CRÍTICA DA RAZÃO
CONSENSUAL
A Crítica
da Razão Consensual radica no princípio da lógica dialética: o pensamento
reflete na oposição de enunciados formalmente contraditórios a realidade
objetiva da contradição “na essência mesma das coisas”. Entende-se “Razão
Consensual” aquela pretensa racionalidade que dissemina pelas tribunas
políticas, pelas escolas e academias, pela publicidade e propaganda, pelas
técnicas de submissão, o mito do poder triunfante e inexpugnável do
capitalismo.
A Crítica
da Razão Consensual, pelos vários ensaios já publicados na VÉRTICE, dirige-se
sobretudo contra a ideologia irracionalista que faz o frete ao capitalismo na
fase contemporânea. As fábricas de consensos expelem mentiras de manhã à noite
com a aparência de verdades do senso-comum, sem alternativas. Nas batalhas
ideológicas contra esse inimigo principal a Crítica
pressupõe, contudo, três críticas urgentes[1]:
o ajuste de contas com a versão ideológica dogmática que teria encontrado no
“socialismo real” a sua mais acabada e única expressão “científica”; a crítica
às teses pouco marxianas de algum do chamado “marxismo ocidental”[2],
as quais, geradas na antipatia com o “estalinismo” e sob as novas condições do
capitalismo, negam as lutas de classes; a crítica à corrente dominante
reacionária do pensamento “pós-moderno” que classifica os marxismos como meras
“narrativas”, se ocupa em “desconstruir” discursos[3]
e “jogos da linguagem”, expulsando as categorias de verdade e de totalidade,
navegando nas diferenças sem identidade alguma, e assim colaborando
na vasta ofensiva ideológica do capitalismo para quebrar as possibilidades
concretas de emancipação humana. Reivindicando-se de marxistas soçobraram
regimes políticos, quase arrastando com eles na prática a imagem pública da
teoria. Contudo, e apesar das derrotas e dos refluxos, Marx mostra-se de novo
redivivo face a face com a crise generalizada do sistema capitalista. Já se
ouve dizer nos quadrantes políticos mais inesperados: “Marx, afinal, tinha
razão!”. Ao atingir a sua máxima expressão – a hegemonia planetária do capital
financeiro – o capitalismo exibe em toda a sua brutalidade as suas finalidades
e todas as suas contradições[4].
De facto a que assistimos? A um
irracionalismo “pós-moderno” [5]que
é uma nova forma de idealismo do sujeito e de uma subjetividade hipostasiada em
que os referentes objetivos se perderam. O próprio sujeito desaparece sob um
foguetório de retóricas para reaparecer fragmentado, afogado na superfície
líquida em que os pós-modernos dissolvem a Razão.
Filósofos do chamado “marxismo
ocidental”, pelo seu lado, dedicaram-se a hiperbolizar a cultura e a práxis
social de tal modo que a natureza perdeu toda a sua existência independente,
cortaram-se as pontes e mediações, resultando este feito milagroso que é uma
espécie de teologia “invertida”: somos nós que criamos a natureza! A
coisa-em-si, é incognoscível. Outra forma de idealismo do sujeito. Nessa faina
enviam para o lixo os fundamentos de uma ontologia marxista que devemos a
Engels e a Lenine. Confiemos que os jovens investigadores marxistas persigam
este caminho. O marxismo não é um economicismo, nem um “culturalismo”, nem
apenas uma epistemologia. É uma ontologia: o materialismo histórico e dialético.
A acusação
de que o marxismo é uma teoria determinista (as ideias seriam epifenómenos) não
encontra sustentação nas obras de Marx e Engels. Este, em 1890, em carta a Joseph Bloch (1871-1936),
já criticava a leitura economicista e reducionista do marxismo:
“Segundo a concepção
materialista da história, o momento em última instância determinante [in letzterInstanz bestimmende], na
história, é a produção e reprodução da vida real. Nem Marx nem eu alguma vez
afirmamos mais. Se agora alguém torce isso [afirmando] que o momento econômico
é o único determinante, transforma aquela proposição numa frase que não diz
nada, abstrata, absurda. A situação [Lage]
econômica é a base [Basis], mas os
diversos momentos da superestrutura [Überbau]
– formas políticas da luta de classes e seus resultados: constituições
estabelecidas pela classe vitoriosa uma vez ganha a batalha, etc., formas jurídicas,
e mesmo os reflexos [Reflexe] de
todas as lutas reais nos cérebros dos participantes, teorias políticas,
jurídicas, filosóficas, visões [Anschauungen]
religiosas e o seu ulterior desenvolvimento em sistemas de dogmas – exercem
também a sua influência [Einwirkung]
sobre o curso das lutas históricas e determinam em muitos casos
preponderantemente [vorwiegend] a
forma delas.” [6]
As ideias – no sentido
alargado (mentalidades, crenças, teorias filosóficas e científicas, doutrinas)
– desempenham o papel de agentes da ação através dos indivíduos que as
executam. Criadas por indivíduos excecionais, ou por povos e classes, sob
condições concretas dos seus modos materiais de existência. As ideias não são
frutos de árvores sem raízes, por muito originais que eles o sejam. Para que
eles brotem são necessários cérebros e sociedades. O que é determinante na
formação das ideias é o cérebro humano, a experiência social (isto é, as
relações sociais) e a personalidade do indivíduo singular. Sem estas três
condições de base não existiria a atividade cognoscitiva. Esta, por sua vez,
organiza-se conforme regras específicas (raciocínios e conceitos); atividade só
possível porque a mente goza de uma relativa autonomia. O elemento determinante
na formação das ideias (enquanto imagens, intuições concretas, esquemas e
categorias, conceitos e relações entre estes) é a experiência social.
Entende-se esta como relações entre indivíduos e entre estes e as coisas.
Nestas relações as que se entendem como determinantes, em última instância, são
as relações de produção. A base económica das sociedades condiciona decisiva e
inevitavelmente o tipo de ideias que nos impelem a agir. Este condicionamento
material não exclui nem menoriza a atividade mental pela qual conceitos,
modelos e teorias, criam novos conceitos e teorias, como sucede na ciência e na
filosofia. É necessário estabelecer distinções e graus de autonomia, mas é
errado erguer muros.
Os materialismos e a Razão
Dialética
As
filosofias racionalistas idealistas deduzem a racionalidade dos fatos e
processos não do seu encadeamento concreto, mas de um sujeito que estes
expressariam – a “ideia”, isto é, o pensamento pensado.
Os
materialismos, independentemente das suas diferenças internas e das suas
limitações,[7] sempre
se colocaram mais perto de um discurso verdadeiro sobre a natureza e o homem do
que os racionalismos idealistas. Estes, independentemente das suas diferenças,
recaíram sempre no sujeito autocentrado, transcendente ou transcendental.
Contudo, recusar aos idealismos contribuições de inegável valor que corrigiram
os materialismos modernos é miopia ou ignorância. Exemplos: a dialética
hegeliana, a atividade do sujeito cognoscente. Marx e Engels deram um exemplo
notável de uma atitude de abertura e diálogo com os textos de filósofos
idealistas. Todavia, não se julgue que se realizou uma “harmonia de
contrários”: a ontologia do materialismo dialético é irreconciliável com
qualquer teoria do conhecimento que separe o sujeito das fontes de que ele é
originário.
A crítica
aos idealismos, porém, não deve menorizar os seus maiores expoentes. Alguns
contribuíram para a constituição das ciências matemáticas e da lógica; sem eles
não gozaríamos do património cultural de que nos orgulhamos. Foram em boa parte
os artífices do Direito moderno, das Constituições democráticas. O mecanicismo
cartesiano influenciou La Mettrie (Julien Offray de la Metrie, 1709-1751), o
qual soube retirar as devidas consequências materialistas. As teorias de J.
Locke (John Locke, 1632-1704), sobretudo a sua crítica à metafísica e às
“ideias inatas”, abriram novos rumos para a teoria do conhecimento. Marx e
Engels manifestaram sempre a sua genuína admiração pela filosofia hegeliana e
pouco ou nenhum apreço pelos materialistas “grosseiros” do grupo dos chamados “ideólogos”.
A disputa
entre materialistas e idealistas fecundou o debate de ideias, o apuramento da
argumentação e dos conceitos; não existiria filosofia sem as duas “linhas”
oponentes. Disputa que raramente foi pacífica nos últimos dois mil e
quatrocentos anos. A escolástica foi responsável por uma repressão sistemática
dos adversários. Ainda recentemente sob as ditaduras de Salazar e Franco, a
ideologia clerical-fascista utilizou (benzeu) o terrorismo pidesco para
silenciar os intelectuais que manifestassem apego ao materialismo. O
capitalismo arremete com todos os meios coercivos de que possui o monopólio
para sufocar a alternativa radical que o materialismo dialético assume, porque
quando se desce da teoria pura para a prática política o perigo espreita. A
esta tentação de impor uma ideologia única por meios coercivos não foram imunes
os ideólogos do “socialismo real”.
As aventuras da Razão no
Ocidente
Com a Razão nos libertamos, com ela nos submeteram. A
categoria filosófica de Razão (capacidade
de produzir conceitos) é ela mesma um produto de sujeitos social e
historicamente situados. Não existe nenhuma entidade designada Razão que transcenda a historicidade da
ação humana. Nenhuma Razão conduz a
História e ambas – Razão e História- são noções gerais de que nos servimos para
organizar e distinguir comportamentos e acontecimentos situados no tempo e no
espaço. A História é o Tempo no qual
os indivíduos concretos se ocupam e se preocupam em viver; a Razão, o conjunto
das razões ou modos de ser, agir e interpretar, condicionados pelos modos de
produzir e reproduzir a satisfação de determinadas necessidades sociais. Desde
a débil luz que se acendeu no cérebro de um “macaco” até à luminosidade solar
de Mozart e de Einstein, desde a escravatura mais infame até às grandiosas
revoluções de emancipação social. A Razão ora reflete adequadamente as
propriedades objetivas das relações sociais, ora as contradiz. Afirma ou nega.
Por vezes abdica da sua soberania e submete-se a poderes que toma como
estranhos e externos, quando, na realidade, são produtos do seu próprio poder.
Quando se aliena de si mesma, se descola do mundo real, se contradiz e se
conflitua, não exprime senão a contraditoriedade das relações sociais. A
contraditoriedade é imanente à Razão, sem ela não ocorreriam sequer
determinadas operações mentais. A interação e ação recíproca, as conexões entre
as ideias, entre a imaginação, a memória e os conceitos, em sínteses sucessivas
que fazem a unidade das conexões, constituem o movimento processual da Razão. Não
recorda verdades imutáveis, mas,
antes, é devir indefinido, um livro
aberto ao qual se acrescentam páginas de quando em vez. É nesse sentido que se
pode afirmar que ela ocorre no tempo.
Sem um corpo despojado à partida de instintos rígidos e de uma especialização
única e pré-determinada, e sem a socialização que organiza os indivíduos em
grupos que conflituam ou cooperam com a natureza, conflituam e cooperam entre
si, o homem seria tão ingénuo quanto Adão e extinguir-se-ia com a expulsão do
Paraíso. Na verdade, as catástrofes naturais logo o teriam extinguido. Toda a
história das diversas culturas e sociedades retrata a luta pelos recursos
obtidos do meio ambiente, em harmonia com ele ou em desarmonia, adaptando-se ou
adaptando o meio natural às suas necessidades, e esta é a origem e a caminhada
da racionalidade e da irracionalidade da espécie que transformou a superfície
do planeta. Nesta caminhada, curtíssima comparada com a da Vida na Terra,
ergueram-se civilizações e extinguiram-se numa fração infinitesimal do tempo do
universo. Nesta caminhada, tão diversa nos quatro cantos do globo, grupos
chacinaram outros grupos, saquearam os excedentes que outros guardavam do seu
trabalho, converteram os vencidos em escravos, servos ou assalariados,
manipularam em seu benefício crenças nascidas do medo e da esperança. Em todas
as diferentes formas de produzir, distribuir, consumir, em todas as formas de
apropriação comunal ou privada, em todas as formas de divisão do trabalho,
existiu sempre uma razão de ser. Aquilo que não é razoável é, todavia,
explicável pela razão.
A Razão (categoria para distinguir o homo sapiens das demais espécies) desenvolveu-se por meio de
processos de trabalho produtivo que lhe permitiram sobreviver e multiplicar-se.
Processos técnicos sem dúvida, mas também relações sociais pois que a técnica é
ela mesma uma determinada relação social. Nos modos de produção do viver reside
a contradição fundamental: relação antagónica, e não diferente apenas, entre
aqueles que produzem os excedentes e os que se apropriam de ambos, excedentes e
produtores. Trabalho e dominação da força de trabalho é uma constante da
História. Assim as Ideias são instrumentos que ora servem para oprimir, ora
para emancipar. Refletem o devir das vicissitudes humanas, os conflitos pelo
poder ou contra, os consensos que a cooperação entre os grupos sociais permite,
seja para dominar, seja para libertar. O conhecimento objetivo arranca espaço à
ignorância e à mentira, mas perde-se quantas vezes nas mãos dos donos de
escravos, servos ou proletários. A Razão possui duas faces como Juno: numa
irradia a luz do progresso inexorável do conhecimento objetivo do universo e da
vida; na outra, o obscurantismo, a loucura, a barbárie. Ao contrário da “Razão
que produz monstros”, parece que são os monstros que produzem a razão. Todavia
a “Razão Sangrenta” não cobre toda a História. É uma forma de olhar. Alargue-se
a visão e poderemos alcançar a negatividade, a contraditoriedade que trabalha
os acontecimentos e produz o Novo. Retrocessos sim, prolongados e sufocantes,
derrotas inesperadas sob as quais a Razão claudica ou se recolhe em silêncio: a
História converte-se, com esse olhar, num cemitério dantesco, um Anjo que
caminha às arrecuas. Porém, esse Anjo é uma ficção, um olhar unilateral sombrio
e não assombrado, doloroso e negativo. As grandes filosofias do Renascimento,
do Iluminismo e do materialismo, de Kant e Hegel, de Marx e Engels, viram na
História dos homens um processo de mudanças, onde estas não somente são
necessárias como possíveis. Estas possibilidades imanentes ao processo
histórico estão na raiz das revoluções e das utopias. Se a barbárie desde
sempre nos ameaçou, é por sua causa que o progresso irrompe, paradoxalmente,
não nas asas de um Anjo, mas, quantas vezes, do génio de indivíduos excecionais
que decifraram enigmas nos sótãos insalubres, no desvão de escadas, na
Biblioteca de Londres… ou cavalgam nas ondas revoltosas das massas sociais. Se
houvesse algum mistério a envolver as criações revolucionárias que vieram
lentamente, contra tantos obstáculos, a iluminar a humanidade, ele estaria no
génio absolutamente de Heráclito ou Euclides, de Arquimedes ou Lucrécio, e
tantos outros. Os produtos da mente, na sua pura abstração lógico-matemática ou
filosófica, podem eventualmente desprenderem-se das condições concretas da
existência (social, individual), e, por isso, lhe reconhecemos uma autonomia
irrecusável, porém não nascem como Atena nasceu da cabeça de seu pai. Tanto
assim é, que se verifica um paradoxo mais: quantos dos criadores de conceitos
luminosos não se sustentaram mercê dos escravos, servos ou proletários que
alimentavam as sociedades em que viveram? Quantos não produziram monumentos
imortais graças à proteção de tiranos, reis e papas? Quantos não bajularam
príncipes, não negociaram nas empresas coloniais dos impérios? As pirâmides não
foram construídas pelos faraós, lembrava-nos Brecht. Nas filosofias, nas
ciências sociais nomeadamente, o impulso e o húmus das teorias encontramo-los
no solo dos problemas que uma determinada sociedade enfrenta. Como se sabe, a
Grécia Antiga não progrediu mais nas técnicas (nem aproveitou invenções
geniais) porque a produção se baseava no trabalho escravo; os senhores feudais
entretinham-se com a guerra porque os servos os alimentavam; reis e cáfilas de
aristocratas monopolizaram o comércio de além-mar desbravado por marinheiros e
comerciantes ousados. Os progressos técnicos desenvolveram-se quando convinha
às classes dominantes, caso contrário mergulhavam na poeira dos séculos. Certo
é que as burguesias introduziram um interesse nas técnicas lucrativas como
nunca antes se vira. Voltamos às duas faces de Juno. Progresso com barbárie.
Europeus “descobriram” as Américas, Ásia e África, com canhoneiras, dizimaram,
extorquiram, submeteram povos ancestrais, através destes meios irracionais
chegou a prata que enriqueceu civilizações, chegou a batata que matou a fome
endémica… Sempre a mesma escravatura. Progrediu? Sim, na manha dos “direitos”
com os quais um escravo se julga livre. Esse é um dos progressos da Razão…
A “deusa” Razão possui uma longa história. História que sem a
outra história não teria história nenhuma. Durante milhares de anos
acreditou-se que o espírito descera dos céus como dádiva celestial, as ideias
desenrolar-se-iam num mundo acima do miserável trabalho escravo ou servil.
Filósofos relevantes que interpretaram o seu mundo começaram por criticar
outras interpretações porventura mais racionais que as deles. A Filosofia não
parecia ser outra coisa senão uma batalha interminável de razões contra razões
no interior de um clube fechado de sábios.
Essa autonomia absoluta é uma ilusão. As construções filosóficas não se
compreendem sequer sem o contexto histórico que as provoca e fecunda. A
hermenêutica do texto pelo texto equivale a uma cultura sem agricultura. Afinal
de contas os filósofos intervêm a seu modo sobre o seu tempo seja para o
justificar, seja para o transformar. Podem competir entre si diferentes
racionalidades numa mesma época: umas justificam e conservam um estado de
coisas, outras criticam-no. As lutas de ideias denunciam a realidade de outras
lutas, como a espuma na areia denuncia as marés. Os problemas teóricos e a
argumentação constituem o modo de pensar filosófico, daí essa aparência de
filósofos contra filósofos com que os não filósofos se sentem alheados. Com a
Modernidade a filosofia “desceu” ao homem comum, ao burguês letrado. Haveria de
chegar o tempo em que “desceu” ainda mais: ao trabalhador assalariado. Nunca
abandonou a sua vocação crítica original de compreensão do viver humano.
O estudo das
filosofias revela-nos o interesse mundano que as inspira. As razões
concretas da história são a Razão abstrata dos filósofos. A filosofia nas suas
origens revolucionou a mentalidade que até então por toda a parte dominava sem
alternativas; a coruja de Minerva ergueu o seu primeiro voo entre as luzes e as
sombras de um regime político que uma nova classe inventou nas faldas do
Mediterrâneo. Muitos séculos decorreriam, entre muitas sombras e poucas luzes,
para que pudesse emergir de novo uma revolução, a mais extraordinária da Razão
humana: o pensamento científico. Chegou para demonstrar o que os primeiros
filósofos já suspeitavam: o importante não é pensar, mas pensar com um
determinado método. Tanto mais
acertado quanto mais verdades alcança. Para isto o melhor método não é
exclusivamente formal mas adequado às propriedades fenoménicas objetivas. É
aquele que não é apriorístico mas que exprime e acompanha o movimento dos
fenómenos. Aberto e não fechado. Aberto às teorias e progressos científicos, às
transformações sociais.
A razão é o poder de edificar sistemas de regras, de
as aplicar e de as tratar.
Emprega-se o termo Razão em sentidos vários, contudo com um
denominador comum: capacidade de controlo, previsão, análise-síntese,
capacidade de executar operações mentais. Ser racional é ser-se capaz de
aprender, sinal indiscutível do desenvolvimento do homem primitivo e da
criança. Tanto num caso como no outro a ação foi e é determinante. Quanto mais
esta for adequada a um fim benéfico para a comunidade mais ela é racional. Como
poderíamos classificar de racionais aquelas atividades que minam a coesão social
e destroem o meio ambiente natural?
Não existe um critério único, em abstrato, que estabeleça de
uma vez por todas determinadas ações absolutamente racionais excluindo todas as
outras. O prazer ou as vantagens pessoais não constituem esse critério ainda
que se lhe acrescente o item: serão vantajosas apenas quando o forem para todos
os membros de uma comunidade.
As considerações que se seguem não desenvolvem os contextos
concretos por falta de espaço apenas. O percurso é, por conseguinte, breve e a
ele acrescentamos algumas considerações sobre algumas categorias e temas
polémicos que julgamos oportunas. A Razão que abordamos é um conceito
considerado aqui no âmbito da Filosofia com contaminações e extrapolações
ideológicas. A Filosofia é considerada aqui exclusivamente como aquela
atividade que surgiu na Antiguidade clássica, Ocidental.
O racionalismo (resposta às questões relativas ao ato de conhecer) não é património exclusivo das
filosofias idealistas- racionalismos versus realismos- que se contrapunham
aos empirismos, embora se reconheça que foi a filosofia idealista clássica
alemã (de Kant a Hegel) que salientou o papel ativo do sujeito. Os
materialismos sempre foram, embora diferenciados, racionalistas.
A renúncia à razão é a capitulação perante as forças
hegemónicas em algum momento do seu processo contraditório. É a capitulação
perante uma ideologia irracional. Foi o que sucedeu na Europa durante a Idade
Média quando a filosofia se submeteu à ideologia religiosa.
O papel desempenhado pela Razão na História equivale a dizer
que as ideias desempenham um papel prático
nas invenções e descobertas, nos acontecimentos políticos, nos
comportamentos morais, na organização singular de cada cultura, na mobilização
das massas sociais. Não são meros
epifenómenos da base económica das sociedades. As ciências constituem
também uma força produtiva. As filosofias e as ideologias políticas e
religiosas enformam as relações de produção, justificam ou, pelo contrário,
desvelam e denunciam a sua função de exploração e dominação da força de
trabalho. O direito (jurídico) à propriedade privada (seja qual for a sua forma
através dos tempos e lugares) é o exemplo mais concludente (assim como o
direito religiosamente consagrado dos monarcas absolutos). O marxismo não é um economicismo. Hoje, mais do que nunca, a
economia revela-se como a base que sustenta os interesses que movem o capital,
as suas contradições, crises, geoestratégias imperialistas; contudo, também
fica claro o papel exercido pelos meios de comunicação social, a demagogia (no
sentido literal) dos “direitos humanos”; a sua natureza predatória é velada
pela ideologia que dispõe atualmente de meios mais poderosos (planetários,
tecnocientíficos) do que alguma vez na História. Com a ideologia se motiva, organiza e domestica.
A Filosofia tem agora de concorrer com a cultura industrial
ou “cultura digital”, a ideologia segregada pela comunicação de massas.
Ideologia do lucro e do dinheiro. O capitalismo “tardio” não é já capaz, ou já
não necessita, dos grandes filósofos que construíram gradualmente o liberalismo
nas suas lutas contra os obstáculos materiais e imateriais ao seu domínio
absoluto. A continuação desse domínio exerce-se por outros meios. O que
prolifera nas estantes das livrarias são os economistas, os “politólogos”,
informáticos, e livros de “autoajuda”. Os públicos procuram respostas imediatas
para problemas urgentes. Técnicas eficazes de mercado orientam as escolhas.
Entendo por irracionalismo a crença em forças sobrenaturais,
mistérios ocultos que somente determinados “eleitos” decifram, incapacidade
“natural” do homem para alcançar verdades objetivas; crenças segundo as quais
somos predestinados ou predeterminados por “instintos” ou impulsos
exclusivamente biológicos; descrença na repetição daquilo que a história é o
espelho: a mudança social. São igualmente irracionais efabulações messiânicas,
ficções sobre destinos e outras missões.
Dito isto não significa que creia numa verdade absoluta. Uma
Razão dogmática é o inimigo da Razão Dialética. Por vezes, particularmente em
épocas de crise, vale mais uma boa dúvida (cautelosa, interrogativa e
condicional) que uma mão cheia de certezas que não nos deixam ver as mudanças
que se operam debaixo dos nossos pés. A imagem da doninha que vai escavando o
mais rijo solo vem-me sempre à memória. As religiões conservam a influência que
sempre tiveram, mas soltaram de dentro as forças mais destrutivas de que há
memória desde as Grandes Cruzadas. O imperialismo criou o Médio Oriente
capitalista; pois é aí agora que a religião retoma o seu papel fratricida.
«O pensar teórico de cada época – portanto, também o da nossa
– é um produto histórico que, em tempos diversos, toma uma forma muito diversa
e, por isso, um conteúdo muito diverso. A ciência do pensar é, portanto, tal
como qualquer outra, uma ciência histórica, a ciência do desenvolvimento
histórico do pensar humano.»[8]
Em traços largos elenco os seguintes andamentos da dialética
da Razão:
1. Falamos de racionalidade(s)s no
estrito âmbito da sua construção pela filosofia ocidental. A Razão humana tem
origens bio-sociais que se perdem na bruma dos tempos. As primeiras
civilizações (Suméria) testemunham o poder da razão humana. Sem o Médio Oriente
– berço da civilização – e, mais tarde, a bacia do Mediterrâneo, a filosofia
ocidental não teria surgido.
2. Heráclito (Éfeso, século V a.C.), um dos
primeiros filósofos, forneceu-nos há milhares de anos uma chave com a qual
temos vindo a abrir os mistérios do cosmos e das sociedades: a dialética. As
categorias ontognosiológicas do Todo (Ordem racional), movimento,
contraditoriedade; a racionalidade é o próprio ser do mundo; «Os homens não
sabem como o que é discorde está em acordo consigo mesmo: harmonia de tensões
opostas, como as do arco e da lira.» (fr.51). Tales, Anaxágoras, Anaximandro,
mostraram-nos um caminho racional para as origens da vida e do homem recorrendo
aos elementos naturais ou na quantidade infinita de matéria. Demócrito (Abdera,
século IV a.C.) forjou as teses básicas do materialismo filosófico em oposição
a Platão, que se conservaram como a linha ou “partido” que se opõe radicalmente
ao idealismo. Fundou o atomismo (provavelmente sobre ideias de Leucipo): crente
na capacidade racional afirma a possibilidade da razão alcançar a realidade por
mais invisível que ela seja: pequenas partículas que compõem tudo que existe:
«Por convenção fala-se de cor, de doce, de amargo; na realidade, há só átomos e
vazio» (fr.125). Mundivisão estritamente materialista que submete todos os
mistérios à lâmina da razão; afirma que a pesquisa científica e o respeito por
si próprio (ética filosófica) constituem os primeiros deveres do homem livre.
Condições históricas peculiares permitiram que a Razão produzisse uma atividade
teórica – a Filosofia- que iniciou um combate emancipador contra os
misticismos, os mitos e as religiões. Antepunha-se ao espírito um princípio natural e com esse volte face
poder-se-ia ter destronado, se tal viesse a ser possível, o poder político das
religiões. Mas a Razão teórica não basta, por mais importante que seja. Quase
todos os materialistas, pelos tempos fora, não criticaram a base escravocrata
ou servil das suas sociedades. E isso faz toda a diferença entre s próprios
materialistas. Epicuro (341-271), discípulo de Demócrito (460-371 a.C.) foi um
prolífico autor: cerca de trezentos escritos, que se perderam, dos quais só
restam três cartas. Obteve uma enorme influência no período helenístico.
Devemos a Lucrécio (96-55 a. C.) a melhor exposição da física e dos preceitos
éticos da escola epicurista. Tito Caro Lucrécio legou-nos uma das obras mais
notáveis e mais belas da literatura ocidental: De rerum natura. Esta obra é um magnífico exemplo de exposição
argumentativa filosófica: enuncia a tese da existência necessária do vazio e do
movimento dos átomos, ou seja, da unidade material do mundo, criticando um por
um os argumentos contrários.
3. A filosofia grega foi dialética. Não
há maior legado desse pequeno povo que a sua filosofia dialética – materialista
ou idealista. “O pensar dialético aparece aqui na sua simplicidade natural, não
perturbado ainda pelos obstáculos encantadores que a metafísica do século XVII
e do século XVIII – F. Bacon e J. Locke,
na Inglaterra, Wolff, na Alemanha – a si mesma levantou e com os quais barrou a
si mesma o caminho de chegar do entendimento do singular ao entendimento do
todo, à penetração na conexão universal.”[9]
4. O materialismo no período clássico
foi combatido por todas as escolas filosóficas; No Império Romano os grandes
pensadores- Séneca, por exemplo- que se constituíram como o património
humanista e literário que o Império nos legou, adeptos do estoicismo em geral,
silenciaram o epicurismo. O epicurismo não beneficiou de condições que lhe
permitissem hegemonia, porque o pensamento científico era incipiente, o qual
mal sobreviveu à hegemonia absoluta da religião cristã, que pôde impor-se mercê
do império romano tardio e da sua força messiânica de salvação individual. O
epicurismo e o estoicismo também a prometiam, mas na Terra e na vida; nas
épocas de medo jamais puderam competir com uma religião de massas. A filosofia
crítica, desde o berço, viu-se relegada mil anos. O materialismo, identificado
com ateísmo e heresias horríveis, foi amordaçado. Quem se atrevia? Ainda assim
na Idade Média, larguíssimo período que não se resume à Idade das Trevas,[10]
no qual, apesar de tudo, importantes progressos se verificaram a Ocidente e a
Oriente, notáveis pensadores árabes, recuperando a Metafísica de Aristóteles, empurraram a teologia de A Cidade de Deus, de Agostinho de
Hipona, a teologia cristã da época, para limites tais em que ela já não se
suportava a si mesma. Tomás de Aquino prosseguirá esse trilho pois que o
feudalismo já consolidado exigia reparações na ideologia: fé sim, e muita,
alimentada por rituais emotivos, mas alguma razoabilidade “empírica” que
justificasse os poderes seculares. É neste quadro de progressos materiais e
culturais (ascensão de novas classes que criavam, por imperativos da práxis,
novos valores) que se tornará possível a emergência do pensamento científico
com Galileu Galilei, que libertará a filosofia e a ciência da religião.
5. O determinismo integral segundo o
qual o perfeito conhecimento de um estado do universo deveria permitir a
dedução mecânica de todos seus estados futuros, dominava ainda o pensamento
científico nos finais do século XVIII. Nos inícios do século XX ainda se
pensava, na comunidade científica, que o universo era estático. A genética era
completamente desconhecida. Há cem anos predominavam as teses racistas entre os
biólogos e demais cientistas. Desconhecia-se ainda em rigor a natureza e o
papel do inconsciente. A racionalidade nos últimos setenta anos deu passos de
gigante no domínio científico. A novíssima visão do universo (teoria da
Relatividade, flutuações do campo quântico e o Big Bang, Teoria das Cordas, engenharia genética e funções do
cérebro, exploração do espaço sideral, comunicação e máquinas inteligentes,
etc.) constitui a maior revolução científica de todos os tempos. Um homem da
primeira metade do século XIX ficaria abismado se acaso ressuscitasse neste
novo universo.
6. O racionalismo contemporâneo não deve
desprezar as contribuições dos filósofos das épocas anteriores, da antiguidade
clássica e do Iluminismo, pré-modernos e modernos, porque foram eles que
ajudaram a construir a racionalidade que herdámos, independentemente das suas
limitações, dos seus idealismos, dos seus erros. O alcance crítico contra a
mentalidade mítica e despótica que dominava em absoluto a humanidade, o recorte
racional do método aristotélico de pensar, a mundividência do estoicismo,
deram-nos um olhar sobre o mundo nos antípodas das religiões.
7. Os degraus que o Ocidente subiu pelas
mãos de Descartes (1596-1650) e Gassendi, de N. Copérnico, Giordano Bruno e
Galileu, de B. Espinosa e Leibniz, de T. Hobbes (1588-1679), J.
Locke(1632-1704), Pierre Bayle (1647-1706), não devem ser descartados por um
arrazoado ideológico seja ele qual for. Distinguir com verdade cada um deles,
demonstrar as limitações dos seus idealismos ou materialismos, expor a base de
classe do liberalismo burguês setecentista, é, como tem sido, uma tarefa da
nossa racionalidade crítica contemporânea, porém não é sua tarefa destruir.
Nunca existiu uma racionalidade pura isenta de idealismos e de ideologias
políticas, desinteressada, por mais transparente que o desejasse. Todos os
filósofos ambicionaram descrever o mundo e a existência humana tal como são,
portanto a ontologia foi sempre o seu desiderato e o seu sustento. Platão, Aristóteles,
Agostinho ou Tomás de Aquino, o mundo da cultura grega ou da cultura cristã. Do
esclavagismo ou do projeto hegemónico da religião. Nenhuma se apresenta
completamente desajustada do seu contexto histórico, do húmus social onde o
filósofo cultivou os seus filosofemas.
8. Até as raízes irracionalistas de
alguns grandes filósofos dão, por vezes, frutos racionais. Há nos grandes
filósofos um excedente, algo como uma
espécie de utopia pessoal, que a classe social que eles quantas vezes
promoveram, rejeita logo que toma posse do poder. Está para além dos seus
interesses políticos imediatos. Essa crença otimista esteve patente nos
iluministas. Daí este nome.
9. Ser racional é saber construir um
discurso coerente e comunicável sobre a sua conduta e sobre a dos outros;
reconhecer objetos e pessoas; orientar-se de modo aceitável pelos demais
membros de uma comunidade. A racionalidade filosófica ou científica é mais do
isso. É construir um discurso argumentativo, reconhecendo-se nele a influência
de outros filósofos, cientistas ou saberes. Na ciência as provas são a posteriori, comprovam uma teoria. Na
filosofia não se dispensa também a experiência e a sua reflexão. A filosofia e
a ciência estiveram unidas muito tempo depois do início de ambas. O filósofo
era um “amigo do saber”, o qual incluía naturalmente as matemáticas e a
astronomia.
10. Desde as origens da Filosofia que se
constituíram claramente duas correntes opostas que se podem representar pela
“linha” de Demócrito e pela de Platão. As escolas epicuristas e estóicas foram
hegemónicas no período helenístico e sob o império romano até ao século V
quando os imperadores cristãos as proibiram. É neste longo período que o
materialismo sofre um eclipse quase total. É somente no século XVII que o
materialismo renasce nomeadamente com Pierre Gassendi (1592-1655) que
influenciou a filosofia inglesa, a qual por sua vez, marcou indelevelmente os
materialismos posteriores. A corrente dos “libertinos”, nomeadamente Cyrano de
Bergerac, que iniciou o combate contra o domínio da religião. O mecanicismo de
Descartes[11] que,
apesar do seu idealismo, há de desaguar no “Homem Máquina”, de La Mettrie. O
pessimismo de Thomas Hobbes que cria, no entanto, uma perspetiva realista
moderna sobre o Estado e o contrato social. Baruch Espinosa, o grande filósofo
holandês filhos de judeus portugueses, observa a luta de classes no seu país e
antecipa o regime democrático. Somente no termo desse século Leibniz cunha pela
primeira vez o materialismo como corrente filosófica oposta ao idealismo. Por
conseguinte, foram necessários muitos séculos para que, chegados ao Iluminismo,
o materialismo se afirmasse novamente e se distinguisse com clareza bastante
das metafísicas idealistas e das teologias. O empirismo de origem inglesa (J.
Locke) contribuiu para o desenvolvimento dos materialismos. O materialismo
francês do século XVIII, atento às críticas dos empiristas, não recicla mas
refina a argumentação do materialismo. Deste modo existiram diversos
materialismos, alguns com escassa influência na corrente contínua da filosofia
ocidental, fosse por terem sido desprezados, perseguidos e silenciados, fosse
também porque as condições sociais (económicas e culturais) não lhe tivessem
sido favoráveis. O que nos leva novamente à constatação de que foram os
interesses da classe média – a Burguesia - que propulsionaram o desenvolvimento
da ciência e dos materialismos modernos.
11. Na Modernidade a Razão inicia (ou
reinicia?) um novo rumo em que, agora, os novos valores do interesse e da utilidade
vêm desempenhar um papel decisivo. A experiência é o critério principal. F.
Bacon expõe a nova visão do mundo, um mundo novo que se anuncia sob as
conquistas do pensamento científico. Os valores medievais perdem a hegemonia
sob o impulso dos interesses de novas classes em desenvolvimento, novas
instituições políticas (monarquias absolutas) que viam no comércio a riqueza
das nações. Razão interessada, útil, experimental, libertando-se do cosmos
geocêntrico, das especulações metafísicas subordinadas à teologia, dos valores
sociais retrógrados.
12. A Razão calcula, analisa, deduz,
sintetiza. Contudo, não é ela, só por si, que nos motiva para da ideia passar à
ação. É preciso que intervenham o interesse próprio e o sentimento.
Jean-Jacques Rousseau, crítico do iluminismo que endeusa a Razão, colocará na
Modernidade o conflito eterno entre a Razão e o sentimento; com ele o
Romantismo mergulha no labirinto das contradições e dos conflitos da
subjetividade. A dialética emerge no génio de Hegel e Marx.
13. Referir os filósofos materialistas omitindo os
escritores utopistas é um lapso grave.[12]
A sua influência não se pode descartar numa história das ideias consequente. A
conceção materialista do mundo e da vida está presente em quase todos eles,
ainda que, nalguns casos, envolta em uma áurea religiosa que se vai perdendo
depois dos percursores Thomas More (1477-1535) e Tommaso Campanella
(1568-1639). O seu valioso contributo encontra-se, a meu ver, no
desenvolvimento das ideias comunistas modernas e na oposição ao capitalismo. Em
More, Campanella, Jean Meslier, Morelly (1717-?), Dom Deschamps, Mably, o que
prevalece é a crítica à propriedade privada. A sua oposição ao feudalismo (nos
dois primeiros) e à nobreza terratenente do século XVIII é, simultaneamente,
uma rejeição do capitalismo comercial. A propriedade comunal é a base que
organiza aquelas sociedades utópicas onde reina a igualdade. A primeira metade
do século XIX assistirá a uma profusão de projetos utópicos comunistas. Perante
o tribunal da Convenção G. Babeuf irá declarar com arrojo que bebeu em Morelly
(que ele tomava como um pseudónimo de Diderot) os seus ideais comunistas. O
materialismo do século das Luzes é uma mistura inovadora de neo-espinosismo
(Jean Meslier, d´Holbach, Diderot, Dom Deschamps), mecanicismo, naturalismo
(vitalismo, no caso de Diderot) e os escritos utópicos. A par da influência do
empirismo inglês (J. Locke) e da ciência newtoniana, somente esse cadinho
“explosivo” nos permite compreender não apenas o século das Luzes, como a
primeira metade do século seguinte. A denúncia dos efeitos perversos da
apropriação privada dos produtos sociais permanecerá uma trave-mestra de uma
racionalidade que se quer alternativa radical.
14. Os fundadores das doutrinas liberais
formularam princípios que a teoria socialista não pode renegar, porque os
regimes políticos liberais os distorceram e converteram em meras formalidades.
O que fora substancial tornou-se formal. O princípio segundo o qual o Estado
não deve sufocar a liberdade individual, se essa liberdade não prejudicar a
liberdade coletiva; o direito à desobediência civil; o princípio da separação
dos poderes (transparência, vigilância e independência); as Constituições
políticas que romperam com o discricionário e as servidões consuetudinárias; a
ideia de República (o bem público prevalece sobre o interesse privado); ou
aquele princípio geral do utilitarismo: o que determina se uma ação ou decisão
é correta é o benefício intrínseco que traz para a comunidade; quanto maior o
benefício, melhor a ação ou decisão (“agir sempre de forma a produzir a maior
quantidade de bem-estar”), se produzir a infelicidade, deve ser condenada. São
verdadeiras apenas aquelas teorias éticas que consideram decisões e ações como
corretas independentemente das suas consequências? Princípios formalistas e
abstratos podem ser tão ou mais perigosos na prática do que a ética
utilitarista. Ela foi e é passível de críticas, mas o facto de ter justificado
no seu tempo a mundividência burguesa não significa que fosse falsa. Uma
filosofia não é falsa. Menos ainda quando ela se adequa à funcionalidade de um
modo de produção. De resto, Epicuro, o criador por excelência do materialismo,
defendia princípios de uma ética utilitarista. O interesse e o útil
predominam nas teorias dos materialistas Helvétius, d’Holbach e Diderot. Os
princípios do útil, do interesse, foram criações modernas e
progressistas dos empiristas (ou “sensualistas”) e dos materialistas do século
das Luzes. A crítica de Kant a esses princípios (Crítica da Razão Prática) não os invalidou. Valeu, sobretudo, como
síntese necessária entre a intenção (uma “consciência boa”) e o valor social (“universal”, nos termos
kantianos) das consequências de uma decisão ou ação. As noções económico-éticas
de interesse e de utilidade exprimiam os desígnios das burguesias (comércio,
indústria) e opunham-se aos valores feudais. Constituíram um progresso. O
socialismo francês, uma das três fontes do marxismo, desenvolveu-se não apenas
com as ideias de Rousseau, mas também com as contribuições dos iluministas,
sobretudo da corrente materialista (ainda que o chefe dos jacobinos,
Robespierre, não o tenha admitido). Uma outra grande doutrina, o utilitarismo,
resultou dos princípios supracitados (Bentham e J.-S. Mill). Doutrina
desprezada demasiado facilmente, reduzida à caricatura da sua expressão
burguesa como função ideológica. Contudo, o cálculo utilitarista da maximização
dos prazeres e da minimização dos sofrimentos elevou a um Princípio o que se
encontrava implícito nos iluministas. Fosse como fosse propugnavam pelo primado
do direito e da felicidade geral, “a maior felicidade para o maior número de
pessoas”. Em termos gnosiológicos o utilitarismo não era um idealismo puro, mas
uma corrente do empirismo, no qual radica a sua ética pragmática (a ética
kantiana é mais idealista que o pragmatismo). É sobretudo a sua ética baseada
no princípio da experiência que deve
suscitar o nosso interesse. Se o seu uso tem servido para justificar os meios
pelos fins, nenhuma doutrina está isenta desse pecado. Implacável na crítica
desta filosofia convertida em ideologia do capitalismo, o marxismo não deve,
porém, ignorá-la nem desprezá-la. Valorizar a experiência, a prática, não é
desvalorizar a precedência teórica dos projetos. É admitir que um projeto deve
ser revisto à luz da experiência (as possibilidades que ele já continha para os
erros e os desvios).
15. Max Horkheimer e Theodor Adorno, n’ A Dialética do Esclarecimento, expõem
com acerto as responsabilidades do Iluminismo no irracionalismo que lhe
sucedeu. Segundo eles o Esclarecimento
(Aufklärung) é “totalitário”, o
processo de racionalização abstrata produziu a barbárie. É preciso, pois,
destruir o mito do progresso, tarefa equivalente à destruição da metafísica
idealista. O mito do progresso derivou da ideologia burguesa e pelo qual esta
justifica os males como acidentes de percurso, efeitos colaterais da marcha
infinita da tecnociência. A racionalidade iluminista não emancipou o homem como
prometia, domesticou-o. A grandiloquente subjetividade
burguesa traduziu-se na reificação e
no fetichismo, afirmará Adorno em
obras posteriores, servindo-se de Marx e sob inspiração de Lukács. O
pensamento, tolhido pela “culpa” vê-se privado da “linguagem da oposição. Não
há mais nenhuma expressão que não tenda a concordar com as direções dominantes
do pensamento”[13]. “ Na
crença de que ficaria excessivamente suscetível à charlatanice e à superstição,
se não se restringisse à constatação de factos e ao cálculo de probabilidades,
o espírito conhecedor prepara um chão suficientemente ressecado para acolher
com avidez a charlatanice e a superstição.” [14]
O esclarecimento autodestrói-se. Não há dúvida de que “a liberdade na sociedade
é inseparável do pensamento ilustrado. Contudo, acreditamos ter reconhecido com
a mesma clareza que o próprio conceito desse pensamento, tanto quanto as formas
históricas concretas, as instituições da sociedade com as quais está
entrelaçado, contém o germe para a regressão que hoje tem lugar por toda a
parte.” [15] Eis-nos
na época do domínio da abstração niveladora, toda a diferença é anulada sob o
signo da identidade e da unidade. Dito isto, o Esclarecimento, isto é, o Iluminismo, é coisa a abater? Não. É,
antes, uma tarefa de auto-reflexão a cumprir urgentemente, a partir de uma posição dialética. Era esse o propósito
do livro que converteu Adorno num autor de enorme influência (toda “destruição”
da Modernidade deriva de Nietzsche, Heidegger e Adorno)? Ele o afirma
textualmente e é para acreditar. Esta afirmação é clara: “Não se trata de
conservar o passado, sim de cumprir as esperanças do passado.” [16].
Porém, o que dele se extraiu foi uma completa culpabilização da filosofia das
Luzes. Errada, a meu ver. A dialética
negativa de Adorno não comporta nenhuma saída positiva, nenhuma superação.
Se assistíamos ao fim das grandes filosofias da história, então, por
consequência, eles próprios (Horkheimer e Adorno) deveriam se demitir de
filosofar sobre a história e não incutir nesta um sentido negativo,
autodestrutivo… Visão “catastrofista” que, de resto e respirando a mesma
atmosfera negativista, Walter Benjamim enunciou. Habilmente, o sacerdote do
liberalismo, Karl Popper, saberá prosseguir estes passos para recuperá-lo e
convertê-lo na melhor doutrina realista, sem metafísicas; o velho Horkheimer
desiste e acomoda-se; Marcuse descobre nos jovens um potencial revolucionário.
Num golpe de rins que não é tão invulgar como se poderá julgar, da crítica
implacável ao liberalismo ( Modernidade) acabam não poucos na defesa do
próprio, recauchutado, sem mitos, com umas tintas de “ética racional e
comunicacional”. Ou seja: o pensamento dominante é tão dominante que não
permite alternativas; portanto, aceite-se o pensamento dominante! As críticas
destrutivas da Razão (= “Razão instrumental”) iam beber todas em Max Weber (o
próprio Heidegger foi lá beber). Análises idealistas da ideologia burguesa (do
racionalismo de inspiração iluminista e burguesa) redundavam em fracassos
pessoais (e geracionais!), em consequências políticas conservadoras e até mesmo
reacionárias (Heidegger), ou em apostas cegas em revoltas sociais justas mas
inconsequentes.
As Luzes não foram homogéneas: diferentes
correntes de pensamento colidiram. Na França, os materialistas La Mettrie, Jean
Meslier, D’Holbach, Diderot, Dom Deschamps, distinguiram-se com clareza
suficiente dos sensualistas-empiristas (Condillac). Os próprios materialistas
não se copiaram: D’Holbach não foi o mecanicista-cartesiano La Mettrie; os
neo-espinosistas Jean Meslier, Dom Deschamps, D’Holbach, Diderot, não replicam
os enunciados do empirismo inglês de J. Locke e menos ainda de D. Hume.
Jean-Jacques Rousseau afastou-se cedo do programa dos iluministas, mas não
deixa por isso de ser um expoente máximo do Esclarecimento.
Luzes e sombras, diferenças e aproximações. Confiança na Razão (barreira contra
a ideologia clerical obscurantista e os costumes bárbaros), pois em quê devemos
confiar? Nos puros sentimentos? Nem Rousseau o fez no seu “Contrato Social”…Nos
“direitos consuetudinários” dos senhorios e morgados? É evidente, se quisermos
ver, que o capitalismo não nos trouxe a última e única versão do racionalismo;
trouxe a sua versão ideológica, no duplo sentido que Marx aplicou à Ideologia:
consciência invertida e função social. A razão histórica da missão civilizadora
do Império Britânico nas Índias, do facínora imperador Leopoldo no Congo, da
missão pacificadora da OTAN, protetora intervencionista dos direitos humanos e
da democracia ocidental…
“A Dialéctica da Ilustração”, de Max
Horkheimer e Theodor W. Adorno, de 1944, é, sem dúvida alguma, um dos mais
importantes ensaios críticos do século vinte, um marco e uma fonte que ainda
não secou. Os seus autores afirmam aí que “não albergamos a menor duvida – e
esta é nossa petitio principii – de
que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento ilustrado”, mas esse
pensamento “contem já o gérmen daquela regressão que hoje acontece por toda a
parte”. A regressão aos mitos. O Esclarecimento
ao enfatizar o progresso da Técnica como Promessa de um mundo novo, conduziu ao
anti-Esclarecimento: a indústria cultural, o consentimento total dos
consumidores sem subjetividade e espírito crítico, elimina o passado e realiza
a propaganda do mundo existente. A obra é um clarividente repositório dos
recuos e contradições do iluminismo burguês. Muito antes Marx e Engels haviam
já traçado o balanço do papel da Burguesia: “A burguesia desempenhou na
história um papel altamente revolucionário”, ela “não pode existir sem
revolucionar permanentemente os instrumentos de produção, por conseguinte as
relações de produção, por conseguinte todas as relações sociais.” [17].
O papel negativo está aí claramente exposto. Nessas páginas célebres vemos um
exemplo de dialética aplicada à história de “longa duração”. Nas obras
posteriores, mais maduras, os seus autores (fundadores da Dialética da
História) não perderão nunca de vista o ângulo positivo com que se deve também
encarar a evolução da burguesia até esta tomar o poder absoluto nas mãos.
Parece-me a mim que estes dois ângulos do mesmo triângulo não foram acentuados,
e articulados entre si, em A Dialética da
Ilustração e em A Dialética Negativa,
de Adorno. O percurso da análise torna-se cada vez mais pessimista: inclui o
próprio socialismo que por toda a parte se experimentava, as lutas de classes,
o papel revolucionário da classe operária.
A classificação aplicada à Era que se
desenvolveu a partir da decadência e por fim dos escombros das sociedades
feudais – Era Moderna - é uma expressão que faz todo o sentido relativamente às
épocas anteriores na Europa e fora dela. As diferenças progressistas
comparativamente, para a humanidade em geral, para a sua maior emancipação ou
para lhe fornecer os instrumentos materiais e espirituais para tal, foram
substanciais e objetivas. A humanidade progrediu. Foram conduzidas pelas novas
classes médias vindas do interior do feudalismo? Sem dúvida. Fundamentalmente et pour cause no seu proveito? Certamente.
O capitalismo caracteriza-se por ser uma “criação destrutiva” (não uma
“destruição criativa”)? As provas são abundantes e profundamente arrepiantes.
16.
Não
afirmo que a metafísica não é racional, afirmo que a dialética sem metafísicas
dá melhor conta dos fenómenos sociais. Nesse sentido, é mais racional. É
necessário distinguir as metafísicas, porque umas foram obstáculos
epistemológicos, outras não. Exemplos: a metafísica de Espinosa não se opõe ao
desenvolvimento da ciência e mais apurado espírito crítico, bem pelo contrário;
o naturalismo metafísico de d’Holbach promoveu uma imagem realista e ética da
natureza e do homem. Qualquer crítica do pensamento metafísico deve distinguir
os sistemas metafísicos, segundo esse critério. O naturalismo e o materialismo
dos séculos XVII e XVIII não devem ser rejeitados como falsos e culpados dos
males que sobrevieram. Foram, pelo contrário, um auxiliar importante na marcha
difícil das teorias críticas e das práticas científicas. Mas não só os
materialistas: o racionalismo metafísico de Descartes lançou as bases do
pensamento moderno, precisamente porque a partir dele a filosofia libertou-se
da tranquilidade (ilusória) do primeiro começo- Deus- ao estabelecer como
início o eu pensante, a independência intelectual; e reconhece o método
científico como o mais racional. Espinosa começa o seu sistema com a
demonstração da existência de Deus, mas nele Deus é a Natureza e as
demonstrações nada têm que ver com as “provas” teológicas e teleológicas. Com o
cartesianismo e o espinosismo a filosofia nunca mais foi a mesma. Ser dialético
é saber o que se deve conservar (o que realmente se conservou nos caminhos do
progresso) e o que se deve eliminar como irracional, isto é, retrógrado ou
completamente errado. A Crítica tem de ser radical. Deve-se criticar a forma
sobretudo quando ela vela ou mistifica os conteúdos concretos. Criticar o
Iluminismo não é tarefa nova, Kant fê-lo, Hegel, Feuerbach e Marx, cada um a
seu modo. Depois deles temos de partir deles quer queiramos ou não. Marx fê-lo
com Hegel. Estiveram todos eles antes de Marx amarrados a uma forma
insuficiente de crítica. Fomos e continuamos a ir mais fundo e mais longe. Na
crítica da Ideologia, na crítica da noção de Progresso tanto na perspetiva
otimista dos iluministas (Condorcet) como da teleologia hegeliana da
Consciência. A própria noção de “evolução”, que substituiu a ideia de
progresso, até essa nos suscita reservas. Não se confirma uma linha de evolução
contínua da Filosofia que dê consistência a uma História das Ideias baseada
nessa crença. Verificam-se retrocessos e
perdas tanto nas práticas sociais como nas ideias. As ameaças que o mundo
hoje sofre (a humanidade o próprio planeta que a sustenta) jamais existiram nas
Eras anteriores. Todavia, a Modernidade, ao mesmo tempo, forjou as
possibilidades objetivas e subjetivas para revoluções sociais que a humanidade
jamais poderia alcançar em eras anteriores.
17.
O texto mais admirável pela forma e pelo conteúdo que alguma vez se
publicou, que dirige a mais formidável crítica da Modernidade capitalista, é o Manifesto do Partido Comunista. Porque
denuncia as suas origens históricas e os seus caboucos económicos, porque
demonstra que a “naturalidade” ou “eternidade” com que se apresenta é falsa. E porque
logo na primeira frase expõe a necessidade e possibilidade de novas revoluções
sociais desta vez para eliminar a sociedade moldada pelo Capital. É nesta época
que vivemos.
18. O que se deve criticar no Iluminismo
é a sua ideologia da Abstração, ou a abstração como ideologia. Mas essa
crítica da representação e da Identidade entre o pensamento e a realidade, foi
precisamente a primeira tarefa dos jovens Marx e Engels. A grande crítica
marxiana irá construir-se em plena maturidade com a crítica do conceito de valor de Adam Smith. A crítica de Marx à
ideologia, à alienação, deve muito ao modo como “deu a volta” às categorias do
método hegeliano. Porque os fenómenos
objetivos têm que se manifestar primeiro para que o pensamento filosófico se
veja obrigado a responder com os seus meios. Esta ideia é uma das melhores
prendas que Hegel nos ofereceu (a coruja de Minerva). O capitalismo teve de
manifestar-se em toda sua realidade exploradora e destrutiva para que pudesse
encontrar em Marx o seu intérprete e opositor radical. Para ir às raízes é necessário
que estas produzam florações (carnívoras). Por que razão vemos na Modernidade,
nas suas ideias e práticas, um inimigo? Porque os seus ideais (do sujeito
livre, da Vontade, do Valor, da liberdade e igualdade) foram convertidos pelo
capitalismo em armas poderosas de dominação. Os princípios e os valores
tornaram-se meramente formais, exceto para os próprios capitalistas. Na cabeça
dos capitalistas liberdade significa apenas a “livre iniciativa” dele para
comprar a força-de-trabalho pelo preço que mais lhe convier na base de uma
relação social objetiva completamente desigual. Contudo, se a Modernidade
transportou o inimigo para dentro das nossas portas – como o cavalo de Troia –
transfere para as nossas mãos ao mesmo tempo um poderoso aliado. Nela se forjou
o criador e o produto que o erradicará. A doença e o remédio.
19. Não basta afirmar que o movimento é
caraterística imanente da matéria. Foi necessário perguntar: que movimentos? O
como. E o como é a sua conexão
interna, a contradição inerente, a inter-relação entre os fenómenos. Não basta,
por outro lado, afirmar a realidade do Todo
(Totalidade de totalidades), foi necessário que se compreendesse que o Todo é
percorrido e movido pela Contradição.
Uma totalidade não é a mera soma das partes. Não bastou o enunciado segundo o
qual a Natureza é o Todo sem nada mais que lhe seja exterior e prevalecente.
Foi necessário descobrir-se que a Natureza possui uma história. A Ideia de
História emergiu com o Iluminismo. Saltou da sua aplicação limitada à história
das instituições políticas e das ideias para o mundo natural. Essa foi,
provavelmente, a maior revolução da Modernidade. Dialética do
distanciamento/aproximação foi a posição adotada por Marx e Engels sobre o
idealismo hegeliano e o materialismo francês. É esta posição que adoto quando
persigo.
20. A racionalidade diverge de filósofo
para filósofo. O racionalismo de Hegel está nos antípodas do racionalismo de
d’Holbach, em um o conceito central é a Consciência, no outro é a Natureza. O
racionalismo de Marx está nos antípodas do irracionalismo. Nenhum parentesco
entre Marx e Schopenhauer. A história das ideias, o modo diferenciado como os
grandes filósofos utilizaram a razão e a desenvolveram, as diferentes
interpretações do mundo natural, das sociedades e da existência humana, não
constituem uma história independente da história das relações sociais. Sem esta
as interpretações não existiriam sequer. A crítica das religiões (das
mentalidades e dos costumes classificados como irracionais, retrógrados e
bárbaros) encetada pelos grandes filósofos da antiguidade clássica, não foi
possível no Oriente, mas nas democracias gregas; se ela continuou dificilmente
nos séculos posteriores em condições completamente adversas, esse facto apenas
afasta um determinismo causal das relações
sociais de produção. Ainda assim, não foi na estratosfera que Agostinho de
Hipona produziu uma interpretação do mundo e da existência humana toda ela
assente na dominância da fé e da maldade inata do homem, antes foi nas
condições peculiares dos estertores do Império Romano e do terror da barbárie
que ele observava e sentia. Por outro lado, as filosofias são construções
pessoais, isto é, o pensamento de Espinosa foi um fruto extraordinário de uma
personalidade extraordinária que ergueu o seu voo intemporal sob as condições
estritamente temporais de uma República burguesa ameaçada.
21.
No refluxo e refluxo das múltiplas
interpretações racionais do mundo e da vida que a humanidade produziu, veio
gradualmente a sobrepor-se a Razão científica,
com os seus métodos e os seus instrumentos de observação e medida. Não
transforma o mundo só por si, não ficou ele melhor no mundo capitalista do
século passado apesar dos extraordinários avanços dos nossos conhecimento e das
nossas tecnologias. Certamente. A filosofia do positivismo burguês foi a
ideologia do cientismo, a festa triunfal da razão tecnocientífica que viria
iluminar o mundo sob o império do capital industrial. A neutralidade da ciência
face aos interesses mundanos é uma ficção. Converteu-se numa poderosa alavanca
de transformação do mundo. A racionalidade científica moderna veio para ficar,
isto é, não perderá jamais a hegemonia como sucedeu com a ideologia religiosa
da Idade Média (exceto se sobrevier um cataclismo). Por que há nela um excedente que não é meramente ideológico. Mas o diagnóstico dos
malefícios do capitalismo é assustador. A humanidade caminha para a sua
perdição. A ciência só por si não nos salvou, bem pelo contrário. Porém, o seu
abandono não faria qualquer sentido, nem é já possível. É necessário que a
racionalidade científica não se feche no seu reduto de indiferença cínica. É
urgente que ela se abra para uma interpretação filosófica do mundo e da vida,
ética e política. Para uma Razão política
que não justifique a dominação do homem pelo homem. Uma Razão prática que governe em proveito comum as
forças naturais. Uma Razão científica
que vença a fome e a doença. Uma Razão dialética
que demonstre que uma contradição socialmente antagónica somente se resolve
pela sua dissolução. O que é irracional é esta dose de contradições cada vez
mais insuportável para a humanidade: uma economia irracional que gera
desemprego e exclusão social, que se reproduz continuamente no mais completo
desprezo pela miséria que reproduz, que expropria os povos do seu espaço, que
se apropria do tempo dos trabalhadores para benefício exclusivo do lucro. Ao
mesmo tempo que a ciência liberta poderes incomensuráveis que curam, que
aumentam a longevidade e o bem-estar, a abundância de alimentos, o controlo de
desastres naturais, o aumento dos tempos livres para o lazer saudável e
criador. O que é irracional é a fúria expansiva e destruidora dos
imperialismos, expressão máxima do terror capitalista, responsável por duas
guerras mundiais e por sucessivas ditaduras sanguinárias. O que há de racional
no capitalismo? As origens da sua acumulação e expansão através da expropriação
e do saque, do colonialismo e da escravatura? O que há de racional num modo de
realizar lucros sobre lucros, dinheiro através de dinheiro, numa acumulação
infinita?
O materialismo dialético
22. [18]O idealismo, místico e mistificante,
resulta falso nos seus pressupostos; todavia, contêm um conteúdo real. Este
conteúdo revela contradições objetivas e conflitos da vida social concreta.
23. Sob as especulações que impeliram a
filosofia ocidental importa destacar a importância do método. Sem um bom método não há boa filosofia, na medida em que,
sem ele, não existiria a ciência que hoje conhecemos. Variem embora os métodos
para se alcançar verdades, perdurou a necessidade absoluta de um método
racional. Com o método dialético constrói-se uma ontologia materialista; com o
método experimental comprova-se uma boa
teoria.
24. Toda a ciência hoje é materialista.
As opiniões idealistas de alguns cientistas contradizem as descobertas das
ciências. A astronomia e astrofísica, a geologia e geografia, a biologia e a
antropologia, a física e a química, demonstram a veracidade das teses
materialistas, não as do idealismo que julga que é a consciência que cria a
realidade. Nos inícios do século XX conhecia-se apenas a existência da nossa
galáxia, hoje sabemos que elas são milhares de milhões. Foi a consciência dos
astrónomos que as criaram? Evidentemente que sem a capacidade humana, o seu
saber e os instrumentos que criou, nada se saberia. Contudo, a práxis humana (a
sua atividade criadora) não criou o universo nem a vida neste minúsculo
planeta, é apenas de ambos um fenómeno grandioso. A natureza tornou-se
autoconsciente através desta sua criatura que surgiu devido a uma conjugação
dialética entre a necessidade e o acaso. A substância e os seus atributos.
25.
O
materialismo dialético não implica uma exterioridade ontológica inibidora da
subjetividade; não é uma exterioridade dada que exclua à partida a intervenção
criadora do sujeito, bem pelo contrário. Na própria formulação ontológica, na
colocação do problema filosófico fundamental, o sujeito está implicado.
26.
“A questão da relação do pensar com o ser, do
espírito com a natureza – a questão suprema da filosofia no seu conjunto –“ (F.
Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Alemã Clássica, Obras Escolhidas,
T. 3, p.388, Edições Avante!) “Conforme esta questão era respondida desta ou
daquela maneira, os filósofos cindiam-se em dois grandes campos. Aqueles que
afirmavam a originariedade do espírito face à Natureza, que admitiam, portanto,
em última instância, uma criação do mundo, de qualquer espécie que fosse – e
esta criação é frequentemente, entre os filósofos, por exemplo, Hegel, ainda de
longe mais complicada e mais impossível do que no cristianismo - formavam o
campo do idealismo. Os outros, que viam a Natureza como o originário, pertencem
às diversas escolas do materialismo.” (idem). “Mas a questão da relação de
pensar e ser tem ainda um outro lado: como se comportam os nossos pensamentos
acerca do mundo que nos rodeia para com esse mesmo mundo? Está o nosso pensar
em condições de conhecer o mundo real, podemos nós produzir, nas nossas
representações e conceitos do mundo real, uma imagem especular (Spiegelbild) correta da realidade? Esta
questão chama-se, na linguagem filosófica, a questão da identidade de pensar e
ser, e é respondida afirmativamente, de longe, pelo maior número de filósofos.”
(ibidem, pp. 388-9). Este trecho célebre de Engels suscita-me, todavia, duas
reservas. Primeira- o termo “especular” remete para a analogia do espelho; ora,
o cérebro não é um espelho, o conhecimento não é mecânica passiva. Segundo- Não
há identidade entre pensar e ser tout
court, mas mediações dialéticas entre o sujeito e o objeto. Esta expressão
é hegeliana, portanto, idealismo absoluto. Estas reservas pontuais não
invalidam a substância do texto.
27. Os materialistas de todos os tempos
escolhem, portanto, racionalmente a primeira resposta. É a resposta do
bom-senso, ainda que não seja necessariamente a do senso-comum. Natureza ou
Matéria. Porém, porque a noção de Ser encontra-se à partida indeterminada –
noção superlativamente geral- pode resvalar, por dedução lógica, para o
indeterminado, vazio (pura abstração); porque, a matéria recebe determinações
sucessivas através da ciência; e porque a matéria ou Natureza possui como sua
propriedade essencial o movimento, vale então dizer que o Ser esteve e estará
sempre em processo adveniente. O Ser não é coisidade fixa, é devir, o que
está-para-vir e ainda-não-é. É processo. O Ser cria-se a si mesmo na sua
eternidade e infinitude. A unidade do mundo consiste na sua materialidade. Não
existem, pois, dois Seres (ou Substâncias), mas um único; por conseguinte, o
materialismo é uma filosofia do Uno e da (sua) Unidade. Afirmando-se o Ser em
devir, introduzimos desde o começo a dialética. Refletimo-la, abstraímo-la da
natureza do Ser. O materialismo não é uma metafísica especulativa da(s)
Substâncias (s) (inertes, sem desenvolvimento e mudança. A Unidade é Diferença
(diferenciação interna). A Natureza desenvolve-se no tempo. Não se desenrola
conforme um Plano pré-determinado: cria a sua própria história ( o nosso
universo nasceu, envelhece e há de morrer). O materialismo é espinosista na afirmação do Uno unívoco,
sem um fora-de-si, e hegeliano na
afirmação da Unidade contraditória que se move. O materialismo é um monismo
absoluto. A Matéria gerou de si mesma a possibilidade de se pensar a si
própria. A Natureza reconhece-se no homem; diferença na Identidade; a espécie
humana reconhece em si mesma a sua identidade com a Natureza. O Uno exprime-se
de múltiplos e diferentes modos. O marxista afirma que a primeira categoria
geral ( filosófica) da Matéria é a de
ser independente da consciência. Poder-se-ia dizer com Bento Espinosa: a
natureza possui uma infinidade de atributos, sendo um deles o pensamento. O
pensamento relaciona-se com o objeto precisamente porque este existe
independentemente do processo cognoscitivo. Por isso a escolha mais adequada
pra compreender esta relação é pela dialética sujeito/objeto. Na 1ª Tese sobre
Feuerbach Marx esclarece-nos: “A principal insuficiência de todo o materialismo
até aos nossos dias – o de Feuerbach incluído – é que as coisas, a realidade, o
mundo sensível são tomados apenas sob a forma do objeto ou da contemplação; mas
não como atividade sensível humana, práxis, não subjetivamente. Por isso
aconteceu que o lado ativo foi desenvolvido, em oposição ao materialismo, pelo
idealismo – mas apenas abstratamente, pois que o idealismo naturalmente não
conhece a atividade sensível, real, como tal. Feuerbach quer objetos sensíveis
realmente distintos dos objetos do pensamento; mas não toma a própria atividade
humana como atividade objetiva. (…)” ( Teses sobre Feuerbach, Obras Escolhidas,
t. 1, Ed. Avante!). Posição ao mesmo tempo monista e dialética. A categoria de
Todo ou Totalidade é inerente ao monismo materialista. Como categoria
filosófica é uma abstração. No caminhar do conhecimento formamos totalidades
(conceitos e categorias) que incluem totalidades já conhecidas sem jamais
virmos a conhecer o Todo ( a sua abertura é infinita). No plano científico
trata-se da ambição de unificar todas as leis numa única, todas as formas de
Energia numa só. Muito embora de uma forma especulativa ou intuitiva, nunca foi
outra a ambição do materialismo desde as suas origens: descobrir um Princípio.
Por todo o espaço-tempo material por onde o espírito caminha encontra sempre o
seu berço e o seu lar.
28. Vulgarizou-se (por ignorância ou má
fé) uma versão de materialismo caricatural. Nada mais errado. As filosofias
materialistas, logo na sua origem (Demócrito, Epicuro) são tão complexas quanto
as idealistas. Não há certezas se foi um indivíduo excecional que transgrediu a
forma sensível e mítica de ver e pensar, se foi um cúmulo de experiências
coletivas; julgamos que se verificou numa comunidade particular, circunstâncias
particulares. Como visão do mundo, porém, é mais ampla: além de textos
escritos, escolas e discípulos (comunidades de iniciados), engloba a
comunicação oral, comportamentos alternativos, que se verificaram em todos os
continentes. Apesar da mundivisão materialista, segundo a qual tudo que existe
é natural, ou deriva da Natureza (Matéria), parecer ser do senso-comum
(realismo espontâneo ou ingénuo) não o é, e menos o era nesse tempo; somente
circunstâncias sociais muito particulares, que hoje conhecemos, permitem
explicar a rutura ou evolução que foi o materialismo como crença racional. Ou
seja: a conjugação da práxis com a razão. Do mesmo modo diferentes condições de
vária ordem (mental e material) explicam o apagamento da alternativa
materialista durante séculos no continente europeu como já vimos. Determinante
foi, seguramente, o modo de organização económica e do poder político que lhe
correspondia. A mundivisão materialista somente
voltou a conquistar espaço livre nas novas cidades burguesas. Os estudos
históricos demonstram, portanto, a correção das teses do materialismo
histórico.
Uma ontologia para uma gnosiologia
29. Aqueles que refutam o materialismo
dialético estribando-se exclusivamente numa teoria do conhecimento, não
encontram fundamento que sustente essa posição. Uma gnosiologia sem uma
ontologia não possui sentido algum. O que
é que se conhece é a questão, e não exclusivamente o como se conhece. Sem o que é
nem sequer se conhece coisa alguma. Todos os filósofos idealistas (desde Platão
e Aristóteles) reconhecem a existência da Matéria, subordinando-a às formas do
espírito é claro, pois sem a inclusão da Matéria (uma determinada ficção da
Natureza) o seu idealismo nem seria possível de todo. Porém, o materialismo
nega que a Matéria exista e se mova apenas por
causa de “formas” (ou categorias) colocadas nela pelo espírito, ou que a
matéria em-si seja incognoscível. Quando o homem a conhece ela converte-se num
ser-para-mim; e tal é possível porque a Matéria é independente, conjunto de
coisas e fenómenos que agem sobre os sentidos e sobre o entendimento. Tudo o
que sabemos hoje demonstra que somos seres bio-sociais. Na caraterística
“sociais” cabem abundantes elementos materiais. Nós dependemos da natureza,
pela origem, pela constituição, pela sobrevivência; a natureza, pelas suas
origens e infinidade, não dependeu, nem depende, do homem para coisa alguma. As
suas regularidades, repetições ou mudanças, não dependem de nós. Materialismo
ontológico, epistemológico, prático, histórico. Marx criou os fundamentos do
materialismo histórico e do materialismo dialético; Engels, a ontologia em
cooperação com o seu amigo. Na divisão do trabalho entre os dois amigos
exemplares, coube ao último esta tarefa. A correspondência diária entre ambos o
demonstra cabalmente. (Fizemos alusão a este assunto no último ensaio publicado
aqui)
30. Os idealismos subjetivos que
menorizam a estrutura biológica e material do homem, tendem a hipostasiar a
vontade e o “livre-arbítrio” (ficção que Espinosa foi o primeiro a censurar),
como se verifica na inflexão da sociologia contemporânea (individualismo,
subjetivismo). Valem de pouco as críticas ao “determinismo materialista” vindas
de idealistas e de alguns marxistas erráticos, para tal é conveniente que não
caiamos nos excessos ingénuos dos materialistas das Luzes (comum a toda a
ciência do tempo, de resto). Paradoxalmente (aparentemente) assistiu-se a um
surto de biologismos, num teatro trágico encenado sobre o mecanicismo de
Hobbes, que conduziu a teses racistas (resultados inevitáveis do positivismo).
Pode-se dizer, a propósito, que as disputas teóricas só têm solução na vida
real. Não só as resolve como desnuda a sua natureza ideológica. Não chamarei
materialistas aos “biologistas” da estirpe de Desmond Morris, mas, antes,
naturalistas. Não chamaria materialista a Chomsky que advoga a natureza inata
da linguagem humana, mas, antes, neo-kantiano.
31. A ontologia materialista não mais
deveria ser acusada de determinista depois que introduziu na filosofia a
categoria marxiana da práxis. A
relação do homem com a natureza realiza-se pela mediação da práxis. Não existe
um dualismo de duas entidades independentes.
Do Conhecimento
32. Contudo, surgirá outra interrogação:
como se processa o conhecimento, admitindo como irrecusável a práxis? A
expressão utilizada por Lenine é o ”reflexo”. Contra ela caíram as acusações de
“realismo passivo”, cópia, teoria do ”espelho”. De facto, Lénine serviu-se dos
termos “cópia”, “fotografia”, “espelho”, no que foi um momento, raro, de
infelicidade do genial teórico. O termo “reflexo” (Lenine vai busca-lo a
Engels) é equívoco a menos que signifique adequação
e ênfase na prevalência da realidade objetiva. Os sentidos refletem as propriedades dos objetos, de algum modo, mas através de
imagens processadas pelo cérebro, não as copiam
nem espelham. A imagem assemelha-se (mas não é) a uma fotografia invertida mas é o cérebro que a interpreta (identifica-a,
insere-a numa categoria)[19].
É evidente que sem estímulos externos os aparelhos sensoriais dos seres vivos
não surgiriam, nem se modificariam, nas etapas da evolução. Jean Piaget usou a
expressão “assimilação” (oriunda da biologia) e não é por uma palavra que se
deva acusar de “biologismo”. Pavlov criou os termos “reflexos simples e
reflexos condicionados” e o behaviorismo fez deles a sua base de trabalho (J.
Watson e Skinner). Marx, em O Capital,
t.1, utiliza o termo reflexão. A
terminologia de Lenine fez do seu livro um alvo preferencial de marxistas
revisionistas e anti-marxistas. Na verdade era a ontologia que queriam atacar.
Precisamente o que fornece a esse livro a sua máxima importância e a sua
atualidade. O problema do conhecimento virá, em Lenine, a ser resolvido
posteriormente numa conceção dialética melhor esclarecida.
33. Sabemos que sem linguagem não há
desenvolvimento intelectual da criança; com toda a segurança dizemos que o
mesmo sucedeu com os primeiros homo
sapiens que, por efeito de uma mutação, puderam pronunciar sons articulados
com significados. As ideias não são
apenas imagens, e estas não são cópias. Os empiristas mostraram sempre grandes
dificuldades para explicar a formação de ideias por associações de sensações,
imbróglio que Kant resolveu ao modo idealista na sua Crítica da Razão Pura. Na realidade da perceção resultam imagens e
“esquemas”, as ideias representam abstrações, generalizações. Mais tarde
podemos, então, abstrair das coisas objetivas as suas propriedades essenciais.
O convívio prático com outras pessoas constitui uma mediação fundamental para a
formação das ideias. Os cegos e os surdos-mudos também pensam. O cérebro
processa operações segundo regras (frases com significados, associações, regras
lógico-dedutivas). É uma esfera com autonomia relativa porque não independe da
observação, assimilação, experiência sensorial e social, ainda que se governe a
si própria num diálogo com a realidade exterior. Dizemos: o pensamento é um
produto do cérebro. É uma frase composta de noções, conceitos abstratos. É por
meio do sistema nervoso central que pensamos. Traduzimos, por processos
complexos, um facto objetivo. Sem o pensamento (que não é somente linguagem
fonética) não poderíamos afirmar coisa alguma; sem o cérebro não poderíamos
pensar. É neste quadro de identidades/diferenças (que ainda constituiu o mais
profundo enigma), que o idealismo sempre se movimentou. Navegou ao sabor da
ignorância dos processos reais, separando com uma parede o que está conectado
entre si. Movimentou-se pelo interesse ideológico e prático que poderia extrair
dessa ignorância e desse enigma. Na verdade, para compor o próprio problema,
compor palavras-conceitos, construir uma resposta dentre um reportório,
desenvolver um discurso argumentativo coerente, necessitamos de um cérebro e de
práticas sociais (comunicar é a primeira delas). A cada passo da mudança das
práticas sociais, a cada passo da evolução das ciências, o idealismo perde um
dedo ou um braço: o empirismo de Locke a Hume destronou a sustentação metafísica
do racionalismo cartesiano; a Crítica de Kant fez oscilar até aos alicerces
tanto o racionalismo puro (dogmático) como o puro empirismo; a dialética de
Hegel, profundamente corrosiva de todos eles, mas também do materialismo
metafísico, abriu brechas irreparáveis na Lógica convencional. No terreno, quem
se digladia hoje são versões autocorrigidas de empirismo, positivismo,
idealismo, etc. Sente-se uma espécie de recauchutagem… O próprio materialismo
manteve-se imutável? Não. O materialismo histórico não se conserva intocável em
recorte dogmático de um punhado de frases sagradas que traduziam, deve-se
dizê-lo, um determinado período histórico (cultural, económico, político) e
mental dos seus autores. As experimentações políticas (revoluções e regimes)
fracassadas, os sete fôlegos de que o capitalismo parece estar dotado como os
gatos, colocam enormes desafios. Porém, ao mesmo tempo que é necessário
recompor, é fundamental reafirmar a vitalidade do materialismo dialético,
porque a própria evolução das ciências vêm demonstrar o acerto dos seus
enunciados estruturantes: a Contradição está no âmago da Matéria (Heráclito
triunfou!), a dialética desordem/ordem, desorganização/organização, conexões e
reciprocidade, saltos qualitativos e singularidades, certeza/incerteza,
unidade/multiplicidade, enfim: um neocórtex que começa a revelar o segredo do
pensar e um início do Universo que não lembra Deus de modo nenhum…O
materialismo histórico vê reconfirmadas as suas descobertas: a economia (o modo
de produção) como base estruturante das sociedades; as concomitantes lutas de
classes…
34. O conhecimento não é um mero
“reflexo” simples, especular, ou cópia: é uma adequação por meios próprios aos fenómenos objetivos; uma
reprodução-integração através de representações formais – na criança: das mais
concretas às mais abstratas – e discursos linguísticos. Eliminemos o
mecanicismo da reflexologia de Pavlov (conservando os reflexos condicionados) e
o excessivo formalismo da teoria construtivista de Piaget e talvez nos aproximemos
de um modelo do conhecimento mais explicativo. Pensamos com categorias que as
sociedades criaram. Interpretamos o mundo conforme “quadros explicativos” que
aprendemos. O conhecimento é uma atividade social. O que lemos em Marx é uma
teoria do conhecimento que se baseia em dois eixos: a objetividade (a realidade
independente da práxis social, e a práxis social (o trabalho em primeiro lugar
na origem do processo, ação sobre os objetos e a interação entre os indivíduos
– relações que se estabelecem no processo de sociabilidade). É certo que
encontramos em Marx uma crítica do idealismo muito mais desenvolvida que a
crítica do empirismo, facto que tem dado azo a muitos equívocos. A objetividade
em Marx não equivale de modo nenhum a um materialismo grosseiro. A consciência,
por exemplo, é um produto eminentemente social (não exclusivamente, pois que
requereu uma organização cerebral complexa e singular no homem e que na criança
assistimos à sua maturação), nomeadamente nas origens da espécie humana. A
consciência não é um abstrato natural. A libertação relativamente às aparências
fenomenais, a captação das essências, não traduz um reflexo ou reprodução
mecânica e simplesmente reativa, mas uma operação formal das estruturas
intelectuais. Se aprendêssemos e julgássemos apenas pela experiência quotidiana
(sensorial, do senso-comum, desse “primeiro género de conhecimento” na
classificação espinosana) não iriamos mais além de um praticismo, certamente
que adequado muitas vezes à ação imediata e até transformadora – verificamo-lo
nas sociedades sem conhecimento científico – porém incapaz de haver formalizado
as leis newtonianas, a mecânica quântica, a mais-valia…
35. Marx afirmou desde textos da juventude a anterioridade
ontológica da natureza social do homem; o problema do conhecimento resolve-se a
partir desta base, ou seja: somente depois (Teses
contra Feuerbach, I e II); a anterioridade da natureza sobre a práxis (o
trabalho), é afirmada em O Capital, Livro
I, T.1 (o homem transforma em matérias-primas os recursos naturais.).
Engels ocupar-se-á de explanar esta ontologia no Anti-Dühring e na Dialética
da Natureza. A determinação do
que é antecede a gnosiologia, fundamenta a solução do problema gnosiológico (a
relação sujeito/objeto). A resposta ao problema do conhecimento é, portanto,
subsequente.
36. Relativamente à teoria do conhecimento encontro em
Marx duas posições: uma posição realista- ontológica que afirma sem equívocos a
prioridade e objetividade da realidade independente do sujeito cognoscente; uma
posição gnosiológica que afirma o carácter social do conhecimento e o trabalho
como fator básico; dimensão gnosiológica intransitiva e transitiva
respetivamente. Por conseguinte, a prática é a categoria geral para esta
segunda dimensão. Os marxismos têm-se dividido entre aqueles que leem em Marx
as duas dimensões e aqueles que somente querem ler a segunda. Julgo incorreta a
segunda leitura. Abre o campo a um género de idealismo da práxis- ao perder a objetividade- e incorre em graves
consequências na prática precisamente. Preocupados em desfazerem-se da
metafísica, os “filósofos da práxis” amputam o materialismo histórico da sua
base materialista (dialética). Tentando expulsar o positivismo deixam-no entrar
pela porta dos fundos: a coisa-em-si inatingível.
37. O conhecimento desenvolveu-se quando o homem começou a
produzir os seus meios de subsistência. O ato de produzir incorpora o
conhecimento e desenvolve-o. Evolução concomitante: cérebro, atividade
produtiva, conhecimento, aprendizagem, comunicação, comunidade. A estas inter-relações,
a este encadeamento de causas-efeito-causa de novos efeitos, a este carácter
processual dos fenómenos no qual os mais simples se organizam em sistemas mais
complexos e que integra saltos qualitativos, chamamos dialética. A dialética
não é um método formal criado pelo espírito pelo qual este se desenvolve sempre
dentro de si mesmo. A natureza é que se descobre a si mesma nos produtos do
cérebro. O idealismo separa o sujeito do objeto, a consciência e o mundo,
quando do que se trata é de unidade (mas não de identidade pura). Os dois lados
da mesma moeda. O idealismo (nomeadamente o subjetivo) ao proceder assim (com
cortes) apenas demonstra que os dois lados podem contradizer-se. Há diferenças
reais, mas a Diferença absoluta em que assenta o método metafísico é falsa.
A
historicidade de tudo
38. O que sempre faltou à Filosofia (tanto idealista como
materialista) foi compreender que tudo que existe possui uma história, ou
estender a historicidade não apenas às ideias e culturas, mas também à natureza
e às práticas sociais na totalidade. Desde a mais bruta rocha até à mais pura
das ideias. Este novo paradigma (novo “continente”) deve-se a Marx e a Engels.
A história concreta e material das sociedades humanas (Marx), a historicidade
inerente a todos os fenómenos naturais (Engels). No primeiro caso nunca, em
tempo algum, se explicara a história nesses termos (formação e desenvolvimento
de diferentes modos de produção com incidência decisiva sobre as ideias
políticas, morais, religiosas). A revolução marxiana é comparável à revolução
galilaica: esta fundou a ciência tout
court; a de Marx – a dialeticidade da história- penetrou e fecundou todas
ciências e saberes, quer os seus filósofos o queiram ou não. Para demonstrar
que a ideia de história se aplica também à natureza, Engels serviu-se dos dados
das ciências. Não foi somente a ideia de história
que Marx estendeu, a ideia simplificada de que no presente há um passado que o
explica (antes dele já existiam historiadores), mas a ideia de que a história é
um processo contraditório e por isso evolutivo, no qual a produção e reprodução
das formas de sociabilidade desempenha o papel capital. A formidável descoberta
da filosofia alemã – a Dialética da Ideia – desceu da “cabeça” para os “pés” do
chão que pisamos. A dialética da História inicia-se na coordenação do cérebro e
da mão do homem primitivo, com as propriedades objetivas do objeto (alimentos,
vestuário, etc.). Quando uma mulher anónima, analfabeta e grosseira, descobriu
casualmente a primeira sementeira que produziu, memorizou e refletiu sobre a
técnica, correu a transmiti-la ao clã, e o trabalho, cooperativo, deu um salto
qualitativo, e isto é dialética.
39. O primeiro postulado filosófico da
Dialética começa por constatar que nada
permanece o que é. O que é já foi outra coisa e outra coisa virá a ser.
Quem diz dialética diz movimento, mudança.
Por conseguinte, colocar-se do ponto de vista da dialética significa colocar-se
no ponto de vista do movimento, da mudança. Quando quisermos estudar as coisas
segundo a dialética, iremos estudá-las nos seus movimentos (quânticos,
mecânicos, químicos, biológicos, sociais), conexões e contradições, que fazem a
mudança. Considerar as coisas do ponto de vista dialético é considerar cada
coisa como provisória, como tendo uma história no passado e devendo ter outra
no futuro, tendo um começo e devendo ter um fim. Portanto, colocar-se do ponto
de vista dialético é considerar que nada é eterno, salvo a mudança. É
considerar que nenhuma coisa particular pode ser eterna, senão o devir. O processo. Quem diz dialética não diz apenas movimento,
transformação, mas autodinamismo,
transformação operada por forças internas. Pois nem todo movimento é dialético.
O segundo postulado afirma a ação
recíproca dos fenómenos. O
encadeamento dos processos. Ao contrário da metafísica, a dialética não
considera as coisas na qualidade de objetos fixos, acabados, mas enquanto
movimentos.
Práxis no
sentido atribuído por Marx é a atividade universal, criadora e auto-criadora
por meio da qual o homem transforma o mundo, transformando-se por ela a si
mesmo. O “mundo” neste enunciado é necessária e logicamente a natureza (meio
ambiente) e a sociedade que sobre ela e com ela se erigiu, produzindo e
reproduzindo os seus meios de vida. Atividades industriosas (no sentido amplo)
e políticas. Desde a juventude Marx enfatiza a ação: a crítica da filosofia
especulativa assenta na categoria da práxis. Contudo, Marx não exclui
expressamente a teoria relativamente à práxis. Com a teoria (previsão,
planeamento) o homem transforma os meios e os fins materiais; as ideias convertem-se
em força material quando assimiladas pelas massas. Engels desenvolve o valor
fundamental da ciência para a atividade produtiva. A práxis tal como a definiu Marx, foi, e é, um conceito
revolucionário para as ciências sociais. Toda a variegada filosofia marxista
apoia-se nele para interpretar os poderes transformadores do homem no decorrer
da sua história desde os primeiros artefactos que fabricou. O conceito abrange,
necessária e evidentemente, as lutas de classes; por conseguinte, as lutas revolucionárias
das massas trabalhadoras. Por causa dele os marxismos dividiram-se conforme a
posição que lhe conferiram na teoria de Marx: com valor ontológico, excluindo o
materialismo dialético e, em alguns casos, o próprio materialismo histórico;
com restrito valor gnosiológico, atribuindo-se à Matéria, isto é, à unidade
material do mundo, o valor ontológico – a teoria de Marx será, neste sentido, o
materialismo dialético mais o
materialismo histórico. É esta posição que adoto, por considerar que a práxis pressupõe uma ontologia materialista
dialética. O pressuposto epistemológico geral e fundamental: a realidade
objetiva e não o trabalho. Alguns filósofos marxistas entendem que a práxis se
reduz ao trabalho. Entendo que não: práxis é mais do que o trabalho, embora
este constitua o elemento fundamental. A menos que se alargue o trabalho às
instituições e às ideias, o que não me parece consentâneo com as distinções
necessárias entre os planos da infra e supra- estrutura que Marx assinalou. G.
Lukács realizou um esforço extraordinário para expor uma ontologia do ser
social[20].
Julgo-a como a obra maior depois do Materialismo
e Empiriocriticismo, de Lenine, no século passado. Os três modos ou
expressões do ser social, segundo Lukács, são o Trabalho, a Reprodução, a Ideologia.
Eu utilizarei as categorias de ontologia geral e ontologia específica: a
primeira começa na categoria filosófica de Matéria; a segunda abrange o modo de
produção (nele estão incluídos o trabalho, a reprodução social e a Ideologia).
Não descarto, portanto, a categoria de modo de produção, tal é como é definido
por Marx na Contribuição à crítica da
economia política (Prefácio) de 1859.
Sobre o Trabalho
40. São vários os textos de Marx em que o
trabalho se distingue em dois momentos. O primeiro apresenta-se como
auto-alienação, o segundo como atividade livre. Nos Grundrisse e em O Capital
o trabalho é visto nesta perspetiva; portanto, o trabalho como alienação do
trabalhador deve ser abolido. Segundo interpreto não é o trabalho que deve ser
abolido, mas as condições (relações sociais de propriedade e produção) que
devem ser abolidas para que o trabalho se converta em atividade livre e
auto-criadora (atividade verdadeiramente social). Significa – só pode
significar- que o trabalho é uma categoria transhistórica,
isto é, não se aplica apenas ao modo de
produção capitalista. Foi assim entendido –como trabalho- pela cultura
marxista. Foi a tese exposta brilhantemente por Engels e prosseguida por Lukács
no seu último ensaio. Não foi assim que o entenderam Robert Kurz[21]
e Anselmo Jappe. A análise das formas e condições do trabalho sob o
capitalismo, segundo esses autores, conduziram-nos à conclusão de que antes do
capitalismo não se pode utilizar a categoria do trabalho. Então, deve-se
utilizar o quê? Os escravos, plebeus, servos, camponeses, etc., não
trabalhavam? Hesíodo, Prometeu, a Bíblia (Génesis) não exprimiram outra senão a
condição trabalhadora do homem (como constituição da humanidade ou o seu
castigo). A noção não é idêntica nas diversas línguas? O texto de Engels, O papel do trabalho na transformação do
macaco em homem é, de resto, paradigmático. O Velho Engels que estes
autores abominam e eu julgo saber porquê. As classes trabalhadoras evoluíram no
decorrer da história humana, a sua submissão e exploração também se
transformou. Não enxergar isto na história é negar a luta de classes. Que é
precisamente o que negam. Aliás, para os senhores do Grupo Krisis a eliminação da propriedade privada é também apenas uma
obsessão dos marxistas dogmáticos…
41. Trabalho – É por meio da troca de
mercadorias, e somente deste modo, que o trabalho privado que as produziu se
torna social. No processo da troca dos produtos desse trabalho ocorre a
equalização do trabalho (=trabalho abstrato), e só aí pode ocorrer. Porém, no
mesmo capítulo I do tomo 1 de O Capital, Marx distingue do trabalho abstrato o
trabalho útil ou concreto, que “é uma condição da existência humana
independentemente de qual seja a forma de sociedade”. Ou seja, sempre existiu o
trabalho; porém, a categoria de trabalho
abstrato só a aplica no processo de produção capitalista. As outras formas
de trabalho, anteriores ao capitalismo ou não capitalistas, devem ser
analisadas com outras categorias. O problema aqui é saber se num regime
socialista (anticapitalista) deve existir mercado. Se sim, qual o seu papel?
Dominante ou subordinado?
42. Os autores do Manifesto contra o Trabalho propõem a eliminação do trabalho, o que
só poderá ocorrer com a eliminação do capitalismo. Os indivíduos continuariam
não a “trabalhar” mas a desenvolver atividades necessárias e atividades
livremente escolhidas e o ócio. Trata-se de uma batalha meramente semântica? O
que importa é que o trabalhador não esteja mais subordinado a um proprietário
que se aproprie da mais-valia roubada ao trabalhador. O que passa pela
eliminação progressiva da propriedade privada dos meios de produção sociais (incluindo a força humana de
produção), pela autogestão da empresa pelos trabalhadores sem patrões, pela
planificação centralizada e por outros instrumentos. A sociedade que eles
propõem logo a seguir ao derrube do capitalismo, sem etapas, é uma típica
utopia, velha de dois séculos. Abolir o trabalho é uma quimera bucólica para
crianças.[22] Nem
sequer os utopistas do século XVIII a expressaram. O monge Dom Deschamps, o
mais radical deles, propôs a eliminação das cidades e da cultura, da moral e da
civilização (tal como ele a conheceu), o abandono do comércio e da respetiva
produção para a troca, o regresso ao campo, porém o trabalho mantinha-se e não
poderia ser de outro modo. Este surgiu com a hominização, elo fundamental de um
processo de mediações (metabolismo) do homem com a natureza, de cooperação,
fator decisivo do desenvolvimento da linguagem e de outras relações sociais. G.
Lukács analisa a questão no seu último estudo, “ Ontologia do ser social”, em
que retoma as teses de Engels sobre o papel do trabalho na socialização.[23]
É minha convicção de que o Trabalho é um elemento ontológico (filo e
ontogenético) da condição e da existência humana, embora enquadrado na
ontologia específica, pois que o materialismo é a ontologia geral: o que se
coloca em primeiro lugar é a materialidade do homem no seu lugar próprio
adentro da materialidade geral (Natureza), o Trabalho é a atividade da espécie
humana; o ontos é a natureza ou
matéria.
43. Os autores do “Manifesto contra o
Trabalho” denunciam a fétichização do
trabalho na sociedade capitalista. Porém, Marx sempre exprimiu com clareza o
fator propriedade privada como
elemento básico do modo de produção capitalista e o conflito entre trabalho
assalariado e capital. Enunciado que os autores do Manifesto contra o Trabalho desprezam. Menorizando manifestamente a
apropriação privada dos meios de produção, perde-se a compreensão do facto da força-de-trabalho ser uma mercadoria no
conjunto dos meios de produção privados. Manifestamente são conduzidos à
afirmação de que as lutas de classe não
constituem mais do que retórica para ajudar o capital a integrar os operários e
ganhar novos fôlegos. O que será, então, o comunismo? A eliminação do mercado
e, por conseguinte, da possibilidade de fetichização das mercadorias,
proclamam. Certamente, mas passamos ao lado da questão complexa da eliminação súbita do mercado, ou da necessidade de
conservá-lo/superá-lo sob formas completamente diferentes. O que reputamos
errado e inconsequente é a ideia de que os fenómenos de alienação, reificação e
fetichização, possam eclipsar-se (misteriosamente) sem, primeiro que tudo, a
abolição da apropriação privada capitalista. Enfim, sem o decurso de agudas
lutas de classe.
Sobre o Progresso
44. Progresso- As ideias progridem. É
absurdo que se negue o progresso das ideias desde a renascença, pelo menos, até
aos nossos dias. Coteje-se o período da Alta Idade Média (poder absoluto da
religião, mentalidade popular aterrorizada por demónios e bruxas) com os
progressos já no século das Luzes. Progresso das ideias políticas, éticas,
jurídicas, religiosas. De uma maneira geral as revoluções trouxeram progressos:
compare-se o regime fascista em Portugal com os progressos do 25 de Abril.
Progresso da técnica, das ciências, dos costumes, da moral, do Direito.
Progresso que não foi sempre contínuo e linear. Entrecortado por épocas de caos
e retrocessos. É esta uma questão essencial quando nos interrogamos sobre o
conceito de Progresso. As transformações dos modos de produção, a luta de
classes.
45. O idealismo, enquanto místico e
mistificante, resulta falso e mal formulados nos seus problemas específicos;
todavia, contêm um conteúdo real. Este conteúdo revela contradições objetivas e
conflitos da vida social concreta.
46. O que mais importa nas especulações
racionais que fundaram a filosofia ocidental é o método. Sem método não há filosofia, tal como sem ele não existiria
a ciência que hoje conhecemos. Variem embora os métodos para se alcançar
verdades, perdurou a necessidade absoluta de um método racional. É ele que
produz paradigmas.
47. Dialética do distanciamento/aproximação
foi a posição adotada por Marx e Engels sobre o idealismo hegeliano e o
materialismo francês e o de Feuerbach. É esta posição que adoto quando analiso,
por exemplo, o Iluminismo.
48. O capital, Livro II, O processo de
circulação do capital. Aqui Marx revela que a produção é também consumo,
distribuição e troca/circulação. Diminuir o tempo de circulação do capital,
diminuir a diferença entre o tempo de produção e o tempo de circulação. A
mercadoria precisa de ser vendida, sem a venda não há realização plena do
mais-valor já criado. Esta investigação de Marx é fundamental para se
compreender o processo de produção (forças e relações de produção) capitalista
e que se apresenta com plena atualidade. Tanto é errado separar o Livro I do
Livro II, como o é enfatizar os fenómenos estudados no Livro II (fetichização
da mercadoria) desprezando o núcleo da teoria do valor (a mais-valia) exposta
no Livro I. É o que fazem alguns autores (M. Postone, R. Kurz, R. Musse), na
esteira de Lukács (História e consciência
de classe), quando convertem o fenómeno do fetichismo da mercadoria em
“feixe estruturante e o princípio explicativo da principal obra de Marx”(R.
Musse), a “reificação” como critério decisivo das análises e diagnósticos do
presente histórico (R. Musse). Abandona-se a raiz da extorsão da mais-valia: a
apropriação privada dos meios de produção, incluindo a força de trabalho.[24]
Concomitantemente o controlo do sistema produtivo e distributivo, o controlo da
produção e difusão da informação, as causas profundas dos fenómenos de
parasitismo, etc. Abandona-se as lutas de classes. É o que fazem alguns
declaradamente. Descobriram-se os Grundrisse
no século passado. Bastante tempo depois Moishe Postone e outros autores
“descobriram” que esses apontamentos geniais de Marx podiam ser utilizados
contra as interpretações que os
marxistas realizavam tradicionalmente do capitalismo (a questão do
valor-trabalho e do valor-dinheiro). O fenómeno da fétichização encontra-se em O Capital, nomeadamente no livro
primeiro, t. I. O trabalho produtivo assalariado (não qualquer trabalho não
produtivo) e a conversão de tudo em mercadoria pelo capitalismo (e, portanto,
em dinheiro) constituem os eixos da obra madura de Marx. Marx não abandonou os
temas tratados, em apontamentos, nos cadernos-de-casa dos Grundrisse. Em ambas as obras Marx ocupa-se da análise do Trabalho
sob o capitalismo, isto é, da apropriação e exploração do trabalho vivo e o
fenómeno do trabalho socialmente necessário. É assim que devemos ler estes.
Enfatizar o fenómeno da fétichização,
tal como fora anteriormente o enfatizar da alienação,
desvinculando-o do modo de produção e reprodução capitalista nas suas bases e na sua totalidade, é retomar o idealismo
do Jovem Lukács, que ele mesmo criticou e corrigiu posteriormente. [i]
Ao contrário da opinião de alguns gurus as lutas pelo trabalho constituem
patamar necessário para se ascender à consciência politica de que o trabalho
alienado (doloroso) se converterá em atividade livre na sociedade comunista. O
estranhamento em relação ao produto do trabalho e a fétichização da mercadoria
desaparecerão necessariamente. A etapa socialista prepara as condições para a
eliminação da apropriação privada dos produtos sociais, a saber: a apropriação
privada da mais-valia produzida pelo trabalho vivo.
Síntese: Enunciados
gerais do materialismo
1. As filosofias
materialistas possuem milhares de anos. Nelas, em geral, a relação
sujeito/objeto é este que é determinante. O pensamento, nuns casos, é
considerado um epifenómeno (composto por elementos materiais), noutros, é um
derivado complexo, dotado de alguma autonomia na sua atividade, de condições
biossociais (sistema nervoso e práticas sociais). No seu sentido comum, o
denominador comum que os une desde os inícios, é a crença de que tudo é matéria
ou dela dependente. Na terminologia filosófica o Ser (classificado por vezes
como Substância – neste caso Substância única e Una -) é anterior
cronologicamente e determina gnosiologicamente o pensamento. Os materialismos -
antigo e moderno - anteriores a Marx, não reconheciam o papel ativo do sujeito
no processo do conhecimento (um papel passivo) e o papel da práxis. Estes dois
aspetos são fundamentais para distinguir os materialismos.
2. O materialismo é uma corrente filosófica e não uma ciência
particular. O conceito de “Matéria” é uma abstração; enuncia uma afirmação
existencial que se refere e engloba os múltiplos movimentos, as múltiplas
interações e transformações da energia (com ou sem massa), incluindo a “energia
escura” sobre a qual se especula.
3. Materialismos
diversos tomaram posições erradamente deterministas e mecanicistas; o
materialismo de Marx-Engels não é determinista e mecanicista.
4. O materialismo já
foi metafísico (século XVIII), não o é com Marx e Engels. Mas dialético. Na
noção de matéria abstraímos das diferenças qualitativas. Por isso, quando
falamos destas, devemos utilizar a expressão “materialidade”. A unidade do
mundo é a sua materialidade.
5. A partir destes enunciados podemos e devemos afirmar com
convicção e certeza de que o ser (ontos)
de tudo que sabemos existir e do que existirá e não sabemos (dedução
lógico-filosófica) é Matéria (ou Natureza) e, portanto, não um Espírito
(qualquer que seja a sua forma, desde que seja independente ou transcendente ou
criador da Matéria); Os seres humanos criam objetos materiais e imateriais,
porém a partir de matérias (coisas e forças naturais), não criam nem a Matéria,
nem a materialidade do universo, como é evidente; a realidade, no seu ser ou substância, não é uma criação da
mente; as leis da natureza, se fossem criação subjetiva não teriam servido para
nada; com isso, não se ignora nem se subestima o papel ativo da mente que
descobre e conceptualiza as propriedades, quantitativas e qualitativas, da
natureza; nesse sentido, a realidade é constituída por tudo aquilo que a mente
conhece e que se provou objetivamente; contudo, reais são também as nossas
ideias, o que não são é sempre objetivas. Portanto, somos materialistas (em
filosofia) por razões científicas. O idealismo entra em contradições e becos
sem saída, problemas mal formulados que o materialismo resolve por eliminação
progressiva. O idealismo é uma racionalização das crenças sobre a imortalidade
e independência do espírito (há no idealismo uma superstição –um pré-conceito -
que resiste). Da ontologia materialista decorre uma teoria do conhecimento que
afirma que os pensamentos não possuem uma autonomia absoluta em relação ao
sistema nervoso e às práticas sociais. As funções mentais são, neste sentido,
funções da matéria que pensa. Pensar é uma função desempenhada pelo cérebro
(mesmo que ele seja artificial). A destruição de alguma parte do cérebro
deixa-nos sem faculdades mentais ou sem vida. O que tem o idealismo a
contrariar estes simples factos? Dos instintos – reflexos inatos- e dos
reflexos condicionados determinados animais evoluíram para a capacidade de
elaborarem operações mentais cada vez mais abstratas. Das sensações para
operações racionais. O animal tornou-se capaz de criar espectativas e aprender
pela experiência. A tomada de consciência do seu próprio corpo (ou o corpo
tomando consciência de si) e a consciência do meio envolvente traduziu-se na
diferença entre o subjetivo e o objetivo. Os processos da consciência são
processos através dos quais nos relacionamos com os nossos semelhantes (em que
a linguagem desempenha um papel fundamental) e com a generalidade do mundo
exterior. Construímos relações sociais – grupais e intergrupais- cada vez mais
complexas que nos tornaram cada vez mais inteligentes, autoconscientes e
produtores de novos modos de viver e agir.
6. O Ser é cognoscível, não porque seja expressão da
Consciência que o conhece, mas porque esta é expressão do que conhece.
O trabalho é a base do ser social do homem. Basicamente relação (metabolismo) da espécie
humana com o meio ambiente. Desvincular o trabalho da origem biológica
(físico-química) não faz sentido, a espécie humana é uma matéria orgânica que
inventou o trabalho como adaptação à materialidade que o ameaçava e sustentava.
7. O problema fundamental da filosofia só tem sentido na
argumentação filosófica. Por isso muitos a desdenham. Porém, ela é fundamental,
desde que encarada no estrito âmbito da filosofia. Isto é, a relação do ser e
do pensar, em que ao primeiro cabe a primazia. Esse problema surgiu porque
existiam formas idealistas de explicação. Os idealistas possuem uma coisa em
comum: a negação da existência objetiva, independente, do mundo externo aos
sentidos, às representações, ou, o que é mesmo, a impossibilidade de conhecer a
coisa-em-si (portanto, não a sabem determinar). O que é uma forma de cegueira
do espírito à solta e, em determinada cáfila de intelectuais-sacerdotes, uma
pura manipulação dos espíritos incautos. [25]Quando
é ideológica e religiosa, é uma artimanha. A prática é a melhor prova e a
ciência uma prova maior. Enquanto Hume e Kant declaravam incognoscível a
coisa-em-si, fora das suas perceções (a que Hume tudo reduzia) os cientistas
demonstravam, pela prática, as propriedades da matéria…As filosofias idealistas
estiveram sempre em contradição com o materialismo espontâneo das ciências. Se
então a ciência servia os fins do capitalismo por que razão os filósofos a
contradiziam? Esta é a pergunta que merecia uma explicação.
8. O Manifesto
Comunista expõe na sua síntese admirável as linhas fundamentais dos
progressos induzidos pela burguesia e pelo capitalismo, ao mesmo tempo o seu
egoísmo como classe social, a sua crueldade, cinismo, instrumentalização dos
belos ideais com que a representaram os fundadores do liberalismo. Os seus
autores amadureceram a teoria económica que lhe estava subjacente, e nunca
renegaram essas páginas. Portanto, a análise critica dos períodos de formação
do capitalismo (cujo traçado abreviado mas com grande estilo já se encontra no
Manifesto) não deve omitir a dialética que está lá. Os progressos resultaram em
benefício exclusivo da burguesia? Não. No seu benefício principal mas não
exclusivo. Conquistas civilizacionais, que propiciaram o desenvolvimento do
proletariado e até por vezes devido às suas lutas. Os progressos não resultam
somente dos interesses particulares da classe dominante: resultaram amiúde de
lutas e contradições internas das formações sociais e das classes desejosas de
emancipação. O Progresso não deve ser encarado abstratamente, e conforme
critérios subjetivos, de nacionalidade, eurocêntricos. Nem conforme
exclusivamente critérios positivistas que enfatizam a tecnociência. O
proletariado não beneficia com as ditaduras e as barbáries, mas pode vir a
beneficiar das ciências e dos progressos civilizacionais. O Manifesto já é muito claro nisso.
9. Segundo alguns
filósofos contemporâneos o problema materialismo versus idealismo já não faz sentido (na cabecinha deles). O
argumento é frágil: assenta na equivocidade do termo “Matéria”. Ora, poder-se-ia
eventualmente escolher outro termo atribuindo-lhe o mesmo significado: Natureza
ou Energia, por exemplo, que o problema não se eliminaria. Porque o que está no
problema é a interrogação fundamental e primeira que distingue a filosofia de
uma qualquer ciência particular e que já o pensamento na sua forma mais
rudimentar de senso comum a coloca sob esta forma: Existe um Deus criador,
omnipotente e omnisciente? Qual destas duas realidades é anterior e
determinante: a Natureza ou o pensamento?
Quando se diz (muito equivocamente) que o ser e o pensamento
são idênticos não significa que a pedra ou o fígado são idênticos ao
pensamento. Também o cérebro não “segrega” o pensamento… Identidade ontológica:
o Ser (natural e social) coincide consigo próprio porque não existe a
substância (Ser) física e uma outra
completamente independente, a substância (meta-física)
Pensamento. Neste sentido filosófico, todo materialismo é um monismo: somente existe uma única
substância. O noús ( mente) e a epistéme ( conhecimento da verdade)
diferem da phisis, mas é esta que
lhes confere realidade objetiva. Identidade não abstrata (seria vazia), mas
concreta, que alberga profundas diferenças e contradições. Qual a relação entre
ser e pensamento? Neste sentido eu prefiro afirmar: diferença e
identidade. Ambos os polos relativos
um ao outro. Entre um átomo e o nosso corpo há uma profunda diferença; todavia,
sem uma determinada estrutura atómica não existiríamos (nem corpo físico, nem
pensamento).
No século vinte duas correntes filosóficas digladiaram-se
pela hegemonia: a corrente liberal-positivista encabeçada por Karl Popper e a
corrente estruturalista liderada por Althusser. No entanto, possuíam uma
plataforma comum: detestavam Hegel e combatiam-no. O grande filósofo alemão foi
um “cão morto” que, afinal e ainda bem, ressuscitou. Todas as posições conduzem
a excessos: verificam-se agora posições que consideram que a teoria marxiana
advém do hegelianismo exclusivamente, isto é, o seu materialismo resulta das
críticas hegelianas ao materialismo, sendo que o materialismo setecentista não
desempenhou papel nenhum. Desta feita arruma-se para o lado, mais uma vez, com
o Velho Engels (do seu genial livro Ludwig
Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã) que destacou aí tanto a
herança hegeliana, como a do materialismo francês. Ora, realmente as duas
fontes encontram-se espelhadas desde a juventude de Marx e Engels. E Engels,
colaborador, pensador autónomo e confidente do seu amigo, sabia-o melhor que
ninguém.
Porque julgamos nós que a crítica das posições filosóficas
idealistas é de decisiva importância no terreno das ideias? Em primeiro lugar,
porque somos, nós, os materialistas, alvo de ataques permanentes das classes
sociais reacionárias e das igrejas suas aliadas, revelando assim que as
conceções materialistas do mundo e da vida incomodam as ideologias políticas
que bloqueiam a emancipação humana; em segundo lugar, porque determinadas
crenças idealistas obstaculizam o progresso das ciências, da ética e, como o
demonstra a História, a condução correta da luta política.
A espécie humana, pelas suas caraterísticas cerebrais e
sociais, produziu desde os seus alvores mundos paralelos, crenças messiânicas,
que tanto serviram para exorcizar medos e incendiar revoltas contra os poderes
que oprimem, como para viver de joelhos voluntariamente submissos na segurança
aparente da “caverna”, essa imortal metáfora de Platão. Esta constatação, e a
crítica respetiva, chama-se Filosofia, e leva já dois mil e quinhentos anos.
Perdida a crítica durante séculos de obscurantismo, reencontrou-se há
quinhentos anos num livrinho magistral, a Utopia,
de Thomas More, um nobre imbuído de sinceros valores cristãos, os quais, no
fundo, refletem a pulsão utópica de que nos fala Ernst Bloch, o maior filósofo
do século passado.
Porque a ontologia materialista não recusa a Ética. Por isso,
propôs-se erradicar uma sociedade sem ética.
J. A. Nozes Pires
[1] Nesta contribuição para a batalha de ideias
contra o inimigo comum, a Crítica da Razão Consensual pressupõe, contudo,
outros alvos: a crítica da versão ideológica dogmática do marxismo-leninismo
que as cúpulas dirigentes dos regimes ditos do “Socialismo real” impuseram e
quiseram impor aos outros como a expressão “científica” (isto é a única e
consensual) do marxismo (URSS e países subordinados); a crítica a algumas
versões que julgo pouco ou nada marxianas que ainda perduram do “marxismo
ocidental”, geradas sob o impacto de novas condições do capitalismo ocidental,
em grande parte já expiradas; paralelamente (ou, quiçá, conjuntamente) a
crítica a alguns teóricos que se deixam embalar pelo “pós-modernismo” na sua
vertente reacionária, o qual remete o marxismo, com despudor e bastante
ignorância, para o lixo da história ou para a “noite onde todos os gatos são
pardos” das narrativas, onde tudo se equivale (Jean-François Lyotard, Derrida,
Vatimo et alter).
[2] Perry
Anderson em “Consideraciones sobre el marxismo ocidental”,1979, siglo XXI de
Espãna Editores, S.A.,1979, reimpressão 2012, afirma que “esta tradição” inclui
G. Lukács, Gramsci, Sartre e Althusser, Marcuse, Della Volpe e outros.
[3] A teoria
de que tudo se reduz a “interpretações”, muito na moda, é uma importação das
teses sobre a literatura (Heidegger, dos seus escritos depois da derrota alemã,
não está aqui ausente) e outras artes (a “mistura” de estilos no
pós-modernismo), com ecos tardios da psicanálise. Marx e Engels, que não são
pós-modernos, foram pioneiros na análise das representações e
interpretações que mal escondem os interesses particulares. Paul Ricoeur
chamou a Marx o primeiro dos filósofos da suspeita.
Este, sim, é um caminho científico e revolucionário. Que toda a verdade é uma
mera perspetiva, não o é.
[4] Um livro
notável sobre o imperialismo na sua fase atual: El Nuevo imperialismo”, de
David Harvey, ed. Akal, 2007. Ver também “El linguaje del Imperio, Léxico de la
ideologia americana”, de Domenico Losurdo, escolar y mayo editores, 2008. As
potências imperialistas utilizam definições abstratas e simplificadas de
Democracia para justificarem as suas intervenções militares; na verdade, são os
seus interesses económicos que defendem.
[5]
Distinga-se necessariamente destas correntes reacionárias pensadores marxistas
que aparecem incluídos na corrente do “pós-modernismo” sem as devidas
distinções. Veja-se a posição do notável filósofo norte-americano F. Jameson,
por exemplo em “El posmodernismo o la lógica cultural del capitalismo
avanzado”, Paidós, 2015, Barcelona-Buenos Aires-México. Referindo-se sobretudo
às artes escreve Jameson: “ Lo que ha
sucedido es que la producción estética actual se há integrado en la
prosucción de mercancias en general”, “toda esta cultura posmoderna, que
podríamos llamar estadounidense, es la expressión interna e superestructural de
toda una nueva ola de dominación militar e económica norteamericana de
dimensiones mundiales: en este sentido, como em toda la historia de las classes
sociales, el transfondo de la cultura lo constituyen la sangre, la tortura, la
muerte y el horror.”, pp.18-19. Sobre a Arte ver Fernando Guimarães, Os
problemas da Modernidade, Lisboa, Editorial Presença, 1994. De Perry Anderson
“As origens da Pós-Modernidade”,Lisboa, Lisboa, Edições 70, 2005.
[6] Marx-
Engels, Obras Escolhidas, t. 3, pág. 547, edições avante!-Lisboa, edições
Progresso- Moscovo, 1985.
[7] Sobre o
Materialismo clássico ver: Marx, Diferença da Filosofia da Natureza em
Demócrito e Epicuro, 1841; Obras de Jean Salem: La Legende de Démocrite, ed.
Krimé, L´atomisme antique: Démocrite, Épicure, Lucréce: la vérité du minuscule,
ed. Encre marine; de Olivier Bloch, Le Matérialisme, PUF, «Que sais-je?», 1995,
Matière à Histoires, Vrin, 1997.
[8] Engels,
Antigo Prefácio ao «[Anti-]Dühring, Sobre a Dialética, Obras Escolhidas, T.3,
p.64, Ed. Avante!
[9] F.
Engels, Antigo Prefácio ao «[Anti-]Dühring». Sobre a Dialética,
Obras Escolhidas, T.3, Ed. Avante!, p. 67.
[10] Ver:
Umberto Eco (coord.), Idade Média, vol.I, Bárbaros, Cristãos e Muçulmanos, Dom
Quixote, 800 ps.; Perry Anderson, Passagens da Antiguidade ao Feudalismo,
Edições Afrontamento, 2008.
[11]É comum
considerar-se que a separação sujeito/objeto (o sujeito pensante e o
espaço-extensão) inaugurada por Descartes promoveu a distinção materialismo/idealismo.
[12] A
literatura sobre as utopias é abundante. Ver, entre outras: Marx-Engels,
Manifesto do Partido Comunista, de Engels, Do Socialismo utópico ao Socialismo
científico, Obras Escolhidas, edições avante!; de Frank E. Manuel e Fritzie P.
Manuel, o importante estudo “Utopian Thout in the Western World, The Belknap
Press of Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1979; de Ernst
Bloch o incontornável “El Principio Esperanza”, 3 v., Editorial Trotta, 2006,
Madrid (há uma magnífica edição francesa); do nosso mais importante filósofo do
século passado, Vasco Magalhães Vilhena, “Utopia e utopistas franceses do
século XVIII, Livros Horizonte, 1980; do famoso crítico contemporâneo
norte-americano, Fredric Jameson, Archéologies du futur, le désir nommé utopie,
Max Milo, Paris, 2007; o mais recente livro de José-Barata Moura, Marx, Engels
e a crítica do utopismo, edições avante!, Lisboa, coleção Confrontos, 2015, 360
páginas, a mais bem documentada análise das posições dos fundadores do marxismo
relativamente ao utopismo do que até agora se conhece.
[13]
dialéctica do esclarecimento, p.12, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1985
[14] Idem,
pág. 13.
[15] Th. W.
Adorno, Dialéctica de la Ilustración, Obra completa,3, p. 13, Akal, 2013.
[16] Ibidem,
pág. 15.
[17] Manifesto do Partido Comunista, Obras Escolhidas, t.1,
p. 109, Edições Avante!
[18] “A
questão da relação do pensar com o ser, do espírito com a natureza – a questão
suprema da filosofia no seu conjunto –“ [18],
“Conforme esta questão era respondida desta ou daquela maneira, os filósofos
cindiam-se em dois grandes campos. Aqueles que afirmavam a originalidade do
espírito face à Natureza, que admitiam, portanto, em última instância, uma
criação do mundo, de qualquer espécie que fosse – e esta criação é frequentemente,
entre os filósofos, por exemplo, Hegel, ainda de longe mais complicada e mais
impossível do que no cristianismo - formavam o campo do idealismo. Os outros,
que viam a Natureza como o originário, pertencem às diversas escolas do
materialismo.” “Mas a questão da relação de pensar e ser tem ainda um outro
lado: como se comportam os nossos pensamentos acerca do mundo que nos rodeia
para com esse mesmo mundo? Está o nosso pensar em condições de conhecer o mundo
real, podemos nós produzir, nas nossas representações e conceitos do mundo
real, uma imagem especular (Spiegelbild)
correta da realidade? Esta questão chama-se, na linguagem filosófica, a questão
da identidade de pensar e ser, e é respondida afirmativamente, de longe, pelo
maior número de filósofos.” F. Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia
Alemã Clássica, Obras Escolhidas, t.3, p. 388, edições avante!
[19] Formas
elementares de conhecimento existem obviamente em muitas espécies, nos
mamíferos é regra geral, nos primatas muito desenvolvida conforme o demonstram
estudos. A realidade não é criada pelos aparelhos nervosos dessas espécies.
Atente-se, por exemplo, na longa e fascinante história do olho humano.
[20] Para
uma ontologia do ser social (tradução brasileira pela Boitempo); Prolegómenos
para uma ontologia do ser social (idem)
[21]
Manifesto contra o trabalho, Grupo Krisis, Antígona, 2003; O Fetichismo da
Mercadoria, Prefácio de Anselmo Jaspe, nota 1, p,12, Antígona, 2015. Esta
corrente teórica que hoje conquistou adeptos partiu de uma crítica à Modernidade,
culpabilizando-a de todos os males deste mundo e do outro, manipula conceitos
marxistas para chutar para a sargeta todas as experiências revolucionárias
socialistas e todos os partidos comunistas; despreza as lutas de classe e
dispara em direção a um anarquismo de “conselhos” que já tem barbas. O astuto
Bakunine anda por aí…A mim parece-me, no entanto, que estes anarquismos que
rondam as filosofias “rebeldes” (Deleuze, Foucault, Moishe Postone, Negri)
renovam as teses do pai Skinner coloridas de socialismo utópico.
[22] Os
autores do Manifesto contra o trabalho
denunciam a crise estrutural do emprego provocada pelas “revoluções
tecnológicas” e essa análise tem muito interesse. Contudo, esquecem-se da
deslocalização do emprego para outros continentes onde se proletariza em
grandes dimensões.
[23] “O
trabalho é a fonte de toda a riqueza, dizem os economistas políticos. Ele é
isso – juntamente com a Natureza, que lhe fornece a matéria [Stoff] que ele transforma em riqueza. Mas é
ainda infinitamente mais do que isso. Ele é a primeira condição fundamental de
toda a vida humana e, com efeito, num grau tal que, em certo sentido, temos de
dizer: ele criou o próprio homem.”, F. Engels, Quota-parte do trabalho na
hominização do macaco, p. 71, Obras Escolhidas, t.3, edições avante!
[24] “Na
crise da sociedade do trabalho, quer a propriedade privada quer a propriedade
estatal tornaram-se obsoletas, porque as duas formas de propriedade pressupõem
na mesma medida o processo de valorização do capital.”; “ A luta de classes está
no fim, porque a sociedade do trabalho está no fim”, Manifesto contra o
Trabalho, p.92/56, Antígona, Lisboa, 2003.
[25] Um
livrinho que todos os trabalhadores deviam ler: «A formação da Mentalidade
Submissa», de Vicente Romano, Deriva editora, Lisboa, 2006
[i]
Para o leitor menos informado transcrevemos extratos dos Grundrisse (coisificação, estranhamento, dinheiro) : «O
caráter
social da atividade, assim como a forma social do produto e a participação
do indivíduo
na produção,
aparece aqui diante dos indivíduos como algo estranho, como coisa; não
como sua conduta recíproca, mas como sua subordinação
a relações
que existem independentemente deles e que nascem do entrechoque de indivíduos
indiferentes entre si. A troca universal de atividades e produtos, que deveio
condição
vital para todo indivíduo singular, sua conexão
recíproca,
aparece para eles mesmos como algo estranho, autônomo, como
uma coisa. No valor de troca, a conexão social
entre as pessoas é transformada em um comportamento social
das coisas; o poder [Vermögen]
pessoal, em poder coisificado.» (p. 158/1285)
[…]
Quanto mais a produção se desenvolve de tal modo que cada
produtor devém
dependente do valor de troca de sua mercadoria, i.e., quanto mais o produto efetivamente devém valor de troca e o valor de troca devém o objeto imediato da produção, tanto mais têm de se desenvolver as relações
monetárias e as contradições que são imanentes à relação
monetária, à relação do produto consigo mesmo como
dinheiro. A necessidade da troca e a transformação do produto em puro valor de troca avançam na mesma medida da divisão do trabalho, i.e., com o caráter social da produção. Porém, na mesma medida em que cresce este último, cresce o poder do dinheiro, i.e., a relação de troca se fixa como um poder externo
frente aos produtores e deles independente. O que aparecia originariamente como
meio para o fomento da produção
converte-se em uma relação
estranha aos produtores. Na mesma proporção com que os produtores se tornam
dependentes da troca, a troca parece tornar-se independente deles e parece
crescer o abismo
entre
o produto como produto e o produto como valor de troca. O dinheiro não
gera essas contradições e antíteses;
ao
contrário,
o desenvolvimento dessas contradições e antíteses
gera o poder aparentemente transcendental do dinheiro […]
Karl Marx, Grundrisse, Manuscritos econômicos de
1857-1858, Esboços da crítica da economia política, pag. 158 /1285; 380/1285,
Boitempo editorial, São Paulo,e-book, @Created by PDF to ePub
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