Direitos
Humanos nas sociedades democráticas
Ana
Mouta Faria (CIES – ISCTE/IUL, Lisboa)
É
com muito prazer que participo neste Encontro com a Filosofia; quero começar
por agradecer a proposta que me foi feita para integrar o debate de hoje acerca
das ameaças e desafios que se colocam na atualidade às sociedades democráticas.
Sinto-me honrada pelo convite para fazer o enquadramento do debate que vai ser
aberto pelo Joaquim Araújo e pelo Nozes Pires, tanto mais que não sou, nem
nunca fui, especialista de temas como Direitos Humanos, Cidadania e outros
correlativos de uma área que há uns tempos se passou a chamar de Ciência
Política e que, na verdade sempre se encaixou muito bem na Filosofia, na
Filosofia Política, na Teoria Política ou, simplesmente, na Política. E também
não sou filósofa! Ou seja: não sou especialista de nenhum destes campos. A
minha profissão tem sido a de professora de História Contemporânea, e também a
de investigadora de algumas áreas temáticas dentro deste período; é, portanto
apenas com estas ‘ferramentas’ de ofício que venho participar na sessão de
hoje.
Daí,
de ser a História a minha área de trabalho, o ter sugerido aos organizadores
que o enquadramento a ser feito por mim começasse por uma perspetiva histórica
sobre a construção da cidadania nas sociedades democráticas da atualidade. E
pareceu-me que a questão dos Direitos Humanos era um bom fio condutor para abordar
as da cidadania e da democracia; estas não se esgotam no tema dos Direitos
Humanos, mas não existem sem direitos humanos; de modo que estes conceitos
passaram a equivaler-se, nos nossos dias, no discurso corrente.
Em
concreto, que significa abordar o tema em perspetiva histórica?
Significa,
antes do mais, situá-lo no tempo. É
por isso que quero lembrar que estes temas, tal como se colocam no nosso
dia-a-dia, marcam o nascimento da Época
Contemporânea – porque se geram, desenvolvem e estruturam com a chamada
Dupla Revolução (as mudanças que decorreram da Revolução Industrial britânica e
da Revolução Francesa de 1789), cujos efeitos “cruzados” (interdependentes)
mudaram radicalmente a caraterização das sociedades implantadas no espaço
euro-americano, ao longo dos cerca de 200 anos seguintes, conduzindo
diretamente ao mundo que hoje conhecemos.
Neste
lapso de tempo, o lugar dos indivíduos na sociedade transforma-se profundamente:
- na relação destes com o poder: deixámos de
ser, antes de tudo, súbditos de um
poder soberano, de autoridade inquestionável e passámos a cidadãos de comunidades (nações) ligados por um acordo coletivo, de
um pacto social em torno de um conjunto de princípios livremente aceites por todos;
- na relação dos indivíduos uns com os outros,
melhor dizendo, das relações entre classes
sociais, pois que a pertença a cada uma delas deixa de ser pré-determinada
pelo nascimento, existindo uma igualdade de todos perante a lei; e nas relações
entre maiorias e ‘minorias’.
Nesta
transformação, os Direitos Humanos começaram por ser o núcleo duro que definia
os direitos, liberdades e garantias de todos os indivíduos, a partir de agora cidadãos.
Esta
ideia - de que todos os membros de uma sociedade possuem um conjunto de
atributos dos quais não podem ser desapossados por nenhuma espécie de poder;
que são, por assim dizer, inatos à condição humana e por isso mesmo cada indivíduo deles tem a convição a partir da sua
consciência íntima, - que é aquele lugar de nós próprios onde conseguimos distinguir
entre o que está certo e o que está errado, que se exprime no conceito de direitos naturais, ou “lei escrita (por
Deus) no coração dos homens e, por isso, reconhecida pela razão”, que se
antepunha às leis impostas por qualquer poder externo - esta ideia, dizia, se é
na época contemporânea que vai ficar consagrada, até se transformar numa
‘imagem de marca’ da própria contemporaneidade, é, por outro lado, o resultado
duma intensa discussão filosófica entre diferentes correntes que se exprimem na
Europa a partir do século XVII, e depois no continente americano .
Antecedentes
Naturalmente,
há muitíssimos autores que procuram situar em épocas mais remotas, a ideia de
que a pessoa humana é dotada de direitos que o poder não pode ignorar; afinal,
sociedades que reconhecem aos seus membros, ou a uma parte deles, garantias que
o poder político não pode ultrapassar, encontram-se e conhecêmo-las desde a
Antiguidade Pré-clássica vivida no Próximo Oriente à Antiguidade Greco-Romana,
ou aos tempos medievais marcados pelo cristianismo, religião em que a dignidade
do ser humano lhe advinha da condição de filho de Deus, e por isso igual – como
irmão – a todos os outros seres humanos.
Embora
interessante, este é um tema que já tem relação distante com o debate que aqui
se irá fazer, o qual visa pensar o presente e o futuro, na medida em que – isto é como raciocina a cabeça do historiador – estes são condicionados ou desenhados pelo passado próximo ou
seja, da época em que o nosso
presente se insere.
Caminho percorrido
O
que já me parece pertinente para a nossa discussão é ter em conta o percurso que
os Direitos Humanos fizeram dentro da contemporaneidade; como se consagraram no
funcionamento das sociedades. Percurso que eu dividiria em duas fases
distintas:
- séc.
XIX e início do séc. XX – em que ocorre a adopção de um código “básico” de Direitos,
Liberdades e Garantias dentro dos diferentes Estados nacionais –
transformando-se na questão nuclear de uma legislação fundamental de cada
nação; esta legislação fundamental (o tal pacto
social) ficou em geral consagrada em documentos constitucionais. E, em
teoria, nenhuma outra legislação pode contrariar os princípios constitucionais porque
fica ferida de morte (inconstitucionalidade).
Os
países do continente europeu e dos continentes norte e sul americano foram-nos
aprovando à medida que derrubavam, no caso dos primeiros, os sistemas políticos
absolutistas de Antigo Regime e os
últimos o domínio colonial das potências europeias.
- a
segunda fase começa com o fim da segunda guerra mundial e carateriza-se pelo facto
de que os Direitos Humanos deixam de estar apenas consagrados no quadro
jurídico interno de cada nação, e passam, através de convenções e tratados
diplomáticos, ao ordenamento jurídico internacional, ao direito que regula as
relações internacionais. O que virá significar: i) que há uma codificação ‘mínima’ que é reconhecida por todos os
Estados que querem ter assento nos organismos internacionais como a ONU,
independentemente de tradições culturais específicas nessa matéria, desde que
reconheçam a Carta das Nações Unidas, aprovada em 1945; ii) que os
organismos internacionais passam a ter uma palavra a dizer em relação aos
Estados que desrespeitam os Direitos Humanos – são fonte do chamado direito de ingerência, cujos limites são
uma questão muito complexa e melindrosa (que podemos aprofundar, se quiserem).
Queria
voltar um pouco atrás, à primeira fase para sublinhar, e detalhar o modo como esta
nova condição social do ser humano se foi instituindo, através do derrube, no
decurso do séc. XIX, dos sistemas políticos absolutistas e coloniais; o que eu não
referi atrás foi o facto de esse derrube ter ocorrido, quase sempre por via
revolucionária. – a tal ponto que ao período entre 1789 e1848 se passou a
chamar a Era das Revoluções.
¤ A primeira consagração do conceito de direitos individuais ocorre
num texto anticolonial, a chamada Declaração
do Povo de Virgínia (1776, 12/Junho[1]) e vai logo influenciar, pela mão de Thomas Jefferson, a Declaração Americana da Independência (1776, 4/Julho), da qual constavam os
direitos naturais do ser humano que o poder político deve respeitar. Quais são?
“o direito de gozar a vida e a liberdade
com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade
e a segurança.” E mais: “Todas as vezes que um governo seja incapaz de preencher
a finalidade [do bem comum], a maioria da comunidade tem o direito indubitável,
inalienável e imprescritível de o reformar, mudar ou abolir, da maneira que
julgar mais própria a proporcionar o benefício público” (origem do direito à insurreição).
O
segundo grande momento de consagração, agora na Europa ocidental ocorre, como
sabem, com a Revolução Francesa de 1789, com a aprovação da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, que proclama que os direitos individuais e coletivos são
universais, inalienáveis e sagrados. Quais são? “a
liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”. Incluindo o direito à propriedade, todos são de natureza civil e
política.
É
no decurso de três vagas revolucionárias que percorrem o continente europeu e
sul-americano (1820-23, 1829-34 e 1848) e também com a revolução parisiense de 1871
que estes são alargados, quer quanto ao espaço geográfico em que são
reconhecidos, quer quanto ao âmbito.
Com
efeito, dos três princípios básicos da revolução francesa de 1789, Liberdade,
Igualdade e Fraternidade, os direitos inicialmente aprovados relacionam-se
principalmente com o princípio da Liberdade. As revoluções da década de 1820 e
de 1830, tendo em comum a luta contra os regimes absolutistas e pelo
alargamento do espaço do liberalismo político à Europa ocidental e à América
Latina, têm, no entanto, uma diferença: os revolucionários dos anos 1829-1834
reivindicam uma maior participação dos cidadãos nos sistemas políticos
liberais, nomeadamente quer através do alargamento do direito de voto a maior número
de indivíduos, quer da redução dos poderes régios. Mas em todos os casos, a
preocupação maior é a proteção do indivíduo em relação ao Estado, fixando os
limites da ação deste sempre que direitos estão em causa: fixam o que o Estado não pode fazer.
¤ Em 1848, a vaga de revoluções que ficou conhecida por Primavera
dos Povos, porque se propagam ao centro e ao leste do continente europeu, em
movimentos urbanos e com larga participação popular,
o inimigo passa a ser visto como de classe e as
reivindicações apontam prioritariamente ao aprofundamento no sentido da
Igualdade de oportunidades (sociais, educativas, de condições laborais) em nome
da Democracia, procurando atenuar os aspetos mais brutais da exploração das
classes trabalhadoras do novo mundo industrial; é assim que os Direitos Humanos
se alargam à esfera dos direitos económicos
e sociais. Estes aprofundam-se,
nomeadamente na parte da Europa germânica e oriental, sendo talvez o mais
importante pelos seus efeitos sociais, aquele de que decorre a extinção da servidão (que porém só virá a desaparecer
da legislação russa em 1861[2]).
Por outro lado, nos novos países sul-americanos saídos dos domínios coloniais
espanhol e português, a abolição da escravatura dos africanos e da servidão da
gleba dos nativos americanos vai fazendo um lento caminho, que dura quase até
ao final do século (1888, Brasil, com a Lei Áurea que abole a escravatura).
As
experiências da Comuna de Paris de 1848 e sobretudo da de 1871 vão alargar as
responsabilidades do Estado na concretização dos direitos humanos, através de
uma série de medidas, governativas, que decorrem do princípio das
responsabilidades do Estado para tornar efetivamemente universal (à escala
nacional, entenda-se) a fruição desses direitos; trata-se do papel do Estado na
concretização do princípio da Fraternidade: fixam o que o Estado está obrigado
a fazer.
¤ O papel positivo do Estado na concretização dos direitos de
cidadania vai aparecer reforçado em diferentes textos constitucionais do séc.
XX, também eles saídos de conjunturas revolucionárias, como a Constituição
Mexicana de 1917 e a Constituição alemã da república de Weimar, surgida da
revolução socialista contra o império alemão de 1919. Ao mesmo tempo que
continuam a alargar o seu âmbito: em primeiro lugar no campo dos direitos
políticos, como o direito de voto para as mulheres, e no campo das relações
laborais, com a jornada das 8 horas diárias e a integração das convenções
aprovadas pela Organização Internacional do Trabalho, (recém-criada no âmbito
da Sociedade das Nações). Além disso, alarga-se à área dos direitos económicos,
das classes populares, ao prever a nacionalização das empresas (Weimar, art.º
145) e a participação dos trabalhadores no planeamento da economia, por meio de
conselhos (idem, art.º 165). Mas, sobretudo, a direitos
sociais, - direito à educação, à saúde, à proteção da família, à
previdência social e outros do mesmo género, que só se efetivam através de
políticas públicas, isto é, programas de ação governamental, os quais exigem
dos Poderes Públicos uma redistribuirão de renda pela via tributária ou fiscal.[3]
Esta
viragem no entendimento do papel do Estado – daquilo de que este se deve abster
para aquilo que deve fazer - é o resultado da necessidade de se obter consenso
social sobre a forma de conter as tensões que atravessam as sociedades a partir
da industrialização oitocentista e da progressiva aquisição de direitos civis e
políticos por novas camadas, com a ‘entrada em cena’ das classes trabalhadoras
e das classes médias urbanas. Nomeadamente no que se refere aos direitos
relacionados com o trabalho (direito ao trabalho contra a precariedade,
remuneração justa contra o pauperismo, direito a lazer, abrangendo descanso
regular e férias, a previdência, significando seguro de doença, de desemprego, de velhice, direito a decente
habitação ou moradia), podemos dizer que os mais importantes atores dos movimentos sociais que os impuseram, no
século XIX e na primeira metade do século XX foram as classes populares,
urbanas, organizadas em Movimentos Operários, europeus e americanos (na dupla
vertente sindical e política).
¤ Como disse no início, a partir da segunda guerra mundial entra-se
numa nova fase em relação aos Direitos Humanos. Com a tomada de consciência das
tragédias e das atrocidades cometidas durante o conflito, forma-se, no bloco dos
países Aliados, uma aliança para estabelecer e manter a paz mundial, em torno
de um texto conjunto, assinado em Junho de 1945, que é a Carta das Nações Unidas (que marca o nascimento da ONU), assente “nos direitos fundamentais do homem, na
dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e
das mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas;” e tendo como um dos primeiros
objetivos “o respeito do
princípio da igualdade de direitos”(art.º1,
§2). Desta organização sai, três anos depois, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que até aos nossos dias
sofreu várias atualizações. Por outro lado, a área geográfica abrangida vai-se
alargar enormemente, aos continentes asiático e africano, devido ao ingresso
dos novos Estados independentes com a descolonização europeia e japonesa, das
décadas de 1950 e 1960.
É
em articulação com as Nações Unidas que se vai aprofundar o entendimento sobre
a efetivação dos Direitos Humanos, em relação a grupos específicos de pessoas –
a que, há pouco, me referi como ’minorias’ – mas que, na realidade, abrange
grupos que nem sempre são minoritários. Desde logo com a revisão da Convenção
de Genebra (em 1949) em relação aos prisioneiros de guerra, alargando as
garantias aos prisioneiros civis[4].
Por
outro lado, a atividade dos seus organismos especializados (nomeadamente OIT,
UNESCO, Comité dos Direitos Humanos, Comité da Descolonização, Tribunal Penal
Internacional,...) vai aprofundando o entendimento sobre os Direitos Humanos, em relação a
grupos específicos que são vítimas de normas jurídicas e/ou de práticas
sociais discriminatórias: o racismo, o trabalho infantil, a escravatura e a
escravatura branca (ou tráfico de mulheres para comércio sexual), a
desigualdade de género, a expulsão e extradição dos refugiados políticos ou de
guerra, etc., etc. Mas o trabalho destes organismos é igualmente importante no
sentido de aprofundar as responsabilidades estatais na concretização dos direitos
económicos, sociais e culturais, a par de outros direitos de solidariedade,
coletivos e de titularidade difusa, como o direito à paz, ao progresso, à
autodeterminação dos povos, etc.[5]
Neste
período, e continuando até aos dias de hoje, o aprofundamento não depende
apenas da atuação de tais organismos mas podemos dizer que esta se encontra
estreitamente ligada a uma multiplicidade de novos movimentos sociais, não necessariamente voltados para a luta revolucionária,
nem tendo por denominador comum a classe social, oriundos de minorias de
cidadãos ligados por uma qualquer condição comum (género, raça, religião,
orientação sexual), protagonizados por ativistas que lutam pela abolição de
medidas legais e de atitudes coletivas que mantêm esses grupos prisioneiros de
discriminações múltiplas em contradição com o princípio da Liberdade: refiro-me
aos movimentos feministas, anti-racistas, LGBT (lésbicas, gays, travestis,
transsexuais e transgénero), alter-globalistas e outros. Estes movimentos
desenvolvem a sua ação quer no interior dos seus próprios países quer em alianças
transnacionais, e articulam a sua atividade com as instituições internacionais,
num forte trabalho de lóbi.
¤ Nos nossos dias (fins do século XX e século XXI), a tomada de
consciência: i) dos efeitos da
industrialização e da globalização na exaustão dos recursos e nas destruições
ambientais, ii) das mudanças
tecnológicas para a sociedade da informação/do conhecimento/..., que por sua
vez geram novos grupos de excluídos (por exemplo os ‘refugiados do clima’, as
vítimas de novas formas de trabalho escravo e forçado, sobretudo entre os
imigrantes/refugiados económicos, o fenómeno da info-exclusão) tem desencadeado
novos tipos de movimentos sociais e novos aprofundamentos da concepção dos Direitos
Humanos, alargando-os aos Direitos Ambientais, ao Biodireito com a proteção do
Genoma humano, ao Direito à Informação e à Inclusão. Podemos aprofundar,
eventualmente no debate, esta última geração de direitos.
¤Ainda queria referir três pontos, estes essencialmente de síntese –
até porque é fácil desenvolvê-los a partir da internet – antes de concluir.
A – Ao
longo do tempo, no plano jurídico, foi-se consagrando um conjunto de
caraterísticas, aqui só enunciadas:
- Imprescritibilidade (sem prazo; não podem prescrever) -
Inalienabilidade (não podem ser transferidasde
uma para outra pessoa) - Inviolabilidade (de que resulta a possibilidade de aplicar sanções civis e criminais
contra os agentes do Estado se os desrespeitarem) -
Irrenunciabilidade (uma das que tem dado azo a
discussões polémicas: eutanásia, suicídio, aborto) -
Universalidade (sem distinção de nação, raça,
sexo, credo, convição pollítica ou filosófica) -
Efetividade (o que obriga o poder público a
atuar, através de mecanismos coercivos para a sua concretização) - Indivisibilidade (não
devem ser analisados separadamente. Ex: o direito à vida implica o direito à
segurança social; os direitos civis e políticos estão em pé de igualdade com os
direitos económicos ou culturais).
B – em 1979, um funcionário internacional e professor, o checo-francês
Karel Vasak (1929-2005), propôs uma tipologia ou classificação dos Direitos
Humanos por gerações, em
correspondência com o percurso histórico que tentei esquematizar, que visa mostrar o seu progressivo
alargamento desde o início da época contemporânea e até aos nossos dias. É uma
grelha muito conhecida (atualmente ensinada nas escolas), que apenas lembro:
DH da 1ª geração
Desenvolvimento
do princípio
de Liberdade
|
Direitos civis, políticos e liberdades
clássicas:
direito à vida, à
propriedade, liberdade de pensamento, expressão, crença, jurídica,
nacionalidade, participação
no governo, ...
|
DH da 2ª geração
Desenvolvimento
do princípio
de Igualdade
de oportunidades
|
Direitos económicos sociais e culturais:
trabalho, educação, saúde,
previdência social,
habitação/moradia (bras),
mínimo de subsistência
|
DH da 3ª geração
Desenvolvimento
do princípio
de Fraternidade
|
Direitos à solidariedade,
coletivos e de titularidade difusa:
ao ambiente equilibrado, a saudável
qualidade de vida, ao progresso,
à paz, autodeterminação dos
povos; outros direitos difusos e coletivos,
como dos consumidores, do
ambiente, entre outras designações.
|
DH da 4ª geração
(creio que já não
foram formulados
por K. Vasek)
|
Resultantes dos avanços
tecnológicos e da Declaração Universal sobre o Genoma Humano
(aprov. p/UNESCO em 1999):
condições para o exercício da atividade científica,
solidariedade e cooperação
estatal (nas áreas da saúde ligadas ao Genoma Humano);
Direito à inclusão digital;
a questão dos OGM (organismos geneticamente modificados)
|
E já se fala numa 5º geração.
C – Em matéria de Direitos
Humanos há uma importante questão que agora é impossível abordar, mas que é
parte estruturante da construção da cidadania nas sociedades democráticas de
hoje: é a dos deveres correlatos
desses direitos. Também eles são objeto de codificação jurídica, que aparece em
muitas constituições pelo mundo fora (Exemplos: Constituição Brasileira, Carta Africana dos Direitos dos Homens e dos Povos e outras).
Alguns desafios, no caminho a percorrer
Desta ‘viagem no tempo’ ou abordagem histórica
sobre a evolução dos Direitos Humanos na formação da condição cidadã nos nossos
dias, que aspetos me parece importante sublinhar, para encerrar a minha
exposição?
¤ Estreita
relação entre movimentos sociais e
Direitos Humanos: movimentos que se têm revestido de formas de ação muito
diversas. Inicialmente foram quase só de tipo revolucionário, mas à medida que
o liberalismo se vai tornando o quadro jurídico dos Estados Nacionais, as
formas mais radicais vão coexistindo com outras, melhor adaptadas em certas
conjunturas à relação de forças dentro da sociedade, e que são, em si mesmas,
fruto das novas liberdades e garantias políticas, usadas por uma massa
crescente de cidadãos: movimentos de
protesto, de rua, de propaganda, de lóbi, e outras formas de ação direta. Por
outro lado, as estruturas organizativas
deixaram de se restringir aos clubes, associações, sindicatos e partidos
de classe, para abrangerem associações de defesa, comités de luta,
observatórios; e as transformações tecnológicas porventura viabilizam novos
tipos de ação protestatária, de formas de denúncia e de boicote com fins
políticos, em que a rede será um elemento-chave.
¤ A
evolução dos Direitos Humanos, no duplo sentido do aprofundamento dos direitos
e do alargamento das áreas geopolíticas onde se encontram consagrados, não foi,
de modo nenhum, um processo linear; pelo contrário, houve avanços e recuos, dependentes da relação de forças, primeiro no
interior de cada país, hoje em dia, à escala internacional (ex: UE). Nas fases
em que as classes populares estiveram na ofensiva, os Direitos Humanos
alargam-se e aprofundam-se; quando a ofensiva pertence aos grupos dominantes, o
seu universo restringe-se, mesmo que, muitas vezes, permaneçam no papel, ‘para
ONU ver’. Alguns hoje em dia andam desaparecidos, como o direito à insurreição,
ou o direito à felicidade, que só se mantém na constituição norte-americana.
Como manter e defender os direitos em conjunturas em que a relação de forças é
desfavorável às classes que as impuseram?
¤ Há que
pensar com muita atenção no significado da expressão universais, sobretudo no plano das Relações Internacionais. Não o
devemos confundir com a imposição de um modelo único de sistema político
moldado nas instituições euro-americanas (ocidentais) da democracia
representativa/eleitoral, pois pode haver – e há, certamente - outros modelos
que sirvam melhor povos com histórias diferentes. A Carta Africana dos Direitos dos Homens e dos Povos e a Declaração Islâmica Universal dos Direitos
Humanos[6] aí estão para atestar
que nem todas as culturas se revêm no mesmo modelo. Este é um desafio,
nomeadamente para as Organizações Não Governamentais, ou para fixar os limites
do direito de ingerência.
¤ Outra
questão, muito complexa mas real, é a dos custos
das políticas públicas a que o Estado está obrigado para tornar
efetivamente universais os Direitos Humanos. Que são cada vez mais elevados à
medida dos avanços científicos e da alteração dos comportamentos demográficos
(com mais população idosa, menos população ativa e maior limitação da
natalidade). Nenhuma força política pode ignorar a questão - até porque marca
uma linha divisória entre Esquerda e Direita - que se coloca sobretudo no longo
prazo, e por isso é fácil empurrá-la para ‘debaixo do tapete’, pela impopularidade
das medidas a adotar.
¤ Por último, quero sublinhar a complexidade
desta questão no contexto da sociedade do conhecimento – os avanços da ciência
são tão rápidos que exigem dos cidadãos, não só consciência política e
militância, mas também a assunção de que a cultura científica faz parte da
bagagem do cidadão-militante.
Muito obrigada.
[1] ”Direito
de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades,
de procurar obter a felicidade e a segurança”
[2] Por
reforma de Alexandre II; a situação de miséria da maioria dos mujiques
mantém-se sem grande alteração até 1917.
[3] “A
Constituição de Weimar”, artigo
de Fábio Konder Comparato visto
a 15/06/2016 em: http://www.dhnet.org.br/educar/redeedh/anthist/alema1919.htm
[4] Entre
1864 e 1949 são assinadas 4 convenções de Genebra. Tratados definindo as normas
para as leis internacionais relativas ao Direito Humanitário internacional: direitos
e deveres das pessoas, combatentes ou não, em tempo de guerra. Duas revisões:
1977 e 2005.
[5] Pactos
Internacionais das NU, respectivamente, sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais e sobre os Direitos Civis e Políticos de
16/12/1966;
Convenção das
NU sobre a Prevenção e Punição dos Crimes de Genocídio de 9/12/1948,
Convenção Internacional das NU s/ a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação
Racial de 21/12/ 1965,
Declaração
das NU s/os Direitos dos Portadores de Retardamento Mental de 20/12/1971;
Declaração
das NU s/os Direitos dos Portadores de Deficiências de 9/12/1975;
Convenção das
NU s/a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra a Mulher de 18/12/1979,
Declaração das NU s/ Princípios Básicos de Justiça para Vítimas de Crimes e Abuso de
Poder de 29/11/1985,
Convenção das
NU s/os Direitos da Criança de
20/11/1989,
Normas Padrão
das NU s/a Igualdade de Oportunidade para Indivíduos Portadores de Deficiências de 20/12/1993,
Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produção e Estocagem de Armas
Bacteriológicas (Biológicas)
e Toxínicas e sua
Destruição de 16/12/1972,
a Convenção da UNESCO relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do
Ensino de 16/12/1960,
[6] ambas aprovadas em 1981, a primeira pela
Organização da Unidade Africana e a segunda por um Conselho Islâmico, baseada no direito decorrente do Corão e da
Suna.
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