Comunicação ao 2º ENCONTRO COM A
FILOSOFIA
«O Espaço Público: controlo e privatização»
Caros participantes, obrigado pela vossa presença que é um
forte estímulo para continuarmos estes encontros.
Eis-nos no 2º. Do primeiro publicámos online os textos das comunicações num blogue provisório que já
recebeu abundantes visitas. Encontra-se aqui ao vosso dispor o 1º Caderno com
essas comunicações.
Estes Encontros constituem a primeira atividade da
Universidade Popular de Torres Vedras, por ora designada Comissão Instaladora.
A criação da UPTV será a realização de um sonho que acalento de há uns anos
para cá. Paulatinamente, sem precipitações, iremos erguê-lo. Dentro de alguns
meses esperamos formalizar a sua abertura com um evento condigno. Já têm convosco
o manifesto com os seus objetivos e um programa de ações. Gostaríamos de
recolher o máximo de sugestões. A sua abertura à participação de todos sem
discriminações e elitismos, é para nós um princípio inflexível. Uma
Universidade Popular assenta nesse pilar, ainda que apenas alguns desempenhem
um papel mais ativo.
A UP intervirá no espaço público de maneira particular, sem
pretender sobrepor-se ou colidir com outras instituições culturais já
consolidadas neste Concelho. Procurará cooperações e complementaridades.
Intervir no espaço público, digo eu. Trata-se precisamente
do tema que hoje abordamos.
O que é o Espaço Público?
Os convidados a intervir nesta tarde irão abordar a pergunta
de diversos ângulos. Nenhum o poderá abordar de forma exaustiva por razões de
tempo, embora não lhes falte engenho.
É que a resposta a essa pergunta abrangeria um amplo leque
de aspetos.
Nesta minha comunicação, obrigando-me a dar o primeiro
exemplo de brevidade, vou expor as minhas perspetivas sob a forma de tópicos.
Permitiriam a discussão que, porém, vai ser difícil realizar-se dada a
afluência de respostas positivas aos meus convites. Teremos todos de condensar
as nossas comunicações. Os textos mais alongados serão publicados.
I.
De uma maneira inicial e genérica espaço público é tudo que
não é espaço privado, entendendo-se este, quase de maneira óbvia, o espaço da
vida familiar ou puramente individual. É discreto, em certos casos uma
fortaleza inexpugnável onde podem desenrolar-se os acontecimentos mais
violentos e perversos que até os vizinhos ignoram. O Direito comum garante esta
privacidade: é necessário um mandado para a autoridade pública penetrar e
pode-se com determinados limites abater-se um intruso criminoso.
Falamos em espaço físico. Será, no entanto, físico apenas?
Compreende com certeza o livre pensamento, a livre orientação filosófica,
religiosa, política, sexual. Contudo, sem a livre expressão no espaço público
não se realizaria, não falaríamos sequer de liberdade, embora um indivíduo se
possa sentir livre desde que não se submeta. Portanto, as liberdades privadas,
a sua realização, exigem o espaço público. Os direitos têm de ser garantidos e
protegidos por regras ou normas comunitárias ou políticas. Quando isso não se
verifica –por exemplo na ditadura que foi derrubada em 25 de Abril de 1974- os
indivíduos revoltam-se contra as forças que proíbem ou obstaculizam de algum
modo o exercício dos seus direitos. Todos estes casos se verificam nas lutas
por um espaço público que promova e garanta os direitos de expressão efetiva. O
espaço público, portanto, não é pura abstração: é o conjunto dinâmico e
potencialmente conflitual de estamentos ou classes sociais e das instituições
económicas, políticas e ideológicas que o controlam ou nele se digladiam. Os
direitos e liberdades modernas constituem conquistas civilizacionais e
históricas sob condições concretas, nas quais avulta o papel das lutas de
classes. Nas doutrinas liberais distingue-se a “sociedade civil” do Estado, não
se ficando a saber muito bem se a “sociedade civil” é constituída apenas pelo
espaço privado (o espaço das atividades económicas por exemplo) ou também pelo
espaço público. O mais verdadeiro é que o Estado intervém no espaço público,
seja através do consenso, seja pela força. Qualquer classe dominante tem
necessitado até hoje de um poder administrativo centralizado, um conjunto de
aparelhos de coerção. O espaço público é, portanto, controlado por modos que se
vão sofisticando e que dependem em primeiro lugar da corelação de forças e dos
interesses dos sectores sociais que exercem a dominação. Se gozarem de força
suficiente (económica, política e militar) e se os seus interesses estiverem em
perigo no confronto de classes, recorrem à violência e às ditaduras; se não,
utilizam dispositivos aparentemente não coercivos.
Entre esses dispositivos aquele de que vos quero falar muito
brevemente é o Direito. O Direito é uma criação do império romano. Em grande
parte foi esquecido na Idade das Trevas e na Idade Média. Foi ressuscitado no
século XVI para se adequar às novas classes médias e aos Estados modernos.
Tentativa de submeter ou organizar as sociedades à Lei, e não à tradição e à
religião. Nesse afã o papel dos filósofos-juristas foi relevante. O que estava
subjacente eram interesses económicos conflituantes expressos claramente como
tal ou sob a moldura filosófica. As disputas teológicas que acabaram por se
confrontar em guerras prolongadas que alcançaram uma dimensão bárbara e
destrutiva que ainda hoje nos deve impressionar, foram expressão desses interesses
em conflito. Na composição dos múltiplos adversários em confronto encontramos
burgueses e aristocratas, príncipes, monarcas e chefes religiosos, ou seja, não
existiram dois exércitos em presença: a burguesia e a nobreza feudal. A alta
burguesia comercial competia com a alta burguesia entre países ou impérios
diferentes, competia com a aristocracia feudal e com sectores da pequena e
média burguesia e com os camponeses e artesãos. A nobreza dividia-se entre os
que apoiavam a centralização em monarquias absolutas e os latifundiários. Os
resultados que perduraram mais dois séculos avaliam-se pela correlação de
forças: nuns casos monarquias absolutas que não facilitavam sempre o pleno
desenvolvimento do capitalismo, noutros parlamentos poderosos com influência
burguesa, como no caso inglês. E foi aqui que o Direito moderno mais depressa
se constituiu. Os juristas e filósofos burgueses (refiro-me às opções de classe
que os escritos deles refletiam) criaram as teorias e as normas que protegiam
os interesses moventes no espaço privado face ao poder estatal na época em que
não detinham o comando total. A partir da conquista deste passou-se à
reorganização dos seus aparelhos constituintes, incluindo o aparelho jurídico e
legislativo.[1]
Os Estados
Modernos estabeleceram a separação entre o Estado e a sociedade “civil”. Dois planos de ação com diferentes
finalidades e regras de funcionamento. No plano privado considera-se que os
indivíduos gozam de liberdade de agir segundo sua vontade e interesse; no plano
público, os indivíduos, agora cidadãos, decidem de forma coletiva sobre
assuntos de interesse geral.
Se o
interesse predominante na relação jurídica se referir ao particular o domínio
será do Direito Privado, se for público refere-se ao Direito Público. O Direito
Público é composto de normas obrigatórias para todos; o Direito privado
respeita a autonomia da vontade e os interesses dos particulares. Na realidade
não é tanto assim: a proteção dos direitos fundamentais é do Direito Público e
não do Privado embora se referira a interesses particulares e no Direito
Privado verifica-se obrigatoriedade de determinados contratos.
Esta
incursão no Direito é provavelmente útil porque nos permite recordar que os
termos “espaço público” e “espaço privado” exprimem realidades objetivas de
natureza social que adquiriram novos conteúdos a partir do século XVI sob a
influência dos grandes juristas da época que defendiam a constituição do Estado
moderno, a centralização do poder nos monarcas contra os poderes tradicionais
dos grandes proprietários fundiários. Juristas e alguns monarcas que
compreendiam a importância das novas classes médias. Protegendo-as protegiam os
grandes negócios da expensão marítima. Mais depressa ou mais devagar consoante
a correlação das forças em presença, a práxis refletiu-se nas teorias
jurídico-políticas e estas, logo que estabelecidas, estimularam as práticas
sociais. Ou seja, não foi o Direito que materializou as novas relações sociais
– relações de produção – mas o invés. O desenvolvimento da classe dos artesãos,a
libertação de jornaleiros relativamente às formas de servidão nos campos, a
migração de populações para as cidades sob o efeito da expropriação a que foram
sujeitos, o desenvolvimento dos mercados, o fortalecimento da classe dos
comerciantes, a crescente utilização do dinheiro o que conduziu ao saque do
oiro e prata nas Américas, o comércio das especiarias e, em seguida, o tráfico
de escravos para as plantações de açúcar, tabaco, café. Em suma, antes da
Revolução Industrial do século XIX, as burguesias e o capitalismo já se
encontrava firmemente implantado e, por isso mesmo, se verificou esse
revolucionamento permanente das técnicas, a conversão dos artesãos e outros trabalhadores
sem meios de produção em proletariado. Os filósofos da política, da economia, do
direito, foram dando conta destes processos a que chamamos Modernidade.
A separação
entre os novos Estados e a sociedade civil, os interesses privados, foi um
passo fundamental. À burguesia interessava esta separação, a legalidade dos
seus contratos privados, o direito a constituírem negócio e a enriquecerem sem
obrigações de pagamento de determinados impostos a que eram obrigados nos
latifúndios e desobrigados nas cidades.
Foi a luta
cada vez mais aguerrida, nalguns países muito prolongada (como sucedeu entre
nós), pela conquista dos direitos civis e políticos das burguesias europeias.
Direitos que exprimiam os seus interesses particulares ou privados mas que se
apresentavam pelas fórmulas dos filósofos como interesses universais, interesses
da Razão. Interesses da esfera privada que pouco a pouco se convertiam em
interesses da esfera pública, entenda-se: que o Estado devia proteger e, se
possível, deveria ele mesmo ser deles seu representante único. Da conquista de
uma esfera privada (a dos negócios) passou-se para a luta pela conquista do
Estado burguês.
Ora, o
direito de produzir, comprar, vender, distribuir, adquirir as fontes dos
recursos, desde a criação de pastos e ovelhas para a lã, das oficinas
manufatureiras, até ao comércio de longo curso e aos bancos, esse direito,
dizia, exigiam liberdades cívicas e políticas: liberdade de pensar de modo novo
e diferente da tradição e de exprimir. E, sobretudo na fase em que a burguesia
era ainda apenas a classe média, exigia a discussão livre das ideias, as
técnicas da persuasão, embora estas nunca se revelaram suficientes sem o
recurso à força, isto é à guerra civil.
II.
Na utopia
burguesa o espaço privado era o domínio da subjetividade, do Eu, da vontade e
da consciência. Algo inato ou apriorístico para as filosofias idealistas
alemãs. Nas filosofias empiristas inglesas, nos fundadores do liberalismo, a
perspetiva era completamente diferente: a consciência mantem-se, é claro, do
domínio subjetivo , porém a mente era comparada a um papel em branco, ou um
quadro preto escolar onde a experiência –as sensações e perceções- iam
inscrevendo as impressões, uma espécie de tijolos das ideias. Esta diferença
sempre me surpreendeu. Acaso Kant e Fichte não eram adeptos do liberalismo
burguês? Eram-no e contudo o idealismo germânico não se identifica de modo
algum com o empirismo e o com o utilitarismo. No caso das filosofias inglesas,
que vão exercer uma profunda influência nos mais importantes filósofos do Iluminismo
francês, a consciência privada, digamos assim, é, em grande parte, um produto
social, isto é dos hábitos e costumes. Por conseguinte, é possível modifica-la.
Dizia eu que
a subjetividade é o eixo sobre o qual rola a doutrina liberal. E tal se nota em
particular em um dos seus mentores: John Stuart Mill (1806/1873).
Prazer/sofrimento, felicidade/infelicidade. Um racionalismo que se tenta
conjugar com sentimentos. Um bem particular, individual, que dificilmente se
concilia com o bem público, fragilidade básica que sempre perseguiu o
liberalismo. O útil remete-se à esfera puramente da consciência individual ou
possibilita uma definição universal, um denominador comum? É a dificuldade, ou
mesmo a contradição, em que se envolve a doutrina de Mill e, de maneira geral,
o utilitarismo burguês. Ou resvala para o puro atomismo, individualismo quase
a-social ou, pelo menos, adverso a toda a instituição estatal externa, ou é
ainda possível uma moral coletiva, o tal “bem comum” ou “res publica” que
pregavam os republicanos positivistas? O filósofo norte-americano John Rawls
(1921/2002), numa época de menos otimismo que a de Mill, deu-se conta dessa
dificuldade e tentou resolvê-la na sua célebre obra “Uma Teoria da Justiça”,
donde resultou uma social-democracia mitigada à qual, segundo estudos recentes,
se mostra favorável a maioria dos norte-americanos . Enfim, dessa contradição
nas teorias liberais entre a esfera privada onde se movimenta o capital e o
Estado social brotou, no século XIX, uma doutrina alternativa que se apresentou
mais lógica, racional e consequente: o socialismo.
III.
Que importa
esta deriva para o assunto que aqui nos traz? Em primeiro lugar, para reafirmar
o que se sabe: o liberalismo é uma doutrina originalmente inglesa, fecundada
num modo de produção a que deu resposta e justificação; em segundo lugar, o
sujeito (ou a subjetividade) de que se fala aí é o sujeito burguês, ainda que
apresentado como universal e, sobretudo,
natural. Este sujeito corresponderia à “natureza humana”, essa ficção de David
Hume e seu amigo Adam Smith. Sujeito dotado de direitos, direitos naturais.
Sendo, então, naturais, como se concilia esta tese com a descrição de uma mente
à partida em branco? Julgo que esta contradição nunca foi inteiramente
resolvida. Convinha aos filósofos intérpretes dos interesses burgueses, a
começar pelo grande John Locke, a ideia de que a experiência social nos informa
e forma, para combater inatismos em que sempre se apoiou a filosofia
clerical-feudal. Abria-se assim um novo caminho para legitimar a mudança social
e os novos valores que a burguesia transportava. Os direitos sociais, os seus
direitos. E convinha aos seguidores que os direitos fossem naturais, portanto,
legítimos e inalienáveis, próprios da natureza humana. Quais direitos? Obviamente
em primeiro lugar o direito à livre iniciativa de comprar força de trabalho e
outros meios e, através disso, lucrar. Núcleo das liberdades
económico-políticas. Esfera central da atividade privada do cidadão. Que,
afinal como já vimos, se confundia – e confunde- com o Direito Público. Doutra
forma não se legitimaria e se protegeria a propriedade privada dos meios de
produção e, portanto, as relações de produção capitalistas. Os capitalistas
detestam o Estado quando este lhes quer aplicar impostos, mas aprecia-o imenso
quando os ajuda a reprimir pela força bruta ou pela Lei os motins operários. O
direito de extorquir, de acumular capital e de especular com o dinheiro, é
privado – o famoso direito à livre iniciativa-, no entanto evidentemente que
esse direito matricial tem de ser protegido pela Constituição Política, Lei
fundamental, e por uma panóplia de leis sempre em evolução e involução. A
propriedade e o capital são coisas privadas, dependem apenas da ousadia,
inovação e trabalho dos empreendedores como impõe a ideologia, e, ao mesmo
tempo, são coisas públicas, no sentido em que se edificaram Estados para
resguardo.
Essa esfera
é a esfera da livre escolha que deu substância ao liberalismo até aos nossos
dias. Livre escolha significa decisão inteiramente pessoal onde nenhum poder
externo pode intervir. Onde se manifesta politicamente? No sufrágio. Sabemos
que os sufrágios demoraram muito a tornar-se universais. Deste modo, se foi
construindo gradualmente a fórmula contemporânea da legitimação dos regimes
políticos através do voto universal. Nela apoia-se toda a nossa concepção de
democracia. Na realidade, é o espaço onde se executam as mais brutais e ou mais
sofisticadas técnicas de manipulação. Conquista civilizacional indiscutível.
Todavia, os factos mostram que não bastam declarações formais de respeito pelo
voto, se nos lembrarmos do regime que perdurou até ao 25 de Abril, e das experiências
trágicas da América Latina, passadas e presentes. «Como o escorpião do conto, continuam cumprindo seu destino,
sacrificando, em nome de sua natureza oligárquica, a democracia de que
dependem.», escrevia recentemente um cronista brasileiro [2]
Espaço
Público versus Espaço Privado?
Dir-se-á que o Espaço Privado é do domínio público.
Ou seja, domínio absoluto da política.
Uma variante
dessa fórmula é a delegação do poder, isto é a representatividade. Diz-se que os regimes baseados no Direito e
na separação dos poderes são representativos,
o que significa que eu, cidadão da esfera privada, delego publicamente o meu
poder de legislar e executar em outros. O exercício dos meus direitos privados legitima
os regimes públicos. A separação da “sociedade civil” e do Estado, veio
permitir que o Estado se apresente acima dos particularismos e árbitro dos
conflitos mundanos. Quem conhece os grandes filósofos alemães Hegel e Marx,
saberá que esta tese tipicamente hegeliana recebeu um golpe que eu considero
demolidor por parte de um jovem Marx que ainda não havia completado trinta anos
de idade.
Devo também
acrescentar um parêntesis sobre o que disse antes a propósito da vontade livre
que fundamenta a liberdade de escolha, em homenagem a uma das maiores
especialistas da filosofia de Espinosa que temos o privilégio de a ter aqui
connosco. Espinosa explicitou claramente uma perspetiva sobre a vontade que
importaria conhecer e ter presente quando aceitamos acriticamente que possuímos
naturalmente esse poder. Nascemos com
uma putativa capacidade a que chamamos “livre arbítrio”? Espinosa pensava que o
“livre arbítrio” é uma mera ficção. Seja como for, os iluministas abandonaram
as brumas da teologia e secularizaram a fórmula: nascemos para a liberdade.
Liberdade para quê? Para escolhermos um projeto de vida cujas consequências são
da nossa inteira responsabilidade. Vencedores ou perdedores, eis as traves mestras da ética liberal. Na origem
uma ética humanista, confiava nas capacidades do homem em construir o seu
destino e melhorá-lo consecutivamente pela técnica, pela ciência, pelo
conhecimento, pelas liberdades individuais. Atualmente que resta desse
humanismo individualista? O Papa Francisco já denunciou recentemente urbi et orbi a face negra deste
individualismo.
Para
finalizar coloco mais uma pedrinha na engrenagem. Trata-se da bem conhecida
expressão “feiticismo da mercadoria”. A produção de mercadorias constitui uma
relação social entre produtores, tal relação aparece aos produtores (à
sociedade em geral) “como a relação social que existe não entre eles
próprios, produtores, mas entre os produtos do seu trabalho” (Marx, O Capital).
“Não em termos do trabalho nelas (nas coisas concretas) materializado.” Essa
relação existe de facto, mas oculta a relação entre produtores. Há, pois, uma
dicotomia entre aparência e realidade ocultada. O feitiço impregna todas as
relações. A mercadoria e o dinheiro exercem essa atração quase demoníaca, porém
não monstruosa nem feia, mas de aparência fascinante, que nos domina, que nos
promete todas as felicidades possíveis, utopia e sonhos. Desejamos comprar,
ter, exibir. Recupera e reproduz a força primitiva dos mitos, uma espécie de
xamanismo moderno. “Ingerir” a mercadoria é ingerir a poção mágica, simulacros
grotescos das esplendorosas aventuras de Jasão e o Tosão d´oiro. Platão está
vivo na nova alegoria da Caverna. Os mitos ressurgem sob novas roupagens. Horkheimer
e Adorno escreveram que “o processo de racionalização […] encontra o seu termo
atual na mitologização do esclarecimento [referem-se ao Iluminismo e seu
legado- N.P.] sob a forma de ciência positiva”[3]
«A
burguesia, onde ascendeu ao poder, destruiu todas as relações feudais,
patriarcais, idílicas. Rasgou sem compunção todos os variegados laços feudais
que prendiam o homem aos seus superiores naturais e não deixou outro laço entre
homem e homem que não o do interesse nu, o do insensível “pagamento em
dinheiro”[…] Resolveu a dignidade pessoal no valor de troca, e no lugar de um
sem-número de liberdades legítimas e estatuídas colocou a liberdade única, sem escrúpulos, do comércio.»,
lê-se no Manifesto Comunista.[4]
O Manifesto
foi escrito em 1847. Nas décadas seguintes Marx descobriu e demonstrou que a
burguesia produziu um poderoso mito, um poderoso véu de ocultação, um poderoso
ídolo. À categoria de alienação do trabalhador descoberta na juventude
acrescentou e fundamentou as categorias de reificação
e de fetichismo. Pensemos nesta
hipótese de trabalho: em que é que se distingue o fideísmo religioso desta nova
religião a que o fetichismo deu forma e conteúdo, com os seus rituais
esquizofrénicos ou histéricos, que nos comanda, que nos converte numa espécie
de Zômbis circulando no espaço público, em títeres no espaço privado, todos
uniformizados, com idênticas pulsões inconscientes, apetites e desejos? Fetichismos
primitivos submersos pelo Iluminismo e pelo positivismo que ressurgem com nova
identidade? Os novos mitos denunciados por Horkheimer e Adorno, a nova religião
do capitalismo denunciada por Walter Benjamim?
O Capital
que oculta a sua fonte que é a mais-valia, o trabalho abstrato (o trabalho
socialmente útil) que oculta a exploração do trabalho vivo, a mercadoria que
oculta a relação entre produtores concretos (isto é, pessoas), o dinheiro que
se apresenta como um ídolo fantasmático e antropófago, que canibaliza todas as
relações humanas: estas categorias fundamentais constituem a dinâmica do
capitalismo. “A produção de valores de uso não é senão uma espécie de
consequência secundária, quase um mal necessário.”[5]
O fetichismo
da mercadoria, a partir do lado abstrato do trabalho e do lado abstrato do
dinheiro, que Marx descobriu, oferece-nos o caminho para compreender a
transformação do espaço público, a sua captura pelas forças do mercado. E vou
mais longe: para se compreender como agora o próprio espaço privado foi
capturado. A própria mente, essa coisa privada, foi capturada.
As posições
que acabo de expor são da minha inteira responsabilidade, isto é, não
responsabilizam nem estes Encontros de Filosofia, nem a Universidade Popular de
Torres Vedras. Seguimos este lema: A
cada um a sua verdade, e que ela a todos aproveite.
Estes
Encontros com a Filosofia e a futura Universidade Popular de Torres Vedras têm
como vocação exercitar o pensamento crítico no espaço público e,
consequentemente, promover atitudes de resistência, de não consentimento, e colaborar
modestamente, para a teoria e para a prática de alternativas emancipadoras.
Portanto, devo encerrar estas meras elucubrações com a convicção de que todos
juntos pelo mundo fora conseguiremos encontra-las e aplica-las conforme as
condições específicas em que pensamos e agimos.
NOZES PIRES
Torres Vedras,
9 de Abril 2016
[1] «A
origem da divisão entre Direito Público e Direito Privado remonta ao Direito
Romano, sobretudo a partir da obra de Ulpiano (Digesto, 1.1.1.2.) no trecho: Publicum jus est quod ad statum rei
romanae spectat, privatum, quod ad singulorum utilitatem- (O direito
público diz respeito ao estado da coisa romana, à polis ou civitas, o privado à
utilidade dos particulares.) A divisão também resulta da separação entre a
esfera pública e a privada, do lugar da ação e do lugar do labor. In Wikipédia.
[2] Flávio
Aguiar, O carnaval das traições, (a propósito do golpismo no Brasil), in
Boitempo blog
[3]
Adorno/Horkheimer, dialética do esclarecimento, Jorge Zahar Editor, 1985
[4]
Marx-Engels, obras escolhidas, edições avante!
[5] Anselm
Jaspe, O que é o fetichismo da mercadoria? E pode acabar-se com ele?- prefácio
ao livrinho “Karl Marx, O Fetichismo da Mercadoria e o seu segredo”, Lisboa,
Antígona, 2015
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