terça-feira, 3 de maio de 2016

Comunicação ao 2º ENCONTRO COM A FILOSOFIA- J.A. Nozes Pires



Comunicação ao 2º ENCONTRO COM A FILOSOFIA

«O Espaço Público: controlo e privatização»

Caros participantes, obrigado pela vossa presença que é um forte estímulo para continuarmos estes encontros.
Eis-nos no 2º. Do primeiro publicámos online os textos das comunicações num blogue provisório que já recebeu abundantes visitas. Encontra-se aqui ao vosso dispor o 1º Caderno com essas comunicações.
Estes Encontros constituem a primeira atividade da Universidade Popular de Torres Vedras, por ora designada Comissão Instaladora. A criação da UPTV será a realização de um sonho que acalento de há uns anos para cá. Paulatinamente, sem precipitações, iremos erguê-lo. Dentro de alguns meses esperamos formalizar a sua abertura com um evento condigno. Já têm convosco o manifesto com os seus objetivos e um programa de ações. Gostaríamos de recolher o máximo de sugestões. A sua abertura à participação de todos sem discriminações e elitismos, é para nós um princípio inflexível. Uma Universidade Popular assenta nesse pilar, ainda que apenas alguns desempenhem um papel mais ativo.
A UP intervirá no espaço público de maneira particular, sem pretender sobrepor-se ou colidir com outras instituições culturais já consolidadas neste Concelho. Procurará cooperações e complementaridades.
Intervir no espaço público, digo eu. Trata-se precisamente do tema que hoje abordamos.
O que é o Espaço Público?
Os convidados a intervir nesta tarde irão abordar a pergunta de diversos ângulos. Nenhum o poderá abordar de forma exaustiva por razões de tempo, embora não lhes falte engenho.
É que a resposta a essa pergunta abrangeria um amplo leque de aspetos.
Nesta minha comunicação, obrigando-me a dar o primeiro exemplo de brevidade, vou expor as minhas perspetivas sob a forma de tópicos. Permitiriam a discussão que, porém, vai ser difícil realizar-se dada a afluência de respostas positivas aos meus convites. Teremos todos de condensar as nossas comunicações. Os textos mais alongados serão publicados.
 I.
De uma maneira inicial e genérica espaço público é tudo que não é espaço privado, entendendo-se este, quase de maneira óbvia, o espaço da vida familiar ou puramente individual. É discreto, em certos casos uma fortaleza inexpugnável onde podem desenrolar-se os acontecimentos mais violentos e perversos que até os vizinhos ignoram. O Direito comum garante esta privacidade: é necessário um mandado para a autoridade pública penetrar e pode-se com determinados limites abater-se um intruso criminoso.
Falamos em espaço físico. Será, no entanto, físico apenas? Compreende com certeza o livre pensamento, a livre orientação filosófica, religiosa, política, sexual. Contudo, sem a livre expressão no espaço público não se realizaria, não falaríamos sequer de liberdade, embora um indivíduo se possa sentir livre desde que não se submeta. Portanto, as liberdades privadas, a sua realização, exigem o espaço público. Os direitos têm de ser garantidos e protegidos por regras ou normas comunitárias ou políticas. Quando isso não se verifica –por exemplo na ditadura que foi derrubada em 25 de Abril de 1974- os indivíduos revoltam-se contra as forças que proíbem ou obstaculizam de algum modo o exercício dos seus direitos. Todos estes casos se verificam nas lutas por um espaço público que promova e garanta os direitos de expressão efetiva. O espaço público, portanto, não é pura abstração: é o conjunto dinâmico e potencialmente conflitual de estamentos ou classes sociais e das instituições económicas, políticas e ideológicas que o controlam ou nele se digladiam. Os direitos e liberdades modernas constituem conquistas civilizacionais e históricas sob condições concretas, nas quais avulta o papel das lutas de classes. Nas doutrinas liberais distingue-se a “sociedade civil” do Estado, não se ficando a saber muito bem se a “sociedade civil” é constituída apenas pelo espaço privado (o espaço das atividades económicas por exemplo) ou também pelo espaço público. O mais verdadeiro é que o Estado intervém no espaço público, seja através do consenso, seja pela força. Qualquer classe dominante tem necessitado até hoje de um poder administrativo centralizado, um conjunto de aparelhos de coerção. O espaço público é, portanto, controlado por modos que se vão sofisticando e que dependem em primeiro lugar da corelação de forças e dos interesses dos sectores sociais que exercem a dominação. Se gozarem de força suficiente (económica, política e militar) e se os seus interesses estiverem em perigo no confronto de classes, recorrem à violência e às ditaduras; se não, utilizam dispositivos aparentemente não coercivos.
Entre esses dispositivos aquele de que vos quero falar muito brevemente é o Direito. O Direito é uma criação do império romano. Em grande parte foi esquecido na Idade das Trevas e na Idade Média. Foi ressuscitado no século XVI para se adequar às novas classes médias e aos Estados modernos. Tentativa de submeter ou organizar as sociedades à Lei, e não à tradição e à religião. Nesse afã o papel dos filósofos-juristas foi relevante. O que estava subjacente eram interesses económicos conflituantes expressos claramente como tal ou sob a moldura filosófica. As disputas teológicas que acabaram por se confrontar em guerras prolongadas que alcançaram uma dimensão bárbara e destrutiva que ainda hoje nos deve impressionar, foram expressão desses interesses em conflito. Na composição dos múltiplos adversários em confronto encontramos burgueses e aristocratas, príncipes, monarcas e chefes religiosos, ou seja, não existiram dois exércitos em presença: a burguesia e a nobreza feudal. A alta burguesia comercial competia com a alta burguesia entre países ou impérios diferentes, competia com a aristocracia feudal e com sectores da pequena e média burguesia e com os camponeses e artesãos. A nobreza dividia-se entre os que apoiavam a centralização em monarquias absolutas e os latifundiários. Os resultados que perduraram mais dois séculos avaliam-se pela correlação de forças: nuns casos monarquias absolutas que não facilitavam sempre o pleno desenvolvimento do capitalismo, noutros parlamentos poderosos com influência burguesa, como no caso inglês. E foi aqui que o Direito moderno mais depressa se constituiu. Os juristas e filósofos burgueses (refiro-me às opções de classe que os escritos deles refletiam) criaram as teorias e as normas que protegiam os interesses moventes no espaço privado face ao poder estatal na época em que não detinham o comando total. A partir da conquista deste passou-se à reorganização dos seus aparelhos constituintes, incluindo o aparelho jurídico e legislativo.[1]
Os Estados Modernos estabeleceram a separação entre o Estado e a sociedade “civil”. Dois planos de ação com diferentes finalidades e regras de funcionamento. No plano privado considera-se que os indivíduos gozam de liberdade de agir segundo sua vontade e interesse; no plano público, os indivíduos, agora cidadãos, decidem de forma coletiva sobre assuntos de interesse geral.
Se o interesse predominante na relação jurídica se referir ao particular o domínio será do Direito Privado, se for público refere-se ao Direito Público. O Direito Público é composto de normas obrigatórias para todos; o Direito privado respeita a autonomia da vontade e os interesses dos particulares. Na realidade não é tanto assim: a proteção dos direitos fundamentais é do Direito Público e não do Privado embora se referira a interesses particulares e no Direito Privado verifica-se obrigatoriedade de determinados contratos.
Esta incursão no Direito é provavelmente útil porque nos permite recordar que os termos “espaço público” e “espaço privado” exprimem realidades objetivas de natureza social que adquiriram novos conteúdos a partir do século XVI sob a influência dos grandes juristas da época que defendiam a constituição do Estado moderno, a centralização do poder nos monarcas contra os poderes tradicionais dos grandes proprietários fundiários. Juristas e alguns monarcas que compreendiam a importância das novas classes médias. Protegendo-as protegiam os grandes negócios da expensão marítima. Mais depressa ou mais devagar consoante a correlação das forças em presença, a práxis refletiu-se nas teorias jurídico-políticas e estas, logo que estabelecidas, estimularam as práticas sociais. Ou seja, não foi o Direito que materializou as novas relações sociais – relações de produção – mas o invés. O desenvolvimento da classe dos artesãos,a libertação de jornaleiros relativamente às formas de servidão nos campos, a migração de populações para as cidades sob o efeito da expropriação a que foram sujeitos, o desenvolvimento dos mercados, o fortalecimento da classe dos comerciantes, a crescente utilização do dinheiro o que conduziu ao saque do oiro e prata nas Américas, o comércio das especiarias e, em seguida, o tráfico de escravos para as plantações de açúcar, tabaco, café. Em suma, antes da Revolução Industrial do século XIX, as burguesias e o capitalismo já se encontrava firmemente implantado e, por isso mesmo, se verificou esse revolucionamento permanente das técnicas, a conversão dos artesãos e outros trabalhadores sem meios de produção em proletariado. Os filósofos da política, da economia, do direito, foram dando conta destes processos a que chamamos Modernidade. 
A separação entre os novos Estados e a sociedade civil, os interesses privados, foi um passo fundamental. À burguesia interessava esta separação, a legalidade dos seus contratos privados, o direito a constituírem negócio e a enriquecerem sem obrigações de pagamento de determinados impostos a que eram obrigados nos latifúndios e desobrigados nas cidades.
Foi a luta cada vez mais aguerrida, nalguns países muito prolongada (como sucedeu entre nós), pela conquista dos direitos civis e políticos das burguesias europeias. Direitos que exprimiam os seus interesses particulares ou privados mas que se apresentavam pelas fórmulas dos filósofos como interesses universais, interesses da Razão. Interesses da esfera privada que pouco a pouco se convertiam em interesses da esfera pública, entenda-se: que o Estado devia proteger e, se possível, deveria ele mesmo ser deles seu representante único. Da conquista de uma esfera privada (a dos negócios) passou-se para a luta pela conquista do Estado burguês.
Ora, o direito de produzir, comprar, vender, distribuir, adquirir as fontes dos recursos, desde a criação de pastos e ovelhas para a lã, das oficinas manufatureiras, até ao comércio de longo curso e aos bancos, esse direito, dizia, exigiam liberdades cívicas e políticas: liberdade de pensar de modo novo e diferente da tradição e de exprimir. E, sobretudo na fase em que a burguesia era ainda apenas a classe média, exigia a discussão livre das ideias, as técnicas da persuasão, embora estas nunca se revelaram suficientes sem o recurso à força, isto é à guerra civil.
II.
Na utopia burguesa o espaço privado era o domínio da subjetividade, do Eu, da vontade e da consciência. Algo inato ou apriorístico para as filosofias idealistas alemãs. Nas filosofias empiristas inglesas, nos fundadores do liberalismo, a perspetiva era completamente diferente: a consciência mantem-se, é claro, do domínio subjetivo , porém a mente era comparada a um papel em branco, ou um quadro preto escolar onde a experiência –as sensações e perceções- iam inscrevendo as impressões, uma espécie de tijolos das ideias. Esta diferença sempre me surpreendeu. Acaso Kant e Fichte não eram adeptos do liberalismo burguês? Eram-no e contudo o idealismo germânico não se identifica de modo algum com o empirismo e o com o utilitarismo. No caso das filosofias inglesas, que vão exercer uma profunda influência nos mais importantes filósofos do Iluminismo francês, a consciência privada, digamos assim, é, em grande parte, um produto social, isto é dos hábitos e costumes. Por conseguinte, é possível modifica-la.
Dizia eu que a subjetividade é o eixo sobre o qual rola a doutrina liberal. E tal se nota em particular em um dos seus mentores: John Stuart Mill (1806/1873). Prazer/sofrimento, felicidade/infelicidade. Um racionalismo que se tenta conjugar com sentimentos. Um bem particular, individual, que dificilmente se concilia com o bem público, fragilidade básica que sempre perseguiu o liberalismo. O útil remete-se à esfera puramente da consciência individual ou possibilita uma definição universal, um denominador comum? É a dificuldade, ou mesmo a contradição, em que se envolve a doutrina de Mill e, de maneira geral, o utilitarismo burguês. Ou resvala para o puro atomismo, individualismo quase a-social ou, pelo menos, adverso a toda a instituição estatal externa, ou é ainda possível uma moral coletiva, o tal “bem comum” ou “res publica” que pregavam os republicanos positivistas? O filósofo norte-americano John Rawls (1921/2002), numa época de menos otimismo que a de Mill, deu-se conta dessa dificuldade e tentou resolvê-la na sua célebre obra “Uma Teoria da Justiça”, donde resultou uma social-democracia mitigada à qual, segundo estudos recentes, se mostra favorável a maioria dos norte-americanos . Enfim, dessa contradição nas teorias liberais entre a esfera privada onde se movimenta o capital e o Estado social brotou, no século XIX, uma doutrina alternativa que se apresentou mais lógica, racional e consequente: o socialismo.
III.
Que importa esta deriva para o assunto que aqui nos traz? Em primeiro lugar, para reafirmar o que se sabe: o liberalismo é uma doutrina originalmente inglesa, fecundada num modo de produção a que deu resposta e justificação; em segundo lugar, o sujeito (ou a subjetividade) de que se fala aí é o sujeito burguês, ainda que apresentado como universal e, sobretudo, natural. Este sujeito corresponderia à “natureza humana”, essa ficção de David Hume e seu amigo Adam Smith. Sujeito dotado de direitos, direitos naturais. Sendo, então, naturais, como se concilia esta tese com a descrição de uma mente à partida em branco? Julgo que esta contradição nunca foi inteiramente resolvida. Convinha aos filósofos intérpretes dos interesses burgueses, a começar pelo grande John Locke, a ideia de que a experiência social nos informa e forma, para combater inatismos em que sempre se apoiou a filosofia clerical-feudal. Abria-se assim um novo caminho para legitimar a mudança social e os novos valores que a burguesia transportava. Os direitos sociais, os seus direitos. E convinha aos seguidores que os direitos fossem naturais, portanto, legítimos e inalienáveis, próprios da natureza humana. Quais direitos? Obviamente em primeiro lugar o direito à livre iniciativa de comprar força de trabalho e outros meios e, através disso, lucrar. Núcleo das liberdades económico-políticas. Esfera central da atividade privada do cidadão. Que, afinal como já vimos, se confundia – e confunde- com o Direito Público. Doutra forma não se legitimaria e se protegeria a propriedade privada dos meios de produção e, portanto, as relações de produção capitalistas. Os capitalistas detestam o Estado quando este lhes quer aplicar impostos, mas aprecia-o imenso quando os ajuda a reprimir pela força bruta ou pela Lei os motins operários. O direito de extorquir, de acumular capital e de especular com o dinheiro, é privado – o famoso direito à livre iniciativa-, no entanto evidentemente que esse direito matricial tem de ser protegido pela Constituição Política, Lei fundamental, e por uma panóplia de leis sempre em evolução e involução. A propriedade e o capital são coisas privadas, dependem apenas da ousadia, inovação e trabalho dos empreendedores como impõe a ideologia, e, ao mesmo tempo, são coisas públicas, no sentido em que se edificaram Estados para resguardo.
Essa esfera é a esfera da livre escolha que deu substância ao liberalismo até aos nossos dias. Livre escolha significa decisão inteiramente pessoal onde nenhum poder externo pode intervir. Onde se manifesta politicamente? No sufrágio. Sabemos que os sufrágios demoraram muito a tornar-se universais. Deste modo, se foi construindo gradualmente a fórmula contemporânea da legitimação dos regimes políticos através do voto universal. Nela apoia-se toda a nossa concepção de democracia. Na realidade, é o espaço onde se executam as mais brutais e ou mais sofisticadas técnicas de manipulação. Conquista civilizacional indiscutível. Todavia, os factos mostram que não bastam declarações formais de respeito pelo voto, se nos lembrarmos do regime que perdurou até ao 25 de Abril, e das experiências trágicas da América Latina, passadas e presentes. «Como o escorpião do conto, continuam cumprindo seu destino, sacrificando, em nome de sua natureza oligárquica, a democracia de que dependem.», escrevia recentemente um cronista brasileiro [2]
Espaço Público versus Espaço Privado? Dir-se-á que o Espaço Privado é do domínio público. Ou seja, domínio absoluto da política.
Uma variante dessa fórmula é a delegação do poder, isto é a representatividade. Diz-se que os regimes baseados no Direito e na separação dos poderes são representativos, o que significa que eu, cidadão da esfera privada, delego publicamente o meu poder de legislar e executar em outros. O exercício dos meus direitos privados legitima os regimes públicos. A separação da “sociedade civil” e do Estado, veio permitir que o Estado se apresente acima dos particularismos e árbitro dos conflitos mundanos. Quem conhece os grandes filósofos alemães Hegel e Marx, saberá que esta tese tipicamente hegeliana recebeu um golpe que eu considero demolidor por parte de um jovem Marx que ainda não havia completado trinta anos de idade.
Devo também acrescentar um parêntesis sobre o que disse antes a propósito da vontade livre que fundamenta a liberdade de escolha, em homenagem a uma das maiores especialistas da filosofia de Espinosa que temos o privilégio de a ter aqui connosco. Espinosa explicitou claramente uma perspetiva sobre a vontade que importaria conhecer e ter presente quando aceitamos acriticamente que possuímos naturalmente esse poder. Nascemos com uma putativa capacidade a que chamamos “livre arbítrio”? Espinosa pensava que o “livre arbítrio” é uma mera ficção. Seja como for, os iluministas abandonaram as brumas da teologia e secularizaram a fórmula: nascemos para a liberdade. Liberdade para quê? Para escolhermos um projeto de vida cujas consequências são da nossa inteira responsabilidade. Vencedores ou perdedores, eis as  traves mestras da ética liberal. Na origem uma ética humanista, confiava nas capacidades do homem em construir o seu destino e melhorá-lo consecutivamente pela técnica, pela ciência, pelo conhecimento, pelas liberdades individuais. Atualmente que resta desse humanismo individualista? O Papa Francisco já denunciou recentemente urbi et orbi a face negra deste individualismo.
Para finalizar coloco mais uma pedrinha na engrenagem. Trata-se da bem conhecida expressão “feiticismo da mercadoria”. A produção de mercadorias constitui uma relação social entre produtores, tal relação aparece aos produtores (à sociedade em geral) “como  a  relação social que existe não entre eles próprios, produtores, mas entre os produtos do seu trabalho” (Marx, O Capital). “Não em termos do trabalho nelas (nas coisas concretas) materializado.” Essa relação existe de facto, mas oculta a relação entre produtores. Há, pois, uma dicotomia entre aparência e realidade ocultada. O feitiço impregna todas as relações. A mercadoria e o dinheiro exercem essa atração quase demoníaca, porém não monstruosa nem feia, mas de aparência fascinante, que nos domina, que nos promete todas as felicidades possíveis, utopia e sonhos. Desejamos comprar, ter, exibir. Recupera e reproduz a força primitiva dos mitos, uma espécie de xamanismo moderno. “Ingerir” a mercadoria é ingerir a poção mágica, simulacros grotescos das esplendorosas aventuras de Jasão e o Tosão d´oiro. Platão está vivo na nova alegoria da Caverna. Os mitos ressurgem sob novas roupagens. Horkheimer e Adorno escreveram que “o processo de racionalização […] encontra o seu termo atual na mitologização do esclarecimento [referem-se ao Iluminismo e seu legado- N.P.] sob a forma de ciência positiva”[3]
«A burguesia, onde ascendeu ao poder, destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Rasgou sem compunção todos os variegados laços feudais que prendiam o homem aos seus superiores naturais e não deixou outro laço entre homem e homem que não o do interesse nu, o do insensível “pagamento em dinheiro”[…] Resolveu a dignidade pessoal no valor de troca, e no lugar de um sem-número de liberdades legítimas e estatuídas colocou a liberdade única, sem escrúpulos, do comércio.», lê-se no Manifesto Comunista.[4]
O Manifesto foi escrito em 1847. Nas décadas seguintes Marx descobriu e demonstrou que a burguesia produziu um poderoso mito, um poderoso véu de ocultação, um poderoso ídolo. À categoria de alienação do trabalhador descoberta na juventude acrescentou e fundamentou as categorias de reificação e de fetichismo. Pensemos nesta hipótese de trabalho: em que é que se distingue o fideísmo religioso desta nova religião a que o fetichismo deu forma e conteúdo, com os seus rituais esquizofrénicos ou histéricos, que nos comanda, que nos converte numa espécie de Zômbis circulando no espaço público, em títeres no espaço privado, todos uniformizados, com idênticas pulsões inconscientes, apetites e desejos? Fetichismos primitivos submersos pelo Iluminismo e pelo positivismo que ressurgem com nova identidade? Os novos mitos denunciados por Horkheimer e Adorno, a nova religião do capitalismo denunciada por Walter Benjamim?
O Capital que oculta a sua fonte que é a mais-valia, o trabalho abstrato (o trabalho socialmente útil) que oculta a exploração do trabalho vivo, a mercadoria que oculta a relação entre produtores concretos (isto é, pessoas), o dinheiro que se apresenta como um ídolo fantasmático e antropófago, que canibaliza todas as relações humanas: estas categorias fundamentais constituem a dinâmica do capitalismo. “A produção de valores de uso não é senão uma espécie de consequência secundária, quase um mal necessário.”[5]

O fetichismo da mercadoria, a partir do lado abstrato do trabalho e do lado abstrato do dinheiro, que Marx descobriu, oferece-nos o caminho para compreender a transformação do espaço público, a sua captura pelas forças do mercado. E vou mais longe: para se compreender como agora o próprio espaço privado foi capturado. A própria mente, essa coisa privada, foi capturada.

As posições que acabo de expor são da minha inteira responsabilidade, isto é, não responsabilizam nem estes Encontros de Filosofia, nem a Universidade Popular de Torres Vedras. Seguimos este lema: A cada um a sua verdade, e que ela a todos aproveite.
Estes Encontros com a Filosofia e a futura Universidade Popular de Torres Vedras têm como vocação exercitar o pensamento crítico no espaço público e, consequentemente, promover atitudes de resistência, de não consentimento, e colaborar modestamente, para a teoria e para a prática de alternativas emancipadoras. Portanto, devo encerrar estas meras elucubrações com a convicção de que todos juntos pelo mundo fora conseguiremos encontra-las e aplica-las conforme as condições específicas em que pensamos e agimos.

NOZES PIRES
Torres Vedras, 9 de Abril 2016








[1] «A origem da divisão entre Direito Público e Direito Privado remonta ao Direito Romano, sobretudo a partir da obra de Ulpiano (Digesto, 1.1.1.2.) no trecho: Publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat, privatum, quod ad singulorum utilitatem- (O direito público diz respeito ao estado da coisa romana, à polis ou civitas, o privado à utilidade dos particulares.) A divisão também resulta da separação entre a esfera pública e a privada, do lugar da ação e do lugar do labor. In Wikipédia.
[2] Flávio Aguiar, O carnaval das traições, (a propósito do golpismo no Brasil), in Boitempo blog
[3] Adorno/Horkheimer, dialética do esclarecimento, Jorge Zahar Editor, 1985
[4] Marx-Engels, obras escolhidas, edições avante!
[5] Anselm Jaspe, O que é o fetichismo da mercadoria? E pode acabar-se com ele?- prefácio ao livrinho “Karl Marx, O Fetichismo da Mercadoria e o seu segredo”, Lisboa, Antígona, 2015

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