosa, que modifica absurdamente a substância infinita, na ignorância que ele tinha da substância que é o finito, ou o perfeito.».
O Todo, pensado sem as partes que o compõem, pensado em si mesmo, sem ser como massa ou soma dos seres, pensado sem extensão, massa, movimento, duração, pensado não como Causa e limite, é Tudo. Cada ser existe no tempo, no presente, no mundo onde reina o princípio e o fim, mas este ser onde todos os seres existem, este “grand tout”, existe na eternidade. Ora, o que há de negar o finito senão o infinito, o tempo senão a eternidade? Se o finito exige a relação, se tudo é relativo – relativamente mais ou menos -, o infinito é então a superação de toda a relação sensível, é o todo sem relações, interdependências, sem começo nem fim. Somente existem relações onde existirem partes de uma totalidade (coisas, seres, forças); somente existem diferenças e oposições, onde existirem coisas diferentes, movimentos e forças que se opõem; somente existe duração no tempo, não na eternidade. A eternidade não dura: é. E o Infinito não pode ser isto ou aquilo, não possui determinações físicas e sensíveis, concretas. Um milhão de anos em si mesmo não é mais do que um instante; nada é em si mesmo nem alto, nem baixo, nem bom, nem belo; tudo no grande todo começa para acabar, e acaba para recomeçar; não existe nada de perfeito, nem de perfeitamente igual nele, tudo é relativo mais ou menos.
O raciocínio de Deschamps é um notável esforço de racionalidade, em nossa opinião um dos mais originais esforços, para conciliar as duas afirmações mais contraditórias da filosofia : finito/infinito, tempo/eternidade. Fonte de muitas aporias, sagaz antinomia de categorias fixada por I. Kant. Não foi Deschamps o primeiro, e a seguir a ele ainda virão mais, como Hegel que intenta resolver as antinomias kantianas. Dir-se-á que Deschamps ainda acreditava na Razão Pura...Seja como for, o que achámos útil trazer à comunidade filosófica e científica portuguesa é uma proposta, uma proposta mais, entre as muitas que ela já conhece, proposta de resolução de antinomias que têm fascinado e orientado pensadores de todos os tempos.
Um ser infinito e eterno capaz de criar um mundo finito, porque material, é uma contradição nos termos, onde a razão claudica para dar lugar à fé. Se se concebe como produzindo permanentemente o mundo, ao mesmo tempo que não é o mundo, nem deste mundo, não se percebe como pode intervir; não se percebe como pode sentir, vigiar e premiar, pai severo ou misericordioso, se então não é deste mundo, dizendo melhor: este mundo. Se, por outro lado, recusarmos a fé e a crença, e concebermos, antes, um Deus que criou o mundo, mas que não intervém, ou se ignoram os seus desígnios, porque ele mesmo é o infinito, então não se percebe que continue a ser um espírito dotado do poder de criar; que seja, portanto, a expressão da legalidade natural deste mundo. Neste ponto a que chegámos, porque não resolver o enigma de uma vez por todas? Se os deísmos e os ateísmos conduziram o processo de Deus, do infinito, a esta crise da consciência, porque não solucioná-la?
Talvez possamos esquematizar o processo de desenvolvimento da maneira seguinte, procurando condensar as linhas de argumentação de Deschamps :
1. O Deus antropomórfico fora eliminado (pela nova época racionalista) pelo processo que lhe moveu o cartesianismo e o espinosiamo; as diversas correntes deístas tentaram salvar o Deus-criador, obrigando-O, porém, a refugiar-se por detrás de um véu de ignorância (Deus ignotus, incognoscível). O infinito é Deus;
2. Os teólogos, reactivamente, enredam-se nas velhas contradições, e agravam-nas, de um Deus que é simultaneamente três pessoas distintas, mera projecção das três instâncias - física, metafísica e moral.
3. Deschamps colmata o processo, admitindo os três planos, mas reservando para o Nada a infinitude, que não é mais Deus algum, mas Existência pura.
Por esta ordem de ideias, ousamos afirmar que Dom Deschamps realiza a síntese, a unidade das contradições das diversas e antagónicas interpretações. Supera os antagonismos, por meio de um sistema que de todos aproveita alguma coisa. Ele mesmo o diz, e toda a sua arrogância intelectual está nesse dizer. O “Verdadeiro Sistema”.
Tudo que comporta um menos (que é mais ou menos perfeito), como o mal da apropriação privada egoísta, o vazio, a morte, não pode ser senão um oposto, um extremo, uma parte, um momento de um movimento circular contínuo. Tout, esse Le Tout puxado até à rarefacção de todas as determinações concretas, até àquilo que a materialidade finita do mundo pressupõe, é a pura Contradição. Porque não se diz o mais ou menos infinito, o mais ou menos eterno – estes termos são a negação do finito e do tempo; por conseguinte, Tout é a única verdadeira Negação que existe; no todo material (Le Tout) não existe verdadeira negação, embora nos pareça que existem negações, não existe nada nele que não seja mais ou menos composto de tudo que nele existe.
É um modo dialéctico de pensar. Ainda que possamos dizer, depois de Hegel, que tal dialéctica falha no essencial: o infinito aparece desligado do finito, o infinito não se move, não evolui por meio dos momentos finitos.
Apesar disso o esquema de Deschamps assenta na ideia de que o seu movimento dialéctico do pensar, coincide, exprime, o movimento da vida : o predomínio do “físico” no “estado selvagem”, do “metafísico” no “estado de leis”, da pura Existência (no Acordo universal) no “estado de costumes”. O fim culmina o processo triádico. É a eternidade na Terra. Porque era exactamente essa a convicção do monge: a sociedade dos bens comuns, pobre, despojada de luxos e vaidades mundanas, prolongar-se-ia indefinidamente.
5.3. Ser o Ser único, ou não, eis a questão
Dom Deschamps separa o positivo do negativo: a esfera, ou o plano, do positivo, do absolutamente positivo, um ser ao qual nada falta (pois que a reforma social com a implantação do «estado de costumes» serve para colocar a sociedade de acordo consigo mesma e de acordo com a verdadeira natureza), cheio, isto é, pleno; e o plano do Néant, do absolutamente negativo, ou do absolutamente absoluto, do ser em si, que não se exprime por uma força de negatividade no interior das coisas finitas, na medida em que a sua intervenção, o seu papel, é estritamente moral. Assim, de algum modo, este ser encontra-se no exterior da totalidade natural. Muito embora ele afirme que o infinito existe, não se vê como possa ser a natureza infinita, a infinitude do céu estrelado sobre as nossas cabeças. Por outro lado, atribuindo-se ao infinito, ao Nada, um grau superlativo, na hierarquia dos planos, daí a sua função moral e porque exige o género superior de conhecimento, substitui-se Deus pela Razão moral, ou seja, pela pura Razão, o que significa dotar a consciência de um papel decisivo. Por conseguinte, no fim de contas, é a Razão que determina os acontecimentos, seja no primeiro estado onde ela é fraca face ao instinto, seja no termo onde ela é guia.
Finalmente, Deschamps concebe a Negação de uma maneira completamente abstracta, como um princípio independente da positividade que ficou, toda ela, do lado da natureza, isto é, do lado da matéria. Sendo a Existência uma só, a mesma sob os dois aspectos da Natureza e do Nada, não se vê nestes dois atributos a conciliação e a força expressiva que os dois atributos espinosanos – a Extensão e o Pensamento- alcançam no sistema de Espinosa. Porque, em boa verdade, o sistema deschampseano ostenta uma ambiguidade insanável, por mais esforços que o seu autor executou, e foram muitos: se censura a unicidade da substância em Espinosa, se afirma que O Todo é o Uno e Tudo é o único, como se harmoniza esta tese com a afirmação seguinte de que ambos constituem os dois aspectos com que se pode encarar a mesma Existência? A nosso ver, esta ambiguidade é suspeita, e a explicação que nos toma inteiramente é que o seu autor é um espinosista que se oculta, se dissimula, se disfarça. E isto não anula o real e sincero esfroço que ele realizou no sentido de tornar a tese de Espinosa mais “aceitável”, por um lado e, por outro, moldável, adequada, à arquitectura da sua utopia. Na verdade, aquilo que mais lhe importou foi demonstrar racionalmente a justeza do seu projecto.
5.4. Qual a função da contradição?
É notório que Deschamps sai fora da tradição que impõe o princípio da identidade – não obedece ao princípio segundo o qual nenhum objecto pode ser ao mesmo tempo P e não-P, coisa alguma pode ser e, simultaneamente, não-ser; duas proposições contraditórias não podem ser, simultaneamente, ambas verdadeiras (ou ambas falsas) ; todo objecto tem que ser P ou não-P, enfim, entre a afirmação e a negação não há meio termo.
A natureza, no movimento especulativo do pensar, é a totalidade dos objectos concretos, sensíveis e materiais, é a estrutura de séries organicamente organizadas, é o sistema das relações recíprocas; mas, para que ganhe consistência e sentido, falta-lhe o infinito e a eternidade. A função da Contradição é-lhe indispensável para rejeitar em definitivo a ideia de um Deus transcendente criador; o infinito somente pode ser, por definição, aquilo que não é a matéria finita e relativa; assim sendo, está desprovido de fenómenos e propriedades; como é que o negativo poder ser criador?
Além desta função que nega Deus ao estabelecer um Deus negativo, a contradição desempenha outros papeis complementares.
O Todo universal pode, deve, ser encarado conforme duas perspectivas – as quais consubstanciam as perspectivas do bom-senso manipuladas pela religião : como O Todo que não se separa das suas determinações fenoménicas, e como Tudo, que é a «massa sem partes», que não é mais o princípio, ou causa», que não é mais o ser de relação, o ser positivo ou absoluto, o sim metafísico que afirma a existência dos seres físicos, mas o ser negativo, sem relação, o não que nega e afirma, simultaneamente, o sim, que não é o finito ou o resultado dos seres finitos, mas o infinito; que não é perfeito, mas o imperfeito, o tempo, mas o resultado dos tempos, a eternidade; que não é mais o ser uno, que existe pelos seres em número, o ser nomeado matéria, que existe pelos corpos, mas o ser único, que nega todo e qualquer ser excepto ele mesmo, é o ser imaterial, individual e incriado; não é mais o ser metafísico que existe por meio do físico, mas o ser que existe por si mesmo...não é mais o sensível, ou o resultado dos seres sensíveis, mas o Nada, “le néant”...Que é a existência negativa, da qual somente pode-se ter a ideia por meio da existência positiva, mas que existe efectivamente, ao contrário do que afirmava Espinosa, «que modifica absurdamente a substância infinita, por causa da ignorância em que ele se encontrava da substância que é o finito, ou o perfeito»?
Não vemos razão para colocar Deschamps nos antípodas de Espinosa. Apesar de postular o nada, a negação, não conservamos, afinal de contas, um único ser, que, sendo infinito, afirma a realidade material do mundo? A Matéria e o Infinito não constituem dois seres que se excluam reciprocamente por causa de uma putativa diferença de natureza: são o mesmo, uma unidade de dois atributos que se contradizem. A aspiração da teologia, da religião, da filosofia em geral, fica satisfeita: o mundo natural, temporal e finito, une-se, concilia-se, re-liga-se, com a eternidade. O desejo natural dos povos de re-ligação de tudo com tudo, vê-se satisfeito finalmente. Acabam-se as contradições, os erros, da teologia e de outras mais filosofias. Numa coisa tinham todos razão: que existem contradições. As de toda a gente são falsas ou, pelo menos, inúteis. A única Contradição que é verdadeira e útil, é entre a duração e a eternidade, que não são a mesma coisa, sendo, todavia, inseparáveis.
Para Espinosa, Deus-substância infinita, exprime-se através de dois atributos essenciais: a extensão e o pensamento. O entendimento humano escolhe e acentua um ou outro dos atributos, mas a substância é a mesma. Para Deschamps, a matéria (extensão) é uma maneira de encararmos a Existência (substância única); a outra, é vê-la sob a perspectiva da eternidade (sub specie aeternitatem). Contudo, são a mesma natureza. E têm que sê-lo, porque para Deschamps não existe um algo fora da natureza. A imanência reina no seu sistema. A solução surge-lhe como uma iluminação: uma substância simultaneamente una e única, criadora e não criadora, material e «imaterial», etc. Chame-se-lhe, por comidade, não um ser, mas dois seres, porém, em boa verdade, constituem duas faces da mesma Existência. Que se contradizem, como é evidente. Deste modo, fica salvaguardada a função criadora, material, natural, de um ser, de uma das faces; designemo-lo como O Todo; enquanto que a outra, Tudo, não possui função criadora alguma. E se não possui, é o nada.
Não admira que os seus interlocutores, do calibre de Voltaire, de D’Alembert e de Rousseau, hajam suspeitado de um espinosismo sem Espinosa. Não admira que Robinet teimasse na inutilidade daquele Rien. Na verdade, um espinosismo rematado por um néant, não é, em rigor, espinosismo. Mas a evolução das ideias não se fabrica com filhos-herdeiros que repetem os mestres fundadores.
A nós o que nos surpreende é que desde a primeira hora, desde que Deschamps foi exumado do pó, não se haja lido O Verdadeiro Sistema como um neo-espinosismo, ainda que não rigoroso comparativamente com o original, poupando-se milhares de páginas a tentar descobrir um hegelianismo ou um existencialismo avant la lettre. Ou estamos completamente enganados na leitura que fazemos do sistema da substância única de dom Deschamps, ou então acontecem coisas no reino da hermenêutica académica que têm que ver, sobretudo, com o ar que se respira na época. Émile Beaussire, movido por uma espécie de pulsão anti-hegeliana, viu em Deschamps um proto-hegeliano; Jean Whal, existencialista emérito, viu um proto-existencialismo nesse «néant» deschampseano. Do mesmo modo que reservo como matéria de fé a ficção de profetas que preparam a vinda do Messias, guardo muitas reservas sobre história lidas da frente para trás. Dom Deschamps foi, como quase sempre se é, um homem do seu tempo. E o tempo em que viveu e pensou, foi o tempo de uma presença fortissima do espinosismo. O monge de província via alguns dos maiores espíritos da França, como Diderot, nutrirem uma profunda admiração por Espinosa, e até guardarem para ele um lugar especial nas suas filosofias; via, em suma, a presença do nome do filósofo maldito em centenas de escritos anónimos e clandestinos; e via também, as críticas soberbas ao autor da tese da substância única, temos de reconhecer ainda que possam não ter sido justas, escritas por intelectuais da envergadura de Bayle, e divulgadas até à saciedade. Toda a reflexão de Deschamps, no seu retiro solitário, foi um confronto com essa tese e com esse autor, dando voltas e mais voltas para tornar a tese verdadeiramente inexpugnável. E por uma razão fundamental que é a seguinte: aquilo que importava sobretudo ao monge amigo de um Grande de França, era tornar absolutamente convincente e realizável a utopia do «estado de costumes», ou seja, a utopia de uma vida absolutamente ética. Portanto, numa palavra: aquilo que ele ambiciona era, e foi, propor uma Ética. E sendo assim, isso revela que a Ética espinosana não lhe convinha. Tê-la-á lido no seu todo? Só podemos admiti-lo como hipótese provável, na medida em que a obra estava já traduzida, o Marquês de Voyer era um grande viajante e atento comprador de livros; sabendo-se como se sabe que o marquês, filho e sobrinho de iluministas, era uma personalidade corajosa e com enorme poder, não iria atemorizar-se perante a possibilidade de trazer na bagagem a Ètica de Espinosa.
5.5. Diferença e Identidade
Existem termos negativos que evidenciam um mais ou menos, diferente da pura negação lógica do conceito oposto (infeliz/não feliz; injusto/não justo), evidenciam outra coisa (móvel/imóvel). O termo negativo que se limita a negar o conceito positivo expresso, não chega a ser uma “ideia negativa”, pois que esta não implica a presença de um conteúdo mental positivo (não é implicação dele), nem sequer na sua ausência (pensar A como ausente, é primeiramente pensá-lo, tê-lo presente no espírito). Desde Aristóteles que sabemos isto; e sabemos que Kant admitia conceitos negativos apenas do ponto de vista transcendental. Não vemos, portanto, razão para concluirmos que a argumentação deschampseana é ilógica, ou delirante.
Quando negamos algo possuimos a ideia concomitante de uma afirmação, porque não podemos negar a existência de uma coisa sem ter o pensamento desta mesma existência que nós negamos.
Boa parte da filosofia tem vindo a declarar que não há reciprocidade dos termos opostos (condicionado/incondicionado) como demonstração lógica da existência real do absoluto; só podemos pensar o condicionado, não o Infinito, que é remetido, portanto, para uma intuição ou crença. Deschamps apoia-se na certeza de que é da reciprocidade dos termos contrários que brota a luz, isto é, a suprema Identidade. Podemos pensar o Infinito, precisamente como negação do condicionado. Só que, ao pensar o absolutamente incondicionado, pensamos o nada. Porém, o ser Tudo, ou Nada, é realmente in-condicionado? Se é a negação concomitante, necessária, do ser absolutamente positivo, se um ser, se um termo, implica o outro (como o sim implica o não), o ser Tudo não parece de maneira nehuma absolutamente in-condicionado. Não possui determinações fenoménicas, mas postula-se por meio de uma implicação. O sim condiciona o não.
Deschamps censura a Espinosa a sua afirmação de que as coisas materiais são nuances da substância única (a famosa interpretação panteísta de Bayle), «ignorando» que só podem ser nuances de O Todo, o universo natural; faltou-lhe a intuição para o negativo... Se acaso o tivesse feito, evitaria a acusação pela posteridade do seu sistema ser um mero panteísmo (Deus é, está, em cada coisa). Os materialismos, naturalismos, fracassam porque desarmam o homem de uma moralidade. Por outra palavras: não explicam a Consciência e o verdadeiro ser do homem, essa natureza da humanidade que é a de um ser em relação, em uma caminhada progressiva para a união.
Qual é o verdadeiro ser, a verdadeira existência humana? A relação recíproca. A relação de semelhança de cada um com todos, e de todos com a substância cósmica do todo ou da Natureza. Contudo, esta unidade será sempre uma solução panteísta se não lhe introduzirmos a Diferença: o Nada. O Todo (Le Tout) é tudo que é sensível e natural, O Tudo (Tout) é O Nada. A mesma substância, com as duas faces de Yanus. Com uma digo sim à Vida, com outra digo não às ilusões antropomórficas e egocêntricas. A compreensão desta aparente dualidade, desta Diferença, não provoca angústias. Promove, pelo contrário, a imersão no comum e na eternidade. A beatitude. Somente O Verdadeiro Sistema salva.
5.6. Sim/não
O morfema ou a oposição sim/não encontra-se no fulcro de todas as linguagens, dos discursos, e é, porventura, o único morfema sem ambiguidade; Aristóteles, cremos que foi o primeiro filósofo a utilizar as oposições como categorias, procurou a epistéme : para além dos opostos tem de haver um substracto. Segundo o seu esquema clássico, os opostos “relativos” são os primeiros (por ordem crescente), a privação relativa; os contraditórios não se opõem do mesmo modo que os contrários, nem se refutam do mesmo modo, tanto mais porque os opostos podem interseccionar-se ou associar-se.
Não vemos por que razão há de Deschamps ser colocado à margem de toda a boa filosofia. Vemos, pelo contrário, razão suficiente para afirmar, com alguma audácia reconhecemos, que ele foi o único que, remontando aos fundamentos da filosofia ocidental ( somente ocidental?), reportou o discurso à gramática elementar do sim e do não. Queremos dizer, evidentemente, que não foi o único a proceder a uma análise da linguagem, comum e técnica (bastaria referir Condillac e seus continuadores), mas que foi o único que levantou um sistema com a alavanca do sim e do não. No cerne das linguagens, no corpo das noções comuns, levantou um sistema da Contradição. Não julgou encontrar somente nos grandes sistemas elementos verdadeiros –conceitos e intuições- em proveito do sistema que ele ergueu, solucionando as contradições dos outros, mas também julgou detectar no senso comum, em determinados mecanismos e hábitos do pensar e do falar comuns, matrizes da verdade única sobre a Existência. Se toda a determinação é negação, é necessário consequentemente conduzir a negatividade até ao limite máximo do néant. Não se trata de dizer “não” à vida, à existência natural, mas antes afirmá-la, atribuindo-lhe a eternidade que ela merece.
5.7. O Deus negativo
Contudo, um escopo importante da argumentação deschampsiana não se encontra em um putativo núcleo ontológico da linguagem comum, não é tanto a gramática elementar que alicerça o seu sistema, é uma fonte filosófica na qual ele bebeu no colégio de Mauri onde recebeu a formação básica: referimo-nos à chamada teologia negativa. É na melhor tradição do Deus-negativo, iniciada, segundo cremos, por Plotino. Pensou este que o nome de uno seria o menos adequado a Deus, pois que este é (a) Unidade que está para além do ser; por isso é de todo impossível determinar Deus, predicar dele as determinações finitas; aquilo que emana do Uno (substância) é-lhe inferior, mesmo que seja o Intelecto; o mundo físico supõe, para a sua formação, além da acção da Alma do Mundo (o Verbo), de um outro princípio do qual derivam a imperfeição, a multiplicidade e o mal. Este princípio é a matéria, concebida negativamente, como privação da realidade e do bem; o Uno não possui forma, mas engendra-a, é essência sem forma, é criador do ser, anterior à unidade finita, potência sustentando tudo, dynamis; tudo que é, é finito, determinado, in-formado, enquanto que do Uno só é possível dizer que “Ele está ‘para lá’ do ser; ora, tal juízo não exprime um determinado, mas apenas uma tese negativa, porque sobre ele nada se afirma positivamente.
É nesta fonte conceptual, fonte muito desenvolvida depois de Plotino, que Deschamps bebe. Claro está que não lhe serve a transcendência divina, de Plotino e dos demais seguidores, para coisa alguma. Excepto para descobrir nesse conceito as suas contradições, e superá-lo, com o auxílio do espinosismo.
Ignoramos as suas leituras no colégio, mas sabemos que a biblioteca era suficientemente farta para conter obras de Plotino, Nicolau de Cusa, Eckhart.
Certamente que a teologia “positiva”, trinitária, também explorou as relações entre o uno e o múltiplo. E Deschamps mostra conhecê-la perfeitamente. O que nos importa agora é lembrar que Espinosa também trabalhou essa relação, atribuindo à substância a posição primeira do uno-tudo. O par finito/infinito exprime o uno e o múltiplo; a substância é única (ibidem, prop. 5 e 14) e una, indivisível (prop. 13), exaurindo a totalidade (prop 15), causa sui (Definição I, prop. 17), infinita (prop. 8), dotada de uma infinidade de atributos (prop. 11) e de modos que se particularizam numa infinidade de coisas finitas (prop. 16). O que não corresponde às teses de Deschamps. Não corresponde porque ele inspirou-se nele para o tentar superar, ou seja, também para aquele o par finito/infinito está no cerne da sua doutrina do todo. O que censura é este não ter constatado que o infinito é o nada e, portanto, distinto do positivo que é cheio. Dualismo? Não, puro monismo ainda, porque a Existência é a mesma, vista sob estes dois aspectos. Ora, se o nada não fazia qualquer sentido para Espinosa, para Deschamps faz todo. Porque este nada é nadificação, i.é, justifica todo o despojamento, legitima e exige a realização da mensagem dos cristãos primitivos. No colégio formou-se para monge...
Também para ele o mal é o menos do bem, a privação deste, é o oposto do bem, mas não a sua negação; assim sendo, todos os opostos (metafísicos, como o bem e o mal), penetram-se mutuamente, inclusivamente e não exclusivamente, e não constituem senão um : é a sua unidade que é o seu meio.
5.8. As antinomias
Os opostos não exprimem a negação, são apenas contingentes. A unir a soma das “contrariedades”, relativas, sobrepõe-se a totalidade dos fenómenos da natureza, o “Mundo” de que fala Kant ao expor os três temas da metafísica. As teses de Deschamps configuram os kantianos juízos analíticos da razão pura. Contudo, o juízo analítico que define a Existência, não parece sê-lo mas antes um raciocínio, não explicita o que já está implícito na proposição, antes se arruma melhor nas antinomias. Nas “antinomias dinâmicas” : nessas a síntese é viável. Não um juízo, acto da “Inteligência”, mas um raciocínio pelo “Entendimento”. Uma síntese de contrários. Haverá altos raciocínios que não sejam sínteses de um par de contrários, unidade contraditória mas resolutiva mesmo assim? Para resolver determinados problemas não somos levados a admitir a sua contrariedade?
O que ambiciona Deschamps é estabelecer a unidade em moldes racionais, modernos, estabelecê-la como identidade, mesmidade. O ser é o mesmo, embora seja Tudo e Nada. O ser é a existência única, cuja materialidade é incontornável.
O mesmo e o seu devir, eis o problema a resolver. O mesmo e a diferença são traços fundamentais do Ser; sem eles não é possível estabelecer a unidade do fluir da existência.
O axioma mais profundo é que o todo é Tudo.
5.9. O Nada existencial
Acontece, porém, que temos a tentação de pensar que o Nada é a negação de toda e qualquer existência; ao mesmo tempo, em perfeita contradição, admitimos que o Mundo foi criado do Nada (nada existia antes dele); e, mais absurdamente ainda, admitimos que essa não-existência criou o mundo por vontade própria; afinal, o nada era alguma coisa, e bem poderosa, inteligente, dotada de vontade, etc. Retome-se, então, o senso comum, que é mais certeiro quando usa a expressão “nada” para querer dizer que é a negação de tal ou tal coisa sensível, percepcionada, corpórea. Este é o sentido que se deve reter: a negação das coisas particulares há de ser um existente que existe sem ser esta ou aquela coisa particular.
Não surpreende que Jean Wall haja pressentido neste “riénnisme” de Deschamps uma espécie de proto-existencialismo. Não é de absolutamente deslocada esta interpretação, se dermos o realce devido a este Nada como dimensão ôntica de possibilidades de existência, do agir humano. É do “riènnisme” que se se faz a passagem para a utopia de Deschamps.
5.10. Os dois atributos
Dom Deschamps censura Espinosa pelo facto deste qualificar a sua substância de substância única e não distingui-la da substância una; por motivo, caiu no mesmo absurdo que os teístas que fizeram destas duas substâncias, no ponto de vista contrárias da Existência, um único ser a que chamaram Deus.
Embora possa parecer formal a distinção que Deschamps pretende estabelecer entre o uno e o único (pois que depende da perspectiva), ele considerava tal distinção absolutamente decisiva para resolver, de uma vez por todas, as contradições absurdas de todas os sistemas.
“ Daquilo que precede decorre o suficiente para concluir contra Espinosa que há duas substâncias, uma modificada e a outra não modificada; uma que é una e a outra que é única, ou, se quisermos, que há o sim e o não metafísicos; sim e não que não podem existir um sem o outro. Porque importa sublinhar que o não metafísico afirma necessariamente o sim, ao mesmo tempo que o nega. É a própria Contradição ”
Ora, já constatámos que, ao contrário de uma leitura que se prendesse apenas a este trecho, a tese, de última instância, de Deschamps é que só há uma Existência, simultaneamente finita e infinita.
Nem o Deus dos teístas, nem o Deus sive natura. Contudo, também Espinosa distinguia os dois atributos, natura naturans e natura naturata, a substância única encarada de duas maneiras (e fê-lo também para evitar, ou resolver, as contradições dos teístas e dos cartesianos). Que não são, porém, contraditórias; não são para ele, Espinosa, mas sê-lo-ão para não poucos leitores avisados. A refutação de dom Deschamps exprime, embora a seu modo, uma das maiores interrogações que o sistema espinosano tem suscitado.
Não admira que o autor de umas “Lettres sur l’esprit du siècle” (Dom Deschamps, ele próprio), houvesse sido acusado de “spinoziste”, pelo censor real...Deschamps, “le maître des maîtres du soupçon”? ele mesmo um mestre em dissimulação? Ou incapaz de reconhecer o verdadeiro mestre moderno da suspeição? Sinceramente convencido que havia completado, corrigido e, quiçá, suplantado, o próprio Mestre?
Ao tecermos estas considerações, não nos movemos por qualquer intenção reservada de menosprezar o autor do “Verdadeiro Sistema”, de reduzi-lo a um mero epígono que provavelmente não conheceu todos os meandros da argumentação do Mestre, pois que, já o dissemos, classificamo-lo como neo-espinosista, original filho de um tempo que não era a Holanda de Espinosa.
Dom Deschamps apercebe-se perfeitamente das dificuldades, reais ou supostas, da definição espinosana de substância única, i.é, entre a forma e o conteúdo, utilizando uma terminologia a que ele não recorreu. Alguns comentadores nossos contemporâneos consideram que Espinosa subordina a veridade filosofica a uma garantia de evidencia formal, a uma regra exterior abstracta; daí que recupere um novo género de dualismo, apesar dos seus esforços em afirmar o monismo do seu sistema.
Este ponto de vista, ao qual não negamos pertinência, retoma a crítica hegeliana dirigida à distinção, incorrecta, entre forma e conteúdo. G. Deleuze analisa a justeza ou não dessa crítica.
Nós julgamos que esse problema se esclarece a partir da importância que Espinosa atribuía à demonstração: não basta simplesmente crer nos atributos de Deus, para os conhecer é necessária a demonstração. Julgamos que, por esta via, uma dificuldade, ou ambiguidade, que se atribui às teses espinosanas, poderá ficar desbravada. Portanto, ter em conta a intenção e o carácter do seu método, é indispensável. O núcleo da crítica de Bayle, por exemplo, saldar-se-ia, deste modo, num relativo fiasco: não se teria apercebido da importância do método por demonstrações, que corresponde ao carácter “formal” do sistema da substância única.
Além disso, e segundo a interpretação de Deleuze, existe no sistema de Espinosa um “problema da expressão”: “a substância que se exprime, o atributo que a exprime, a essência que é expressa. É pelos atributos que a essência é distinguida da substância, mas é pela essência que a própria substância é distinguida dos atributos. A tríade é tal que cada um dos seus termos, em três silogismos, está apto para servir de meio em relação aos outros dois. A expressão convém com a substância, na medida em que a substância é absolutamente infinita; convém com os tributos, na medida em que eles são uma infinidade; convém com a essência, na medida em que cada essência é infinita em um atributo. Existe, portanto, uma natureza do infinito.” Deus só pode ser único; os atributos são expressões da potência infinita de Deus; expressões unívocas do Deus que é naturata naturante.
Seja ou não esta a via mais correcta para interpretarmos o texto espinosano, certo é que existe realmente uma questão em aberto relativamente à distinção entre forma e conteúdo: como é que o atributo (formal) produz os modos concretos, sensíveis? A sua natureza produtiva torna-o distinto da substância infinita? Equivale essa distinção (formal) a uma dualidade da substância?
P. Bayle considerava que é impossível que o universo seja uma só e única substância e que esta substância única seja infinitamente modificada.
Dom Deschmaps conheceu perfeitamente esta refutação; é por causa dela que escreveu: « O princípio de Espinosa encerra a sua negação dentro dele próprio; porque estabelecendo somente uma substância, estabelece duas, pela forma com que estabelece; e estas duas são a substância única e a substância modificada.»
“o infinito é, como atributo único, a negação de toda a modificação”
É a negação. O seu papel, no sistema, é da negatividade. Importante entorse na tese espinosana? Pois será. Visa, contudo, salvar o sistema do monismo absoluto. E, em filosofia, “salvar” significa corrigir, integrar e superar. Movemo-nos no interior das teses deschampsianas como se estivéssemos num trabalho esfoçado de conservação do essencial: ou seja, no território da imanência espinosana.
Pois bem, para « corrigir » o « problema de Espinosa », Deschamps (que, efectivamente, não quer estabelecer duas substâncias) explicita a negação, atribui-lhe um papel decisivo, e soluciona o problema através da distinção entre Le Tout e Tout. Tal propósito demonstra, cabalmente a nosso ver, o seu neo-espinosismo. Se existe dualismo em Espinosa, também existirá em Deschamps. No nosso ponto de vista, nem existe num, nem no outro. No primeiro, a substância única não “encarna” neste ou naquele indivíduo; nem há emanação, nem epifanias. No segundo, o Todo exprime a ordem da natureza – o aspecto Físico -, mas a Existência é infinita.
Cap. 6. -O Deus de Espinosa e de Deschamps
Descartes estabelece que não há nada na natureza fora das substâncias e dos seus modos; e expõe uma tripla distinção: entre o que é real, o que é modal e, por fim, a distinção que se faz pelo pensamento.
Bento Espinosa define Deus como se segue :
“Por Deus entendo o ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita.
Explicação: Digo que é absolutamente infinito, e não que é infinito no seu género; porquanto ao que somente é infinito no sue género podem negar-se-lhe infinitos atributos e, pelo contrário, ao que é absolutamente infinito pertence à respectiva essência e não envolve qualquer negação.”
Na definição VIII diz o que entende por eternidade : “(...) entendo a própria existência enquanto concebida como sequência necessária da mera (ex sola) definição de coisa eterna.
Explicação : Pois que tal existência se concebe, assim como a essência da coisa, como verdade eterna, daí resulta que não pode ser explicada pela duração ou pelo tempo, ainda que se conceba a duração sem começo nem fim” (suprimimos os parágrafos)
Para Dom Deschamps, o todo metafísico – o positivo – não é um atributo que exprima uma essência absolutamente distinta da essência do atributo Infinito – Tout, o negativo. O todo é o finito enquanto soma das partes ou modificações, mas é o infinito enquanto exprime a Existência. Tout est tout. São diferentes, mas, no fundo, exprimem a mesma coisa. Duas formas diferentes de exprimir o mesmo. Assume a contradição nos termos. Censura Espinosa por não assumi-la. Censura-o por não admitir a Negação; quando, afinal de contas, ela já habita o sistema espinosano.
Espinosa, nas proposições I e seguintes, diz o que entende por substância : Proposição V. «Na natureza não podem ser dadas duas ou mais substâncias com a mesma propriedade ou atributo»; Prop. VII «À natureza da substância pertence o existir»; Prop. VIII «Toda a substância é necessariamente infinita». Donde se segue que a substância é incriada, ou é causa de si necessariamente; a substância em si é absolutamente indeterminada, pois que toda a determinação é negação.
R. Descartes introduzira um dualismo, que, parecendo novo, conservara o dualismo da teologia: a dualidade irredutível de Deus e do Mundo; a distinção de natureza substancial entre a res cogitans e a res extensa. Espinosa aponta-lhe a ambiguidade e os equívocos sobre o que seja a substância, formula a unicidade da substância. De uma maneira geral a filosofia confronta-se sempre com uma tríade; Espinosa não foge à regra, exige mesmo a si mesmo, e aos demais, rigor e clareza na distinção dos termos; eles são: a substância que se exprime, o atributo que a exprime, a essência que é expressa. A clareza que se quer sem equívocos de linguagem, o rigor no tratamento dos termos principais, é uma marca da sua atitude e do seu sistema. A essência distingue-se da substância como ? Pelos atributos; mas é pela essência que a substância se distingue dos atributos. Temos, assim, mediações. Um termo define-se, é ele mesmo, em função de um outro; na tríade, cada termo é meio em relação aos outros. A infinitude de cada um possibilita a ligação. Merleau-Ponty escreveu, a propósito dos filósofos do século XVII, que eles tiveram o “segredo do grande racionalismo” : a ideia de infinito positivo, “uma maneira inocente de pensar a partir do infinito”
D’Holbach e Deschamps bebem no sistema espinosano, mas seguem caminhos diferentes. O espinosismo era tema de conversa nos serões eruditos de Ormes. Em determinada altura Robinet foi, seguramente, um destacado interlocutor de Deschamps nesses debates.
Devemos tomar à letra as acusações de Deschamps ao espinosismo, mas não concluir que ele não foi de todo espinosista. De que acusa ele o filósofo de Haia? De erros de percepção. Itso é, olhou bem mas não viu.
A tese de uma substância única infinitamente modificada, traduziu-se numa « demanda que, mal entendida, gerou a filosofia destrutiva que reinou sempre reinou e reina hoje mais do nunca ; esta filosofia que nada estabelece nem na metafísico, nem na moral, ou pelo menos, alguma coisa que satisfaça.»
Qual « filosofia destrutiva » ? Julgamos que ele se refere àquela que ele considerava mais influenciada pelo espinosismo; eram muitos os autores que deveriam cair sob a alçada desta influência e desta acusação, mas não nos parece que fossem os chefes-de-fila do sensualismo, como o abade Condillac, ou Philosophes como o seu amigo abade Yvon; julgamos que entre muitos outros neo-espinosistas, o alvo principal eram d’Holbach e seus companheiros. Não o alvo único, mas o principal. Não excluimos Robinet, autor dessa compacta obra sobre a natureza, a que já fizemos referência, mas não cremos, de modo algum, que fossem Voltaire, d’Alembert, ou Rousseau. Eram realmente os materialistas. A reacção violenta aquando da publicação do livro de d’Holbach, de 71, é demasiado excessiva para não ser suspeita, o teor das apóstrofes das “Lettres” e da “Voix de La Raison...”, denunciam os destinatários.
O que realmente incomoda mais o nosso autor é o ateísmo sem princípios éticos.
O “princípio de Espinosa”, refutado por Deschamps, é exposto na ÉTICA conforme as seguintes proposições:
Prop. V - «Na Natureza não podem ser dadas duas ou mais substâncias com a mesma propriedade ou atributo.» Não vemos, pela interpretação que fazemos das teses de Deschamps, que a Proposição espinosana colida com estas.
Prop. VII. « À natureza da substância pertence o existir.» Tal qual em Deschamps.
Prop. VIII - « Toda a substância é necessariamente infinita.» Seria absurdo que existissem duas substâncias com o mesmo atributo... Em Deschamps: Tout este tout, e é o Infinito.
No articulado das teses espinosanas o enunciado «ser finito» é uma negação parcial, enquanto que o enunciado «ser infinito» é a afirmação absoluta da existência. Bastaria a Prop.VII para demonstrar que toda a substância deve ser infinita.
Prop. XIII e Demonstração – «A substância absolutamente infinita é indivisível.» »Com efeito, se fosse divisível, as partes em que se dividisse, ou conteriam a natureza absolutamente infinita ou não a conteriam.» ; enfim, o corolário I da Proposição XIV : «Daqui resulta clarissimamente : I – Que Deus é único, isto é (pela def.6) que na Natureza somente existe uma única substancia, e que ela é absolutamente infinita, como já demos a entender no escólio da prop.10.»
Já o dissemos: a segunda versão da “Refutação” teria sido redigida após a redacção de Le Vrai Système, e antes do autor conhecer o Système de la nature, de d’Holbach, pelo menos através da edição pública. Dom Deschamps teria redigido a “Refutação” para servir de Prefácio à edição do Vrai Système, que ele julgava vir a publicar no verão de 1769; a antecipação de d’Holbach tê-lo-á aborrecido deveras. É de 1770 o opúsculo La Voix de la Raison. O momento parece-nos de uma intensa batalha ideológica, que reflecte um período crítico da sociedade francesa; entre 68/9 e 70/72 quem traça a agenda da luta ideológica são os materialistas. A ele fica colado, justa ou injustamente, o espinosismo. Alguns eminentes colaboradores da Encyclopèdie haviam desertado. Voltaire geria com dificuldade a sua velhice. Rousseau, o grande crítico dos phylosophes, estava então em plena glória literária, mas acossado pelos seus tormentos pessoais. O abade Mably surpreendera tudo e todos com um livro poderoso. Helvétius remetera-se ao silêncio prudente. A política, e não apenas a moral, isto é, as teorias políticas ganhavam novo impulso, no decurso dessa década de sessenta, talvez a mais produtiva de todas, exercem profunda influência os escritos do “patriarca” Voltaire, o ensaio de Rousseau -«O Contrato Social»-, de Mably -«O Código da natureza»-, e outras.
O neo-espinosismo de orientação materialista parece ser o alvo do Vrai Système, e Espinosa o seu background. Uma leitura unilateral, para não dizer superficial, atribuir-lhe-ia esse propósito: combater implacavelmente todo o materialismo e o seu mentor espiritual, Espinosa. Mas, então, perguntar-se-ia: em nome ou a favor de quê?
Dom Deschamps era pobre, embora menos pobre que os camponeses paupérrimos do lugar da sua abadia. Isolado e esquecido na província, manifestaria aqueles sintomas que caracterizam os isolados na província. No entanto, era hóspede assíduo, e parece que sempre bem vindo, dos senhores de Ormes, onde era escutado com respeito e atenção, embora, presumimos nós, com alguma condescendência. As suas prédicas eram moralistas e não desagradavam, a sua utopia era inconsequente e evangélica. Afinal, era apenas uma utopia. Parece ser esta a titude da esposa do marquês de Voyer; não parece ser, porém, a do próprio marquês, a avaliar pelo tom das suas cartas.
Dom Deschamps não mostra conhecer em profundidade os livros de Espinosa; apesar disso, consegue enfrentar o núcleo duro do sistema, as teses basilares da ÉTICA (muito provavelmente por via do espinosismo “refutado” de Bayle). Todavia, pese embora a intenção, não parece querer outra coisa senão uma substância única, dotada de dois atributos: o atributo positivo e o atributo negativo. O primeiro compõe-se de modos, nuances, ou modificações, o segundo não é divisível porque é o infinito. Os dois atributos da Existência. «O Todo universal, que é o ser uno, tornar-se-á o ser único, sob um outro ponto de vista, que darei a conhecer e que se provará.»
A Existência é « Deus simplesmente dito”. Retomando a antiquíssima aporia do indizível que é dito, porque é tudo, preenche todos os significados, toda a linguagem, mas que, nem por isso, se reduz à linguagem; ou, na versão do sagrado, Ele não pode ser invocado em vão; em suma, D’Ele nada se pode dizer, excepto as formas que cria, as suas determinações. Dom Deschamps diz o que ele é e o que ele não é. O nada não possui determinações; portanto, o nada não possui predicados.
Escreveu Espinosa o seguinte :
“ No que se refere à demonstração pela qual, no Apêndice das demonstrações geométricas aos Princípios de Descartes, estabeleço que apenas muito impropriamente pode-se dizer que Deus é uno e único, respondo que uma coisa apenas se pode chamar una ou única quanto à existência e não quanto à essência. (…)nenhuma coisa se diz una ou única, senão depois de que foi concebida outra coisa que, como se disse, convem com ela [que ambas tenham a mesma definição]. Mas como a existência de Deus é a sua essência e da sua essência não podemos formar uma ideia universal, é certo que aquele que chama a Deus uno e único não possui nenhuma ideia verdadeira de Deus ou que fala impropriamente dele. »
Ora, já o dissémos ( e não sem demasiada repetição), Deschamps reserva o termo “Uno” para “O Todo” – unidade das partes -, e “Único” para “Tudo”. Espinosa distingue; Deschamps também.
Atributos infinitos, essências infinitas, de um Deus que é único.
«este fundo metafísico que existe em tudo e em toda a parte» ; «porque Tudo e O Todo nada são um sem o outro, pois que eles são o mesmo ser, pois que eles a Existência encarada sob os seus dois aspectos.» «É uma ideia negativa [Tout], replicar-se-á ainda, mas a ideia de infinito, do ser que nega o finito e os seres finitos, é uma ideia negativa, e no entanto nós admitimos que o infinito existe; portanto esta não uma razão, pelo facto da ideia do Nada ser negativa, que o Nada não exista.». Quem o diz é evidentemente Deschamps. «Tudo[...] não é mais o ser uno, que existe por meio dos outros seres numericamente falando, o ser designado a matéria, que existe pelos corpos, mas o ser único, que nega todo outro ser excepto ele próprio, o ser imaterial, o ser individual e incriado[...] não é mais o sensível, ou o resultado dos seres sensíveis, mas o Nada, o próprio nada, que é unicamente e que somente pode ser a negação do sensível; que é a existência negativa, da qual não se possuia ideia mais do que a positiva, sem excptuar Espinosa, que modifica absurdamente a substância infinita, na ignorância em que ele se encontrava da substância que é o finito, ou o perfeito.»
Espinosa não distinguiria, portanto, o finito do infinito, o ser das mediações, e o ser-em-si – o ser imaterial, sem relações. Por consequência, fez a sua substância única sofrer toda a espécie de modificações; como pode o infinito receber determinações, modificar-se? Haveria em Espinosa um género de panteísmo, embora Deschamps não o diga. Estamos no interior do território traçado por P. Bayle e pela tradição posterior. Deschamps preserva, se o entendermos, a unicidade, introduzindo-lhe a Diferença.
Somente existe um único Objecto que é simultaneamente Sujeito, e existe necessariamente como decorre da definição de Todo. A novidade que Deschamps introduz sobre o sistema de Espinosa, é a constituição contraditória do Ser. Não é uma dupla substância, porque como decorre da categoria do em-si, somente o Tudo (Tout) é substância na acepção da palavra. A substância, ou Existência, é tudo. Não há dualismo, nem cartesiano, nem outro mais “moderno” à maneira de Robinet e os deístas em geral. É uma novidade que Espinosa recusaria, respondendo certamente ao interlocutor que este não o soubera entender, ou, pior ainda, não o lera realmente.
Deschamps censurava o espinosismo dos seus contemporâneos, particularmente do grupo materialista de d’Holbach. Sim, de certo modo parecia-lhe que eles é que eram espinosistas, cometendo o mesmo erro do Mestre de todos eles. Aplicando-lhe tal correcção, julgava-se fora do espinosismo. Suspeitamos que pretendeu tal coisa, ou seja, pretendeu livrar-se da acusação, dissimulando a forte presença do espinosismo, a fortíssima atracção pela unicidade do Ser. Corrigindo o Mestre, não seria espinosista em rigor. O que significa isto? Significa que resolvera, ou julgava resolver, as contradições que Bayle vislumbrara no texto espinosano. E, a ser assim, já estaria fora do espinosimo.
Deschamps acusa os outros de ateus, porque, julga, o ateísmo dele não é idêntico ao ateísmo dos outros. Ele não nega a existência, afirma-a: Deus existe. Porém, o seu Deus nem é teísta nem deísta. É um Deus que se avizinha em quase tudo do Deus de Espinosa. Não é a natureza pura e simples, física, sensível e concreta, mas, sendo de uma natureza que não se reduz a essa, é a essência da natureza.
Admitimos que os dois pilares de toda a filosofia são a diferença e a mesmidade. A maneira como se postula a Diferença no interior do Mesmo, ou do Único, eis o que distinguirá provavelmente uma boa filosofia. Porque nenhuma consegue escapar a estes dois vigilantes do universal.
Dom Deschamps argumenta que a diferença começa desde logo por aquilo que distingue a totalidade (O Todo, A soma dos seres), de cada parte; esta asserção lógica, evidente, permite-lhe classificar esta diferença de «diferença metafísica». É o plano, segundo ele, da «metafísica». Deschamps demonstra que entendeu clara e perfeitamente qual é o problema principal. Compreendem-se, assim, as críticas que dirige a determinados pensadores do seu tempo, compreendemos a sua contundência verbal contra o sistema de d’Holbach, que acusa de incapaz de haver estabelecido a diferença, que é metafísica e não empírica, do “grand tout” relativamente às suas modificações; portanto, este não entendeu que existe uma diferença, de natureza, entre os efeitos e a Causa, entre as criaturas e o criador, entre a totalidade e as partes. Em suma, d’Holbach ter-se-á esquecido da grande questão da filosofia, a saber, da Diferença. «As partes encaradas sob o ponto de vista da distribuição existem umas pelas outras, e é a distinção aparente que existe entre as partes que, somente ela, faz a diferença entre O Todo e as suas partes, entre o metafísico e o físico.»
Em seguida, constata uma segunda diferença: «Estes dois seres, O Todo e Tudo, que somente a existência física diferencia». «Tudo e O Todo declinam-se diferentemente: diz-se Tudo, de Tudo, em Tudo, por Tudo; e diz-se O Todo, do Todo, pelo Todo: nós jamais tentámos aprofundar a razão da diferença destes dois nomes pelos quais nós exprimimos, sem o saber, a Existência, sob estes dois pontos de vista.».
Se O Todo (Le Tout) une as modificações, se ele é uno, não pode ser único, pois quem diz único, refere um ser que nega todo outro ser, excepto a si próprio. Por conseguinte, a unidade (material do mundo) exige uma unicidade que ele, só por si, não pode fornecer. Ora, não encontraremos outra unicidade mais unívoca (indeterminada) senão a categoria do infinito. Deste não se pode dizer nada de determinado (sensível ou fisicamente).
Apesar daquilo que os separa, Deschamps deseja permanecer no território preferido de Espinosa. Uma e só uma substância, uma e só uma realidade. Tenta a todo custo expulsar qualquer dualismo.
Uma substância una, ou seja, modificada, não pode ser única. Correr-se-se-ia o risco de cair em panteísmos. A substância única há de ser, portanto, um ser simples, o ser sem composição, sem partes, sem modificações, que existe sem relação, que existe por si (par soi). O que significa, necessariamente, que nega todo outro ser. Negando o todo das partes, a Matéria em geral e os sensíveis em particular, é apura negação, i.é, o nada. O infinito é a negação de toda a modificação. “Espinosa não teria dito da substância que ela era infinitamente modificada, se ele soubesse (tivesse sabido) que o infinito é, como o atributo único, a negação de toda a modificação” «Espinosa qualificando a sua substância de substância única e não a distinguindo da substância una, tombou no mesmo absurdo dos teístas que fizeram destas duas substâncias, ou pontos de vista contra´rios dqa Existência, um só ser que ele apelidaram Deus. Este ateu diz da sua substância que ela é única e infinitamente modificada; é o que ele não teria dito se soubesse que os nomes único e infinito eram a negação de toda modificação, e que as modificações, ou os seres, não eram outra coisa senão as partes de O Todo, ou do finito, que os números que compõem a substância una, que, como já o tenho dito, é ao mesmo tempo o modo e o sujeito.»
Na melhor tradição filosófica, o trabalho de Deschamps é pura argumentação; cremos que da boa. Utiliza a «gramática metafísica», como diz, isto é, trabalha com os conceitos, destapa as contradições dos outros sistemas, dissolve todas elas para em seu lugar subsistir apenas uma: a Contradição assumida, produtiva, incontornável, que já se encontra imersa nos interstícios da linguagem e do pensamento comuns. Por meio dessa «gramática», ou seja, de uma outra metafísica, acredita poder destruir o sistema da substância única espinosano.
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O Dictionnaire critique, de P. Bayle, era então, juntamente com os volumes sucessivos da Encyclopédie, uma obra de referência. Deschamps tinha-a à mão na biblioteca dos Argenson. Bayle crismou Espinosa paar a posteridade como “ateu” e “panteísta”. O abade Yvon, famoso colaborador da Enciclopédia, anexa Espinosa e o espinosismo em geral ao materialismo, a tal doutrina para «brutos». Os moralismos, velhos e novos, campeiam e digladiam-se, porque constituem o terreno das lutas ideológicas. Na Biblioteca do Arsenal, encontrava-se um exemplar, pela mão do Conde d’Argenson, o grande amigo dos philosophes, um exemplar dizíamos, do “Esprit de Spinoza”, ou “Traité des Trois Imposteurs”, livro célebre, com enorme influência nos seus leitores aristocráticos e burgueses, de vários países europeus; é composta em parte de extractos provenientes do Tratado teológico-polÍtico de Espinosa. Dissimuladamente, as ideias de Espinosa são postas a circular.
John Tolland, escritor irlandês, escrevera um livro que veio a ter ampla divulgação, com impacto por exemplo no jovem Diderot: Lettres À Serena (1704), onde combate a crença em um Deus pessoal, mostra-se panteísta, critica os deístas: Deus é a única realidade, ou apenas a soma, abstracta de tudo o que existe? Deschamps não pôde ignorar estas interrogações, que vão ser as dele.
E não ignorou, certamente, o Testamento de Jean Meslier, cura de Etrépigny, posto a correr (muito truncado) por Voltaire, bem antes da redacção do Vrai Système. Ainda que Dom Deschamps só haja conhecido os fragmentos editados, não pôde deixar de constatar as teses espinosistas de Meslier. Conhecemos hoje toda a obra de Meslier. Nela verificamos a presença de ideias cartesianas, juntamente com ideias espinosistas. Fica-se com a convicção de que o autor procurou conciliá-las. Afinal, eram, porventura, as mais modernas na opinião de um cura de província que odiava os padres e a monarquia. Um materialista ateu. Teólogos padres ( ou monges) descrentes, fazem do panteísmo e do materialismo (confundido, por vezes, com uma determinada forma de panteísmo) a nova teologia; o panteísmo (inclusivé dito de Espinosa), constitui uma forma verbal teológica do ateísmo e do materialismo.
A “ficção lógica” que parece ser o Deus de Robinet, que alguns classificam como puro “nihilithéisme”, não mostra ser senão outra coisa do que um “disfarce” de ateus. P. Vernière diz de Robinet que acabou por “conceber Deus como uma ideia tão vazia de qualquer determinação que apenas se vê nela um conjunto de negações, um refúgio cómodo”
O censor real, já vimos, acusa Deschamps de “espinosista”.
Cap. 7. - Espinosistas “disfarçados”
Ou Deschamps foi um “impostor”, que usou um pseudo-dualismo como “disfarce”, uma espécie de “nihilithéisme” que tanto se aplicava a Robinet como ao seu “riènnisme”, ou o nosso autor interpreta a tese de Espinosa, da natura naturans e natura naturata, e re-edita-a sob outra designação, ou seja, a realidade única é a mesma em todo o lado, mas encarada pelo entendimento humano quer como uma coisa, quer como a outra. Julgamos que fez isso tudo e foi isso tudo.
Jean-Baptiste Robinet, tal como o seu interlocutor Deschamps, companheiro de tertúlias, confronta-se com a crítica tradicional da ÉTICA. O antropomorfismo da teologia tradicional, denunciado por Espinosa, mostra-se-lhe, a ele como a muitos mais, uma tese irremovível. “Como aliar o infinito com o finito, o perfeito com o imperfeito, do qual um exclui necessariamente o outro?”; “ A duração da natureza não se assemelha em nada à existência eterna de Deus”. Robinet separa em termos dualistas o plano da eternidade e o plano da duração ou da natureza; por isso, refuta Espinosa. Recolhe e difunde junto dos seus contemporâneos a crítica do antropomorfismo (com expressões que nos lembram dom Deschamps), mas confrontado com a substância única, resiste. É este mesmo Robinet, embora bastante mais conservador, que encontrámos a discutir com Deschamps, anos depois. O que importa nesta altura enfatizar é enfrentamento de ambos com um mesmo problema.
Em suma, voltamos à questão da Diferença: separar os dois planos, natural e divino, mostra-se como a questão mais pertinente, para que, em seguida, se passe ao tema forte, isto é, as relações sociais desigualitárias ou igualitárias.
Parafraseando Vernière, toda e qualquer evitação ou fuga relativamente ao sistema espinosano, mostra –se reduzir à aceitação da ideia de uma existência criadora fora do alcance da nossa inteligência. Já vimos, supinamente, que Deschamps não realiza esta “fuga”.
Deschamps descreve uma doutrina da imanência.
Os deísmos à maneira de Robinet, agnósticos no essencial, arriscavam-se a esvair Deus de toda utilidade, a permitir que passássemos bem sem Ele. A moralidade não encontrava fundamento na existência do divino.
O que importa salientar é que Robinet, e vários outros pensadores ao tempo, confrontaram-se com as antinomias por causa de Espinosa, pois que em que outro senão nele se encontram com a máxima clareza as relações entre a duração e a eternidade, a finitude e a infinitude, a natureza e Deus?
Espinosa traça um caminho e demarca um território. Quem pretender rejeitar o antropomorfismo e, simultaneamente, enaltecer a Natureza e valorizar a ciência, encontra Espinosa no trajecto.
Robinet , nos diálogos mantidos com Deschamps, prefere a noção de causa à noção de substância, que a ele e a muitos mais parecia demasiado escolástica. É verdade que dom Deschamps também não se soccore apenas da segunda noção, nem a privilegia. Se nós a utilizamos nesta dissertação com frequência, é sobretudo com o propósito de estabelecermos um paralelismo com as ideias espinosistas, e atendendo ao facto de que é à volta da noção de substância que a Refutação de dom Deschamps dirigida a Espinosa, e outras referências ao filósofo de Haia, se desenrolam.
É inevitável, e até um dever, citar literalmente Vernière neste passo em que resume a sua interpretação do Traité De la Nature, de Robinet :” Ele acabou por conceber Deus como uma ideia tão vazia de toda e qualquer determinação que já não se vê nela senão um conjunto de negações, um refúgio cómodo. No próprio momento em que ele julga opor-se a Espinosa contestando a coexistência eterna de Deus e da natureza, reencontra a essência do espinosismo, os dois planos bem compreendidos do espinosismo, o da duração e o da eternidade, a natura naturans e a natura naturata.».
Em boa verdade, Espinosa não foi, de modo algum, panteísta. E não confundiu jamais os planos do finito e do infinito, do tempo e da eternidade.
Porque razão, então, Robinet e Deschamps ( as discussões entre ambos datam de 1772) mostram desconhecer toda a rica argumentação de Espinosa? Porque razão insistem na diferença, como se não houvessem lido de Espinosa senão aquilo que dele escreveu P. Bayle?
Pode admitir-se que não quiseram aceitar as suas teses, em todo o seu rigor; pode-se admitir que não as aceitaram, por desconhecimento desse rigor, do todo da sua argumentação. Perfilhemos a segunda opção, na medida em que muito do que se escreveu sobre Espinosa, até aos nossos dias, contém imprecisões bastantes, para não falar já das adulterações propositadas. A primeira hipótese apenas para o caso de dom Deschamps, tanto mais que não dispomos de uma única demonstração de quais os livros de Espinosa que ele tenha lido. A vida de Deschamps não se assemelhou à de Robinet, nem o carácter de ambos, nem os projectos. Seja como for, é difícil conceber-se que muitas décadas depois de Espinosa, noutro tempo e lugar, alguém, inspirado subitamente por algum dos seus livros, passasse a repeti-los, sem proceder, no acto mesmo da leitura, a uma interpretação. Principalmente quando se desejava elaborar um novo sistema, que colmatasse as incongruências ou fragilidades do filósofo, reais ou não, as insuficiências para a acção que o tempo do intérprete lhe parecia exigir. Sejamos claros: a utopia de dom Deschamps jamais poderia resultar do sistema de Espinosa. Para que tal se sucedesse, haveria que modificar o sistema. Um sistema modificado já não é o sistema do Mestre, mas, quando muito, do discípulo.
Cap. 8. –Um sistema «fecundo e original»
P. Vernière, na obra citada, classifica a filosofia de Dom Deschamps como “um sistema fecundo e original”. A noção de O Todo, com o seu carácter “positivo”, revela “o universo de Espinosa face aos seus diversos modos”; a noção de Tudo desliga Deus da matéria, tentando-se evitar as acusações de que era alvo o Deus sive natura. “Não se apercebe nenhum traço de Descartes ou de Leibniz. O único mestre é bem Espinosa e os contemporâneos não se enganaram aí”. E adianta:
“ a dualidade do Deus criador e do Deus não criador não faz senão retomar a distinção espinosista da “natureza naturante” e da “natureza naturada”; o aspecto positivo e negativo da substância provêm directamente do axioma determinatio est negatio; a oposição do ser finito e do ser infinito recorta a sábia análise de Espinosa na sua carta a Louís Meyer e faz cair as críticas fáceis de Fénelon contra o infinito divisível; o edifício inteiro da Ética retoma a sua harmonia sobre o duplo plano da eternidade e da duração”.
P. Vernière, no tópico dedicado a Robinet (que antecede imediatamente a sua análise das ideias de dom Deschamps), interpreta os seus esforços especulativos como tendo o propósito de dissociar a ciência da religião, uma frente de combate do Iluminismo, tanto dos deístas à maneira de Voltaire, como dos materialistas. Este projecto adquiriu efectivamente claros contornos de combate, por vezes violento, anti-clerical, como tem sido usual escrever-se. Na nossa perspectiva, não foi apenas anti-clerical, foi anti-religião, como se constata nas obras de d’Holbach. Mas, se neste caso, em d’Holbach, se manifesta com clareza uma atitude de refutação de toda a religião (ainda que visando especialmente a religião católica), não existe menos desvalorização da crença em um Deus pessoal e moral em Voltaire (a célebre conversão de Deus em uma «utilidade» que se assemelha a um “polícia” interior) e, de uma maneiora geral, nos deístas que conhecemos. É neste contexto que fazem sentido as citações que transcrevemos de P. Vernière acima. Repare-se novamente nestas palavras que ele dedica a Robinet:«acaba por conceber Deus como uma ideia tão vazia de determinações que já não se vê nela senão um conjunto de negações». Esta oposição entre um Ser cheio, positivo, a natureza, e um Deus esvaziado, que não só nega a natureza determinada, fenomémica, como nega todos os tradicionais atributos de Deus, converte Robinet num interlocutor enfraquecido perante a argumentação e até as soluções de dom Deschamps.
Gostaríamos, portanto, que tivésse ficado claro este contexto, e esclarecido particularmente o debate de ideias sobre a existência ou não de Deus, e de que Deus, sobre a primeira Causa, a finitude e a infinitude, tendo como núcleo central a noção de natureza e, por conseguinte, de Homem, desta humanidade e dos seus fins. De uma maneira geral, estes ensaios especulativos visavam coisas muito concretas.
Escreve P. Vernière sobre dom Deschamps:«Face ao Deus sive natura interpretado por Bayle como um verdadeiro ateísmo, face à matéria, Dom Deschamps apresenta o ser em si e por si que se move no infinito e na eternidade, o ser imaterial. Por meio de um processo lógico oblíquo que o idealismo alemão e o existencialismo moderno retomarão, o universo sensível postula o nada «que é unicamente e que não pode ser senão a negação do sensível».
Esta dissertação não pretende senão conduzir-se a partir destas linhas axiais de Vernière, demonstrá-las, realizar o propósito até às suas últimas consequências, acrescentar ao conhecimento que portugueses possuem já das ideias de dom Deschamps, algo mais, contribuir para que especificamente a história da filosofia de expressão francesa, atribua a Deschamps todo o relevo que merece, arredar em alguns, pois que para outros isso já está claramente visto, a ideia das Luzes como um movimento homogéneo, ou convertido exclusivamente às ideias do liberalismo e do empirismo. O projecto de separação da ciência e da religião, compunha-se de modos diversos, desde a separação de poderes e competências até à crítica da religião, classificada como um forte obstáculo ao progresso das luzes. É neste contexto que o Deus sive natura de Espinosa, bem ou mal compreendido, perturbava uns e era instrumentalizado por outros.
Cap. 9. - Movimento e repouso
Como vimos no capítulo dedicado à influência de P. Bayle, a aproximação com Espinosa de um filósofo francês do século dezoito, não se processa realmente com o próprio, com o corpo dos textos, mas, outrossim, com o espinosismo, versão posta a correr em grande parte por Bayle. A questão do fascínio que Espinosa exercia, pode colocar-se a dois níveis: por um lado, porque dele conheciam-se, sobretudo, versões, e o tom e a fórmula dos ataques alimentavam a curiosidade; por outro lado, quando se lia alguma obra de Espinosa, no seu todo ou em parte, o interesse despertado derivava genuinamente da força dos textos e do vigor das teses espinosanas. Num contexto histórico muito marcado pelas lutas ideológicas, a favor ou contra a religião oficial , lutas que substituíam as guerras religiosas que ensanguentaram a França e dividiram os franceses em épocas não muito distantes, cuja memória não se apagara, determinadas teses espinosanas ofereciam-se como excelentes armas de combate. Contudo, a questão religiosa, especificamente, não constituía o único território a defender ou a atacar. Ela pertencia a um conjunto muito mais vasto de temas que apaixonavam as elites. A questão mais ampla prendia-se com os valores – éticos, jurídicos, políticos, e até estéticos. Brotavam à superfície como picos de icebergues, para cuja base emersa fluíam as relações sociais de produção, o choque das novas com as velhas, as transformações económicas que conquistavam as cidades, um nova mapa de contradições que se agudizavam. Aquilo a que poderíamos chamar um novo regresso à natureza, ilustrava um foco de interesses que chocavam com esquemas de interpretação e hábitos da catolicidade mais conservadora. Naturalizar o homem servia como caução para fazer passar o elogio das liberdades mundanas, o elogio das paixões terrenas. O corpo de ideias de um liberalismo ainda cauteloso e incipiente. A obra de Denis Diderot é exemplar a todos os títulos. Por outro lado, aqueles que eram designados como “naturalistas”, encontravam-se na primeira fila, e não é por acaso, dos defensores do trabalho e do valor da ciência, eles próprios a praticavam. O interesse pelo estudo dos seres vivos, os esboços explicativos da origem da vida, patente nas grandes sínteses mais ou menos especulativas à maneira de Buffon e de Robinet, até o interesse pelas formas monstruosas que a vida produz, os estudos de química, tudo isto e muito mais provinham da vontade não só de encontrar soluções técnicas para as necessidades económicas, mas também de encontrar novos valores justificativos para a autonomia do homem face às entidades divinas. Autonomia que significava poder. Esta ideia resume, em nosso ver, as intenções dos naturalistas em geral, mais deístas que ateus, e dos materialistas em particular. Daí que se esforçassem por encontrar um fundamento para as motivações humanas, um qualquer princípio ou força, imanente e natural, que justificasse o novo amor pela vida, um novo significado para o existir e, se possível, ser feliz aqui na terra. Sob o céu diáfano da Natureza e da Felicidade, moviam-se os interesses e as paixões mais prosaicas ou mais salvíficas.
A primeira metade do século fora marcada pela força da argumentação matemática e mecanicista, o impacto enorme da ciência newtoniana; rompera-se a separação entre o homem e a natureza, essa autonomia que o Cogito cartesiano havia tão bem oferecido e reservado ao homem e à sua racionalidade, enfim, à sua alma; o homem virara-se depois para fora de si, para o exterior, e como que perdera a alma no todo mecanicista; fabricara-se o homem- máquina de La Mettrie, o homem-estátua de Condillac. Na segunda metade assiste-se a uma reviravolta, pontificada pelo regresso à natureza boa e simples de Rousseau, à Mãe-Natureza de Diderot. A Razão recua perante os avanços do sentimento. É o tempo do homem cindido, que vive de noite e dorme de dia; o tempo do afluxo dos bens, do crescimento urbano, da civilização da manufactura; se a indústria dá lucro e alimenta o conforto, já se anunciam as suas consequências, os seus efeitos, as suas desvantagens. Nos anos sessenta os casos de Rousseau e de Diderot são paradigmáticos: ambos enaltecem uma moral que reencontre os seus fundamentos na Natureza, a figura do «bom selvagem», ou o elogio do Suplemento à Viagem de Bougainville. Chegam em força os moralistas, parecem recuar os sensualistas e o matemáticos. É por esta altura que o sistema de dom Deschamps se organiza e amadurece. É filho desse tempo.
É neste contexto que eu interpreto as teses de dom Deschamps sobre o movimento e o repouso. Não é alheio ao plano da ciência, certamente, mas o papel que estas teses desempenham no seu sistema, como de outros de resto, não é exclusivamente científico. No caso de dom Deschamps isto é completamente evidente: ele não é um cientista como hoje se concebe o trabalhador da ciência, nem sequer um naturalista à maneira do seu tempo. Nem dos fenómenos da vida, nem da química, nem da matemática, nem da física. Não nos legou estudos desse género. Por mais especulativas que fossem as longas e pesadas meditações de um Robinet sobre a Natureza, os textos de dom Deschamps que compõem o Verdadeiro Sistema, não se lhe assemelham. O monge tem um fim em vista e persegue-o teimosa e coerentemente desde o momento da fecundação do seu sistema: desacreditar tanto as antigas concepções religiosas, morais e políticas, como as novidades da civilização técnica, mercantil, urbana. O passado é para esquecer e o futuro que aí vinha era para recusar.
«Os atributos negativos que nós damos a Deus, que é Tudo, então, somente negam alguns atributos metafísicos, ou positivos, e se eles não os negam a todos sem excepção, se nós reservamos alguns para os dar a Deus, tais como os de perfeito, de supremo, de absoluto, é unicamente porque empregamos estes atributos na moral assim como no domínio metafísico, e que havendo dado estes atributos morais a Deus, como sabedoria, justiça, misericórdia, acautelamo-nos em dar-lhe algum atributo que os negasse. É sobretudo porque nós demos a Deus os atributos morais, e que dele fizémos nós mesmos um outro por essa via, que ele tem sido sempre de fé para nós, ou, para dizê-lo melhor, que ele tem sido sempre para nós um objecto incompreensível.»
Dom Deschamps acredita haver cortado o nó górdio das aporias, por meio dos dois aspectos com que a Existência é concebida, ou devia sê-lo; mas, e talvez bastante mais do que isto, acredita haver compreendido o impulso religioso do ser humano.
Neste contexto as suas teses sobre o movimento e o repouso, encaixavam-se na sua teoria da natureza como o todo que a si mesmo se criou e por si mesmo permanece.
«Pode-se dizer de O Todo que ele é o repouso, como se pode dizer dele que é o movimento, o repouso e o movimento sendo somente um. Se se disser que ele é o repouso, é necessário dizer que tudo nele está mais ou menos em repouso. Se se disser que ele é movimento, é necessário dizer que tudo nele está mais ou menos em movimento.»
Aquilo que para a atitude de não poucos mentores das Luzes, desagradados com metafísicas e escolásticas, devia parecer mera fraseologia oca, soa-nos hoje com menos desagrado. Expliquemo-nos: dom Deschamps compreendeu que no discurso filosófico existe também aquilo que hoje designamos de jogos de linguagem; compreendeu que a filosofia é sobretudo, ou tem sido, a linguagem escrita; realizou poucas, ou nenhumas, experimentações tecno-científicas, manejou, isso sim, uma determinada linguagem, um determinado discurso, carregado de códigos e convenções. Não se trata de um regresso ingénuo à retórica sofistica, mas do papel que atribuímos aos significantes e aos “deslizes” dos significados. À primeira vista a afirmação que citámos acima, não traduz conteúdo algum, pela razão de que a nossa cultura científica empresta aos termos “movimento” e “repouso” sentidos muito “objectivos”, que transportam séculos de evolução da Física. A tese de dom Deschamps parece desprezar a física galilaica e newtoniana. Ora, como o monge não manifesta ser, em momento algum, um perfeito ignorante, e a sua tese não exprime a física escolástica aristotélica pré-galilaica, obriga-nos a prestar-lhe uma atenção que à primeira vista não deveria merecer. Que significa, qual a sua congruência com o Sistema?
Julgamos nós que o aparente relativismo em que o autor se coloca – tudo é ou vale o mesmo – exprime uma outra atitude, a saber: a Existência, sendo TUDO, pode ser interpretada segundo duas perspectivas: como sendo movimento contínuo do menos ao mais e assim sucessivamente, movimento que aumenta ou diminui, ou repouso que aumenta ou diminui. Não tem que se atribuir ao movimento e ao repouso qualquer valor substantivo per si . É um modo do ser, isto é, do todo. Em rigor, o repouso é apenas a ausência de movimento, ou ainda, movimento nulo. O movimento é um modo de existir do Todo, tal qual o é o repouso. Com mais precisão: o repouso não é nada, é simplesmente aquilo que não aparenta qualquer movimento, porque, na verdade, o modo objectivo do ser da natureza é o movimento, ou seja, aquilo que ele designa do mais e do menos...movimento. O movimento é uma propriedade essencial da matéria. Tese completamente admitida pelos materialistas. O que não coloca estes, nem Deschamps, de modo algum em colisão com a ciência.
«Mas o movimento é da essência de todos os seres e não difere absolutamente nada deles.»
O movimento é a propriedade da matéria. Como propriedade essencial e comum, os seres, enquanto movimento, não diferem entre si. Não existe qualquer tendência em direcção ao alto, aspiração alguma em direcção a um lugar ou Ser transcendente. Na verdade, tudo converge para tudo, porque todos os seres, em última instância, se entrelaçam, acordam entre si. Em rigor, é o meio metafísico que estabelece o lugar central, o ponto de gravidade. Forças centrífugas e centrípetas interagem. Nesta descrição há qualquer coisa de Descartes – as forças turbilhonares – e de Newton – as forças de atracção e repulsão, numa mistura algo estranha. O Todo é composto de múltiplas totalidades, o último geral de todas as generalidades. Somente o Todo é perfeito, completo; nenhuma coisa particular é perfeita, por definição. Cada coisa morre e renasce em outra, semelhante, porque em última instância tudo é semelhante entre si.
Se traçarmos um paralelismo com Espinosa, encontramos mais semelhanças que oposições. Para Espinosa o ser finito não existe por si. Para ele não existe a negação na natureza.
Em Espinosa – ÉTICA- o conatus apresenta-se em articulação íntima com a potência. Remetendo sempre para Deus, como centro de tudo e do todo, Este não possui poder, mas potência. Isto é, a Natureza, possui uma potência idêntica à sua essência. É acto, actividade, não podendo Deus (Natureza) padecer na medida em que é causa activa das afecções. Potência absoluta de existir, potência de produzir. Deus, ou Natureza, é uma totalidade incondicionada possuindo uma infinidade de atributos.
«A potência pela qual as coisas singulares e, consequentemente, o homem conserva o seu ser é a própria potência de Deus, ou seja, da Natureza , não enquanto é infinita, mas enquanto pode explicar-se pela essência humana actual. Portanto, a potência do homem, enquanto se explica pela sua essência actual, é uma parte da potência infinita, isto é, da essência de Deus, ou seja da Natureza.»
A essência de cada parte do todo é determinada como conatus ou apetite (Ética., III, 7). Existe e tende a perseverar na sua existência. Existir é durar. Esta tendência é abertura e relação: perseverando na sua existência cada parte é aptidão e capacidade de ser afectado. Daí a oposição de potências, que é a relação das partes entre si no todo. Os seres, ou os sentimentos, que convêm entre si, estabelecem encontros positivos, aqueles que não convêm entre si, tendem a destruir-se. É aqui que radica grande parte da origem do movimento. Consequente da potência essencial de agir. Conservar, aumentar, opor-se. O conatus é primum movens, causa eficiente. Cada modo é determinado a existir e a agir, opõe-se a outros modos, passa de uma perfeição menor a uma maior, e de uma maior a uma menor. Cada corpo é uma determinada relação de movimento e repouso. Esta noção qualifica o que é comum a todos os corpos e, por ser comum, é uma noção, ou ideia, geral. Extensão, movimento, repouso, eis o que lhes é comum.
«O Todo é o mais e o menos finito dos seres, as suas partes, que são mais ou menos finitas que ele e umas em relação às outras. Não existe nada de finito em si, toda a fronteira é relativa, o infinito encontra-se sob a asa do finito.»São palavras de dom Deschamps.
Estranha maneira de pensar. Se houve quem classificasse o sistema de Espinosa como um sistema sem movimento, e Hegel não foi o menor deles, mais razões julgaria ter para classificar deste modo o sistema de Deschamps. O Todo é uma espécie de colmeia : cada elemento vivo não é uma entidade em si e para si, move-se continuamente mas em função do todo, é este que governa e fornece sentido a cada parcela.
Numa primeira comparação, o conatus espinosano nada tem que ver com isto. Porém, essa intransigente conservação de cada organismo vivo não é completamente atomizada e egoísta, porque constituem modos que realizam os atributos essenciais da Substância.
Há também em dom Deschamps uma preocupação com a unidade do Ser. Cada coisa existente é uma manifestação do Todo, da natureza; natura naturata são os modos, i.é, as manifestações simples, físicas e sensíveis, da essência da Existência; natura naturans é a própria Existência, na sua dualidade.
A ordem da exposição pelo próprio Deschamps reproduz a ordem metafísica. A multiplicidade dos modos (expressão que não utiliza frequentemente) não contradiz a unidade porque a unidade é a própria conexão dos modos (ou dos seres, das existências particulares e relativas) e os modos realizam no seu ser e no seu agir a ordem unitária, mesmo que, no caso dos seres humanos, eles a contrariem. A natureza não tem um fim, executa apenas uma necessidade intrínseca.
Em Espinosa a existência de Deus não é propriamente a existência empírica, mas a essentia. As coisas singulares não são causa de si; são causadas por Deus; não pertencem à Natureza naturante (Deus e seus atributos), mas à Natureza naturada. A extensão concebida como atributo divino é infinita e indivisível; a extensão dividida em corpos, é a extensão representada à imaginação, a extensão diversificada pelo movimento e pelo repouso; os corpos distinguem-se uns dos outros por uma determinada proporção de movimento e repouso; o Universo é esta totalidade ordenada – Facies totius universi – e é um modo intermediário entre o movimento e o repouso.
É o dinamismo do uno e do múltiplo que permite evitar o esquematismo clássico do ser e da sua aparência, ou da essência e da aparência, do verdadeiro/falso. Se isto se aplica a Espinosa, outro tanto se aplica a Deschamps, embora com uma semântica que diverge por vezes. Deschamps não separa a infinidade das nuances, dos modos finitos; o infinito traduz a ordem dos possíveis. A mudança trabalha no interior da Natureza, conforme as leis que a ciência averigua, segundo um aumento ou diminuição da perfeição – o mais e o menos. Fica, assim, salvaguardo processo puramente imanente das modificações do Todo, o seu devir interno sem o recurso ao transcendente.
Na ÉTICA, Parte III, Espinosa define afecções deste modo.«Por afecções, entendo as afecções do Corpo, pelas quais a potência de agir desse Corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou entravada, assim como as ideias dessas afecções.». Não é possível detectar-se aqui alguma aproximação da expressão deschampsiana do “mais e menos”, no quadro da energia constitutiva dos corpos, com a fraseologia espinosana?. Muito embora Deschamps não utilize o termo conatus, fundamental em Espinosa, encontramos matéria suficiente para não vermos motivos para recusar um paralelismo. Pode-se falar mesmo de uma idêntica potência de existir, entre o mais e o menos, entre o repouso da pedra ou do cadáver, e a energia afirmativa, e opositiva, do vivente, entre uma mais e uma menos perfeição. Por outro lado, as variações de movimento e repouso não alteram a natureza dos corpos (proposição 13 da segunda parte da Ética); as modificações são produzidas segundo modos que dependem tanto da natureza do corpo afectado como da natureza do corpo que afecta. Em Deschamps o Todo é, por essência, esta capacidade de agir maior ou menor.
Não afirmámos, um momento que fosse, que o sistema deschampsiano é cópia, imitação, ou decalque, do sistema espinosano. Traçamos um paralelismo, pelo qual algumas ideias (menos que os termos) interceptam teses famosas de Espinosa, e defendemos, apesar de todas as diferenças, que, nos anos sessenta do seu século, é do sistema de Espinosa que dom Deschamps mais se aproxima. Não apenas porque o conheceu, mas porque a sua noção de Todo parece conduzi-lo às mesmas (ou similares) soluções (e dificuldades). Pelo facto de lidar com uma noção de “grand Tout”, se diz, de d’Holbach, que ele se deixou influenciar por Espinosa.
Em Deschamps o plano ontológico é efectivamente o primeiro e determina, e explica, tudo o mais.
Dever-se-ia a semelhança, entre tantos aspectos, a intuições originais de Deschamps, ignorando em absoluto Espinosa? Simples coincidências? Ideias que estavam já em marcha numa espécie de atmosfera do tempo?
Cremos que não, pelo menos no seu todo. O nosso propósito tem sido outro: demonstrar que dom Deschamps foi marcado pelo espinosismo, e dele aproveita importantes materiais para forjar a sua própria ontologia. O sistema espinosano, o Deus sive natura, o movimento imanente ao Todo, a substância única, as conexões que ligam cada coisa a outras coisas numa ordem determinística, mas com a qual podemos receber lições de moralidade e sabedoria, não foram estranhas ao sistema de dom Deschamps. Buscava ele uma nova imagem da Natureza, uma imagem que fosse fundamento para uma outra e melhor moralidade. Nem mecanicista, nem «brutal» como se dizia da «Natureza» dos materialistas. E, de modo algum, uma criação divina. Dom Deschamps foi, afirmamo-lo, um exemplo original e notável do esforço dos homens da segunda metade do século para se reencontrarem com a natureza, e, portanto, para se reencontrarem a si mesmos com ela e nela. Os resultados superam em muito os fracassos, as ingenuidades, as utopias.
Cap. 10. - A Refutação
Dom Deschamps redigiu várias “refutações do sistema de Espinosa”, das quais conhecemos duas (outras duas foram destruídas por Voyer d’Argenson a pedido do próprio Deschamps), redigidas pelo seu punho, que diferem pouco uma da outra, o que nos leva a admitir que houvesse redigido quatro versões de uma delas. Sabemos, pelas suas palavras, que a “Refutação simples e curta do Sistema de Espinosa”, pretendia servir de preâmbulo à edição de O Verdadeiro Sistema. Conjecturamos que este texto, em todas ou apenas algumas das suas versões, deve ter isso um dos que mais circulou entre conhecidos e amigos, a partir dos colóquios da “Academia dos Ormes”. A Refutação e tudo o mais que se infere demonstra o cuidado que o autor colocou no tratamento do espinosismo que ele julgava dominante e do qual se acautelou. A primeira das duas únicas publicações que intentou, as “Cartas sobre o espírito do século”, trouxe-lhe a acusação de “espinosista”, tanto do próprio censor real, como com certeza daqueles que o leram.
“Este doutor real disse que eu era espinosista pelo modo como combato Espinosa, isso prova que ele não viu melhor nos assuntos da razão primeira que nos da razão segunda. É possível, no entanto, equivocar-se, quando se quer ler em si memso sem preconceitos ?» .
Vejamos, pois, como o beneditino refuta o sistema de Benedito Espinosa.
A primeira versão da Refutação é encimada pelo “princípio de Espinosa: Só existe uma substância, a qual é infinitamente modificada.»
No texto espinosano, o que mais se aproxima da “citação” de Deschamps ( repetição ipsis verbis daquilo que circulava como sendo a tese principal do espinosismo, e que deriva de P. Bayle realmente) é o corolário I da Proposição XIV – da Ética -, onde se lê : “Deus é único, isto é (pela definição 6) que na Natureza não existe senão uma única substância, e que ela é absolutamente infinita “
Que refuta Deschamps ?
« Espinosa ao qualificar a sua substância de substância unica e não a distinguindo da substância una, tombou no mesmo absurdo dos teístas que fizeram destas duas substâncias, contrários sob o ponto de vista da Existência, um único ser que eles apelidaram de Deus.
Este ateu diz que a sua substância é única e infinitamente modificada ; é o que ele não diria se ele soubesse que os nomes unico e infinito eram a negação de toda e qualquer modificação, e que as modificações, ou os seres, não eram senão as partes de O Todo, ou do finito,os números que compõem a substância una, que, como já o disse, é ao mesmo tempo o modo e o sujeito.» (O. Ph.p.613).
O primeiro parágrafo exprime com acerto a tese do monismo espinosano – Deus sive natura. Tese absurda, no dizer de Deschamps, isto é, incapaz de romper com a teologia. Aparentemente Deschamps não entendeu absolutamente nada do sistema espinosano, neste caso o eixo fundamental da Ética. Por outro lado, é estranho e contraditório que ele cuide de apelidar Espinosa, desde logo, como “ateu”. Julgamos que não é assim que se entende a posição crítica de Deschamps. O nosso autor realmente censura Espinosa pelo seu monismo, mas segundo a orientação do seu pensamento e a iluminação da sua descoberta, ou seja, Espinosa, e o espinosimso em geral, foi, e é, incapaz de sair do terreno comum às metafísicas, às teologias e aos materialismos “que não se reconhecem como metafísicas”, e, por isso, fica vulnerável, tanto aos ataques dos teólogos (que lhe chamam ateu), como às aproximações com a própria teologia fundamental, isto é, que afirmam a existência de Deus. Teísmo-ateísmo, eis o dilema tradicional do qual é preciso sair. Para conseguir tal desiderato, Deschamps aponta o caminho: admitir a duplicidade contraditória da substância. Nem duas ou três substâncias (como queriam os cartesianos), nem uma única.
Ora, sabemos que Espinosa rejeitou claramente a classificação de “una” em relação à substância única, visto que se refere o termo ao número e, portanto, é incorrecto aplicar-se à unicidade da substância. Deus único e não Deus uno, porque esta última expressão é uma “denominação extrínseca”, ou, como respondia ao seu interlocutor Jarig Jelles, conforme já referimos noutro passo: “ uma coisa não pode ser designada só e única relativamente à essência mas somente em relação à existência.». Importa distinguir em Espinosa a expressão “unidade”, quando aplicada à soma numérica, dos seres em número, “denominação extrínseca”, e quando aplicada à “unidade da natureza”. A substância é única, é Deus, e uma das razões da unicidade é precisamente a unidade do todo natural. «nehuma coisa se diz una e única senão depois de que se concebeu outra coisa que convém com ela, como já se disse. Pelo contrário, como a existência de Deus é a sua essência e da sua essência não podemos formar uma ideia universal, certo é que aquele que chama a Deus uno e único não possui nenhuma ideia verdadeira de Deus ou que dele fala impropriamente.»
Parece-nos, por conseguinte, que Deschamps trabalha esta aparente ambiguidade (que Espinosa dissolve, a nosso ver) entre a totalidade dos seres tomados em número (o que equivaleria a uma “soma”), e a unicidade da natureza substância (não podem existir duas naturezas, duas substâncias, dois Deuses...). Ou não leu as primeiras páginas da ÉTICA (o que duvidamos), ou não o entendeu (o que se nos afigura de pouca relevância), ou entendeu-o perfeitamente: converte essa distinção em “dois” todos : O Todo – “denominação extrínseca”, no ponto de vista numérico, não formal (essencial) mas material (conjunto dos concretos sensíveis); plano da razão, “empurrando” O Todo para um plano superlativo, meta-metafísico – Tudo (Tout).
Os argumentos principais de Espinosa não parecem colidir com a argumentação deschampsiana : Não há duas substâncias com o mesmo atributo; não há duas ou mais substâncias com atributos diferentes. A segunda tese, espinosana, não colide se concluirmos, como na verdade nos obriga a concluir o próprio autor, que a Existência é a substância única, a qual se desdobra em Unidade (Le Tout) e infinidade (Tout). O atributo é o que o entendimento percebe como constitutivo da essência da substância .
O homem só pode conhecer aqueles atributos que nele próprio se exprimem: o pensamento e a extensão. A natureza não se esgota na extensão, como parecia querer o materialismo contemporâneo de Espinosa, e o materialismo de alguns Philosophes censurados por Deschamps. Sejamos justos apesar de tudo: o materialismo de Diderot, do próprio d’Holbach, para falar somente nestes, caracteriza-se precisamente por uma inflexão fundamental : entender e explicar a actividade, os movimentos, da matéria, por meio dos conceitos de “sensibilidade geral”, de “excitabilidade”, etc. De qualquer modo, em Espinosa, e isto é decisivo, a natureza é definida como pura actividade – substância actuosa; julgamos ser esta, seguramente, a propriedade mais importante da natureza, perfeitamente congruente com a ontologia espinosana. Caracterizada a natureza naturante como pura actividade, tal asserção não colide com as propriedades que Deschamps atribui ao Todo (Le Tout).
Em seguida repare-se nas curiosas expressões escolhidas por Deschamps : “é o que ele não teria dito, se soubesse que...”. Por outras palavras : « O caminho é adequado, mas bastaria que tirasse a conclusão, que avançasse mais um passo...”. Não se aplica esta atitude a um neo-espinosista?
Imediatamente a seguir ao «Princípio de Espinosa», dom Deschamps desencadeia a sua refutação: «É um todo desde que haja partes, e este todo é o que nós chamamos o universo, a matéria, &c; e o que nós podemos chamar a substância modificada, porque pode-se dizer das suas partes que elas são as suas modificações. O Todo não pode existir senão pelas suas partes, como as suas partes só podem existir por meio dele e umas pelas outras. Se existisse, independentemente das suas partes, uma outra causa para a sua existência, existiriam duas causas da sua existência; o que repugna. É a primeira causa e o primeiro efeito simultaneamente, ou, a mesma coisa no fundo, o criador e a criatura; duas coisas puramente relativas que possuem e que não podem possuir existência senão uma pela outra, e donde uma é a outra: porque quem diz O Todo diz todas as partes. A diferença é de O Todo a cada parte ; e é esta diferença somente que faz a diferença metafísica de O Todo e de todas as partes, que faz com que O Todo seja a causa e o efeito, ou, se se quiser, que ele é distinto dele mesmo.»
O Todo é, por conseguinte, ou conforme vai argumentando, é um serv puramente relativo, isto é, existe na dpendência das uas partes; daí ser a unidade destas. As partes são em número, mas não infinitas. Portanto, visto que é a unidade (l’un), ele não é único, porque diz-se único de um ser que nega todo outro ser diferente de si próprio; enquanto que o ser uno afirma outros seres além de si próprio, afirma precisamente as suas partes.
O Todo é, portanto, a substância modificada, e esta substância não é nem pode ser única, precisamente porque é modificada. O universo e Paris são dois, diz o autor á maneira de P. Bayle. As aprtes do Todo são os seus modos.
« É suficiente aquilo que precede para concluir contra Espinosa que há duas substâncias, uma modificada e a outra não modificada»
Mas como duas ? Aquilo que é mais certo, e redundante, em Deschamps é que somente existe a Existência, embora composta de uma contradição...É verdade que define Tout com aquele atributo que define efectivamente a verdadeira substância : aquilo que existe “par soi”. Para Espinosa a substância enquanto ser que existe em si e por si tem de ser concebida a partir de si e por si mesma (per se). É com isto que Deschamps faz a diferença : Tout afirma-se por meio da negação que executa sobre Le Tout.
«Mas o ser único é o ser simples, o ser sem composição, sem partes, sem modificações; o ser que existe sem relação, que existe «par soi» e, consequentemente, que não dá nem recebe a existência, que nem é criador nem criatura; estes dois nomes tomados no único sentido verdadeiro que eles possam ter»
São possíveis, portanto, duas leituras. Primeiramente, e em rigor, tomada na sua definição adequada, substância é somente Tout (=Rien), o que equivale a dizer que a única substância é o Nada. Porém, como esta “substância-Nada” possui, afinal, os atributos, entre outros, de eternidade (sem duração) e infinitude, não estamos ameaçados pelo cutelo de Parménides (o Ser é, o não-ser não é). Segunda leitura: existem duas substâncias - Le Tout e Tout, Natureza (material) e a eternidade. Contudo, ambas são contrárias: por consequência, ou Tout não merece, em rigor, a definição de substância (visto que existe por meio de Le Tout, na medida em que o nega), ou “ambas” são uma só. Preferimos, como se em visto, esta última interpretação. Claro, com a ressalva fundamental de que já não estamos no território de Espinosa. Qual é a diferença? A novidade encontra-se na ideia de contradição. O pensamento de dom Deschamps é então um neo-espinosismo. Incongruente e inadmissível para o próprio Espinosa? Certamente, porque jamais aceitaria que a substância única se auto - negasse, ou se subdividisse. Sai, então, Deschamps completamente “para fora” do sistema da substância única que é a trave mestra do sistema espinosano? É aqui que fazemos intervir a nossa interpretação mais polémica: A Existência equivale ao Deus sive natura, visto segundo as duas perspectivas possíveis para o entendimento humano: Le Tout e Tout , ou seja, natura naturata e natura naturans, Extensão e Pensamento.
È certo que Deschamps não nos parece dar razão nestas palavras:
“C’en est assez de ce qui précède pour conclure contre Spinoza qu’il y a deux substances, l’une modifiée et l’autre non modifiée ; l’une qui est une et l’autre qui est unique… ».
Porém, em rigor, a definição que ele dá de Tout faz dele a única substância (daí que ele insista que é efectivamente a única...). O que é, então, Le Tout? Uma espécie de substância cartesiana, correspondente à Extensão (substância, a bem dizer, somente o é Deus)? Ficaríamos, pois, num neo-cartesianismo? Nenhum dos seus interlocutores classificou alguma vez Deschamps como tal, e eles bem sabiam dessas coisas. Pelo contrário, desde “scotiste” (Duns Escoto) a “spinoziste” é o que mais se lê.
O que incomoda particularmente Deschamps, em Espinosa, é este ter modificado “absurdamente” a substância infinita, “na ignorância em que ele estava sobre a substância que é o finito”. O infinito não poder sofrer modificação alguma, porque o é. E porque o sendo, não contém nada (como poderia a eternidade sofrer modificações?), é igual ao Nada. Vê-se bem que Deschamps faz finca-pé sobre a interpretação crítica de Pierre Bayle. Aceitando-a, procurou “corrigir” o sistema espinosano. O que resulta desta operação, nem agradaria, de modo algum, a Espinosa, nem agradou a “gregos e troianos”. É o que acontece, de resto, aos discípulos que “alteram” o mestre. E também sucede àqueles que pretendem evitar aproximações com o sistema do mestre...
O que se passa, a nosso ver, é a seguinte operação perpetrada por Deschamps:
Iniciamos o percurso pelas coisas particulares, que nos são dadas pela percepção sensorial; passamos para os agregados, colectivos gerais; em seguida, subindo na escala das generalidades, que é o caminho da inteligência ou da razão, começamos a entender que existe, tem de existir necessariamente, um Todo (Le Tout) que é ao totalidade dos seres e das relações entre os seres: causa e feito, começo e fim, alfa e omega, bem e mal, ordem e desordem, pleno e vazio, realidade e aparência, movimento e repouso, e é o mais e o menos, em suma, todos os opostos ou extremos – é o plano do entendimento, ou da metafísica. Contudo, podemos, devemos, ir mais longe (é isto que d’Holbach e outros não quiseram fazer) , até este plano supra metafísico (o entendimento intuitivo, levado à sua máxima potência): pensar neste Le Tout, mas sem os extremos que o compõem, de modo a que ele não seja nada daquilo que antes dele se afirmou , em um conceito que nega estes opostos afirmando-os, e então teremos o seguinte :
“ Le Tout universal, sempre considerado como acabo de o considerar, não é mais o primeiro gérmen, o gérmen comum a todos os seres, ou, para me servir de termos consagrados,(...)não é mais o Deus criador, mas Deus não-criador, ou antes da criação”
Atendamos, porém, ao que ele diz :” era preciso sair do sei da matéria para encontrar o ser uno e o ser único, mas não era preciso sair para fora dela.» Devemos sair da « existência física “, que é o que diferencia os dois seres (Le Tout e Tout), mas não da Matéria. Ou seja, A Matéria é tudo, não existe nada que a transcenda, tudo é natureza. Quer-se monismo mais estrito?
Aquilo que diferencia Deschamps das rigorosas definições espinosanas, e que as subverte apetece dizer, é o que o torna interessante aos nossos olhos. A originalidade desta “versão” da substância única: vista sob o seu lado “actuoso” e determinado, é uma coisa – é a Coisa -, vista sob o seu ângulo indeterminado, infinito e eterno, é o Rien. Com justeza é realmente a pura contradição. Ao assimilar a contradição, ao trabalhar com ela de modo operacional, como um conceito – como o Conceito -, Deschamps não apenas nos oferece uma lição de bom e sério filosofar, como, e sobretudo, realiza um notável esforço de superação do grandioso sistema de Espinosa. Porque, em boa verdade, o sistema espinosano é fortíssimo e é simultaneamente frágil : no primeiro caso pelo seu rigor e coerência, pelo seu monismo aparentemente sem falhas; no segundo, porque teremos de dar razão à leitura hegeliana: a Substância padece de não ser Sujeito. Se é consensual admitirmos, pensamos nós, que Espinosa, ou qualquer outro filósofo da sua envergadura, não é insusceptível de evolução – ele mesmo nos demonstrou que nenhuma Palavra é eterna, mas, antes, contextualizável historicamente; a sua fecundidade reside precisamente neste devir das ideias- já não será consensual aceitarmos que certas alterações modificam a substância de um sistema. Já não teríamos esse, mas outro. Deschamps diria que o seu sistema não é o de Espinosa, disse-o de resto. Parece-nos, contudo, e sopesando as “graves” alterações que ele introduz, que ele não constrói um sistema que nada tem que ver com o sistema espinosano.
Temo-lo dito: Deschamps move-se no interior do monismo, dando, até, mais ênfase ao materialismo já contido no sistema espinosano. A Existência é una e única, é idêntica em si e para si, é a unidade contraditória. Habituados, como estamos, ao método hegeliano, não vemos que esta asserção – da unidade dos contrários – faça mossa profunda no sistema espinosano. Não é Espinosa ( como Hegel não repetiu Espinosa): é um avanço (em termos de filosofia metafísica), rico de consequências. É uma manifestação da potência do pensar. Um trabalho notável sobre os conceitos. E mais: dando conta da fragilidade do sistema de d’Holbach ( e dos materialismos em geral, da época), realiza uma importante tentativa para colmatá-la.
André Robinet afirma no seu longo estudo do sistema de dom Deschamps que “do conjunto das menções” contidas na “Refutação”, “resulta um quadro coerente das razões pelas quais Deschamps não pode ser confundido nem com o espinosismo nem com a posteridade de Espinosa” . A nossa dissertação orienta-se precisamente no sentido de recusar validade ao ponto de vista do ilustre professor da Universidade de Poitiers, autor do estudo mais completo sobre as ideias do monge que viveu e morreu em terras de Poitou.
Pois bem. Foi o próprio Voyer que sugeriu a Deschamps a redacção de uma introdução ao “Verdadeiro Sistema”, o qual refutasse qualquer semelhança com o sistema de Espinosa. No mês de Abril de 1766 (quatro ou mesmo seis anos depois das “Observações metafísicas e morais” terem sido elaboradas) o monge escreve ao seu amigo :
“Mais uma cópia do vosso Antiespinosismo, ireis dizer. Pois bem, senhor marquês, a pena não é vossa mas minha, porque dou por perdida esta como as outras, que vós queimareis se isso vos agradar. É verdade que vos custará lê-la, mas encontrareis nela a correcção e o acrescentamento, que vos poderá agradar. Pensai que é a vós que devo a ideia desta refutação, e que esta ideia é a mais delicada que pudesse ser-me sugerida para fazer depôr as armas das mãos de qualquer crente, e para oferecer aos descrentes aquilo que lhes faltava, a verdadeira razão de ser, ou pelo menos prepará-los para esta Razão.»
Claramente exposto o seu propósito, tantas vezes reiterado, de eliminar a crença no Deus único e pessoal e, ao mesmo tempo, oferecer aos descrentes uma razão de ser. Não existe outro propósito mais espinosista do que este.
O próprio marquês de Voyer acredita na finalidade das teses de dom Deschamps:«A especulação de dom Deschamps não sendo nem o ateísmo, nem o teísmo, mas sendo o cadinho em que os dois sistemas se purificam [...]» Do mesmo modo é aplicável, sem qualquer reserva, a Espinosa a classificação de “ateu”? Não, não é, como se sabe. Aqui, neste pé, cabe dizer que Espinosa é, porventura, bem menos ateu que Deschamps. O “Deus” espinosano é mais enfático do que o “Rien” de dom Deschamps.
Émile Beaussire começa por analisar muito bem o texto de Deschamps, afirmando, desde logo, que o sistema de Deschamps está semeado de “uma multidão de proposições de que o autor da Ética é o verdadeiro pai.». Segundo a leitura de Beaussire a crítica de Deschamps aponta correctamente o ponto fraco da construção de Espinosa: o Deus da Ética é o indeterminado por excelência. Ele exclui toda a determinação e, por consequência, toda expressão positiva, na medida em que limitaria a sua substância infinita; porém, ele é, ao mesmo tempo, dotado de uma infinidade de atributos infinitamente modificados. Por conseguinte, manifesta-se aqui uma contradição. Os atributos, afinal de contas, reduzem-se a dois, perfeitamente determinados de resto; e os modos não são mais do que intermediários inúteis entre a substância infinita e as coisas finitas; e o que importava era explicar a existência destas. Beaussire assinala com acerto que este ponto de ataque é capital, e faz notar que Hegel viria a atacar também por aqui.. Beaussire mostra-se completamente convencido de que Deschamps é espinosista, ou, pelo menos, que é manifesta a presença de Espinosa, tal como sucede em Malebranche e Leibniz, di-lo. Deschamps, à semelhança destes, defende-se, exibindo as diferenças e ocultando as filiações. Beaussire não esconde, por seu lado, a rejeição dos “panteísmos”, mas observa correctamente que, da leitura da Refutação, se depreende uma visão espinosista, ainda que temperada, uma “identidade, no seio de um só ser, da causa e do efeito, do criador e da criatura” – definição sua do panteísmo. Adianta que Deschamps ao expor o ser Le Tout, como expõe, “não se separa de Espinosa senão opondo a este ser positivo e determinado um ser indeterminado e puramente negativo, que ele designa como o ser único, o ser en si, Deus simplesmente dito.” Evoca o parecer de Hegel que distingue o ser concreto do ser abstracto, que julga ver na distinção deschampsiana, e reconhecemos que com acerto. Escreve então : “Introduzindo esta distinção, dom Deschamps tem o direito de separar a sua doutrina da de Espinosa, mas não de opô-las de uma maneira absoluta.” Porque “ no próprio livro do qual esta refutação do espinosismo não é senão o anúncio, veremos que não se trata no fundo senão de uma distinção ideal entre estas duas substâncias”; citando com pleno propósito Deschamps, conclui : “são apenas dois pontos de vista sobre uma só existência, e o princípio de identidade dos contraditórios permite reuni-los. Dom Deschamps o que fez foi completar Espinosa, como fez Hegel. A sua refutação reduz-se à separação lógica de dois pontos de vista confundidos e mal e a um equívoco sobre o nome de substância. Foi sem dúvida o sentimento deste equívoco, que ele não acreditou poder eliminar, que o impediu de publicar este opúsculo. Dizia demasiado para não amedrontar os crentes, e não dizia o bastante para esclarecer os descrentes.»
Independentemente de alguns desacordos de pormenor, partilhamos desta opinião, contra a interpretação de André Robinet.
Dom Deschamps mostra-se firmemente convicto que resolveu o “enigma”. Nós estamos convictos que ele resolveu por meio do sistema de Espinosa, ou seja, resolveu as putativas incongruências do panteísmo mais absoluto, ou ainda, tentou completar as insuficiências de Espinosa. Não é antiespinosista, como escreveu o marquês, mas uma forma diferente de ser espinosista. Nesse ponto o antihegeliano Beaussire tinha razão.
André Robinet, por seu lado, expõe desenvolvidamente a argumentação de Deschamps, salientando a diferenciação que este estabelece entre “substância modificada” e substância única e entre O Todo e as partes, com a qual o monge esgrime o defeito capital de Espinosa: o universo (Le Tout) difere das suas partes (“sont deux”, escreve Deschamps); a substância “modificada” não pode ser confundida com a “substância única”, “par la même qu’elle est modifiée”. Escreve André Robinet : ” E eis a aplicação à proposição I, XV, da Ética : em vão dir-se-á dela que é um sujeito que não possui modos nem partes. Os seus modos são as suas partes, as suas partes são os seus modos : tanto faz chamar o todo como o sujeito. Pode-se até chamar o modo se se quiser, pois que ele é a unidade dos modos.» ( Robinet cita Deschamps).
Ora, julgamos nós que as referências de Robinet relativas ao corpo do texto espinosano não estão correctamente assinaladas: “proposition I, XV”? Se é o plural que aí se deveria encontrar ( proposições I e XV), não se vê a pertinência da proposição I : “A substância é por natureza anterior às suas afecções”...excepto a demonstração que nos remete para a Definição III : “Por substância entendo o que existe em si e por si é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa do qual deva ser formado”, e definição V :” Por modo entendo as afecções da substância, isto é, o que existe noutra coisa pela qual também é concebido.” Só assim se torna compreensível a crítica de Deschamps. Embora outras citações pudessem ser eventualmente tão ou mais pertinentes, julgamos, em acordo com Robinet, que Deschamps tinha estas em mente, com toda a evidência.
A definição III coloca-nos bem no centro da diferença entre Deschamps e Espinosa: o monismo absoluto deste não admite uma substância que careça do conceito de outra coisa do qual deva ser formado. A substância não é considerada como suporte de acidentes, como nos explica Joaquim de Carvalho, “pois exprime claramente o sentido lógico-ontológico de um conceito que se explica por si e cujo objecto por si mesmo existe e subsiste.” Nesta nota lemos ainda, a propósito da origem e formação da definição de substância: ”o que confere valor próprio à concepção espinosana é a unicidade, a infinidade, a produtividade interna e a fecundidade infinita da substância”, salientando que “a definição da substância está em íntima conexão com a definição de causa sui, da qual é, pelo menos, como que explicitação”.
Voltando a Deschamps, a Refutação exibe manifestamente o seguinte: o monge não vê no corpo do texto espinosano univocidade, mas, antes, equivocidade, ou seja, censura-o por “demasiada unicidade”, tanta que acaba por conter a sua própria negação: ao não quer estabelecer a diferença entre o todo e as partes, e entre O Todo e Tudo (substância modificada e substância não modificada). Desta maneira, cai em contradições, e ambiguidades. Ora, estas contradições exprimem uma realidade, que ele não soube admitir: a substância é, realmente, contraditória. Este plano originalíssimo de Deschamps, aplica-o ele não apenas ao sistema de Espinosa, mas também ao carácter contraditório da “Santíssima Trindade” (dogma do teísmo), e ainda à definição contraditória do “grand tout” d’holbachiano. Que manifestam estas contradições nos diversos sistemas ? que a Contradição existe, é inelutável, irrompe pelos interstícios de todas as teses metafísicas. O seu sistema, finalmente, admite-a e, ao fazê-lo, dissolve, resolve, o enigma. Por conseguinte, ele não inventa, apenas descobre o que já lá andava, mas ocultado. Não se assemelha esta atitude, e o seu método, ao processo psicanalítico? Há um algo neste método deschampsiano, que nos faz evocar o método de Freud na psicoanálise, e o de Marx aplicado em O Capital, às contradições deste, ao processo oculto da formação da mercadoria...
Na proposição XV, da ÉTICA, (“Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus nada pode existir nem ser concebido”), importa sobretudo, para este caso, o Escólio: «[...] Eu, pelo menos, demonstrei (corol. da prop. 6 e esc. 2 da prop. 8), de modo bastante claro, segundo me quer parecer, que nenhuma substância pode ser produzida ou criada por outra coisa. Além disto, mostramos na proposição 14 que fora de Deus não pode Haver nem ser concebida nenhuma substância, donde concluímos que a substância extensa é um dos atributos infinitos de Deus[...].». Joaquim de Carvalho comenta deste modo este parágrafo : “ Esta concepção é estrutural e assinala uma das mais arrojadas afirmações de Esp., dado parecer incompatível com o senso comum e estar em franca oposição à tradição escolástica e a Descartes, que considerou a extensão incompatível com a natureza divina em virtude da sua divisibilidade (...) A argumentação de Esp., que tem por fim a tese da indivisiblidade da extensão, pode resumir-se no seguinte: a extensão, como atributo infinito da substância, não é divisível, e as quantidades infinitas não são mensuráveis. A relutância em se aceitar a atribuição da extensão de Deus, como propriedade inerente à sua essência, resulta de se imaginar a extensão isoladamente da substância, e portanto como grandeza corpórea, composta de partes, mensurável e divisível, em vez de se pensar a extensão em si mesma, como atributo coessencial à substância.” .
Consultemos a Carta 12, de Espinosa a Lodowijk Meyer, a 20 de Abril de 1663. Espinosa indica como se deve pensar adequadamente o infinito, escrevendo a certa altura estas palavras : “ Se houvessem prestado atenção a tudo isto, repito, nunca teriam sido assediados por tal cúmulo de dificuldades. Pois teriam compreendido claramente qual infinito não se pode dividir em partes ou não pode tê-las, e com qual sucede todo o contrário sem contradição alguma. E haveriam compreendido, além disso, qual infinito pode ser concebido, sem incoerência alguma, como maior que outro, e qual não se pode, [...]”
Ignoramos se Deschamps conheceu esta Carta, ou sequer qualquer das outras publicadas depois da morte do filósofo de Haia. As cartas não foram publicadas todas de uma vez, e algumas foram-no em holandês, em 1677 publicaram-se 75 nas edições póstumas das obras de Espinosa, sendo que somente a versão latina poderia ser conhecida por Deschamps. O que é deveras interessante é que Espinosa antecipa-se nesta carta às objecções de Bayle e demais seguidores deste, mas, acima de tudo, antecipa-se às objecções de Deschamps. Tal como este diz sobre Espinosa :”se ele tivesse visto....se tivesse sabido que...”, assim Espinosa responderia a Deschamps : se ele tivesse distinguido entre aquilo que é infinito por sua própria natureza ou em virtude da sua definição, e aquilo que não tem limites, não em virtude da sua essência, mas sim da sua causa; mas não haver distinguido, além disso, entre aquilo que se diz infinito porque não tem limites e aquilo cujas partes não podemos nem igualar nem explicar mediante um número, pese embora a que conheçamos seu máximo e seu mínimo ...
O que nos parece mais relevante é esta putativa ignorância de Deschamps, desta putativa confusão entre o ilimitado com partes e o infinito verdadeiro; desta aparente confusão entre o “mau infinito” e o “infinito verdadeiro”, como dirá Hegel, é que Deschamps arquitecta a sua solução: o Todo não pode ser o infinito verdadeiro, porque tem partes (modos, nuances), somente Tudo o pode ser. Resulta daqui que Deschamps é espinosista sem se reconhecer como tal. A variante fundamental que ele introduz é a Contradição, por um lado e, por outro, converter Tudo (Le Tout) em o Nada. Deschamps trabalha com rara inteligência no interior do território em que se movimentará Hegel para criticar Espinosa. A inspiração crítica de ambos foi, presumimos, o próprio Pierre Bayle. É em resposta à crítica deste que se solta o génio de Hegel (sopesando, no seu caso, todo o século) e de Deschamps (sopesando as diversas correntes de pensamento do seu tempo). Antes de Hegel, com excepção de Malebranche, Leibniz e Bayle, não conhecemos outro que igualasse o feito de Deschamps. É secundário, para este caso, discutirmos se todos estes souberam ler efectivamente o texto espinosano.
O movimento da Refutação estabelece-se sobretudo por meio da categoria do negativo: o ser único “não dá nem recebe a existência”, existe por si. Esta última definição conduzir-nos-ia a dever concluir que se trata da única categoria que merece o qualificativo de substância, a “outra” não lhe empresta existência. Porém, se a sua existência “afirma” (fornece existência racional) a substância Le Tout, também esta dá sentido ao Tout. O que se pretende é impossibilitar qualquer confusão com a divindade criadora. Atribuem-se apenas uma parte dos qualificativos: eternidade, infinitude, mas eliminam-se outros (aqueles mesmo que dão consistência teológica ao Tout). Neste ponto dom Deschamps não “antecipa” Hegel, este Ser não possui movimento, não é Sujeito. Se Hegel critica Espinosa por causa da Substância não produzir o devir, muito mais censuraria a tese de Deschamps relativa ao conceito de Tudo. Qual o papel do Infinito? Certamente que em Deschamps não se trata de um infinito fraco, “mau”, mas qual a relação produtiva entre o infinito e o finito? É um Infinito transcendente? Ou é, sobretudo, inútil? Convenhamos que o infinito desempenha um papel mais produtivo em Espinosa: A substância única é pura actividade. Em Deschamps é o todo que é Causa, que se determina a si mesma. Enquanto Nada, nada produz. Porém, o que é que não produz? Não produz seres e coisas físicas, e suas relações; mas fornece Realidade ao todo. Como Infinito, integra e dá sentido à natureza, ao universo. O Finito não existiria sem o Infinito, mas este poderia, porventura, existir sem “este” mundo.
A tese de Deschamps, “contra Espinosa”, é que “há duas substâncias”, uma “modificada”, a outra não. Somente assim se torna racional a ideia de que o infinito não contem partes ou modos: que sentido faria um infinito “verdadeiro” com partes ? Uma eternidade com modos? Não faz sentido para Deschamps. Da substância única não faz sentido derivar para os modos. É por isso que Espinosa, segundo ele, cai na contradição de falar em uma substância modificada e outra não, ou seja, quer estabelecer uma única, mas acaba por referir duas. Precisamente porque não há outra alternativa. Existe uma substância modificada, e outra que não pode sê-lo. Deschamps recusa qualquer conotação panteísta, que era costume aplicar a Espinosa.
A perspicácia de Deschamps é detectar contradições nos outros sistemas : “O princípio de Espinosa encerra a sua própria negação no seu interior: porque estabelecendo uma substância apenas, ele estabelece duas pela maneira como estabelece; e estas duas são a substância única e a substância modificada; duas substâncias que existem efectivamente, e das quais Espinosa fez uma apenas, pelo maior dos absurdos, pelo mais completo desprezo sobre o fundo das coisas. Estas duas substâncias são os dois contrários metafísicos [...]. Espinosa não teria dito da substância que ela é infinitamente modificada, se ele soubesse que o infinito eé, como o atributo único, a negação de toda a modificação: porém, Espinosa queria fazer um sistema, e seria preferível que se agarrasse ao de duas substâncias, que é o verdadeiro, e que apenas aguardava ser explicado.»
Esse seria, portanto, o erro principal do espinosismo: que a sua substância única é infinitamente modificada; um absurdo, porque o infinito é enquanto atributo único a negação de toda a modificação. O infinito e o finito, o ser único e o ser uno, são diferentes, são os dois contrários metafísicos e é por causa do não reconhecimento destes dois contrários que a verdade tem-se mantido sempre no “fundo do poço” e que as leis se encontram no lugar dos verdadeiros costumes, isto é, que os homens inventam para si e para os outros o império das leis. «É somente através do desenvolvimento da verdade metafísica, ou dizendo o mesmo por outras palavras, através da exacta gramática metafísica, que se pode destruir o sistema de uma substância única», de Espinosa, e igualmente qualquer outro sistema metafísico; porém, é preciso não esquecer que não se expõe deste modo senão um desenvolvimento resumido. «Resta saber precisamente o que significa o ser único ou Deus simplesmente dito.”
Ou seja, Deschamps apresenta o seu sistema como o desenvolvimento, consequente e lógico e coerente, do sistema da substância única espinosano. È certo que também pretende assim superar os sistemas teístas, mas a crítica do antropomorfismo e a rejeição sistemática do Deus transcendente criador, foi buscá-la a Espinosa; e esta crítica é visivelmente muito mais “destrutiva” do que a censura que dirige a Espinosa; enquanto o monismo e o Deus sive natura se conserva intacto, o teísmo, pelo contrário, resulta completamente anulado.
É incorrecto e preconceituoso qualificar Deschamps de ateu? Não admite ele um “Deus simplesmente dito”? Tão simplesmente dito que não possua, precisamente, quaisquer determinações? Em boa verdade, acaba-se convencido de que é muito mais incorrecto qualificar de “ateu” Espinosa do que proceder assim com Deschamps. Espinosa não é ateu em rigor, porque não se limita a negar mas estabelece a sua existência, embora por outras formas completamente distintas da religião, em certa medida foi menos ateu do que o próprio teísmo da Escola, ou indo mais longe: foi mais teísta do que aqueles que o atacaram e atacam – o seu sistema é uma impressionante e invulgar teo-logia -, enquanto que Deschamps impossibilita qualquer amor intelectual por Deus. Em suma, a palavra Deus torna-se, no seu sistema, uma mera excrescência útil. Certamente que podemos aplicar a Hegel o mesmo raciocínio ( faz algum sentido falar em Deus no seu sistema?), mas o seu profundo idealismo (o idealismo da Consciência Absoluta) deixa aberturas para a teologia ( e para a teodisseia), enquanto que é muito mais arrojado dizer outro tanto de Deschamps.
André Robinet , na percuciente exposição do sistema de Deschamps que temos vindo a fazer referência, confronta-se com a mesma interrogação que a definição de substância suscita ainda, tal como suscitava aos interlocutores do monge: Que significa a expressão “o ser único”? Qual é a modalidade de existência destas duas substâncias? Existem realmente distintamente, ou a bem dizer há entre elas apenas uma diferença ideal? Prosseguindo no desenvolvimento da análise de Robinet, somos remetidos para o texto de La Voix de la Raison, o opúsculo que Deschamps fez publicar em vida, onde o seu autor escreve o seguinte:” Espinosa diz que os seres são modificações da substância infinita; não sabia ele que esta substância, como se vai ver, nega toda a modirficação, nega o sujeito e os modos, O Todo e as suas partes, enquanrto distintas. É um ateu sem princípio, pelo facto de não conhecer senão uma substância infinita, a substância que é o finito, ou O Todo [...]. A substância infinita é a substância única, que nega toda outra coisa excepto a ela própria, que nega toda a composição».
Tratando Espinosa como um “ateu sem princípio”, Deschamps “procura o fundamento do sistema de um ateu “com” princípio”, escreve Robinet, e mais adiante : “ Deschamps ne s’abuse-t-il pas sur ce qu’il appelle “système de Spinoza”, et, bien que réfutant Spinoza, n’est-il pas profondément spinoziste? Il a parfaitement compris (…) où était la réponse: dans sa conception de la négativité, qui évince de la déterminatons de Tout, les perfections que Spinoza attribue à Dieu, perfections « positives » ou « négatives » interprétées positivement, largement étalées dans les premières définitions de l’Éthique. »
Subscrevemos sem qualquer hesitação os passos da análise de Robinet, que nos vai remetendo para diversos textos de Deschamps, redigidos em épocas diferentes (o Précis, e as Additions – estas serão com muita certeza das últimas redacções do monge), pondo em evidência que o autor “conserva uma alternativa entre “as duas substâncias” ou “os pontos de vista contrários da Existência”. Em suma :” y a-t-il deux substances, ou bien une Existence sur laquelle peuvent être pris « deux points de vue contraires » ? Efectivamente esta é a questão capital daquilo que poderíamos qualificar como a ÉTICA de Dom Deschamps, na exacta medida em que o seu sistema inicia-se pelo problema metafísico por excelência : a questão do Ser. Robinet dá-nos a sua interpretação : “Le fin fond du vrai système repose sur la négativité existentielle. Une Ethique à la Deschamps n’aurait pu commencer par un De Deo, mais aurait dû s’ouvrir par un De Nihilo. »
Seria então este o significado da intenção declarada de Deschamps de haver produzido, enfim, o sistema do “ateísmo esclarecido”?
André Robinet demonstra que determinadas expressões de Deschamps foram praticamente extraídas do artigo Spinoza do Dictionnaire, de Bayle. Mas o que se afigura mais pertinente é pista que nos é proposta pela referência de Bayle da doutrina interior que estabelece “un certain vide et un néant réel” com princípio e fim de todas as coisas, pista que nos conduz em linha recta às teses de Deschamps. Bayle expõe a querela entre Foe Kiao e discípulos de Confúcio. Foe, nessa querela, defende um nada (nihil) que possui um género de existência, um “néant réel”, embora sem as propriedades “da matéria sensível”. Este paralelismo realizado por Robinet parece-nos de uma enorme oportunidade a todos os títulos. Conduz-nos a reflectir sobre a forte probabilidade de Deschamps haver bebido a sua descoberta no próprio dicionário de Pierre Bayle, isto é, inspirou-se, intuiu. A crítica de Bayle assenta na ideia de que tudo que é extenso possui necessariamente partes, recusa confundir as partes ou modos com as modificações, visto que não se vê de maneira nenhuma como o particular ou o modal possam surgir da unicidade da substância. Por fim, Robinet traz à colação o artigo de Bayle sobre Xenofonte, que se costuma considerar um complemento ao artigo Spinoza : ” Il [Xenofonte] concluait de là que tout ce qui est a toujours été : or, ajoutait-il, ce qui a toujours été est éternel ; ce qui est éternel est infini ; ce qui est infini est unique ; car s’il contenait plusieurs êtres, l’un terminerait l’autre, il ne serait donc pas infini. De plus, disait-il, ce qui et unique est partout semblable à soi-même ; car s’il enfermait quelque différence, il ne serait pas un être, mais plusieurs êtres. Enfin cet être unique, éternel et infini doit être immobile et immuable ; car s’il pouvait changer de place, il y aurait quelque chose au-delà de lui ; il ne serait donc pas infini ; et si sans changer de place il pouvait être altéré, quelque chose qui ne serait pas de tout temps commencerait à être produite, et quelque chose qui aurait été de tout temps cesserait d’être. Or cela est impossible ; car toute chose qui n’ayant pas existé éternellement commencerait d’exister, serait produite de rien, et toute chose qui n’a point eu de commencement a une existence nécessaire ; elle ne peu donc jamais cesser d’exister »
Julgamos nós que Robinet esclareceu perfeitamente se não os antecedentes, pelo menos um fecundo antecedente do pensamento de dom Deschamps.
A presença de Espinosa na cultura filosófica (e aqui importa subdividi-la em ética, moral, política, crítica da religião, psicologia, e naturalismo de uma maneira geral) encontra-se suficientemente demonstrada. No entanto, convém não esquecer que muito do espinosismo e sobretudo da crítica do espinosismo, encontrava em P. Bayle as traves mestras da argumentação. Mas convém ainda não esquecer que a exposição celebrada de Bayle acusa, e acusava já no seu tempo, uma forte simpatia por Espinosa. Bayle não parece enganar ninguém. A principal observação crítica de Bayle é esta : «il est impossible que l’univers soit une seule et unique substance et que cette substance unique soit infiniment modifiée»
Bayle, como vimos, traz para o centro do debate a necessária divisibilidade da extensão : ou a extensão não é uma substância, ou existem várias substâncias particulares. Por conseguinte, a substância única espinosana terá de admitir a inclusão do composto e não composto, ela encerra dentro a necessidade do composto – “l’univers et Paris sont deux”. Por outras palavras: não pode existir uma só e única substância, excepto se ela encerrar uma duplicidade. A substância espinosana encerraria, portanto, esta duplicidade. Deschamps designá-la-á por « negação” interna. E com isto edificará o seu complemento à ÉTICA de Espinosa.
Como fez notar Eric Puisais, em uma comunicação deveras interessante no último colóquio realizado em França, na região de Poitiers, dedicado à obra de dom Deschamps, “a negação do princípio espinosista é, segundo Deschamps, interna ao próprio sistema [...] Deschamps percebeu que uma critica externa do sistema espinosista não poderia ter lugar”. Certamente que Hegel também procedeu assim, a seu modo, e apesar disso não o consideramos neo-espinosista; porquê então Deschamps um neo-espinosista? Em primeiro lugar, os qualificativos valem o que valem: reconheçamos que passados cem anos sobre a redacção da ÉTICA, não fará muito sentido qualificar-se alguém de neo-espinosista; a verdade, porém, é que assiste-se a partir de meados do século dezoito a uma recuperação do espinosismo, desde os artigos da Enciclopédia até Deschamps. Em segundo lugar, não apenas o período histórico e cultural no qual Deschamps lança as traves mestras do seu sistema (1760) é particularmente marcado pela herança viva das ideias de Espinosa (não se trata de uma “ressurreição” germânica do fim do século), como o panteísmo materialista de Deschamps assenta no monismo espinosano (e na crítica espinosista ao antropomorfismo da teologia). Um movimento quase contínuo: a presença de Espinosa em Malebranche, Bayle, Diderot, Deschamps. Interessa sobremaneira, para se encontrar um ângulo correcto de análise da história das ideias, trabalhar não somente com o confronto de textos, de dois autores separados por uma amplidão de anos ( e isto vale para Deschamps como vale para Hegel, no que respeita à profunda influência de Espinosa) mas analisar o peso e o valor dos muitos eventos que se verificaram no longo período considerado, a formação cultural e a gestação do pensar próprio do autor, a atmosfera ideológica e os debates que configuram as interrogações e os limites da sua época.
Pois bem, dir-se-á que d’Holbach e Diderot, para falar apenas nestes, evidenciam a presença do espinosismo, mas não é comum qualificarem-se como neo-espinosistas. Porquê então Deschamps? Para uma resposta cabal merecia a pena pedirmos auxílio ao próprio Deschamps: a sua crítica aos “materialistas “, centra-se apenas na ausência de uma “moral” consequente, ou centra-se, sobretudo, no erro de “princípio”, isto é, uma metafísica fraca que não é capaz de pensar o Todo desdobrado, como os dois pontos de vista com os quais se encara a Existência? Não é este plano muito mais espinosista?
Uma boa história da filosofia, qualquer que seja a sua tessitura, reconhece a presença produtiva das ideias de Espinosa. O autor da Fenomenologia do espírito, G.W.F.Hegel, soube exprimir o lugar incontornável de Bento Espinosa: toda a filosofia tem de passar por Espinosa. Quando a potência do pensar se eleva a um plano metafísico, ou se preferirmos ontológico, logo surge no horizonte a ÉTICA. Gilles Deleuze demonstrou bem como é improvável forjarmos um conceito de totalidade sem o auxílio da unicidade espinosana, se mais não seja para valorizarmos a Diferença em desfavor da Mesmidade. Ainda que esta dissertação não inclua as ideias hegelianas, achamos de plena oportunidade pôr em relevo os dois sistemas, os dois filósofos, Espinosa e Hegel, com os quais qualquer um de nós se confronta quando nos esforçamos por pensar no problema fundamental da filosofia: Existe alguma coisa que permanece sempre? Sob que condições é que acontece a mudança?
Não será legítimo perguntarmo-nos se no sistema espinosista tudo é nadificado, pois que todas as diferenças e determinações são remetidas para a unicidade da substância?
Dom Deschamps terá experimentado esta “insatisfação” que Hegel exprimirá mais tarde? Quereria ele “abrir” a substância, traze-la à vida, à actividade, como viria a exigir Hegel? Porém, não experimentamos um desconforto ao ler Deschamps, quando desembocamos num categoria do Tudo ao qual se extraiu o osso e a carne, estéril, um ser imóvel, un Infinito negro donde parece excluída a luz da consciência e da espiritualidade? Contudo, Deschamps teve o génio de cavar a Diferença entre os dois todos, de introduzir (ou simplesmente por em relevo o que já lá estava) o momento da negatividade. E para quê? Para justificar o valor existencial extremo da permanência serena e beatífica, a integração consciente no todo e na ordem cósmica e divina. Porque na realidade não é o movimento das mudanças, não é a lógica dos antagonismos, que Deschamps deseja e antevê nos progressos da razão. Perguntar-se-á se não é qualquer coisa de semelhante que Espinosa enalteceu. A felicidade do sábio, o amor intelectual de Deus.
Se Espinosa foi útil a Hegel para este ultrapassar as Luzes, outro tanto sucedeu a Deschamps, esse crítico singular do iluminismo. «Espinosa, por via do romantismo, torna-se o filósofo que permite ultrapassar as Luzes.»
Dom Deschamps tendo vivido desde os inícios do movimento das Luzes até ao seu termo, mesmo bem antes deste termo viu bem algumas das dificuldades, limitações e contradições desse movimento; o seu primeiro desígnio foi corrigi-las e ultrapassá-las, servindo-se do espinosismo.
Neste capítulo que se pretende tão exaustivo quanto possível, centrado na Refutation do sistema de Espinosa, parece-nos adequado revisitar a perspectiva de Paul Vernière sobre o espinosismo de Deschamps.
Se a investigação de eventuais traços de Descartes ou de Leibniz no sistema de dom Deschamps salda-se por resultados nulos, escreve Vernière, em relação ao espinosismo o resultado é completamente diferente :”O único mestre é realmente Espinosa e os contemporâneos não se enganaram aí.» Depois de lermos esta afirmação perentória, vinda de um profundo conhecedor das ideias do século dezoito, cuja obra se converteu num clássico, e considerando que a edição é de 1954, surpreende que posteriormente nenhum ensaio, que conheçamos, dedicado ao pensamento de dom Deschamps, haja prosseguido nesta via. Como vimos, o importante livro de André Robinet (talvez a obra mais completa, no ponto de vista académico, que se escreveu) dedica a esse tema um reduzido número de páginas; o neo-espinosismo de Deschamps não é considerado como tal.
P. Vernière chama ao pensamento de dom Deschamps um «poderoso esforço dialéctico», e acaba a afirmar que o monge de Poitou o que conseguiu, na sua Refutação, foi esclarecer Espinosa, e não refutá-lo.
O Todo (Le Tout) apresenta-se como a síntese lógica das coisas, mas ainda permanecendo ligado à natureza física, não sendo, por conseguinte, o ser absoluto pelo facto do seu carácter positivo que o limita : “é o universo de Espinosa face aos seus diversos modos, esta monstruosa entidade Deus sive natura que Bayle modificava ironicamente em Alemães e em Turcos, em que Fénelon reencontrava todas as contradições do infinito divisível.”
Ora, Deschamps não se sente alvo de tais críticas, tal como já não se sentira Espinosa de outras de igual calibre: “ser puramente metafísico, o universo não é senão um conjunto de relações; contra todos os empiristas, Deschamps afirma a realidade desta existência per mentem”, escreve Vernière. Todavia, o problema é complicado, o debate endurece, exactamente como sucedeu com Espinosa – como separar Deus da materialidade?
Formula-se, então, a existência necessária de uma forma absolutamente absoluta do ser (começa aqui a putativa originalidade de Deschamps): a fórmula de Tudo (Tout). “Face ao Deus sive natura interpretado por Bayle como um verdadeiro ateísmo, face à matéria, Dom Deschamps apresenta o ser em si e para si que se move no infinito e no eterno, o ser imaterial [...] o universo sensível postula o nada” . Ao contrário de uma pretensa antecedência hegeliana, “o Verdadeiro Sistema reveste o aspecto duma meditação crítica da Ética”, ”Deschamps parte da Ética e da crítica de Bayle da substância única”, parte da metafísica de Espinosa, admite a crítica de Bayle, e supera-a logo a seguir. Deus criador e Deus não criador, Le Tout e Tout : “Todas as censuras dirigidas a Espinosa tombam”. Deus e a natureza são idênticos, mas a natureza exprime somente um aspecto da Existência, Le Tout, o outro aspecto é o da eternidade e do infinito, negando e afirmando simultaneamente o mundo da materialidade.
Que conclusão extrair disto tudo?, interroga P. Vernière. O Deus da Ética recupera o seu verdadeiro rosto; a dualidade do Deus criador e do Deus não criador não faz senão retomar a distinção espinosista da “natureza naturante” e da “natureza naturada” ; o aspecto positivo e negativo da substância provém directamente do axioma determinatio est negatio; a oposição do ser finito e do ser infinito recorta a sábia análise de Espinosa na sua carta a Louis Mayer.
Eis que temos assim uma identidade de duas caminhadas intelectuais. Dom Deschamps não receava opor-se ao materialismo do seu tempo, no qual ele via apenas uma metafísica incompleta, um “ateísmo esclarecido”, capaz simultaneamente de “fazer tombar as armas das mãos de todo o crente e de dar aos descrentes aquilo que lhes faltava, a verdadeira razão do ser”, como escreveu Deschamps. «Não se poderia resumir melhor a finalidade profunda da Ética”, afirmou Vernière.
Cap. 11 - O infinito e a eternidade.
O desejo de eternidade em Deschamps está longe de ser coisa nova na história das filosofias. No entanto, adquire uma intensidade peculiar num crítico das Luzes. Nitidamente o relevo que atribui no seu sistema ao plano superlativo do infinito e da eternidade só se entende como críticas directas aos fracassos do empirismo e do materialismo. Percebe-se que neste domínio o teísmo parecia mais completo do que o ateísmo, e que a metafísica supria melhor a necessidade de espiritualidade do que os empirismos sensualistas. Na realidade cientistas matemáticos da categoria de d’Alembert, naturalistas como Maupertuis, Buffon, Robinet, os textos da escola de d’Holbach que circulavam, consideravam o infinito como um conceito metafísico pouco operatório, porque impossível de experenciar, útil apenas no domínio das matemáticas. Não era Giordano Bruno que os interessava, mas Newton. A crítica parecia ser justa sobretudo contra o deísmo de uma forma geral, que classifica Deus, infinito e eterno, como algo indeterminado e fora da capacidade humana. Quem fazia a diferença eram os filósofos da religião, precisamente, em particular Pascal e os jansenistas. Portanto, conceber e formular com clareza, e com garantia de existência, o infinito e a eternidade era para Deschamps uma questão decisiva no projecto de combate, ou seja, de integração de todos os sistemas no seu sistema.
Que concluímos dos seus textos? Que se inspirou no teísmo cristão, em Pascal? Não nos antolha isso de modo algum. É de Espinosa, a nosso ver.
Como se apresenta a eternidade espinosana? Estando para fora do tempo? Uma eternidade que se vive no tempo, na duração? Julgamos preferível a segunda interpretação. “...a eternidade ...recorre inevitavelmente ao tempo e à duração para se explicar –é a linha que detectamos na segunda parte do livro V da ÉTICA, a partir da proposição XXI”, escreve Maria Luísa R. Ferreira
É o eterno presente que conta. Ora, é exactamente isto que conta no projecto utópico de Deschamps. A “suprema alegria” que espera os homens que viverão na sociedade camponesa perfeita, expressão do perfeito acordo com a natureza, com Deus sive natura, é um sereno eterno presente. Veremos claramente isso na Parte II desta dissertação.
As nossas vidas, todas as coisas, podem ser encaradas sob duas formas que correspondem a duas distintas formas de ser e de existir: podem ser vistas (sentidas em primeiro lugar) no tempo, na duração, no começo e no fim, na transitoriedade, ou como encadeadas no determinismo universal, consequência da ordem divina do mundo que é Deus. Deschamps encontra a solução do “enigma” da existência, uma vez mais, em Espinosa. Produzimos ficções se separarmos a duração e a individuação de cada coisa particular, tanto do movimento do mais e do menos, como de Tudo (Tout), Existência eterna. A duração e o tempo são, na verdade, ficções, como disse Espinosa e Deschamps adoptou.
“Por eternidade entendo a própria existência enquanto concebida como sequência necessária da mera definição de coisa eterna. Explicação: Pois que tal existência se concebe, assim como a essência da coisa, como verdade eterna, daí resulta que não pode ser explicada pela duração ou pelo tempo, ainda que se conceba a duração sem começo nem fim.”, diz-nos Espinosa. É a negação do tempo. Em Deschamps é precisamente o mesmo: Tout nega Le Tout (o Tempo- soma dos tempos, just milieu do mais ao menos, o Finito). Porém, e discordando das interpretações que separam excessivamente do Tempo a eternidade espinosana, e que nos conduzem, paradoxalmente, a um compromisso com o Deus cristão, julgamos que Espinosa coloca a eternidade nas nossas vidas, se desejarmos realmente a beatitude, ou, no ponto de vista onto-gnosiológico, se formos capazes de ver as coisas sob o ponto de vista da eternidade. Outro tanto para Deschamps.
A reacção crítica de Deschamps ao materialismo de d’Holbach passa necessariamente pela posição defendida por este relativamente ao infinito, embora não o cite. D’Holbach contesta a consistência da ideia de infinito: a ideia da perfeição absoluta, do infinito, nada possui de uma ideia real. Por conseguinte há-de ser um mera ficção, ou, pelo menos, um universal , juízo lógico formal e não material. Para Deschamps esta posição ilustra, isso sim, a inconsistência do materialismo, a impotência do seu racionalismo, a ilegítima condição castradora que ele coloca à Razão. Na perspectiva de d’Holbach, a ideia de infinito é negativa. A natureza é um todo eterno, mas um todo composto de fenómenos determinados; hão-de conservar-se sempre enigmas –teve a natureza um começo? – que traduzem os limites do conhecimento humano. Ora, não nos remete esta negatividade para o “rien” de Deschamps? Não mergulhamos, deste modo, em plena batalha de ideias, na atmosfera ideológica das décadas de sessenta e setenta? Qual a diferença? É que para Deschamps a ideia de infinito é real, embora negativa; ela nomeia uma realidade, um ser que existe, ainda que só se alcance per mentem. A sua função é imprescindível para que reafirme a realidade positiva da perfeição – o grande todo material. É por esta e outras razões que o materialismo dá o flanco aos adversários, não satisfaz. Não explica todos os enigmas. Como se poderia extrair uma moral de um sistema absolutamente dominado por um determinismo fatalista e cego, onde o homem vale tanto como um ser bruto? Deschamps ataca d’Holbach, fazendo crer que ataca uma determinada interpretação do espinosismo. Não porque desconheça que Espinosa defende a necessidade do infinito, mas porque este não reconheceu a natureza contraditória da substância única, e foi dessa ambiguidade que brotaram os materialismos sem uma moral que satisfaça. Em boa verdade, Deschamps ataca tanto as versões espúrias do espinosismo, como as teses materialistas mais representativas da época.
Cap. 12 - Os materialismos
Deste modo, ao identificarmos um dos alvos mais relevantes da crítica de Deschamps, temos de nos confrontar com uma tarefa decisiva, a saber: professava Deschamps, afinal de contas, um materialismo filosófico, ou não? Regra geral os comentadores do século vinte classificam dom Deschamps como materialista.
Começamos pelo fim: Deschamps professava um materialismo metafísico que se julgava a si próprio acabado e consequente. Por conseguinte, respeitando os propósitos desta dissertação, afirmamos que Deschamps efectuou uma interpretação materialista do sistema de Espinosa.
O materialismo de Espinosa não está consensualmente estabelecido. Sabe-se que Espinosa não se comprometeu com as correntes materialistas do seu tempo, sobretudo com aqueles que eram classificados como libertinos. Mas sabe-se também como a sua meditação desenvolveu-se no confronto com a dimensão mecanicista do pensamento de Hobbes e de Descartes, na revisitação do atomismo clássico, e não desprezou seguramente a importância de Gassendi.
No interior das correntes marxistas, correu com força dominante a classificação de Espinosa como um filósofo materialista ou, pelo menos, que continha uma clara vertente materialista. É isso que se lê numa obra que circulou amplamente, da responsabilidade de três académicos da ex-URSS, respeitados internacionalmente ( Compêndio de História da Filosofia, de Iovchuk-Oizerman-Shchipanov, Montevideo,Ediciones Pueblos Unidos,1969). Toda a exposição do pensamento espinosano apresenta-o, quanto à substância única, quanto aos atributos, como um materialista que avançou sobre o seu tempo, embora não seja classificado aqui como “fundador do materialismo moderno”, como já sucedeu.
Em relação às atitudes perante o materialismo verifica-se a tendência para tomá-lo como um todo homogéneo, apagando-se a sua diversidade, as intensas polémicas internas, a sua evolução. É unilateral uma investigação que, embora constate e realce as diferenças entre Espinosa e os libertinos no século XVII, não exprima, todavia, as intenções comuns, e faça outrotanto no século seguinte, entre o materialismo de Diderot e de d’Holbach. De resto os termos “materialismo” e “idealismo” só vieram a ser cunhados nos finais do século dezassete (embora Henry More já houvesse utilizado o termo “materialista”). “Materialista” foi sempre o epíteto dirigido ao adversário, com mais ou menos preconceito e acinte, e de tal modo é assim que somos levados a encarar o materialismo como o “outro”, o negativo, marginal e silenciado. Em 1674 Robert Boyle, o célebre cientista, classificava como “materialistas” aqueles que não tinham em conta o movimento da matéria; esta atitude redutora, comum a outros, revela a associação que ainda se fazia entre o “atomismo” antigo e as correntes materialistas posteriores, embora a opinião de More fosse mais fina e menos “aristotélica”. O materialismo, numa perspectiva fundada da história das ideias, aparece quase sempre como uma filosofia escandalosa, que professa uma “moral para brutos”, se não mesmo imoral, daí que fosse perseguida, desacreditada, deturpada. Como discurso-outro que se via deste modo a si mesmo, exprimiu-se normalmente como um discurso reactivo, de oposição, reconhecendo-se por meio dos seus adversários, muitas vezes impiedosos, e evoluindo através dessa mediação. Este movimento e relação dialécticos são incontornáveis se queremos entender a história das duas correntes principais da filosofia. Vemos como o combate contra o Espinosa e o espinosismo não se dissociava da repulsa pelo materialismo em geral. As teses do monismo e da unidade material do mundo desafiavam uma longa e poderosa tradição, hábitos e valores. E não é por acaso que tendemos a encarar o Tratado Teológico-Político, de Espinosa, como um Prefácio da Ética. A separação das águas passava pela questão religiosa, mas, enquanto muitos digladiavam-se no interior dela, os materialistas do século dezassete redigiam tratados de tolerância ou mesmo claramente ateístas.
Se admitirmos a opinião estabelecida segundo a qual somente a partir do momento em que se estabeleceu uma separação nítida entre a realidade pensante e a realidade não pensante (para Descartes “extensa”), se pode falar de materialismo, nome que conviria, pois, às doutrinas daqueles que afirmam que apenas existe um dos citados tipos de realidade: a realidade material ou material-extensa, torna-se tarefa difícil demonstrar que Espinosa foi um materialista tipificado. O que é certo é que diversos materialistas interpretaram Espinosa da maneira que mais lhes convinha, em alguns casos procederam a rupturas com o espinosismo nos aspectos que consideravam metafísicos, como se verifica com o próprio d’Holbach.
O reconhecimento da matéria como única substância, à qual se vão acrescentando propriedades, algumas das quais haviam sido anteriormente atributos exclusivos de Deus, exprime uma tese fundamental das escolas materialistas. Diversas passagens do Texto espinosano tanto conduzem uns a concluir que o pensamento realiza uma das formas da existência da matéria corporal, como conduz outros a pôr em relevo o paralelismo da alma e do corpo. De resto, pode dizer-se que a tese do paralelismo, as questões da imortalidade da alma, Deus, dos dois atributos, foram sempre temas de intensa polémica e exploradas de modos diversos as ambiguidades, aparentes ou reais. O espinosismo é um referencial ao qual ninguém seriamente se pode escusar, ou por simpatia mais ou menos dissimulada, ou por repulsa visceral. Daí que os projectos materialistas de La Mettrie, de d’Holbach, de Diderot, por exemplo, tentem resolver as contradições, dissolver ambiguidades, eliminar as teses mais metafísicas, expulsar o próprio nome de Deus e a compleza tese da imortalidade da alma, buscar na evolução da matéria viva a génese do pensamento, em suma, realizar o espinosismo, torná-lo mais consequente. Não foi outro o projecto de Deschamps, embora por caminhos diferentes.
Se ainda hoje perdura a enorme força crítica do Tratado Teológico-Político, e temos para nós que foi esta a obra que mais influência exerceu ao longo dos séculos dezoito e dezanove, ela contém um marcante exemplo da orientação crítica dos materialismos. Será essa, julgamos nós, a mais visível e eficaz característica da vertente materialista do iluminismo. Distingue-se, porém, esta consciência crítica do criticismo anti-cristão do iluminismo deísta, isto é, não materialista (e até seu irascível adversário). Ao contrário do que julga, e fez julgar, uma tradição dominante até à data, as obras de La Mettrie e d’Holbach não fazem de Deus, da religião e das Igrejas, o seu alvo exclusivo, nem utilizam o tom áspero e chocarreiro com que muitos deístas, eles sim, se pronunciavam sobre esses temas. É por isso que não interpretamos a censura de dom Deschamps em relação àqueles que desprezavam a religião cristã, sem se aperceberem das razões da sua vitalidade e do núcleo recuperável, dirigida apenas ao grupo de d’Holbach, tanto mais porque as referências manifestas que Deschamps faz ao barão, são posteriores à redacção do Verdadeiro Sistema. A profusão de literatura anti-religiosa era suficientemente abundante, e não era toda ela seguramente oriunda da escola materialista. Nada do que dissemos diminui o carácter subversivo das filosofias materialistas, bem pelo contrário. Esse carácter subversivo tanto poderia propor a substituição de um regime político por outro, sem alteração profunda da sua natureza de classe, e assim terá sucedido com as ideias políticas de Espinosa, como transitar para projectos antifeudalistas de emancipação da burguesia, como nos parece ser o caso de importantes espinosistas materialistas do século seguinte (independentemente da sua elevada origem social, o barão d’Holbach advogava a República, coisa de que nunca se atreveu a fazer o grande Voltaire). Dom Deschamps é um caso limite: advoga a dissolução das classes sociais, homogeneizando todos numa massa indistinta de camponeses sem propriedade.
Se a tese fundamental dos materialismos é a de que a unidade do mundo consiste na sua materialidade, então materialistas, embora com ritmos e traços específicos, foram-no La Mettrie, d’Holbach, Diderot, para falar apenas destes. Mas foi-o também dom Deschamps. A “matéria”, vista como noção inserida num sistema de negações e oposições, que é o aspecto geral da história das ideias, é o que se opõe ao pensamento ou ao espírito; é essa realidade que determina o pensamento, é o Ser concebido na sua independência em relação a todo o pensamento. Se utilizarmos a fórmula consabida da oposição materialismo/espiritualismo, o primeiro, opunha-se a uma metafísica que reduzia toda a realidade a um princípio espiritual. Então, neste caso, Deschamps é claramente materialista. Característico daqueles que então se designavam espiritualistas e mais tarde idealistas, era a crença em ideias de finalidade, isto é, numa teleologia; ora, a tese do finalismo, em qualquer das suas formas, foi sempre recusada pelos materialismos, incluindo evidentemente o Verdadeiro Sistema. Em d’Holbach, por exemplo, poderia revelar-se um certo fatalismo (como denunciou o próprio Diderot), apesar disso o famoso barão rejeita insistentemente qualquer finalismo mesmo natural, quanto mais divino. Outro tanto sucedia com a crença numa realidade inteligente e criadora que transcendia a composição física da natureza. Tal entidade, transcendente e criadora, foi recusada por Espinosa e pelos materialistas do século dezoito. A denúncia do antropomorfismo e a crítica firme e decidida contra qualquer forma de transcendência e finalismo natural, identificam a orientação materialista, e os seus adversários sabiam-no muito bem. A finalidade é substituída pela ideia de uma ordem natural e universal, um conceito largo e diversificado que se foi moldando sobre os avanços das ciências, e que constituía, talvez, o tópico mais complicado e obsessivo em autores tão diferentes como La Mettrie, Maupertuis, d’Holbach, Diderot, Deschamps.
Dom Deschamps quando se refere ao “princípio de Espinosa”, que ataca, não se refere ao “princípio materialista”, aquele segundo o qual, parafraseando Leibniz, a matéria tem de assumir, sucessivamente, todas as formas de que é capaz. Este princípio, que estaria contido em Descartes, e que fica mais claro nos métodos de Hobbes e de Espinosa, este princípio assume toda sua clareza nas escolas materialistas do século dezoito. O acto de ruptura com Espinosa, de uma determinada ruptura, da parte da escola de d’Holbach, uma atitude que pretendia abandonar toda a metafísica, situa-se neste lugar preciso. Esta atitude, entendida ou não nesses termos por Deschamps, está na origem das violentas censuras deste (que se manifestam sobretudo nos opúsculos Lettres du siècle, e La Voix de la Raison). A esta luz, faz sentido colocarmos a interrogação tão longe quanto possível: indispôs-se dom Deschamps com o chefe-de-fila dos materialistas por este haver rompido com o espinosismo consequente, isto é, metafísico, o espinosismo que integrou o infinito no monismo e que, assim, tornou este absoluto? Se a resposta for positiva, então perfilar-se-ia como o mais espinosista de todos.
Assim como a filosofia de Descartes, que não era materialista, teve efeitos materialistas (no famoso pároco comunista J. Meslier, por exemplo, existem elementos de cartesianismo juntamente com um certo espinosismo), assim Espinosa foi sobremaneira útil para o desenvolvimento do materialismo, bem como Hobbes.
No plano gnosiológico o alvo principal de Deschamps não é o materialismo, mas o empirismo, o sensualismo, durante os anos de redacção do Verdadeiro Sistema; o grupo de d’Holbach, Diderot, o pioneiro La Mettrie, não eram então classificados como discípulos de Locke, ou do abade Condollac, ou do empirismo de Voltaire, ainda que não se mostrassem imunes à influência da filosofia inglesa; a corrente materialista distinguia-se do puro sensualismo, e se atribuíam valor à experiência, não a reduziam à pura experiência sensível.
No plano metafísico o alvo principal é o teísmo e o deísmo. No plano político e moral, passará a ser o materialismo inconsequente que promove uma mera substituição das leis, isto é, as leis ético-políticas vigentes e dominantes por outras, igualmente leis. Dom Deschamps foi amigo de d’Holbach e de Diderot. Amigo que não se coíbe de censurar as soluções e os projectos do círculo de d’Holbach. Outro tanto fez Diderot, cuja obra é muitas vezes “dedicada” a algum amigo, istoé, tem como objectivo a refutação. Este estilo é bem próprio dos filósofos, bons e verdadeiros.
As posições firmes em que Deschamps se apoia nos seus ataques não colidem com teses fundamentais do materialismo. O resultado, todavia, parece algo híbrido; uma estranha ambiguidade mostra-se naquela construção de uma unidade material do mundo –Le Tout – que abre para a inquietante possibilidade de um nada absoluto. No entanto, se encararmos este aparente “nulismo” como realmente aquilo que o próprio autor formula, como o infinito e a eternidade, talvez então compreendamos a intenção ética da construção. O nada não é um transcendente criador (se evoca alguma coisa é um transcendental kantiano), mas, apesar disso, produz valores, isto é, configura a única atitude sábia perante o mundo e a vida. Face ao “grande todo” (expressão comum aos materialistas e até aos naturalistas), ao “ser supremo” (a Natureza), cada um de nós é insignificante, as nossas paixões valem nada. Por conseguinte, o que importa é mudar de vida. Dom Deschamps assimila a mais perene lição de existência, que percorre o estoicismo e o cristianismo. Nele, porém, é um Mundo, sem Alma é certo, e também sem Deus. «Deus está morto», a bem dizer, para dom Deschamps. Não mais funda os valores. Os valores que servia para fundar, ou legitimar, estão definitivamente obsoletos. Esta atitude prevalece nos materialistas, e é até o leit-motiv deles.
Em Deschamps, tal como em Espinosa, a substância não é o princípio dos seus atributos, estes é que a exprimem cada um segundo o seu género. A correspondência estrita entre Le Tout e Tout, a sua unidade contraditória, que serve para os distinguir no seu género, sem recurso a qualquer entidade exterior e superior, evoca o chamado paralelismo espinosano. O homem, “parte” do todo, ser movediço entre o mais e o menos, ligado a todos os seres pela sua absoluta natureza, é um reflexo desse “modo finito” espinosano, no meio do conjunto dos modos finitos; tal como em Espinosa, o homem não é “um império dentro de um império” e tudo que ele projecta sobre seres divinos, não são mais do que puras ficções antropomórficas. Jamais se poderá libertar da ordem da natureza, conhecê-la e obedecer-lhe é que constitui uma livre existência. Certamente que deduzimos ideias muito semelhantes em materialistas como d’Holbach (e não será essa sua dívida maior para com o espinosismo?) e Diderot, mas nunca como em Deschamps essa mensagem foi tão afirmativa, coerente e proclamatória. A sua utopia atesta-o .Dom Deschamps, neste sentido, foi sem dúvida o mais consequente espinosista do século dezoito francês, senão na unicidade unívoca, pelo menos nas consequências.
O materialismo do século recolhe o legado libertino visando o Deus criador e a alma imortal, argumentação a que não foi imune o próprio Espinosa. Dom Deschamps e d’Holbach, este que parece ser um inimigo fidagal, estão mais unidos do que parece, une-os posições-chave comuns: a oposição tanto à teologia como ao deísmo, e ambos expõem uma ordem da natureza que não prova a existência de Deus, bem pelo contrário, dispensa-a.. A imortalidade da alma é por ambos liminarmente rejeitada. A ideia de que a natureza possui um dinamismo próprio, um princípio de auto-organização, que comunga com as concepções vitalistas que se desenvolviam por essa altura, e que aos materialistas muito deve, é comum a ambos, embora com tonalidades diferenciadas.
Estamos convictos que o Système de la nature, de d’Holbach, pretendeu fundar o ateísmo sobre uma filosofia materialista, o mais conforme às teorias científicas que a época permitia; reconhecendo nele, muito embora, manifestas incorrecções que não escaparam ao ponto de vista crítico de Diderot, o determinismo do Système de la nature não colidia com orientação que caracterizou a ciência durante um longo período, sendo ela mesma determinista; não se compreende, portanto, que se continue a desprezar o sistema de d’Holbach, seja pelo seu determinismo, seja pelo seu ateísmo que não se limita a negar a existência de Deus e a arremessar dardos contra a religião, mas, bem pelo contrário, representa um admirável projecto da cultura ocidental, que remonta a Epicuro. Um historiador probo da filosofia e da ciência não pode ignorar as suas produções. Apesar das sua análise do iluminismo em geral e do materialismo em particular demasiado redutora, e até, por vezes, incompreensivelmente pouco justa, o mais eminente historiador das ideias, Hegel, soube escolher d’Holbach como o materialista mais representativo do século de que ele fez o balanço.
Ora, a verdade é que o sistema de Deschamps insere-se no mesmo projecto. E a outra verdade que procuramos demonstrar é que os dois sistemas tinham como referente comum o sistema de Espinosa.
Nos cadernos que compõem as Observações Metafísicas, e logo na parte primeira, Deschamps expõe com notável contenção de palavras não só a substância do seu Sistema, mas diversos aspectos parcelares que acabam por ser partes essenciais do sistema, entrosados com admirável coerência. É assim que aí nos remete para os problemas da causa/efeito, do movimento/repouso, de Deus e do Diabo, etc.Tentemos descobrir a presença do espinosismo.
Deus foi fabricado conforme a nossa imagem, como ser físico e como ser moral, mas também como ser metafísico e sobrenatural, a partir de quê? Logicamente, a partir da ideia de Tout e do Tout; durante demasiado tempo sem consciência disso, agora com o auxílio de Deschamps torna-se possível a consciência. A esse Deus emprestamos atributos positivos e negativos. Por conseguinte, o nosso pensar habituou-se mais a um erro do que a uma pura falsidade, não tanto à negação da verdade, mas a um errado exercício do entendimento, que se caracteriza pelo antropomorfismo e por reunir num ser supremo atributos contraditórios. Dando a esse Deus atributos morais, tornámo-lo incompreensível e objecto de fé. Ora, torna-se muito mais compreensível entender Deus como os dois pontos de vista contrários da Existência. A Deus demos os atributos morais positivos, ao Diabo demos os negativos, em lugar de admitirmos que os atributos são realmente opostos mas não são Figuras, pois que se Deus e o Diabo existem é apenas no sentido unicamente de que eles são os dois extremos, ou opostos absolutos, que são o mais e o menos metafísicos, o mais e o menos de perfeição, de ordem, de bem, de realidade, de igualdade, de união, de beleza, de movimento, etc., menos que, em relação ao bem, por exemplo; é o que nós apelidamos o mal, porque o mal é o oposto do bem e não a sua negação, dado que se diz mais ou menos de mal, como mais ou menos de bem. O bem e o mal são uma espécie de “noções comuns”, que não são realidades naturais, mas traduzem, no entanto, a realidade dos opostos; na medida em que o Todo natural é composto de opostos, ou seja, de relações, o nosso pensamento, mesmo o mais comum, exerce-se por oposições. Os elementos opostos não representam, de modo algum, entes, coisas ou substâncias, isto é, não existem “seres” bons ou maus em si mesmos, o que existe é um denominador comum, uma unidade, o bom vale tanto para a natureza como o mau, tanto necessita daquilo que chamamos bom, como daquilo que chamamos mau. Esta concepção da Natureza, tão vincada nos materialistas, e em Deschamps, revela bem a presença do espinosismo.
O Todo – a Natureza -, é simultaneamente a primeira causa e o primeiro efeito, causa e efeito metafísicos donde derivam as causas e os efeitos físicos. Sempre nos habituámos a pensar que os seres são efeitos do Ser, ou suas criaturas, mas jamais pensámos que o Ser é o efeito dos seres, ou sua criatura; ora, esta verdade que arruina radicalmente a base do nosso pensar, afasta liminarmente a crença de que os seres são criaturas de um ser que os cria, mas que é incriado. A causa e o efeito são duas coisas relativas que só podem ser uma pela outra.
Estas teses mostram com clareza bastante que Deschamps utiliza habilmente o papel da dialéctica espinosana, expressa no princípio de que toda a determinação é negação. E, embora de maneira muito própria, estabelece a impossibilidade lógica da existência de um ser incriado mas criador, uma causa sem causa. As teses de Espinosa, particularmente a da causalidade imanente, são respeitadas.
Entre todos os seres vivos existe um encadeamento, um entrosamento de causas e dos seus efeitos, de efeitos que são causas, mesmo quando ignoramos a causa de um efeito. É a ignorância, preguiça, que nos leva a imaginar uma primeira causa que não foi causada. Porventura a « primeira causa » foi também causada. Seria mais justo pensarmos que as causas possam ser efeitos dos seus efeitos, do que postularmos um ser que não é causa nem efeito, isto é, que está acima da conexão causa-efeito e que, apesar disso, é criador. Nada é mais espinosista do que isto.
A primeira causa existe pelo primeiro efeito, como o primeiro efeito pela primeira causa. É da essência, ou da existência, de qualquer causa ser efeito de outras causas, como é de todo o efeito ser causa de outros efeitos. Se assim não fosse, não haveria razão alguma para existirem, pois que a primeira causa só pode ser primeira causa pelo primeiro efeito, e o primeiro efeito pela primeira causa. O que faz a sua existência é a relação entre elas. Esta lógica não surpreende tanto quanto isso num tempo em que a biologia, por exemplo, ainda procedia de modo especulativo, com excepção de raros casos. O que realçamos é a utilização em Deschamps de uma argumentação lógica que pretende ir mais além, senão mesmo contra, a lógica marcada paradigmaticamente pelos newtonianos, a qual encerrava o encadeamento dos raciocínios numa primeira causa, isto é, num Deus criador, arquitecto ou relojoeiro. Uma causa não produzida, uma causa que não de modo nenhum efeito, implica contradição. O que é causa sob um ponto de vista é necessariamente efeito sob outro, e o que é efeito é necessariamente causa. A causa primeira é o primeiro efeito, e o primeiro efeito a causa primeira, e tudo o que deriva daí é mais ou menos efeito do seu efeito, mais ou menos causa da sua causa. «porque é um princípio de toda a verdade que não existe nada no Le Tout que não seja mais ou menos relativamente a uma outra coisa o que esta outra coisa é mais ou menos relativamente a ela (...) é Le Tout, então, que é causa e efeito das suas partes, e que não é outra coisa senão isso sob todos os pontos de vista opostos sob os quais as possamos considerar, como os de começo e de fim, de bem e de mal, de pleno e de vazio, de extremo passado e de extremo futuro, etc.”
O começo ou o tempo é uma relação, aplica-se a seres que existem na duração, que são causas e efeitos; sempre existiu o começo ou o tempo; mas da eternidade, considerada negativamente, não dizemos mais ou menos eterna. O tempo existe na, ou para toda a eternidade, mas dura mais ou menos no interior de uma Natureza que é ela mesma submetida ao tempo.
A Terra é o nosso todo, a nossa unidade, o nosso princípio, a nossa primeira causa e é o movimento geral dentro do qual somos transportados; no entanto, por cima dos nossos olhos desenrola-se um vasto todo, o firmamento, mais universal do que este pequeno planeta onde vivemos; não é um todo ainda mais vasto que falta ao nosso olhar, é o nosso olhar que lhe falta. Deschamps prefere utilizar termos como forças “centrífugas” e “centrípetas”, propriedades ambas do Todo, “que é os dois opostos metafísicos”. O pleno e o vazio são apenas o mais e o menos metafísico, assim como o movimento e o repouso. Aspectos diferentes com que observamos o Todo. É O Todo, no qual tudo é mais ou menos cheio e mais ou menos vazio, ou, o que é a mesma coisa, no qual os corpos se unem e se condensam, se desunem e se rarefazem mais ou menos. O vazio não é negação de matéria, isso repugnaria, é o ar encerrado nesta máquina, do qual uma força violenta desuniu as partes rarefazendo-as... Em suma, nem o pleno ou cheio, nem o vazio, são coisas absolutas, mas existem como mais ou menos cheio, mais ou menos vazio. A matéria é que é absoluta, isto é, absolutamente positiva. Que significa «absolutamente positiva»? Significa uma única substância, que não necessita de qualquer outra, e que é «absolutamente» real, natural, física, material.
Erradamente andámos à procura de um primeiro homem, de um começo absoluto para cada espécie, pela ignorância que mostramos ter de que todas as espécies se interpenetram, se encadeiam umas nas outras, e têm como começo o universo, a matéria. Em vez de procurarmos no geral, por via intelectual, procuramos no sensível, no particular, abstraindo, por exemplo, erradamente, a espécie humana das demais. A origem de cada espécie é puramente relativa, todas tiveram a sua origem num primeiro gérmen de todas as espécies. « É a disposição, é a ordem actual que enfeita o mundo que tomamos como objecto, sem o saber, e por isso se diz dele que ele começou e que ele acabará : porque o mundo, ou O Todo, existe sempre o mesmo, muito embora tudo comece e termine nele ;o mundo é o fundamento, a sua disposição e as suas nuances.» . Ou seja, interpretamos erradamente o movimento do mundo quando o encaramos com o aspecto actual, sem que nele entendamos a sua transformação; numa palavra: a sua evolução. Vale a pena reter esta ideia vinda de um pensador dos meados do século dezoito.
Deschamps não entende como « primeiro gérmen” um ser sensível, um organismo singular, mas o “primeiro gérmen metafísico”, isto é, o mais geral de todos os colectivos gerais, O Todo que gerou as primeiras formas de vida. Deschamps elimina a necessidade de um Deus criador. A vida surgiu da matéria.
As espécies modificaram-se, através do tempo, de metamorfose em metamorfose resultaram nas espécies que observamos. «As esopécies sofrem ordinariamente a longo prazo alterações consideráveis, e várias espécies de hoje não se assemelham em nada com aquelas que existiam há cem milhões de anos, embora hajam saído delas». Evidencia-se aqui uma tese sobre a evolução das espécies, destacando-se o papel decisivo que o a longa duração desempenhou neste processo. O tema era apaixonadamente tratado por diversos publicistas e alguns notáveis investigadores, como Maupertuis e Buffon; Robinet havia dado à luz um grosso tratado sobre a natureza. Portanto, a tese de Deschamps alinha com as teses mais avançadas do seu tempo, e por um círculo muito restrito de sábios. Importa pô-las em relevo, tanto mais porque apresentam-se em perfeita congruência com a sua crença materialista.
O necessitarismo do sistema não elimina os possíveis. Não nos parece adequado utilizar com ele a expressão «determinismo», pois que a sua crença não respeita a um universo estático. Como tudo é relativo, o possível também o é: as coisas não são imutáveis. No interior do Todo positivo, actual, muitos são os possíveis. Para a vida do universo cem milhões de anos contam apenas como um instante; em milhares de séculos foi acontecendo tudo o que uma gama larga de possiblidades podem ocasionar, todos os grandes acidentes, seja pelo choque entre globos (planetas, astros) que podem encontrar-se uns aos outros no seu curso, seja pelas erupções que sucedem neles, seja por qualquer outra causa extraordinária; acidentes que destruíram com certeza muitas espécies vivas e até em outros planetas as mesmas que aqui existem. Outros planetas poderão ser habitados por seres nossos semelhantes, porque não?
O impossível é somente aquilo que não é possível para nós, no interior do universo não existe a impossibilidade absoluta.
È porque o homem aspira ao impossível isto é, àquilo que é impossível para as suas forças, que ele tende a ser o centro de todas as coisas, ao antropocentrismo diríamos nós: os seus desejos são os de um deus, o seu poder o de um homem. Quer ser O Todo, quando é somente uma parcela dele. No entanto, uma parcela capaz de aspirar a outros possíveis, como é o caso da própria sociedade utópica de Deschamps, e aos impossíveis, como certas quimeras. Foi também com base nesta aspiração ao impossível que se fundaram as religiões. Deschamps não pretende fundar uma nova, mas fundar uma sociedade que se encontra nos limites do possível. Em rigor, é mesmo a única que respeita a dialéctica da necessidade e da possibilidade da natureza humana.
Os homens são o que são devido à sua “conformação vantajosa”. O termo é utilizado com insistência e definição suficientes para nos levar a admitir que é um conceito, e é um conceito extremamente moderno. Não apenas revela uma concepção materialista, filosoficamente falando, da vida e do mundo, como fornece um dispositivo teórico muito útil para a ciência, ou que seria muito útil se houvesse sido divulgado. Não se encontra nos seus textos matéria suficiente para afirmarmos que ele anunciava quer o lamarckismo, quer o darwinismo, mas o termo e o contexto prepara o caminho. É importante constatar que Deschamps localiza as vantagens do homem tanto nas mãos, como no cérebro. Mãos, cérebro, linguagem. A sua organização em sociedades, outro dado fundamental a ter em conta. Munidos destas vantagens, anteriores a qualquer forma de autoconsciência evoluída, os homens começaram a julgar-se superiores sobre o resto dos animais. A sua superioridade é meramente aparente, isto é, quando muito foi bafejado com uma «conformação vantajosa». Sentindo-se superiores, e ignorando a causa das vantagens, imaginaram possuir uma alma da qual estariam privados os restantes animais. Daí todos os sistemas filosóficos falarem em alma, e todos eles se enredarem em dificuldades insolúveis. Na verdade possuímos uma “alma física e uma alma metafísica”. “A alma física é a vida, é o encadeamento das engrenagens que constituem a máquina do nosso corpo. A alma metafísica, esse ser que sempre se confundiu com a alma física, e do qual sempre se falou tão absurdamente, é aquilo que nós temos de rigorosamente comum com todos os seres, é a própria existência metafísica, “a alma física é apenas um efeito do próprio corpo”. Todos os animais possuem uma alma física. Todas as coisas naturais, dentro de O Todo, possuem sentidos, diversos embora na forma, possuem sentimentos, possuem vida. Estas ideias de Deschamps não repetem concepções a favor de uma “Alma do mundo”, clássicas ou renascentistas; estão, antes, em sintonia, com as correntes naturalistas do seu tempo; não fazem dele um regressivo, mas um moderno; não fazem dele um pensador que despreza a ciência, mas, pelo contrário, um intelectual bem atento e capaz de assimilar de maneira muito pessoal o que somente alguns se atreviam a dizer. Chega a admitir que seres vivos não animais, presumidamente vegetais, poderão possivelmente possuir sentimentos... Os seres inanimados também possuem movimento, ainda que esse movimento não seja por nós percepcionado. Se possuem movimento também hão de possuir alguma sensibilidade. Repare-se que estas ideias são expostas nos primeiros cadernos que ele redigiu, ainda na década de sessenta. Claro que é de considerar que ele haja feito acrescentamentos e revisões. Seja como for, a ideia de uma sensibilidade geral da matéria estava ainda a surgir entre os naturalistas como Buffon, Maupertuis, o filósofo Diderot, e bastante mais tarde, por d’Holbach. É uma concepção que reputamos de enorme importância, porque caracteriza fortemente o naturalismo materialista da época, que serviu para romper com o materialismo mecanicista, que permite a Diderot afirmar que isso distingue os antigos espinosistas do novo espinosismo, conforme ele o diz no famoso artigo da Enciclopédia, e que constitui uma contribuição notável para o avanço das ciências da vida. Dom Deschamps situa-se, portanto, na vanguarda.
Por conseguinte, os vegetais e os animais poderão possuir eventualmente sentimentos, pensamentos e memória, sem semelhanças connosco. “O pensamento, o sentimento e a memória são modificações do movimento”. Estas faculdades nos animais não são distintas do corpo, são o seu efeito. A diferença connosco deve-se a um mais: mais inteligência, mais memória, mais sentimento, e, enfim, autoconsciência. Deschamps é um filósofo ao qual se pode criticar tudo, menos falta de coerência.
Foi, e é, devido à nossa ignorância que somos levados a julgarmo-nos superiores, “vício do nosso estado social, vício nascido da nossa ignorância” que nos leva a excedermo-nos em tudo; a nossa superioridade intelectual, porém, não nos trouxe mais razoabilidade e felicidade em comparação com os animais. Deschamps era monge, mas não se vislumbra aqui nenhuma repetição consabida do franciscanismo, ainda que as lições do respeito pelos animais não estejam esquecidas. A atitude não é a mesma.
Uma outra ideia é de reter: “ O meu eu (le moi) é o todo do meu corpo”, nós podemos distinguir uma ou outra parte do nosso corpo, sentir esta ou aquela, tomar consciência desta ou daquela parte, mas é o nosso corpo, como um todo, que sente, dá conta, toma consciência. Somos um todo, em suma, e é esse todo o meu eu que exprime, que torna possível este eu. A neurologia e a psicologia dos nossos dias não dirá o contrário.
«Temos buscado o homem fora do homem, buscando-o fora da máquina do seu corpo», é esta totalidade orgânica, congruente e funcional, que nos faculta sentimentos e acções. “As nossas ideias, as nossas sensações e os seus objectos são a mesma coisa, não no sentido de que a ideia, por exemplo, que nós fazemos do sol seja o próprio sol, mas no sentido de que ela tem (est) tudo o que o sol é para nós”. É absolutamente tentador aproximarmos estas afirmações dos escritos de Espinosa...
“Ter a sensação de uma coisa, é ser esta coisa proporcionalmente à sensação que dela temos, de maneira que vê-la mais ou vê-la menos, julgá-la mais ou menos (...) é ser mais ou menos essa coisa, e nada mais”. O espinosismo de Deschamps é puxado até ao limite, dentro da coerência de um sistema que não é de todo em todo o sistema de Espinosa. A ideia é esta: somos partes, organizadas, de partes idênticas de que são feitos outros corpos, vegetais, animais e até coisas inorgânicas. A diferença está, sobretudo, na complexidade, na estrutura. A estrutura determina a função. A isto nada pode opor um cientista de hoje, ou seja, que os elementos físicos, químicos, e biológicos, estão disseminados por toda a natureza. Recusando-se um Deus criador e um alma distinta e imortal, estamos mergulhados no mais puro materialismo filosófico. É esta ideia de semelhança entre tudo que permite a Deschamps acreditar na utopia de um naturalismo.
“Se nós pensássemos, apesar do eu aparente que nos distingue dos outros seres, que somos compostos de tudo o que existe de sensível, que nós estamos ligados a tudo, que estamos em unidade com tudo, embora separados de tudo aparentemente, deixaríamos de nos ver como seres inteiramente distintos uns dos outros, e de crer em consequência que nós e os objectos fora de nós, que as nossas sensações e os seus objectos, não são relativamente ao todo a mesma coisa “ . Não nos deixa qualquer dúvida sobre a formidável coesão e harmonia do mundo. Dom Deschamps, mais do que qualquer outro filósofo do século dezoito francês, tanto quanto sabemos, levou o conceito de «o grande todo», conceito-chave do século, à sua máxima amplitude. Nunca, ou muito raramente, se assiste a um pensamento da totalidade tão metafísico, mais atrevidamente metafísico do que o “grande todo” d’holbachiano, mais ousado até do que os ensaios magníficos de Diderot, ainda que sem o esplendor que adquire nas páginas deste último. Um conceito puramente materialista, ainda que puramente especulativo. Só conhecemos um filósofo maior, que lhe antecede e que o supera na originalidade, na absoluta singularidade com que se levanta até hoje em toda a história da filosofia: Espinosa. E julgamos firmemente que Deschamps tinha disto perfeito conhecimento.
“A necessidade de um acontecimento não pode nunca existir senão depois que ele aconteceu; todo acontecimento é sempre contingente mais ou menos antes que ele suceda (...) seja qual for o modo como ele aconteça para os diferentes testemunhos, ele aconteceu sempre necessariamente quando aconteceu; necessariamente desta maneira para Pedro, e necessariamente doutra maneira para Paulo (...) Pode-se dizer que tudo que aconteceu, acontece necessariamente pela necessidade relativa primeira, porque estava no encadeamento das coisas que ele acontecesse, contudo não é preciso concluir que devemos baixar a cabeça perante o curso das coisas, pois que depende de nós, mais ou menos, necessitar ou não dessas coisas no seu curso...”. Como é possível resistir à aproximação imediata com Espinosa? Dir-se-á que d’Holbach também desenvolve extensas considerações sobre o mesmo tema, mas isso apenas confirmaria a influência do espinosismo também nele e, por outro lado, o système de la nature é muito posterior a este escrito de Deschamps. De resto, essa similitude explica a reacção violenta de Deschamps quando toma conhecimento da obra de d’Holbach, onde, a par das críticas que lhe dirige, se adivinha um profundo ressentimento. Afinal, já ele o tinha dito e disse-o melhor, pensa ele, sem que merecesse a fama do outro. Por outro lado, há que acrescentar que o pensamento de d’Holbach é mais determinista, com uma tonalidade tal que os críticos seus contemporâneos o apelidaram de «fatalista», como se pode concluir da novela de Diderot, Jacques, le Fataliste.
André Robinet, o autor, como já se referiu, de uma obra sobre Dom Deschamps publicada em 1974, escreve as seguintes palavras :”Se um cogito materialista foi algum dia enunciado, foi bem nestas páginas de Deschamps”, a propósito de uma teoria do conhecimento exposta por Deschamps, por exemplo neste passo:” Ter a sensação de uma coisa, é ser esta coisa proporcionalmente à sensação que dela se tem, de modo que vê-la mais ou vê-la menos, julgá-la mais ou julgá-la menos, é ser mais ou menos ela e nada mais”, que já havíamos citado acima. Tem inteiramente razão o ilustre investigador especialista em Malebranche, pois trata-se efectivamente de uma teoria gnosiológica, etapa de qualquer sistema que se preze. E é esta, em concreto, uma teoria perfeitamente coerente com a arquitectura do sistema deschampsiano, sem que nada tenha que ver com a teoria cartesiana. Apenas nos atrevíamos a acrescentar ao douto professor de filosofia, que esta concepção sobre a origem natureza das ideias, remete-nos para Espinosa, e parecem-nos maiores as semelhanças do que as diferenças.
Assim é que Espinosa submete o corpo à “ratio” de movimento e repouso, a morte resulta de uma alteração dessa “ratio”( à qual Deschamps denomina do “mais” e “menos”). O corpo existe no tempo, na duração, a mente exprime o corpo, sem ele nada seria. A Natureza é encarada como um corpo, corpo de todos os corpos, Indivíduo de todos os indivíduos que nele se unem em vida e dele se separam, apenas relativamente, na morte. É pelo corpo que alcançamos o eu, ou as diversas formas, mais conscientes ou menos, de autoconsciência. Pelo corpo percepcionamos, ou somos afectados, pelos outros corpos. A dimensão corpórea é o primeiro degrau de acesso ao real. Contudo, as ideias não se originam exclusivamente, e todas, a partir das sensações, pois que intervém a linguagem (os signos), a memória, a imaginação, até alcançarmos o degrau do conhecimento intuitivo ao qual não se chega por via empírica. Cada corpo e todas as demais coisas só ganham sentido vistas como partes de um Todo. “É o grau de integração cósmica que distingue os corpos”, explica-nos Maria Luísa R. Ferreira
«É este sentido cósmico de simbiose da parte com o Todo que torna Espinosa tão próximo dos problemas ecológicos contemporâneos, sendo o seu pensamento por vezes tomado como possível fundamentação dos mesmos.»
O pensamento de dom Deschamps suscita-nos as mesmas considerações. O sistema espinosano pode ser, eventualmente, o sistema de uma filósofo «embriegado de Deus», como o classificou Novalis, e não de de um materialista ateu. O neo-espinosista do século seguinte, dom Deschamps, foi integralmente autor de um sistema materialista e ateu. Um materialista mais congruente e consequente –atrevemo-nos a dizer: mais moderno – que o materialismo do chefe-de-fila dos materialistas, d’Holbach. A harmonia cósmica que anunciou é bastante mais apelativa aos leitores do nosso tempo, que a harmonia do «grande todo» d’holbachiano. Que fonte os inspirou a ambos e a Diderot, para crerem em tal mundivisão? Fontes diversas, sem dúvida, uma atmosfera cultural impregnada de valores naturalistas, uma ideia de Natureza sem deus, toda ela generosa e pródiga, simultaneamente geradora e destruidora; porém, nessa atmosfera, nesse ar do tempo, nesse panteísmo que se insinuava nas élites bem-pensantes, a fonte primeva foi o espinosismo.
Certamente que muitos extrairam argumentos da filosofia da natureza de Espinosa, sem que quizessem, alguma vez, romper com a crença em Deus; foram os deístas; não é menos certo que o «materialismo vitalista», alimentado por argumentos espinosistas, resultou em ateísmo nos casos de Diderot e outros. Certamente que o carácter individualista do pensamento de Espinosa, e entendemos com esta expressão tão ambígua, a defesa de pensamento dos indivíduos, foi «arma de guerra» de arautos do liberalismo, teoria que em muitos casos se confunde com os interesses da Burguesia ascendente. Mas não é menos verdade que a reivindicação espinosana das liberdades individuais contra os Poderes (políticos, religiosos), podia ser encaminhado para a crítica de qualquer forma de Estado político institucionalizado, regido por normas e leis, a bem dizer soberano. Foi precisamente este o caminho que dom Deschamps percorreu, como iremos constatar na segunda parte desta dissertação. Porque «não é de maneira nenhuma a moral, é a política que constitui o fundo dos nossos costumes»
Daí que os cadernos que se intitulam »Observações Morais» constituem um autêntico Tratado Político. Um projecto de reforma que não se apresenta como mera hipótese de um diletante, pois que resulta como necessidade (lógica, ontológica e gnosiológica) de um articulado de princípios e postulados intuídos pela razão.
Certamente que o par contraditório –Le Tout e Tout – não corresponde às definições espinosanas da substância única e unívoca; no entanto, a tese deschampsiana de que «não existe nada de negativo na natureza», corresponde a uma ideia central do pensamento de Espinosa.
Não é menos certo que não encontramos nos textos de dom Deschamps o termo tão vincadamente espinosano de «conatus», nem uma definição que se aproxime desse impulso vital que explica que «Cada coisa enquanto está em seu poder esforça-se por perseverar no seu ser»; no entanto, sendo que «Numa perspectiva física, o «conatus» define-se por uma certa proporção de repouso e movimento», como não aproximar desta ideia a exposição que fizémos da teoria deschampsiana do «repouso e movimento»?
Em suma: nunca esteve nos nossos propósitos apresentar dom como um neo-espinosista que perseguiu, em jeito de aluno sem ideias próprias, as definições e os axiomas de Bento Espinosa. Procurámos demonstrar, isso sim, a presença luminosa do ilustre filho de judeus portugueses tanto nos Philosophes materialistas, como, muito em particular, num monge filósofo, ateu e materialista, desconhecido do público português. E não se poderia fornecer melhor exemplo de filosofia enquanto esforço de evolução e superação, dizendo melhor: de integração e superação, porque como advertia I. Kant,« [De mim] não aprendereis pensamentos para repetir, mas antes como pensar».
Julgamos nós que encontrámos sobejos indícios da forte presença do espinosismo no pensamento deschampsiano sobre a Natureza, a interligação dos corpos, a impossiblidade de uma alma separada do corpo e imortal, da rejeição da falsa crença num eu sem mediações, e de uma natureza humana que transcende tanto o corpo vital como as relações sociais; pelo contrário, a cosmovisão deuma humanidade integrada no todo, que obriga-nos a conhecer a ordem deste, as suas leis endógenas, e nos aconselh a viver em harmonia connosco e com o todo. Dom Deschamps utiliza abundantemente o termo «parte(s)», que pareceu incomodar alguns interlocutores; a verdade é que Espinosa utilizou esse termo, e basta citá-lo uma vez:« Padecemos enquanto somos uma parte da Natureza que não pode conceber-se por si sem as outras [partes]».«É impossível que o homem não seja uma parte da Natureza e não possa sofrer outras mudanças que não sejam as que se podem unicamente conhecer pela sua natureza e das quais é causa adequada»
«O Filósofo e a sua Sombra», recorde-se o título da nossa dissertação. A «Sombra» se não é, em rigor, o próprio Espinosa da ÉTICA, é, pelo menos, o espinosismo tal como chegou às mãos de dom Deschamps. Essa «sombra» foi, de resto, detectada por praticamente todos aqueles que leram obras do beneditino. Esta constatação soava como denúncia, alerta para os esbirros dos poderes político e religiosos. Era de esperar que Deschamps refutasse, tanto mais depressa quanto pudesse, o sistema de Espinosa. Assim procedeu, mas menos por receio do que pela necessidade de se afirmar com um pensamento autónomo. Pensar autónomo que, pensando do interior das teses espinosanas da substância única, «descolava» delas exactamente na medida em que julgava, com ou sem justeza, que elas encerravam uma contradição.
É dessa Contradição que dom Deschamps arranca para a antevisão de uma sociedade igualitária. Todavia, a Existência é Tudo, é única e a mesma. O Nada, ou Infinito, recobre com o manto diáfano da eternidade um mundo todo ele material, que exprime uma ordem que transcende os desejos apaixonados da espécie humana, os seus egoísmos e as suas invejas, que apela para uma harmonia possível, necessária e desejável, perfeitamente racional, ao alcance do conhecimento humano, e capaz de extirpar de vez as raízes da melancolia.
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