É
o espaço público controlado por um «espaço democrático privado»?
Ao
Manuel Barroso e ao Joaquim Marques
« (…) os
presentes até aos deuses convencem.»
Eurípedes
(Medeia: v.
964)
«There will
come a time when it isn’t ‘They’re spying on me through my phone’ anymore.
Eventually, it will be ‘My phone is spying on me’ ».
Philip K.
Dick
(Do
androids dream of electric sheep, 1968)
Justificação
Prévia
Em
primeiro lugar, estamos conscientes de que o presente texto melhor servirá os
intentos da leitura do que da sua simples audição, já que denota uma considerável
quantidade de informação. Em segundo lugar, o nosso presente objetivo adapta-se
mais a uma eventual abertura de pistas de reflexão acerca do mundo atual do que
a uma resposta subjetiva, ou tese pessoal, sobre o assunto em questão - coisa
que não possuímos!
1.
Iniciemos a nossa reflexão com um exemplo clássico. Para a cultura
greco-romana, da qual ainda hoje grande parte da população mundial é herdeira,
e desde pelo menos o século II da nossa era, as funções públicas eram
comummente institucionalizadas enquanto dignidades privadas, já que o acesso a
essas honras pressupunha um laço de fidelidade pseudo-secreta cooptada de um
perfil social particular, o que tornava apenas alguns homens dignos de serem
admitidos no clube do Senado. Tal facto
histórico terá facilitado os abusos da corrupção – dorodokia ou «aceitação de presentes» para os gregos, do fim do
século IV)[1] - os
quais mais não eram que ordinárias representações sociais de casos tidos como
anedóticos, vulgares, banais, em todo o Império Romano. Assim aconteceu tanto na
grandeza de Roma como no seu declínio! O mero soldado pagava um suborno aos
oficiais pela simples isenção de serviço. Como nos explica Paul Veyne[2],
professor do Collège de France, o mero escrivão, a menor função pública (militia), comprava ao antigo titular
esse estatuto. E no Baixo-império, por exemplo, os mais altos dignatários
deveriam entregar uma relevante gratificação (sportula) ao Tesouro Imperial, do mesmo modo que as recomendações (suffragia) para ocupar cargos públicos
se vendiam em privado e caso o patrono, que recomendava, não cumprisse a sua
palavra, a (considerada) «vítima» tinha direito a apresentar queixa em tribunal
público. Enfim, os proxenetae
(corretores), apesar de publicamente desacreditados, especializavam-se em
transações de suffragia e de amicitiae (clientelas). Ora, tal faceta
da vida política, que parece ser ontologicamente determinante do controlo dos
mais fortes sobre os mais fracos, e que, pensamos, atavicamente se materializou
na história da humanidade – por exemplo, a tribo submetida entrega as suas
rendas, sob qualquer forma, à tribo vencedora; o exército assaltante reparte o
butim entre os soldados; etc. – também obteve a sua contrapartida cultural,
digamos assim, convertendo radicalmente essa bios politica numa vida filosófica, de entrega ao estudo, à
sabedoria, afirmando o conformismo estoico pela identificação da vida política
à vida conforme à Razão, conquanto que exibida em público, numa dignidade à
moda de Cícero que exilado desespera em privado até retornar, finalmente, à sua
dignidade pública e com isso legitimamente se glorificar – mesmo o próprio
César teria feito saber ao Senado que também preferia a dignidade (pública) à
própria vida (privada). Conclusão, quem controla protege!
2.
Esta primeira reflexão pretende mostrar que as nossas idiossincrasias pessoais
mais não são que correlatos de consciência do outro, sem a qual também a nossa intencionalidade não poderia
sobreviver, pelo desarrazoado da proposta. Portanto, controlar a consciência
daquilo que se pretende público é o mesmo que exteriorizar a consciência
daquilo que se pretende controlar, ou seja, o nosso eu deseja naturalmente sobreviver
numa rede de outros eus e com a mesmíssima prerrogativa. Assim era em Roma,
assim é em Portugal e no mundo. Mas a questão que se põe é a seguinte:
controlar para proteger, com que ética? E na resposta surge em campo o outro, aquele que eu tomo como
desprezível, mesmo inconscientemente, ou aquele que eu assumo como importante,
mesmo inconscientemente. Quando o outro
entra em cena, e disso tomo consciência, resta-me cooperar a bem da minha sobrevivência egológica, que também é a contrapartida da sobrevivência da minha espécie.
Mas tal decisão ética apenas se realiza quando assumo a vontade racional de
normalizar a minha ação pelos atos alheios, sem os quais seria impossível
conhecer-me enquanto ser atuante, onde sempre ecoam as decisões e
comportamentos desses atos que me são estranhos à nascença, mas familiares
quando neles reflito. Neste despreendimento posso, então, aperceber-me que os
fins (os meus e os dos outros) são os mesmos, apenas os meios se diversificam.
Deveria seguir-se daqui, e para retomarmos o nosso exemplo histórico, que a
criação do funcionário público íntegro moderno se afasta – essa «perversão»
ditosamente praticada pelo Estado Moderno do direito democrático e tem de se
afastar - da ideia de apadrinhamento dos subordinados pelos nobres romanos. Ou
seja, nem toda a consciência do serviço público se corrompe pela consciência do
serviço privado. E de novo a ética! A decisão de sermos nós próprios, em
privado, começa quando não deixamos que o espaço público determine as premissas
que, uma vez aceites, irão demonstrar a nossa dependência da «dignidade»
pública. Mas a que custo?
3.
Para recolocarmos a questão de um modo mais próximo das nossas presentes vidas,
sabemos que, hoje em dia, os Big Data,
ou os Grandes Volumes de Dados da
comunicação informática, traduzem a vida particular numa notória linguagem
pública, cumprindo assim uma função que colocaria os próprios romanos num pífio
estatuto de simples anões que veriam mais alto, caso se colocassem às costas
destes atuais gigantes. Ora, e por força da História, jamais poderemos realizar
o efeito de tal perversidade! Até porque o voto censitário (baseado em rendas)
da república romana também se encontra longe do atual voto democrático, que
está patente afinal em muitos países do mundo, como ainda o conhecemos. No
entanto, e porque as estórias da História não são despiciendas para a nossa
questão, os Big Data foram já
considerados, pelo Fórum Económico Mundial, como uma nova categoria de riqueza
semelhante à do petróleo. Por exemplo, pode analisar-se, hoje em dia, evidentemente
pelos homens e mulheres mais nobres e educados, os megas dados de comentários
dos internautas na empresa transnacional de comércio eletrónico Amazon,
tentando prever as vendas de determinados produtos. É de pensar, de igual modo,
a dual e ambígua importância do grande império do motor de busca Google, que
tanto pode estudar a evolução de uma gripe, como aconteceu em 2012[3], como
contabilizar variadíssimas intenções comerciais, políticas, religiosas, ou
outras, de milhões de utilizadores e num relativamente curto espaço de tempo. Mas
descobrimos algo de mais fascinante na análise matemática das tendências da
Rede, o algoritmo de análise de humores nas
redes sociais digitais. Tal ferramenta, inventada pelo corretor Paul Hawtin[4], consegue
prever a melhor altura para vender ou comprar ações. Descobriu, portanto, o
modo de analisar iterações da provada mudança de comportamento dos internautas,
daí tirando proveitos.
4. Duma
parte, topamos com o propósito da unidade governos/empresas de controlarem os
dados pessoais dos cidadãos. De outra, é igualmente real, e crescente, a
preocupação em alertar para a manipulação da nossa vida privada comunicada em
rede, através de imensuráveis dados informáticos singulares. Seja por que razão
for, vivemos hoje numa sociedade em que nada se perde e tudo aumenta nas bases
de dados de supercomputadores, à semelhança de cenários de ficção científica já
prenunciado por muitos autores. No entanto, sobrevive um problema concetual: o
que é um «dado pessoal»? Não se encontra objetividade sobre o assunto. A
legislação, nesta área, aparece muito arrastada em relação à tecno informática emergente.
E aqui reside o enigma: até que ponto o espaço público, melhor, o espaço
virtual público, se afasta do espaço real privado? Como é que o primeiro
sobrepujará o segundo? De que modo o poderá ofuscar, avantajando-se numa
posição autónoma já que à custa de ser de todos não é de algum, podendo transmutar-se
numa terra de ninguém? Que corpo sem
órgãos será esse - para beneficiarmos do famoso conceito de Artaud,
desenvolvido por Deleuze e Guattari em Anti-Édipo
e Mille-Plateaux - que ao
viver-se, enquanto conjunto de práticas aceites alienadamente, não se
compreende?[5] Tim
Berners-Lee, o inventor da rede de alcance mundial em formato www, terá chamado
a atenção para o que os internautas colocam na rede. Na verdade, no ponto de
vista de um defensor dos direitos individuais, será eticamente correto associar
tais informações a indivíduos? E o que dizer da injusta vantagem de apenas
alguns, nomeadamente os agentes económicos, os mais notáveis, os mais aptos,
poderem aceder às melhores informações? Digamos que a atual economia de mercado
- aquela que de acordo com o célebre professor Francis Fukuyama, em 1989, melhor
servia os interesses da democracia liberal, dirigindo-se a História para esse
fim - possui hoje o seu pilar, precisamente, neste desequilíbrio da informação.
E sabemos, inclusive, que este fosso tende a aumentar entre os incluídos nos
algoritmos informáticos e os info-excluídos de tal maravilhosa ferramenta.
Torna-se, então, necessário que todos nos transformemos em cidadãos cada vez
mais democraticamente informados, uma vez que a internet possui de facto essa
qualidade de construir um mundo supostamente livre e a todos acessível ou, pelo
contrário, e a bem de um suposto controlo sustentável da economia mundial, deve
mesmo alargar-se essa desconformidade entre os dois grupos? E como é que a
cooperação internacional funcionará na resolução das grandes questões globais,
uma vez que a internet complexifica o próprio espaço democrático? Será assim ou
as questões são outras?
5. O século XXI, além de ser considerado o grande século dos
conflitos religiosos generalizados, poderá também ser interpretado como o
grande século da extraordinária circulação dos Big Data. Para referirmos apenas um mas incontornável exemplo[6],
é notório que a famosa rede social lançada em 2004, o Facebook, possui um valor
estimado do seu império em 100.000 milhões de dados. Esta rede, sendo gratuita
para os usuários, gera receita proveniente de grupos patrocinados e de
publicidade, incluindo banners[7].
Os seus utilizadores criam perfis que contêm fotos e listas de interesses
pessoais, trocando mensagens privadas e públicas entre si e participantes de
grupos de amigos, enfim, biliões de biliões de dados. O cálculo é efetuado pela
astronómica quantidade de informação (leia-se, dados pessoais) que é posta à
disposição dos exploradores da matriz, ou seja, 800 milhões de registos que
cruzam, cada um por si, com outros tantos dados ou informações sobre «amigos»
que estão no círculo do utilizador, a saber, imagens (fotos), características
fisiológicas, gostos, etc., mas também relevando apenas os aspetos positivos e
idealizados das suas pessoas, algo que os «amigos» acriticamente acolhem em
nome da subconsciente necessidade de visibilidade, melhor dizendo, da
indispensabilidade da importância que todos desejam ver conferida às suas
pessoas. Significa isto, eventualmente, que muitos dos caríssimos presentes que
escutam esta simples comunicação, e o próprio autor deste texto, poderão também
facilmente ser localizados… publicamente! E nem a Diretiva de Proteção de Dados, de 1995, que preconiza o chamado
«direito ao esquecimento», nos poderia ajudar neste caso. Aliás,
contrariamente, muito nos agradaria, para sermos francos, que algumas centenas
de amigos não virtuais aqui estivessem connosco, presentes em carne e osso,
pela filosofia, a refletir acerca do mundo atual! E deparamo-nos com um facto
empírico: presentemente os Big Data traduzem a vida privada numa linguagem
pública e, neste sentido, para retomarmos a analogia histórica, exercem uma
função mais democrática do que na Roma Antiga. No entanto, e o que não é menos
importante, corre-se o risco de uma insensibilização ao estímulo privado. A vulgarização dos dados
pessoais transforma a vida privada do homem atual numa espécie pública de
interesses naturalmente egoístas, num homo
publicus por assim dizer, mas segundo uma dramatização de uma identidade
coletiva ideal, ou seja, aquela que cria o espetáculo
da publicidade do eu – e aqui poderíamos, inclusive, repensar a potência
influenciadora do voto que são os mass
media, nomeadamente da televisão, e especialmente na projeção pública de
perfis privados. Em contrapartida, o que prova a real necessidade da
inviolabilidade da vida privada, surpreendentemente nos surgem novíssimos
avatares da singularidade não partilhada, como por exemplo o navegador TOR,
inventado pelo Naval Research Lab (EUA) para operar na rede de comunicação
segura entre agências governamentais. Acessível ao grande espaço público
democrático desde 2003, consegue efetivamente camuflar a localização e
atividade do utilizador. Evidentemente, tal urgência da liberdade pessoal logo
se encontra constrangida pela sua antítese representada pela Darkweb, a
«internet profunda», na qual uma subespécie, a Darknet (surgida em 2011), se
originou incarnando ambíguas personagens cujo berço é na realidade
desconhecido, os cibercriminosos. O TOR, rapidamente absorvido pela população
universitária, terá sido inventado para defender a liberdade - segundo alguns
representantes do governo norte-americano. O seu inventor, o matemático Paul
Syverson, pretendeu «oferecer um utilitário às pessoas honestas que
necessitassem de proteção».[8]
Enfim, digamos na nossa linguagem que o momento
hegeliano da Aufhebung suprime mas
conserva, elevando a instituição de um sistemático discurso dialético de
autoconhecimento da democracia evolutiva. Negatividade, positividade, progresso
– eis a condição humana!
6. Finalmente, quando falamos de
democracia na era da informação digital e do capitalismo liberal, falamos em
que modelo de democracia? Esta questão, que por si só suscitaria uma aturada
investigação, levar-nos-ia para uma discussão primeiramente centrada no nosso
interesse em autores como Locke, Rousseau ou Habermas e posteriormente, para
uma reflexão acerca das influências que a Rede produz nos regimes políticos
ditos democráticos. Por várias razões, a começar pela pouca arte que nos
caracteriza, não o faremos seguramente aqui. Mas, tentando obviar esta nossa
frustração, cabe-nos, no mínimo, perguntar o seguinte: será que a democracia e
a liberdade estagnaram no mundo hodierno? Ao que se sabe, não existiu algum
aumento do número de democracias eleitorais desde 2006. Segundo Larry Diamond,
da Universidade de Stanford[9],
a quantidade de democracias tem oscilado entre as 114 e as 119, ou seja, 60%
dos países do mundo. Mas, a partir do ano de 2006, 25 democracias terão entrado
em colapso. Causas? Golpes militares; executivos corruptos e autoritários;
degradação dos direitos democráticos; sistemas políticos de fraca qualidade e a
degradação da concorrência eleitoral multipartidária. Exemplos maiores são
apontados: Rússia, Turquia, mas também a Venezuela, Tailândia, Botswana,
Bangladesh e Quénia. O controlo partidário das elites de governadores sobre o
sistema judiciário e a administração pública é, especialmente, a grande
perversão democrática que todos conhecemos - uma tendência atual que deverá
preocupar os filósofos. No nosso país, por exemplo, a acreditar no relatório do
Conselho
da Europa e do GRECO - Grupo de Estado contra a Corrupção – de 2016, o governo
democrático português deve dedicar a sua vigilância aos regimes aplicados tanto
a deputados como a juízes e procuradores, pois tem dedicado "uma atenção
insuficiente às questões da integridade, responsabilização e
transparência", não tendo sido ainda estabelecidas regras sobre a conduta (leia-se,
conduta ética) profissional. Mas o estudo salienta, também, o progresso
efetuado para se analisar a obrigação dos eleitos de apresentarem uma
declaração de rendimentos, dizendo, porém, que esta deveria estar acessível em linha e não apenas por consulta no
Tribunal Constitucional. Na verdade, é precisamente disto que também os
filósofos conversam: chegarão os Big Data a tão inóspitas intimidades do
capital privado? Ou isso é um tema que só à área dos direitos privados diz
respeito? Com efeito, as liberdades também diminuem pelo colapso do estado de
direito e pelo aumento da corrupção (especialmente na África subsariana,
incluindo a África do Sul). A autocracia exerce o seu instinto de conservação e
as democracias perdem a regalia de ser um modelo humanista a imitar. Apesar de
tantas adversidades admitimos que este paradigma é uma forma de governo de
dialética exceção, já que é dentro de si que alberga a sua própria contradição,
a saber, a contraposição a si mesmo. Conjuntamente, modelos alternativos vão,
orgulhosamente, surgindo por via de certas respostas destrutivas do engenho democrático
(Turquia, Rússia, China). Entendemos que o escopo da democracia é o alcance dos
cânones da igualdade e da liberdade sendo, a um tempo, a sua intrínseca
condição. Desde a situada invenção grega à economia de mercado/democracia
liberal, passando pelo Contrato Social é, ainda, uma virtude que muito se
contempla. As misérias da democracia anunciadas
por Alexis de Tocquevile - como resultado da sua famosa viagem oficial com o suposto objetivo de
estudar o sistema penitenciário dos EUA - donde surgiu o grande clássico da
Ciência Política, A Democracia na América
traduzem, ainda hoje, o problema da denominada tirania da maioria – algo igualmente pensado por Stuart Mill.
Semelhante injustiça da democracia - que
exclui os que arregimentam menor poder nas decisões sociais, assim como os seus
dissidentes - faz sobrevir o fantasma da antinomia,
da incoerência entre a vontade geral e os interesses corporativos singulares,
permitindo de novo a velha questão agostiniana: como é que um reino/governo se
torna um bando de ladrões ou, o que é o mesmo, como é que um bando de ladrões
funda um reino/governo? Traduzindo a ideia para a atualidade temos, por
metonímia, o seguinte: como é que os corredores privados dos políticos outorgam
a capacidade técnica de manipulação pública da sociedade? O que nos remete,
afinal, para uma segunda grande miséria da democracia: a indiferença e o desinteresse
pela Política (o fenómeno psicológico da dessensibilização, mais uma vez), o
défice democrático portanto. Será isso que nos conduz à «desintegração da vida
pública, [esse] desinteresse pela política que vai a par com a sua
profissionalização» – como referiu Victoria Camps[10]? Apelando
ao interesse público, os ricos imoderadamente prosperam, mediante o favoritismo
político dos seus aliados mais avisados, servindo genuínos interesses. É isto
uma subespécie da tendência antropológica natural para recompensar a família e
os amigos? Eis a politizada decadência da ordem política! – parafraseando a
última obra do já citado, e agora autorretractado Fukuyama, Political Order and Political Decay (2014).
Trata-se, assim, como sugerimos no título desta comunicação, da democracia em privado que pode controlar
a vida pública. Apesar disso, e em boa verdade, constatamos que jamais na
história da humanidade tanto se fez, como hoje em dia, para tornar públicos os
vícios do poder privado, ao mesmo tempo que alastram como nunca na nossa
narrativa comum, multímodas ações de voluntariado, humanismo ativo, canalização
de riqueza de muitos países para os refugiados de guerra ou a real defesa dos
Direitos Universais do Ser Humano, porfiando na crença de uma séria possibilidade
utópica, quer dizer, de uma democratização concreta, justa mas equitativa, palpável,
das relações sociais. What’s gone wrong
with democracy? – perguntava a revista The
Economist, em Março de 2014. E numa plausível reflexão para o melhoramento
de tal sistema político, advogava a publicação inglesa três bases de ponderação
e trabalho: instituições mais fortes (dando-se menos importância às eleições);
um estado mais limitado (pela formação de comissões independentes) e a
delegação de decisões nas pessoas comuns (por exemplo, mediante referendos
locais sobre iniciativas de cidadãos). Enfim, a Economia também é Ciência
Social! Acrescentemos ainda, com otimismo, a importância da Ciência Participativa, a nova era da ciência em rede ou da
ciência de cidadania, que pode democratizar o acesso a dados científicos
normalmente acomodados em pequenos feudos de superespecialistas, ao mesmo tempo
que exerce uma função socializante da consciência democrática, como é o caso do
sítio na internet ancientlives.org -
criado em 2012 por diversas equipas de papirologistas da Universidade de Oxford
e, entre outras, da Egypt Exploration Society – já responsável pela
identificação, por diversos internautas, de papiros de Tucídides, Aristófanes e
Plutarco. Ou ainda o projeto conhecido como radio SETI@home, de 1995, que
explora a democraticidade da «informática partilhada»[11]. Por
isso, e a par das claras perseguições ao livre pensamento de muitos cibernautas
em alguns países, também as instituições científicas de um modo distinto evidentemente,
parecem preferir, afinal, a manutenção do seu espaço de informação científica
privada, inibindo a verdadeira e fecunda solidariedade para o aperfeiçoamento
da Razão[12].
7.
Em
jeito de conclusão: chamámos «espaço democrático privado» não à influência
económica do grupo do G7 ou das maiores sociedades industrializadas do mundo (Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, Canadá, França, Itália, Japão,); não à
influência direta da Opus Deis ou da Maçonaria no secretismo mobilizador dos
deputados que governam a nossa nação[13]; nem ao
poder lobista do criador de uma Nova Ordem, o Clube de Bilderberg[14], escolhidos entre as personalidades
mais influentes no mundo empresarial, académico, mediático ou político; muito
menos às agências corretoras, ao FMI ou ao Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BERD). Trata-se de
algo
que muito em breve ultrapassará tudo isso! Falamos da Agorá Virtual e sobre informada do relativismo moral/libertismo,
imperante nas emoções e na razão, logo, na vontade humana. Algo que nos converte
em seres culturalmente híbridos, permitindo-nos coexistir local e globalmente. E
apesar da importância democrática conferida à voz da praça pública que a comunicação
digital indubitavelmente favorece, daí as conhecidas perseguições aos seus
livres utilizadores, pensamos em algo que parece substituir a fenomenológica
necessidade da crença humana no transcendente para além da ordem do razoável,
uma espécie de hagiolatria inconsciente e coletiva, enfim, o poder da internet,
melhor, A Divina Rede. Propomos
semelhante tropo porque ele se justifica pelas qualidades tradicionalmente
atribuídas ao conceito monoteísta de um deus.
Ela é omnipresente: a sua ambígua essência
materializa-se numa ubíqua presença estático-dinâmica, a saber, num
outro que não é fisicamente aqui mas está
psicologicamente aqui, na virtualidade da comunicação em linha - o que poderá,
eventualmente, provocar indícios de uma espécie de síndrome de abstinência por
assim dizer, quando não consegue contactar-se. A Divina Rede é omnipotente:
tanto pretende derrubar governos como eleger presidentes, por vias (supostamente)
humanistas, peticionantes, enfim, virtuosas.
É omnisciente: tudo sabe de todos e
nada se perde adentro da superestrutura da informação. É providente: gera informação que provê os mais aptos, mas não a
grande população parca em literacia informática. A Divina Rede é previdente:
opera com algoritmos que premunem os comportamentos de uma massa incógnita
e/mas sinalizada. A Divina Rede é! Ora,
para completar a analogia: compreendendo que não é eterna, já que foi criada, resta
saber se é imortal e infinita. Resta saber se controla as consequências dos
seus atos, ou seja, devemos perguntar se é verdadeiramente responsável. E se assim
for, de que modo esse controlo privado poderá revolucionar-se num espaço deveras
democrático?
Torres Vedras, 9 de Abril de 2016.
Joaquim
Carlos Araújo,
(Mestre em Filosofia Contemporânea) Escola Secundária de José Afonso, Loures.
(joaquimcarlossenos@gmail.com)
[1]
Cf. VIEIRA,
Ana Livia Bomfim. Algumas Considerações sobre Política e Corrupção na Grécia
Antiga. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 24., 2007, São Leopoldo, RS. Anais
do XXIV Simpósio Nacional de História – História e multidisciplinaridade:
territórios e deslocamentos. São Leopoldo: Unisinos, 2007. CD-ROM.
[2] Cf. História da Vida Privada, I, Edições
afrontamento, 1989.
[3] Ao analisar os pedidos de medicamentos por parte dos
utilizadores, a Google estudou a evolução da gripe em todo mundo, trabalhando
em parceria com o Centro para o controlo e Prevenção de Doenças (CDC), situado
em Atlanta.
[4] Paul Hawtin, num escritório sediado em Londres,
compra e vende, em nome de investidores privados, muitos milhões de dólares. O
seu algoritmo permite, com muita antecedência, e mesmo antes dos relatórios das
empresas serem publicados, prever os riscos de falência ou a evolução do
consumo.
[5]
Numa tradução livre: «O organismo não é
corpo, o CsO, mas um estrato sobre o CsO, quer dizer, um fenómeno de
acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções,
ligações, organizações dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas
para daí extrair trabalho útil». (Deleuze et Guattari,
Mille Plateaux, Les Éditions de Minuit, 1980, 6, p. 197).
[6] Segundo o Washington Post, 07.06.2012.
[7] Espécie de anúncio publicitário que, ao
ser clicado, por ser uma hiperligação (link)
de um hipertexto, consegue transportar o potencial cliente para o sítio do
anunciante.
[8] CF. Revista Rolling Stone, de 22.10.2015. Eventualmente, e por defeito, dentro de alguns anos,
as funcionalidades tipo TOR poderão ser o modo preferido de comunicação – e em
breve no Firefox ou no Facebook – servindo o espaço público mediante uma
democracia (altamente) privada…
[9] CF. Facing Up to the Democratic Recession, Journal of Democracy, 26,
January 2015.
[10] Camps, Victoria, Paradoxos
do Individualismo, Lisboa, Relógio D’Água, 1996.
[11] Os voluntários emprestam a este projeto de astronomia
um pouco da capacidade de processamento dos seus computadores quando em modo de
espera, possibilitando assim analisar miríades de dados recebidos pelas redes
de telescópios que investigam sinais de vida extraterrestre.
[12] Vejam-se outros projetos de Ciência Participativa nas
áreas da ecologia, sida ou astronomia (galaxyzoo.org). Cada vez mais cientistas
aderem a este novo tipo de ciência – cf. scienseforcitizens.net. Mas, segundo
Michael Nielson, ex-físico teórico, as instituições científicas não sabem [será
que querem?] partilhar informações de forma produtiva – CF. Nielson, Michael, Reinventing discovery: the new era of
networked science, Princeton University Press, 2011.
[14] Cf. Estulin, Daniel, La verdadera historia del Clube Bilderberg,
Editorial Planeta S. A. 2005, Barcelona, España. Uma obra pouco divulgada em
Portugal!
Sem comentários:
Enviar um comentário