segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

 

Armas e manteiga, napalm e TV a cores: a atualidade de Herbert Marcuse em quatro pontos

Talvez nenhuma discussão de Marcuse seja tão importante hoje em dia como essa, quando uma parcela grande da humanidade encontra na tecnologia, tal como ela é, uma resposta para a crise climática e para a crise política, quando os setores “progressistas” se entregam de braços abertos à lógica de visibilidade das redes sociais e aos seus critérios de engajamento e defendem esse aparato, privado e monopolista, como uma ágora digital e uma maneira de se reconectar com “o povo” e, em desespero, procuram aliados em figuras que vão de Taylor Swift a Pablo Marçal.

Marcuse confere palestra em Berlim, 1967
Foto: Wikimedia Commons

Por Bruna Della Torre e Eduardo Altheman

Publicado originalmente em 1964, O homem unidimensional é um livro que se debruça sobre os processos de estabilização do capitalismo nos países “avançados”, conforme destaca o próprio autor. Em tempos atuais de colapso total, de crise econômica, ecológica, financeira e reprodutiva, bem como social e política, com a ascensão novamente do fascismo e o aprofundamento do colonialismo, da guerra e do genocídio (Gaza, Sudão, Ucrânia, entre outros), um livro dedicado à investigação das formas de estabilização e integração capitalistas parece não falar mais ao presente, quando a realidade torna cotidiana a frase de Karl Marx e Friedrich Engels de que “tudo que é sólido desmancha no ar”. Tendo isso em vista, e considerando que Marcuse é ao mesmo tempo muito conhecido e pouco debatido nas ciências humanas no Brasil e no mundo,optamos por levantar alguns pontos de interesse do livro para pensar a sua atualidade, mais do que fazer um comentário exegético de seu conteúdo. Assim, chamaremos a atenção para algumas questões específicas abordadas nessa obra, a saber, “A guerra e a era atômica”; “Tecnologia e Ideologia”; “As formas sociais do colapso”; “Tarefas da Crítica” — pontos que nos parecem admitir pensar de alguma forma a estabilização da crise e da própria instabilidade que hoje nos governa.

Não deixa de ser interessante refletir sobre os diferentes ritmos de recepção dessa obra, para tomar de empréstimo os termos de Jürgen Habermas na coluna que escreveu sobre os ritmos diversos da filosofia e da política à ocasião do centenário de Marcuse, em 1998. Uma tradução em português foi publicada também no caderno Mais!, da Folha de São Paulo. Como sabemos, o livro de Marcuse foi um pequeno terremoto que chacoalhou a vida política global na segunda metade dos anos 1960. A despeito de um tom supostamente pessimista e derrotista (adjetivos que, aliás, nada têm de analíticos) que perpassa O homem unidimensional, e da discussão para saber se os grupos catalisadores da revolta haviam de fato lido Marcuse, a verdade é que o livro alçou seu autor a uma espécie de porta-voz intelectual ou liderança política (postos que ele mesmo talvez nunca tenha esperado ou desejado) de uma geração que se rebelava contra a guerra do Vietnã, o racismo e a misoginia sistêmicos, a brutalidade policial, os empregos sem sentido e as formas de vida sem o mínimo teor de autorrealização, autonomia e emancipação. A bem dizer, alçou não apenas Marcuse, mas toda a Escola de Frankfurt junto, afinal, circulava globalmente na quantia de centenas de milhares de cópias em uma época em que simplesmente não havia traduções de obras como Dialética do Esclarecimento ou “Teoria tradicional e teoria crítica”, alguns dos textos fundantes e fundamentais da Teoria Crítica frankfurtiana.

No Brasil, o livro foi publicado em 1967, três anos depois do golpe militar de 1964, com o curioso título A ideologia da sociedade industrial. Jorge Coelho Soares relata como a escolha do título pela editora Zahar estava enredada no tenebroso contexto político do país: na soleira do AI-5, qualquer menção ao conceito de “unidimensionalidade” já atrairia os olhares dos censores. Mas o título é curioso porque, além de omitir o título original e optar pelo subtítulo da obra, omite igualmente um adjetivo decisivo para o diagnóstico de Marcuse, a saber, “avançada”. O subtítulo original publicado pela editora Beacon Press, “Studies in the ideology of advanced industrial society”, já revelava que os estudos de Marcuse não se referiam ao capitalismo tout court, mas sim à sua forma tardia ou avançada, que representava uma configuração sublevada do modo de produção.

No entanto, assim como as revoltas e insubordinações dos anos 1960 haviam catapultado seu sucesso em escala exponencial, quando a contrarrevolução neoliberal dos anos 1970 imprimiu sua marca de modo sensível mundo afora, parece que os “anos marcuseanos”, por assim dizer, evanesceram conjuntamente – de forma mais precisa: foram evanescidos. Talvez quem tenha formulado essa ideia de modo mais nítido tenha sido o recém-falecido Fredric Jameson, que, em Marxismo tardio, seu livro dedicado a Adorno, afirmou:

Aqui, em larga medida, nessa década que acabou de terminar, mas que ainda é nossa, as profecias de Adorno do “sistema total” finalmente se realizaram, em formas totalmente inesperadas. Adorno certamente não foi o filósofo dos anos 1930 (que deve ser identificado retrospectivamente, temo, como Heidegger); nem o filósofo dos anos 1940 e 1950; e tampouco o pensador dos anos 1960 – esses se chamam Sartre e Marcuse, respectivamente; e eu disse que, filosófica e teoricamente, seu discurso dialético antiquado foi incompatível com os anos 1970. Mas há alguma chance que ele tenha vindo a ser no fim das contas o analista de nosso próprio período […] (Jameson, 2007, p. 5).

Quando o assunto é Teoria Crítica — uma forma de teoria que admite de saída o primado do objeto e insere no núcleo de suas considerações a variável tempo, ao invés de forjar a ferro e fogo conceitos à prova da história —, a questão sempre se coloca: o que aqui mudou e o que permanece, o que caducou e o que se tornou ainda mais agudo nesse diagnóstico. Contraditoriamente, ao mesmo tempo em que alguns de seus pressupostos e tendências fundamentais tornaram-se obsoletos, o livro parece ter adquirido novo fôlego com os últimos anos de apocalipse capitalista. Especular a respeito de uns e outros é o exercício que, sem pretensão exaustiva, nos propomos a realizar aqui.

Para tal, escolhemos um título que tomamos de empréstimo do prefácio de outro texto de Marcuse, Um ensaio sobre a libertação, de 1969. Nele, Marcuse afirma:

No Vietnã, em Cuba, na China, está sendo defendida e impulsionada uma revolução que luta para evitar a administração burocrática do socialismo. As forças guerrilheiras na América Latina parecem ser animadas pelo mesmo impulso subversivo: libertação. Ao mesmo tempo, a fortaleza econômica aparentemente inexpugnável do capitalismo corporativo mostra sinais de tensão crescente: parece que até mesmo os Estados Unidos não podem entregar indefinidamente seus bens — armas e manteiga, napalm e TV a cores. (Marcuse, 1969, p. 7, tradução nossa)

Com essa formidável e assombrosa expressão, Marcuse faz referência a um modelo macroeconômico conhecido como o modelo “armas x manteiga”. Grosso modo, ele se refere a um cálculo relacionado ao investimento de um país na defesa militar (“armas”) ou na produção de bens de consumo para a população. “Manteiga” aqui é uma metonímia para todo tipo de produto e serviço relacionado ao bem-estar da população, seja ele materializado em escolas, hospitais, áreas públicas etc. Um aumento de gastos em um lado implica necessariamente em uma constrição no outro. Para usar os termos já profundamente ideológicos da macroeconomia marginalista, há um trade off entre ambos a ser levado em conta por qualquer governo. Durante os anos 1960 nos EUA, país onde Marcuse escolheu permanecer e residir, os programas da Grande Sociedade de Lyndon B. Johnson evisceravam essa relação de imbricação entre Welfare State e Warfare State, para usar os termos de Marcuse: enquanto expandia programas de bem-estar do tipo New Deal, Johnson também estava engajado na corrida armamentista com a URSS e na Guerra do Vietnã, o que, por sua vez, limitava as possiblidades de expansão dos sistemas de welfare nacionais. Mas Marcuse já conhecia a expressão de outros cenários. Em um discurso em 17 de janeiro de 1936, o Ministro da Propaganda Joseph Goebbels havia declarado: “Podemos viver sem manteiga, mas, apesar de todo o nosso amor pela paz, não sem armas. Não se pode atirar com manteiga, só com armas”. Vamos começar então justamente por esse duplo movimento marcuseano que perpassa todo o corpo de sua obra: as ligações entre nazifascismo e capitalismo, de um lado, e a racionalidade irracional do capitalismo, de outro.

A guerra e a era atômica

“Os foguetes estão chacoalhando, a bomba H está esperando, as naves espaciais estão voando, e o problema é ‘como proteger a nação e o mundo livre’.”
Herbert Marcuse, O homem unidimensional

Após a queda do muro de Berlim, a era atômica parecia ter ficado para trás. Ou, ao menos, conforme discute Étienne Balibar, parecia ter se tornado uma ameaça difusa: algo que pairava, assombrava nossa sociedade, mas sem que tivéssemos ideia alguma de quando ou onde uma bomba nuclear pudesse cair — um jogo de roleta-russa normalizado e institucionalizado, no qual democracia e armas de destruição em massa não parecem ser termos antagônicos. Quando Donald Trump venceu as eleições de 2016, no entanto, um dos questionamentos principais que emergiu foi, sem dúvida: “o que vai acontecer com o mundo agora que o maior arsenal nuclear do mundo está ao alcance desse delinquente?”. Desde então, o chamado mundo multipolar dá lugar novamente a uma divisão do mundo em blocos, como se vivêssemos uma espécie de paródia da Guerra Fria, na qual os países comunistas são eles também uma sombra da própria URSS, já profundamente criticada por Marcuse por seu caráter autoritário e, em muitos sentidos, ainda apegado a formas capitalistas de produção. A guerra da Rússia contra a Ucrânia, o genocídio produzido por Israel em Gaza, bem como seus atuais ataques ao Líbano, o incremento dos testes de armas atômicas pelos EUA, China, Coreia do Norte e Rússia, além da defesa que a AfD faz da militarização – inclusive nuclear – da Alemanha intensificam os conflitos armados (que nunca foram, de fato, eliminados) no âmbito da geopolítica mundial e redimensionam novamente a ameaça de aniquilação, que deixa de ser difusa e ganha concretude a cada dia em diversos lugares do globo.

Curiosamente, quando discutimos a era atômica, os escritos da Escola de Frankfurt, em geral, e de Marcuse, em particular, raramente aparecem como referências centrais sobre o tema, embora o ataque a Hiroshima e Nagasaki seja fundamental para essa tradição e esteja presente em grande parte de sua produção. Em O homem unidimensional, ele tem lugar de destaque. Na frase de abertura do livro, Marcuse questiona: “A ameaça de uma catástrofe atômica que poderia exterminar a raça humana não serve também para proteger as próprias forças que perpetuam esse perigo?” (p. xi). Em outras palavras, a bomba nuclear tornaria opaca (como discutiria Günther Anders, anos depois) a própria formação social da qual ela emergiu, bem como a racionalidade tecnológica que se autonomiza na sociedade industrial desenvolvida e da qual a bomba é produto.

Adiantando em anos uma análise da bunkerização dos Estados Unidos, Marcuse chama a atenção para a lucratividade do setor de “preparação para a catástrofe”, o doomsday prepping da era atômica, que anuncia “abrigos de luxo contra precipitação radioativa” (p. 93) com TVs, jogos de palavras e carpetes incluídos no pacote. A propaganda dos abrigos mobiliza uma linguagem unidimensional que concilia contrários e relaciona “destruição nuclear” com “conforto”, “aniquilação” com “a necessidade de estar preparado, de viver no limite, de enfrentar o desafio” (xxxix). Ainda segundo Marcuse: “ao exibir suas contradições como prova de sua verdade, este universo discursivo se fecha contra qualquer outro discurso que não esteja nos seus próprios termos. […] Essa linguagem se expressa em construções que impõem ao destinatário um significado distorcido e abreviado, um desenvolvimento bloqueado do conteúdo, a aceitação daquilo que é oferecido na forma em que é oferecido” (p. 94). É essa mesma linguagem que vai dar lugar ao discurso da “bomba limpa” (ideia popular nas décadas de 1950 e 1960 segundo a qual havia uma bomba menos danosa ao meio, cujas consequências poderiam ser mais controladas por seu menor teor de precipitação radioativa). Dizer que essa linguagem é unidimensional é dizer que:

[…] os domínios anteriormente antagônicos se fundem em bases técnicas e políticas — magia e ciência, vida e morte, alegria e miséria. A beleza revela seu terror quando usinas nucleares e laboratórios altamente secretos tornam-se “Parques Industriais” em ambientes agradáveis; sedes da Defesa Civil exibem um “abrigo de luxo contra radiação” com carpete de parede a parede (“macio”), poltronas, televisão e jogos de scrabble, “projetado como uma sala de estar para a família em tempos de paz (sic!) e como abrigo contra radiação para a família caso a guerra estoure”. Se o horror de tais realizações não penetra na consciência, se é prontamente aceito como normal, é porque esses feitos são (a) perfeitamente racionais dentro da ordem existente, (b) símbolos de engenhosidade e poder humanos além dos limites tradicionais da imaginação (p. 252).

Em O homem unidimensional, Marcuse antevê, ainda no mundo plenamente administrado dos trinta gloriosos, a transformação da sobrevivência numa questão privada e da segurança na mercadoria mais valiosa da sociedade atual, que faz da chamada “prep industry” um mercado bilionário. Mais do que isso, a normalização da preparação para a catástrofe, sua mercantilização e a transformação daquilo que é socialmente produzido numa questão individual. E mais, estar preparado significa, ao mesmo tempo na prática e na consciência, aceitar o que vem por aí, assimilar a impotência diante do todo.

Nada mais relevante hoje. A ideia de uma catástrofe nuclear que irá aniquilar parte da humanidade nos dias que correm é não só provável, como objeto cobiçado de consumo, dos bunkers à indústria cultural, que mais do que nunca encontra no fim do mundo seu conteúdo mais lucrativo (um tópico que deve ser pesquisado criticamente com urgência). Os bilionários do Vale do Silício fazem de outros planetas os seus próprios bunkers, não mais enterrados no solo. A dominação se tornou universal no sentido literal de que agora se estende a outros lugares do universo. Conforme ressaltam Robert Kirsch e Emily Ray em Be Prepared: Doomsday Prepping in the United States, o bunker hoje é mais do que uma mercadoria, é uma alegoria de nossa sociedade (ao menos da sociedade estadunidense, essa torre de observação avançada do capitalismo). A forma política que ela assume é a do neofascismo trumpista. Por outro lado, aqueles que votam em Trump por conta de suas promessas de sair de todas as guerras também demonstram os limites do progressismo do Partido Democrata, que nem sequer isso consegue prometer mais — e assim reconhecem e defendem a conexão entre o Estado de Welfare e de Warfare.

Marcuse nos impele a indagar o que significa falar em democracia num mundo em que alguns países detêm bombas de destruição em massa e outros não, num mundo no qual a recusa enfrenta “cães, pedras e bombas, cadeia, campos de concentração e mesmo a morte” (p. 261). Ele também nos interpela a discutir como os problemas de nossa sociedade são apresentados e transformados pela linguagem da publicidade, atualmente cada vez mais naturalizada pelas redes sociais. E assim passamos ao próximo ponto.

Tecnologia e Ideologia

“A racionalidade tecnológica se tornou uma racionalidade política.”
Herbert Marcuse, O homem unidimensional.

Parece óbvio, mas não é — nem mesmo para aqueles que se dizem marxistas. Uma das grandes contribuições de Marcuse para o século XXI reside nas suas reflexões a respeito da tecnologia e da racionalidade tecnológica, na discussão a respeito da ideia de que “a noção tradicional de neutralidade da tecnologia não pode mais ser mantida” (p. xvi). “A tecnologia”, afirma Marcuse, “não pode ser isolada do uso para o qual é dirigida; a sociedade tecnológica é um sistema de dominação que já opera no próprio conceito e na construção das técnicas” (p. xvi). Ou seja, todo o projeto de sociedade capitalista e sua forma de vida estão embutidos em sua maquinaria aparentemente neutra e polivalente. Talvez nenhuma discussão de Marcuse seja tão importante hoje em dia como essa, quando uma parcela grande da humanidade encontra na tecnologia, tal como ela é, uma resposta para a crise climática e para a crise política, quando os setores “progressistas” se entregam de braços abertos à lógica de visibilidade das redes sociais e aos seus critérios de engajamento e defendem esse aparato, privado e monopolista, como uma ágora digital e uma maneira de se reconectar com “o povo” e, em desespero, procuram aliados em figuras que vão de Taylor Swift a Pablo Marçal. Qualquer um que estranhe esse cenário recai sob a suspeita de elitismo. A insuficiência dessa estratégia, mesmo em termos eleitorais, não produz, como era de se esperar, uma reflexão crítica, mas a reafirmação constante de que “não há outra alternativa” — hoje um discurso neoliberal totalmente absorvido pelos setores que deveriam protagonizar a (grande) recusa do que aí está. Quanto mais nosso lado é derrotado, mais crê no aparato por meio do qual encontrou sua ruína. A racionalidade tecnológica é a aquela que justifica a existência de algo porque isso funciona bem, mesmo que se trate de máquinas de destruição. A irracionalidade tecnológica contemporânea é aquela que insiste em defender o aparato tecnológico, mesmo que ele não atenda os seus interesses.

Marcuse salienta a transformação da política quando ela não mais se diferencia da publicidade (e faz daquele que melhor maneja o aparato, e cujos interesses se afinam com essa forma, o vencedor):

Se a linguagem da política tende a se tornar a da publicidade, reduzindo assim a lacuna entre dois domínios anteriormente muito diferentes da sociedade, então essa tendência parece expressar o grau em que dominação e administração deixaram de ser funções separadas e independentes na sociedade tecnológica. Isso não significa que o poder dos políticos profissionais tenha diminuído. Pelo contrário, quanto mais global for o desafio que eles constroem para enfrentá-lo, mais normal se torna a proximidade da destruição total, e maior é sua liberdade em relação à soberania popular efetiva. Mas sua dominação foi incorporada às atividades diárias e ao lazer dos cidadãos, e os “símbolos” da política são também os dos negócios, do comércio e da diversão. As vicissitudes da linguagem têm seu paralelo nas vicissitudes do comportamento político. Na venda de equipamentos para entretenimento relaxante em abrigos contra bombas, no programa de televisão com candidatos concorrendo à liderança nacional, a fusão entre política, negócios e diversão está completa. Mas essa fusão é fraudulenta e fatalmente prematura—negócios e diversão ainda são a política da dominação (p. 106-107).

Isso quer dizer que a política feita por meio do TikTok já não quer dizer a mesma coisa; ela se mistura à linguagem da publicidade que estrutura as redes sociais. A ideologia, conforme ressalta Marcuse, está no processo de produção, e a dominação se perpetua como tecnologia, encoberta pelo que Marcuse chamou de “véu tecnológico”. A tecnologia reforça uma falta de liberdade confortável e hoje se consolida como meio de pacificação de uma sociedade não pacífica. A comunicação assume um caráter hipnótico e toda a sociabilidade passa a ser ditada pela “euforia na infelicidade”, que hoje ganha estatuto neurológico com a dependência de dopamina que as redes sociais produzem. Esse aparato assume a administração da sociedade hoje, aliado às forças brutais de contenção: o terrorismo de Estado, o encarceramento das populações pobres e racializadas, o desespero produzido pela precariedade laboral.

Um argumento análogo pode ser estendido às formas de trabalho contemporâneas, especialmente no setor cada vez mais abrangente do “capitalismo de plataforma”, da uberização e da plataformização do trabalho. Aqui vale a pena mencionar como Marcuse ainda confere uma posição privilegiada ao trabalho na sua crítica do capitalismo tardio. Embora o livro contenha capítulos com assuntos que vão do mais concreto ao mais abstrato — incluindo investigações sobre a sexualidade, estética, a linguagem, lógica, filosofia, entre outros — ele inicia com uma afirmação fundamental: “a assimilação nas necessidades e aspirações, no padrão de vida, nas atividades de lazer e na política derivam de uma integração na planta mesma, no processo material de produção” (MARCUSE, 2002, p. 32, grifo nosso).

Nos anos 1960, boa parte da sociologia do trabalho marxista estava preocupada com um fenômeno curioso e quase antinatural no capitalismo (um modo de vida que nada tem de natural de saída), a saber, a dissociação entre gerência e propriedade da empresa capitalista, orquestradas pela assim chamada “revolução dos gerentes”. Esse peculiar fenômeno contrariava alguns prognósticos basilares da teoria marxista, que apostava na tendência do capitalismo não de multiplicar camadas médias que se situavam entre proletários e burgueses, mas sim na expulsão paulatina dos trabalhadores do processo produtivo à medida que o capitalismo introduzia capital fixo (portanto, trabalho morto) na produção. O cenário deveria ser o de bipolarização crescente da sociedade entre uma massa de proprietários dos meios de produção, de um lado, e de uma massa cada vez maior de despossuídos, de outro. A multiplicação dos gerentes, para Marcuse, realizava uma operação ideológica digna de nota, embaçando a possibilidade de distinção nítida entre exploradores e explorados:

A dominação é transfigurada em administração. Os patrões e proprietários capitalistas estão perdendo sua identidade de agentes responsáveis; eles estão assumindo a função de burocratas em uma máquina corporativa. Dentro da vasta hierarquia de comissões executivas e gerenciais […] a fonte tangível da exploração desaparece por trás da fachada de racionalidade objetiva (Marcuse, 2002, p. 35).

Hoje, as empresas de plataforma revertem essa tendência excepcional dos assim chamados “30 anos gloriosos” e voltaram a enxugar os postos gerenciais que, todes sabemos, sempre foram inúteis — do ponto de vista social, sem dúvida, mas mesmo do ponto de vista capitalista. A grande maioria deles pertence àquela miríade de pseudo-ocupações que o antropólogo anarquista David Graeber denominou “bullshit jobs”. Hoje, em virtude tecnologias como o gerenciamento algorítmico, da digitalização e virtualização de parte do aparato produtivo, e dos processos de terceirização dos meios de trabalho para os próprios trabalhadores, um único escritório de empresas-plataforma é capaz de supervisionar centenas de milhares (por vezes, até milhões) de trabalhadores. Um exemplo ilustrativo para contrastar as relações de produção na época de Marcuse com as da nossa: em 1962, a General Motors, uma das empresas que simbolizavam o sonho americano baseado na sociedade do automóvel, empregava 605.000 trabalhadores (cf. Srnicek, 2017, p. 4), atingindo a impressionante quantidade de quase 840.000 funcionários em 1979 (cf. Ford, 2016, p. 76). Agora, uma única empresa de plataforma “intermedia” “bicos” (sic) de milhões de trabalhadores em todo o mundo. A Uber, por exemplo, possui cerca de 30.000 funcionários diretos e mais de 7 milhões de motoristas “parceiros” dispersos no planeta.

À primeira vista, esse quadro aponta para um cenário social e laboral em que a “a fonte tangível da exploração” reaparece de forma resplandecente. Afinal, sem aquelas posições intermediárias situadas entre patrão e empregado, deveria tornar-se cristalino quem produz o valor e na conta bancária de quem ele vai parar.

Mas Marcuse havia investigado a obnubilação ideológica da exploração não apenas a partir da estratificação hierárquica do trabalho, mas igualmente pelos efeitos de ofuscação tecnológica. No capitalismo de plataforma, a “fachada de racionalidade objetiva” transmuta-se em chatbots, algoritmos, smartphones e gamificação, mas continua lá, operando como forma ideológica mesmo nas profissões mais precárias possíveis. Este é um dos fatores que, a despeito toda a precarização constitutiva da assim chamada gig economy, leva à emergência da ideologia do empreendedorismo de si mesmo em configurações que seriam mais bem caracterizadas como proletarização de si mesmo.

Nesse quadro, mergulhamos novamente em águas marcuseanas, especialmente suas reflexões sobre a perpetuação da heteronomia dissimulada de autonomia: “com o progresso técnico como seu instrumento, a não liberdade – no sentido da sujeição do homem ao seu aparato produtivo – é perpetuada e intensificada sob a forma de muitas liberdades […]. A caraterística inédita é a acachapante racionalidade nesse empreendimento irracional […]” (MARCUSE, 2002, p. 35), afirmou ele no livro de 1964 em questão. E ainda: “sob o jugo de um todo repressivo, a liberdade pode ser transformada em um poderoso instrumento de dominação” (MARCUSE, 2002, p. 9). Toda a dialética entre liberdade e escravização, autonomia e heteronomia que havia guiado as reflexões de Marcuse retorna com uma vingança nos arranjos laborais promovidos na segunda e terceira décadas do século XXI pelo capitalismo de plataforma.

O que nos leva ao terceiro ponto.

Estabilização e instabilidade: as formas sociais do colapso

Quando publicou O homem unidimensional, Marcuse diagnosticou uma característica generalizada das “sociedades industriais avançadas”: estabilização e integração. Esse fenômeno abrangia várias dimensões interrelacionadas: integração de classes sociais; integração de todas as forças centrífugas ao Establishment; integração de trabalhadores dentro das fábricas e escritórios de sociedades capitalistas avançadas; integração da cultura e sua consequente neutralização como uma negação do existente; integração de impulsos eróticos como sexualidade genital e mercantilizada; integração do indivíduo no todo totalitário da sociedade; integração do pensamento e da linguagem em uma sociedade que buscava aplainar suas contradições. Juntos, esses elementos convergiam para forjar uma forma de pensamento e sociedade que integrava tudo e todos ao “entregar os bens” e buscava, assim, blindar o capitalismo de suas crises e críticas.

No período contido entre 1945 e 1973, marcado pelo Estado de Bem-Estar Social e pelos pactos de compromisso de classe fordista-keynesianos, sua Teoria Crítica buscou renovar o marxismo para lidar com alguns fenômenos imprevistos relacionados à forma mais recente do capitalismo, que tornavam a sociedade industrial “avançada”. Melhores condições de vida, redução da desigualdade social, mutações no reino do trabalho, novas manifestações de uma sociedade de classe média, as técnicas sem precedentes de controle social engendradas pelo desenvolvimento do aparato tecnológico e a estabilização do capitalismo como um modo de vida (totalitário, diria Marcuse) — todos esses novos traços representaram um desafio substancial à crítica de um sistema baseado nas noções de exploração, opressão, injustiça e violência.

Para entender esse cenário, Marcuse desenvolveu sua versão da controversa tese da “integração do proletariado”, segundo a qual o proletariado, tal como concebido e testemunhado por Marx e Engels e pela primeira geração de marxistas posteriores, não existiria mais como uma força social imediatamente negativa, tanto no sentido econômico quanto político. O principal argumento de Marcuse referia-se à capacidade real (embora nem por isso menos ideológica) do capitalismo industrial avançado de satisfazer as necessidades de uma parcela cada vez maior da população, incluindo a classe trabalhadora.

Novamente, como compreender essa crítica hoje?

De um lado, é evidente que a tese da integração possuía lacunas notáveis, mesmo nas suas formulações originais. Quem contava como “classe trabalhadora” que estava sendo integrada e quem contava como realizando “trabalho” na teoria de Marcuse era permeado de vieses de gênero, raça e sexualidade. Não vamos entrar no mérito da superexploração do trabalho nas periferias e semiperiferias do capitalismo porque Marcuse é explícito na introdução do livro quando afirma que sua análise concentra-se nas “sociedades industriais avançadas”, particularmente a estadunidense, e alerta: “Existem grandes áreas dentro e fora destas sociedades em que as tendências descritas não prevalecem” (Marcuse, 2002, p. xviii) — embora sempre é questionável até que ponto a integração da classe trabalhadora no Norte não estava também baseada na exploração e espoliação do Sul, enfatizando a necessidade de uma teoria do colonialismo para uma teoria sistêmica do próprio capitalismo.

Contudo, do ponto de vista estritamente histórico e mesmo olhando para o próprio Norte global, fica evidente que o aburguesamento da classe trabalhadora que estava na base da estabilização do capitalismo, junto com os sistemas estatais de bem-estar, keynesianismo e liberalismo embutido, esfacelaram nos últimos anos. Marcuse havia notado que sua análise estava baseada na extrapolação daquilo que se colocava então como “tendência”, e, de fato, todos os números à disposição convergiam para corroborar suas hipóteses. Mas ele havia igualmente explicitado que o livro:

[…] oscilará entre duas hipóteses contraditórias: (1) que a sociedade industrial avançada é capaz de conter mudanças qualitativas no futuro previsível; (2) que existem forças e tendências que podem quebrar essa contenção e explodir a sociedade. Não acho que uma resposta clara possa ser dada. Ambas as tendências estão lá, lado a lado — e até mesmo uma dentro da outra. (Marcuse, 2002, p. xv).

Nas últimas cinco décadas de globalização neoliberal, a roda da história parece ter girado para trás, revertendo as tendências de estabilização e integração do capitalismo. Nós nos tornamos uma sociedade mais desintegrada e desestabilizada do que nunca, o que talvez explique parte do apelo de uma extrema-direita global cujo único projeto explícito é regredir para uma sociedade coesa em que todes — mulheres, gays e trans, negros e trabalhadores — “saibam” seus devidos lugares. Mesmo que os lugares não sejam os mais vantajosos para a grande maioria da população mundial, eles ao menos prometem alguma segurança e conforto ontológicos.

Em sua obra dos anos 1970, seja nas palestras de Vincennes de 1974 ou em Contrarrevolução e revolta, Marcuse observa que as tendências estabilizantes e integradoras faziam cada vez menos efeito e que as fraturas da sociedade industrial avançada estavam cada vez mais expostas. Essa parece ser muito mais nossa realidade hoje, quando a manutenção da ordem capitalista pela administração de “uma liberdade confortável, suave, razoável e democrática” (Marcuse, 2002, p. 3), característica do diagnóstico marcuseano dos anos 1960, é cada vez mais complementada por aprisionamento em massa, chacinas, genocídios e guerras.

Assistimos, contraditoriamente, a uma estabilização da instabilidade. A cada década a crise se rotiniza, empurrando todos, uns certamente mais do que outros, mas mesmo aqueles que haviam sido aburguesados no auge dos 30 gloriosos, à beira do abismo. O momento atual de policrise é emblemático: estamos imersos em um colapso ambiental galopante, a cada dia uma guerra nova eclode, genocídios tornam-se cotidianos, a desigualdade social regrediu a níveis feudais, e o mundo insiste em eleger precisamente os candidatos que, longe de puxar o freio de emergência, vão acelerar ainda mais a extinção humana e o cataclisma — enquanto o 1% no topo futilmente se prepara para viver em Marte ou na Lua.

Tarefas da Crítica

O homem unidimensional trata de um exame da sociedade unidimensional em suas várias esferas: a economia, o Estado, a cultura, a linguagem e, como análise marxista que é, debruça-se também sobre a filosofia e as ciências humanas que replicam no pensamento essa unidimensionalidade e a reificação da sociedade capitalista. Essa discussão é fundamental para que a teoria crítica sobreviva num mundo no qual a sociologia ocupa-se quase que unicamente com mapas de hábitos de consumo e mal se diferencia da pesquisa de mercado; a ciência política detém-se exclusivamente na análise de comportamentos eleitorais e funde-se com o jornalismo de comentário e a estatística; o empirismo reforça a realidade ao conceder a palavra final aos agentes e objetos estudados (quem criticar isso, é imediatamente acusado de arrogância); a filosofia torna-se uma terapêutica (mesmo nas formas mais avançadas da chamada “teoria crítica normativa”); a crítica “decolonial” em voga no centro do capitalismo, a despeito de inegáveis méritos, recai no idealismo ao reduzir processos de dominação material à importação de ideias ocidentais para o Sul; o marxismo recupera elementos de sua história autoritária, machista, racista e classista afastando de si as gerações mais jovens; a crítica de arte ou esconde seu positivismo sob uma noção de forma que não possui mais nenhuma ligação com o conceito de sociedade ou dissolve-se no campo dos Netflix Studies (os estudos quase sempre pouquíssimo críticos de filmes e séries vendidas pelas grandes plataformas de streaming por intelectuais que, no fundo, buscam — e muitas vezes obtêm — o mesmo engajamento produzido por essas mercadorias). Atualmente, a crítica radical da sociedade respira por aparelhos.

Marcuse defende, nesse livro, que a teoria crítica cumpra uma função desestabilizadora no campo do conhecimento — daí a relutância de todos os autores dessa tradição em definir e “fechar” os conceitos com os quais trabalham. Um dos cernes da teoria crítica é seu protesto contra o pensamento enrijecido (que se manifesta e é produzido pela linguagem igualmente enrijecida). Por isso, analisa a transformação da linguagem num mecanismo de controle, numa linguagem científica que reproduz aquela da administração total, que exclui de si a contradição e se resigna a descrever o que é. Uma linguagem positiva que não dá lugar àquilo que poderia ser ou que poderia (não) ter sido, que equipara qualquer tipo de transcendência com utopismo ou arrogância e, na sua falsa humildade, aquiesce com o que existe.

A lógica das redes sociais reforça ainda mais esse estado de coisas, ao aprofundar esse processo de unidimensionalização da linguagem por meio da substituição de palavras por imagens. Hoje, nos países do centro do capitalismo, a meme theory (teoria do meme) — note-se como as teorias passam a receber os nomes de seus objetos — se apresenta como profundamente disruptiva ao classificar o meme como novo gênero literário. Essa classificação, por si só, já impede a investigação do fenômeno como uma manifestação de reificação e já o legitima como forma de partida, servindo de expediente para que se mergulhe na e se reafirme a barbárie.

Marcuse nos convida a perguntar: quais teorias devemos criticar hoje? Quais são as manifestações da razão tecnológica nas humanidades? Quais são as forças que se opõem a essas tendências? A perda da imaginação em ambientes como a universidade, que deveriam dela se alimentar, é um colapso que acompanha todos os outros que estão em curso e precisa ser discutido para que a ciência e a filosofia possam novamente transcender a realidade ao invés de perder o pouco tempo que temos, com a aceleração da catástrofe climática e social, descrevendo acriticamente programas de televisão.

Este artigo é uma versão ligeiramente modificada do texto-base da aula proferida no curso de extensão “O homem unidimensional 60 anos depois: a atualidade da crítica radical em tempos de colapso sistêmico”, organizada pelos professores Jorge Coelho Soares (UERJ), Fernando Gastal (UFRJ), Robson de Oliveira (UFC) e Leomir Hilário (UFS). O curso completo está disponível aqui.

Referências

MARCUSE, Herbert. An Essay on Liberation. Boston: Beacon Press, 1969.

MARCUSE, Herbert. One-Dimensional Man: Studies in the Ideology of Advanced Industrial Society. 2. ed. London: Routledge, 2002.

JAMESON, Fredric. Marxismo Tardio: Adorno, ou a Persistência do Dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.



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Bruna Della Torre é coordenadora científica  e pesquisadora no Centro Käte Hamburger de Estudos Apocalípticos e Pós-apocalípticos da Universidade de Heidelberg, onde também edita a revista Apocalyptica. Integra o comitê editorial da revista Crítica Marxista e o conselho científico de Constelaciones: Revista de Teoría Crítica (Madrid). Em 2023, foi Horkheimer Fellow no Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt (Otto Brenner Stiftung). Realizou pós-doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP sob a supervisão de Jorge de Almeida (2018-2021), com estágio de pesquisa na Universidade Humboldt (anfitriã: Rahel Jaeggi) e no Departamento de Sociologia da Unicamp sob supervisão de Marcelo Ridenti (Fapesp). Doutora em Sociologia (bolsista Capes), mestra em Antropologia Social sob a orientação de Lilia Katri Moritz Schwarcz (bolsista Fapesp) e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Durante o doutorado, realizou estágio de pesquisa na Universidade Goethe, em Frankfurt e no Departamento de Literatura da Universidade de Duke (anfitrião: Fredric Jameson), com bolsa da Capes. Tem experiência de pesquisa em e organização de arquivos. Com bolsa do DAAD, conduziu pesquisa no Arquivo Walter Benjamin/Theodor W. Adorno da Akademie der Künste, em Berlim, em 2014 e em 2019 e no arquivo de Oswald de Andrade (CEDAE/Unicamp) em 2011 com bolsa Fapesp. Em 2024, fez parte do projeto da International Herbert Marcuse Society de organização dos arquivos de Douglas Kellner, abrigado pela Universidade de Columbia. Foi, entre 2017 e 2018 e em 2021, professora visitante na UNB. É autora do livro Vanguarda do atraso ou atraso da vanguarda? Oswald de Andrade e os teimosos destinos do Brasil. É membra da coletiva “marxismo feminista“.

Eduardo Altheman é doutor em sociologia, pesquisador do Centro Käte Hamburguer de Estudos Apocalípticos e Pós-Apocalípticos e autor do livro The Marcusean Mind.



sexta-feira, 9 de agosto de 2024

 

Comunicação ao colóquio de Seia, 1997

 

 

O texto da utopia

 

 

Venho falar-vos de utopias. E como é imperioso começar por alguma ponta, comecemos pelo conceito e pela definição. O senso comum, que costuma conjugar palavras exemplarmente equívocas, ou sentidos arcaicos que já nada têm que ver com a atualidade, utiliza o termo com uma intenção que só em parte lhe corresponde. Diz-se que “utopia” é desejar algo impossível, e que ser-se utópico é ser-se um idealista, um sonhador, aquele que não tem os pés bem assentes na terra, ou seja, o contrário de “realista”, “pragmático”.

Utopias assim também as há, mas não é só isso, o utopista, a bem dizer, interroga-se sobre a própria definição de “realismo”. Sem dúvida que a utopia é, quantas vezes, um estado de espírito, uma atitude de evasão, um devaneio, um sonho acordado. E quando se julgaria, como julga o senso comum, que é totalmente negativo,inútil ou inócuo, lembramos apenas que isso é humano, demasiado humano, e não olha a idades; e lembremos também o brilhante elogio que o filósofo da ciência, Gaston Bachelard, nos legou a propósito do “sonho acordado”, e como ele revitalizou o dinamismo da imaginação, da “ imaginação material”, o seu papel essencial para as literaturas, mas não só para as literaturas, também para o fascínio que a percepção e as imagens exercem sobre o trabalhador da ciência, quando não pode , ou não quer, submeter-se a todas as horas ao imperativo da metodologia objectiva do espírito científico. “Trabalho é trabalho, conhaque é conhaque”, costuma-se dizer; no homem o espírito científico pode conciliar-se com a estética, e também, com a acção moral e política.

De resto, não existe uma definição unívoca e consensual sobre o que seja “objectividade”, por um lado, e, por outro, “realidade”...

 Ouvistes falar com certeza dessas pérolas que são os livrinhos de Bachelard sobre os quatro elementos, a terra, a água, o ar, o fogo. Também sabereis com certeza que os primeiros filósofos se iniciaram por meio da reflexão sobre os quatro elementos, alguns ainda no quadro dos mitos . Sabeis ainda como começa a Bíblia, com a criação dos elementos. Ou seja, sobre aquilo que percepcionamos, ou melhor, sobre aquilo que imaginamos, ou ainda melhor, que alguns nos deram a imaginar. Não sei se existem imagens sem linguagem e sem cultura, admito que sim, mas não existe seguramente imaginação sem essas duas condições. Imaginar é sempre interpretar; mas interpretar não é sempre mentir, falsificar. Imaginamos que vemos, e imaginamos o que ainda não se dá ao olhar. E essa é também a força do desejo. Começamos sempre por ter apetites, mas quando o apetite se torna consciente, chamamos-lhe desejo. E provavelmente não existe força, energia, inclinação, mais potente no indivíduo, do que o desejo. Eu julgo que é afirmação de ser, direi até, do ser. Quem não se sente bem, quer mudar-se. Mudar de lugar. Evade-se oniricamente, solitariamente, ou leva-nos com ele para uma espécie de viagem, de iniciação, de purificação. E isto tem que ver com a liberdade.

Paremos um pouco para respirar. Chamo modo utópico, ao devaneio, ao tal estado de espírito, e género aquele produto do espírito que nos conduz para a aventura, para a viagem, para o achamento de ilhas intactas, ou planetas. Há quase sempre nestes achamentos uma crítica e uma fuga da cidade decadente, da velha civilização. Distingamos, portanto, no género e referimo-nos ao texto escrito, duas orientações diversas. A primeira é uma história que se conta, alguém que acha numa ilha, ou no interior de um continente ou noutro planeta, ou ainda no futuro, uma civilização perdida e intacta, ou seja, não corrompida pela civilização que o viajante transporta. Neste caso distingamos duas fórmulas: aquilo que se acha é uma paraíso primitivo do homem na sua infância, uma terra de nus e inocentes, em comunhão harmoniosa com a mãe natureza, sem os nossos preconceitos e as nossas gravatas, é uma espécie de regresso à nossa infância, e um regresso ao paraíso mítico donde julgamos ter vindo. Em qualquer dos casos é sempre idealizado, interpretado pela memória e pelo desejo que executa o seu trabalhinho sobre a nossa memória. Podemos usar este truque sinceramente, quando acreditamos, ou acreditávamos, que o no princípio era o Paraíso; ou podemos usar o dispositivo como um truque na acepção da palavra, como um expediente, uma ironia, para fazermos passar o desejo e a mensagem. É uma figura lógica, uma hipótese que não pretendemos sequer demonstrar, mas, antes, utilizar como premissa das nossas conclusões. Foi o que fez Rousseau com a figura do “bom selvagem”, ou Hegel com a figura de “O Senhor e o Servo”, ou Marx com a figura de um estádio primitivo a que ele chamou de “comunismo primitivo”, ou recentemente, J. Rawlls com a célebre “posição original”. Diferentes entre si, têm algo de comum: são meros referentes, jogos hipotético-dedutivos, figuras do pensamento.

Contudo, o género utópico pode utilizar não a viagem, nem a figura do começo original, que remonta aos mitos, mas a prelecção, ou sejamos mais justos, a proposta, o programa legislativo, o projecto. Neste caso, dispensa-se, abandona-se o suporte, alguma retórica, e vai-se directamente ao que se quer. Tanto num caso como noutro o que se quer é o mesmo: dizer o que se julga que está mal e propor alternativas. O género utópico é sempre crítico e propositivo. Na montanha de textos utópicos, uns bons, outros bastante maus, sente-se muitas vezes o tom moralista, a toada edificante, em muitos casos moldada pelo cristianismo, ou por uma reinterpretação da mensagem cristã, traduzida nesta palavra-de-ordem: ó pobres e fracos civilizados que vos desviastes da pureza da mensagem cristã, arrepiai caminho! Ou então, ó civilizados que vos desviastes da natureza, regressai ao seu seio! E assim por diante.

Podemos atribuir, como vimos, um sentido restrito, ou um sentido alargado. No primeiro caso, conduz-nos a empregar o termo no sentido do seu emprego original, isto é, conforme o conteúdo, e a intenção, da pequena história que o humanista inglês Thomas More escreveu nos inícios do século dezasseis. No segundo caso, podemos considerar até, como fez o filósofo alemão Ernst Bloch, que a utopia texto, romance ou projecto de legislação, ou obra de arte, emerge de uma orientação mais funda, com raízes que alcançam a biologia, inclinação e apetência pela vida, vitalismo que irrompe pelo consciente, vontade de ir e de sobreviver, ou melhor: de viver bem, demonstrada por essas erupções do novo que a vida exibe e de que é capaz, de alterações qualitativas, numa palavra: Esperança, a Esperança como fundamento do ser, portanto já do domínio do ontos, do ontológico.

Remontemos então ao termo. A expressão utopia é composta de dois termos gregos, ou, que significa não (Tomás More, que dominava as línguas clássicas, retirou-lhe a letra o) e topos, que significa lugar. Traduzido à letra : não-lugar. Eis porque permitiu depois interpretações várias, mas o subtítulo é indicativo: a melhor República. “Discurso sobre a melhor forma de comunidade política”. E, no fim do escrito, percebemos que a viagem e o marinheiro-relator, que até é português!, é um mero dispositivo literário para prender o leitor, porque, na verdade, aquilo que se descreve, na segunda parte do livro, é uma sociedade imaginária, racionalmente constituída, onde reina o bem-estar e a liberdade, ou um determinado sentido de liberdade. Evidentemente bem-estar e liberdade assim entendidas pelo autor, que tinha bons e grandes amigos, como o Erasmo de Roterdão, que muito inspirou o livrinho genial. Por conseguinte, tornou-se um modelo, um paradigma, e muitos a seguir não fizeram mais do que repeti-lo, se não mesmo copiá-lo. Faltar-lhes-á a frescura, a novidade, e, sobretudo, a fina ironia inteligente: sabei que perpassa em todo ele uma permanente ironia, um jogo com as palavras e com as ideias que exprimem : O relator, Rafael Hitlodeu, significa “aquele que diz disparates”, a capital dessa ilha imaginária é Amaurota, que significa Cidade do Nevoeiro, que evoca a Londres, ou cidade nas Nuvens, que evoca o título de uma peça cómica do comediógrafo grego do séc. IV  AC. Aristófanes; o rio chama-se Anidro, isto é, o rio sem água, o Estado é governado por um príncipe sem povo, habitado por cidadãos sem cidade, os seus vizinhos são os homens sem país, etc. È, pois, uma brincadeira, mas séria, é para se levar a sério o que lá se diz, a primeira parte, que é uma conversa entre vários interlocutores, é uma valente crítica à Inglaterra e ao modo como se desenvolve o capitalismo. E como estas coisas da imaginação até são para se levar a sério, o autor convida-nos a pensar: e se fosse assim? Pois vamos fazer de conta que sim, que imaginá-la é já um passo para realizá-la. Façamos com ela um projecto, um modelo, um paradigma. Para nos pormos depois a dormir? Para logo a esquecermos como quem leu uma história mais ou menos divertida para esquecermos outras menos divertidas e reais? Não, de modo algum. More era um homem de acção e um pensador, aquele que pensa para melhor agir, aquele que acredita que antes da construção material, ou física, está a construção mental, o planeamento, a estratégia, aquele que percebia perfeitamente que a literatura é uma forma de persuasão, e adianto mais duas coisas: More gostaria que o seu livrinho fosse um programa para o partido, ou o movimento, dos humanistas, cujo chefe de fila era o próprio Erasmo, que até se constituíam como república de sábios, isto é, de homens sensatos; porque, na verdade, o que era urgente era a sensatez, num tempo de guerras sangrentas pela religião, de fanatismos que escondiam mal lutas sociais, de expropriados contra os usurpadores, e dos usurpadores entre si. E a outra coisa que eu queria dizer-vos, era esta precisamente: tanto Erasmo como More, ensinaram a tolerância, as liberdades de escolha e de pensamento, e queriam chamar à razão os contendores, demonstrar a loucura dos fanatismos e das paixões cegas, em que os homens são tantas vezes pueris e perigosos; sabeis por ventura que Erasmo escreveu um imortal Elogio da Loucura, com penetração psicológica, com conhecimento da natureza humana, com alguma condescendência pelas suas fraquezas e facilidade para se iludir e para iludir os outros. A caricatura e o ridículo, que ele tão bem usou, são armas terríveis. Foi portanto neste contexto que a utopia, obra pioneira, surgiu, na época da acumulação original do Capital, ou seja, da formação do capitalismo. Em seguida foi adaptando-se o modelo conforme os autores e as épocas. Refiro apenas alguns títulos e autores.

Francis Bacon – Nasceu em 1561 e morreu em 1626, lorde chanceler de Inglaterra, caído em desgraça por corrupção. Tomás More foi santificado...Entre outras obras, escreveu o Novum Organum e a Nova Atlântida, uma utopia tipificada. Aí descreve um Estado Imaginário, no qual o bem-estar dos homens resulta do controlo da natureza por meio da ciência experimental. O editor classificou-o, desde logo, como “fábula” concebida “com o propósito – escreve – de apresentar um modelo ou a descrição de um colégio instituído para a interpretação da natureza e produção de grandes e maravilhosas obras para o benefício do homem, sob o nome de Casa de Salomão ou Colégio do Trabalho dos seis dias.” Ficou inacabada. Inicia-se à boa maneira utópica “Velejamos do Peru...rumo à China, pelo mar do Sul, levando connosco provisões para doze meses; e tivemos bons ventos do leste...Mas então o vento cessou...a seguir, ergueram-se grandes e fortes ventos...etc.”; Naturalmente que acharam terra, em parte incerta e desconhecida...e ancoraram no porto “de uma aprazível cidade”. É um bom texto, com o estilo apurado. Contudo, o essencial não o enredo, que é de resto muito breve, mas a descrição realmente da ilha de Bensalém, e, em particular, a Casa da Ciência, ou de Salomão, uma espécie de Academia das Ciências, onde pulsa o coração da cidade e deriva todo o seu progresso de excelências. Nela trabalham sábios que investigam os segredos da matéria por meio de experimentos, com uma estrita finalidade prática. Possuem câmaras frigoríficas, torres de observação metereológica, barragens que accionam máquinas, praticam o cruzamento de espécies; enfim, um sem número de inventos que precisaram de alguns séculos para se realizar realmente. Uma nota muito curiosa que eu adianto sobre esta Assembleia de sábios: estão obrigados, por juramento, a “guardar o mais rigoroso segredo sobre todas as verdades cuja publicação nos pareça perigosa”, diz-nos Bacon pela boca de um deles. Ou seja, a ciência não vale apenas por si, submete-se à caridade, isto é, aos valores cristãos. Por outras palavras, Bacon acreditava, ainda na infância da ciência técnica, que os cientistas bastavam-se a si mesmos, operavam por razões puramente éticas, e não precisavam nem de fiscais, nem de governadores. Que bom!

Entre More e Bacon, decorria o tempo da formação e desenvolvimento da ciência, que fascinava os melhores espíritos. Os utopistas exprimem este novo paradigma, e associam razão científica com o Bem da humanidade, uns acentuando mais o papel da religião, reconciliada enfim com o espírito científico, como foi o caso de Campanella e de Bacon, ou rarefazendo-a, permitindo que cada um escolha a crença mais conveniente.

O género vingou : vão aumentando os relatos de viagens longínquas, naufrágios, terras de maravilha. Bastantes são aborrecidos, sobretudo na profusão deles oriunda da Inglaterra, e dirigidas a uma finalidade política imediata, quase sob a forma de programa para intervir na guerra civil; entretanto, brotam outras que inovam, inovam tanto que talvez transcendam o género utópico; refiro-me a textos delirantes de fantasia, e até, de comicidade. É o caso singular, pela verve, pelo brilho, pela graça, do francês Cyrano de Bergerac (1619-1655). Escreveu uma “História cómica dos Estados e Impérios da Lua “, inspirada provavelmente no livro “The Man in the Moon”, de Francis Godwin (1582-1633) primeira viagem interplanetária. Nesta obra a viagem faz-se por meio de gansos selvagens atrelados a um escaler; Cyrano imagina-a por meio de foguetes, e é o próprio que descobre o Paraíso na Lua. Cyrano foi um espadachim e aventureiro libertino, que haveria de inspirar Alexandre Dumas no romance Os Três Mosqueteiros; “inventa” os aeróstatos e os paraquedas, embora o enredo fantástico e cómico se acerque mais da rábula, à maneira de Rabelais (que escreveu o célebre Pantagruel, onde faz referência aos utopianos de More), do que de uma típica utopia. O entrecho começa assim:” A Lua estava cheia, o céu, descoberto, e nove horas da noite haviam soado quando regressámos de uma casa próxima de Paris, quatro amigos e eu. Os diversos pensamentos que aquela bola de açafrão nos inspirou entretiveram-nos pelo caminho. Com os olhos fixos no grande astro, ora um o tomava por uma clarabóia do céu através da qual se entrevia a glória dos bem-aventurados, ora outro defendia que era o campo onde Diana treina a caça de Apolo e outro exclamava que bem poderia ser o próprio Sol que, tendo-se despojado dos seus raios ao entardecer, espreitava por um buraco o que no mundo se fazia quando ele já lá não estava. “E eu”, disse-lhes, “que desejo juntar o meu entusiasmo ao vosso, creio, sem me entreter com as agudas fantasias com que perseguis o tempo para o fazerdes andar mais depressa, que a Lua é um mundo como este e ao qual o nosso serve de Lua.” Um talento como Cyrano consegue atrair o leitor pelo romanesco, e tornar a obra sempre lida. O mesmo não sucedeu com F. Godwin, que se serve do enredo apenas como expediente. A literatura puritana do século dezassete, inglesa naturalmente, perde, em geral, no confronto com a do continente. Faça-se justiça à capacidade de inovação, como se verifica em Margarete Cavendish, que inventa a viagem por mundos subterrâneos.

Entre o fim do século e o início do dezoito, é de salientar a utopia de Fénelon, dedicada ao futuro rei de que foi preceptor, embora o delfim morresse prematuramente. Bem elaborada, a peça desenha as delícias de um estado idílico, vividas por Telémaco; esta Bética ideal e pastoril, irá tornar-se influente no imaginário do século, ou exprime muito bem e de modo pioneiro esse que vai ser o paradigma do século dezoito, sobretudo francês. Este encanto da vida campestre, cuja evocação literária se confundirá muitas vezes com a tipologia das Arcádias, e menos com as utopias, poética, sensível, vai entrar na moda.

 Sob o império das guerras, ou os impérios tout court, do fanatismo, da desigualdade, da fome que assolava os campos da França e da Europa, os utopistas evadem-se, e fazem evadir os outros, para terras prenhes de frutos, de paz, de igualdade.

As viagens descem agora o Atlântico, chegam ao Pacífico, os náufragos acolhem-se na Austrália, às ilhas do Japão. A localização geográfica tende a ser cada vez mais precisa. A biografia do heróis é mais precisa. A língua dos homens felizes, achados, é um trabalho de invenção a que o autor se dedica com algum entusiasmo. A História dos Incas, de Garcilaso de la Vega, impressiona o imaginário europeu. Em alguns, a influência dos deismos, no plano da religião, e das ideias ousadas de Espinosa, remetem certas utopias para um modo imaginativo de debater esses grandes temas. É de salientar a obra de Denis Veiras (ou Vairasse) (m. 1700), Histoire des Sévarambes, sobre um naufrágio nas Índias Orientais. A abolição da propriedade privada, é, aqui, um elemento fundamental, bem na linha de More, Campanella, e outros mais. Sabe-se que Rousseau a leu.

  O século dezoito é, segundo alguns, o século de oiro das utopias (Raymond Trousson, et alt.). Um compilador e editor, reuniu, em 1789, trinta volumes de récitas mais ou menos utópicas (Voyages imaginaires, songes, visions et romans cabalistiques, de Charles Garnier), que teve um amplo sucesso. Contudo, foi também o século, há acordo unânime sobre isto, dos projectos de reformas. Se o género narrativo das viagens parece ter-se exaurido, no fim do século, não tanto por fartura, mas pela monotonia, o sub-género dos programas de legislação, mais ou menos radical, entrou plenamente pelo século seguinte adiante. Do século dezoito, queremos referir três autores, diferentes entre si, para compaginarmos caminhos diversos. O primeiro dos quais foi um monge beneditino, Lèger-Marie Deschamps, ou Dom Deschamps (1716-1774), que redigiu um estranho tratado de metafísica , Le Vrai Système, que nunca publicou; foi amigo e protegido por uma família de Grandes da França, os D’Argenson, de condes e marqueses, alguns deles com inclinações utopistas, o último dos quais viria mesmo a lançar fogo ao seu próprio castelo nas dias tumultuosos da Revolução francesa. O tratado de Dom Deschamps compõe-se de duas partes distintas : a primeira desenvolve um largo conjunto de teses em defesa de uma visão metafísica do mundo, onde é visível a influência do espinosismo, um Espinosa algo desfigurado, como sucedeu pelo século adentro; aí se argumenta, com talento, que a noção de Todo é tão substancial que ele existe realmente, pois que se as partes existem, também o todo é alguma coisa, classificado na nossa linguagem comum como o mundo, a matéria, o universo, a natureza; porém, este todo por força da lógica e da gramática, exige o seu contrário, ou negativo, tal como o “sim” pede um “não”: é o Nada; por outras palavras, se o primeiro todo é o finito, o seu Outro é o infinito. E assim por diante. Esta ousada especulação, conduz à consequência de que o homem pertence à natureza, e o seu verdadeiro destino é pôr-se de acordo com ela. Ora, tal acordo natural, exige um autêntico regresso, isto é, a sua felicidade somente se encontrará na comunidade agrícola e camponesa, em completa igualdade de bens e de afectos, todo entregue a uma vida serena, rústica, sóbria. A mensagem de Dom Deschamps dirigia-se particularmente aos poderosos, como aviso e remédio para futuras e latentes revoluções violentas: O clamor pela Felicidade, pela Natureza, pela Igualdade, ecoa nesta obra, como em muitas mais desse século, que culminará em revoluções que transformarão o mundo. Os textos de Deschamps são pernósticos, de leitura difícil , excepto na parte onde descreve a sociedade que há-de vir, que ele designa de “estado dos costumes”; contudo, a penosidade é, por fim, gratificante, pois trata-se de um excelente exercício de filosofia. Cito este caso deste autor, praticamente desconhecido na península Ibérica, e ao qual tenho dedicado boa parte da minha investigação, porque é um utopista sui generis, que se serve de uma metafísica tipificada, de moldura espinosista, para extrair o projecto de uma sociedade feliz, em jeito de dedução lógica. Este esquema segrega tanto utopias  típicas, isto é, alternativas para uma sociedade ideal, como se aplica a projectos usualmente não classificados como utopias, e refiro-me , por exemplo, às obras famosas de Proudhon, de Marx e de Engels, muito embora nestas, a tentativa de fundamentação histórica e económica, seja índice de outra atitude, aquela que virá a ser característica do século dezanove.

O segundo exemplo que desejo transmitir-vos vem-nos das obras  do filósofo e escritor Denis Diderot, as quais constituem um caso raro de longevidade, tal como as de Rousseau e de Voltaire. É curioso que Rousseau ensaiou também, se não o género utópico, pelo menos a orientação; e o grande Voltaire, como sempre, dedica-se a estilhaçar as utopias, no seu livrinho “Cândido”, ou a busca do El Dorado. É caso para dizer que quem diz mal não enjeita...Vejamos a contribuição de Diderot. Encontramo-la, particularmente, no Suplemento à Viagem de Bougainville, ou seja, uma adenda fantasiosa que ele apôs ao livro de viagens do célebre navegador francês, e decorre naturalmente no Taiti, e traz como subtítulo a esclarecedora advertência .” Sobre a inconveniência de colar ideias morais a determinadas acções físicas que não as comportam”. Trata-se de um diálogo fascinante entre um civilizado e um indígena, por meio do qual se demonstra a vanidade, e a vacuidade, de muitos dos nossos juízos, que são quase sempre de ordem moral, a decadência dos nossos costumes, a sua inutilidade quando vistos à luz do que é natural, e até o seu ridículo. Os interlocutores discorrem sobre “ a guerra que nasce de uma pretensão comum à mesma propriedade”, sobre o taitiano que o capitão levou para bordo do seu navio, e que se atirou “sobre a primeira europeia que veio ao seu encontro, “pela razão de que “o uso comum das mulheres estava bem arreigado no seu espírito”, em suma, “O Tahitiano toca na origem do mundo, enquanto o europeu toca na sua velhice”. Séculos depois haveremos de insistir no tema, e recordo-vos apenas o belo livrinho que se intitula “O Papalagui”.

Por fim, permito-me recordar-vos a leitura que fizestes todos, com certeza muito agradável, das Viagens De Gulliver, dessa obra imortal de J. Swift (1726). Transformada em relíquia para crianças, jovens, idosos, em filmes, em banda desenhada, em resumos, ou integralmente, anda de geração em geração. Na verdade, não a citamos como um exemplar típico de utopia, porque o não é, muito embora o romanesco e as descrições nos confundam. Em boa verdade, é um livro pessimista, misógino, ponto de mira sobre o homem que não o engrandece nem dignifica. O sarcasmo mais agudo alcança o gume lancinante quando descreve a terra dos cavalos razoáveis que escorraçam a espécie humana, reduzida à animalidade feia, porca e má. Apesar disto, e do muito mais que o livro encerra, o leitor percebe perfeitamente o alcance da crítica implacável do autor, compadece-se das misérias dos homens, das infelicidades do narrador, e fica desperto para as mudanças. Livro sinuoso e insinuante, claro e equívoco, escrita com imensa mestria, que marca uma ruptura nas crenças ingénuas sobre a possibilidade de perfeição humana. O mito do bom selvagem é estilhaçado com azedume e amargura, mas não foi capaz tal intento de impedir a Rousseau, alguns anos passados, de reinventá-lo com igual engenho.

Deixem-me fazer referência a mais uma inflexão no género utópico que o século foi capaz : o futurismo, isto é, a projecção, pelo sonho literal, do viajante no tempo, ou ucronia, realizada por Louis-Sébastien Mercier (1740-1814), produzindo um título com sucesso :”O Ano 2440”. Esta técnica virá a frutificar no século vinte.

Entretanto, e quanto ao século dezanove, escolherei somente um autor, dos muitos que o marcaram pelas suas construções utópicas. Temos de abreviar evidentemente. Trata-se de William Morris (1834-1896). Um artista, um poeta, um militante; estudou Robert Owen, aquele que pôs em prática uma utopia, estudou Marx, fundou a Liga Socialista, reflectiu sobre o tristemente célebre “Domingo Sangrento” e a Comuna de Paris, foi o melhor designer, como hoje diríamos, europeu do seu tempo, um grande jornalista, um pioneiro da defesa do ambiente, um contador de histórias entre os melhores, e legou-nos uma das mais encantadoras utopias contemporâneas, News from Nowhere (1890) que traduzimos por Notícias de Parte Nenhuma, na qual nos descreve uma Inglaterra do ano 2102, à qual acede por meio de um sonho, uma Inglaterra pastoral, toda verde e florida, uma Londres sem fábricas e sem poluição, um Tamisa bordejado de arvoredos e sulcado por canoas. O socialista sincero que ele foi, projecta os seus sonhos, e o sonho de muitos, na harmonia do homem com a natureza, e não nos benefícios da ciência técnica. É a genuína utopia de um verdadeiro esteta. Neste sentido, é a mais expressiva, a aquela que mais nos toca em um tempo de contestação das aplicações da técnica e dos triunfos de um capitalismo neoliberal. Sai fora, sem dúvida, dos parâmetros das utopias representativas do século durante o qual o positivismo e a industrialização parecia prometer terras da abundância, através do capital, para una, através das revoluções proletárias, para outros. Curiosamente, no romance de Morris, essa bela Inglaterra nascerá das convulsões de um período revolucionário. A verdade é que o autor de “Notícias de Parte Nenhuma ou uma Era de Repouso”, ele próprio, sob o título, classifica o romance como “utópico”, mesmo que alguns mais recentemente o classifiquem como não-utópico, pelo atipismo que referi, que os levou a considerá-lo como “reaccionário”. Seja como for, sentimos nitidamente como as personagens e cenas do romance constituem uma idealização, uma compensação, para a vida que ele próprio viveu. E nesse aspecto, a utopia em Morris adquire aquela tonalidade próxima e quase confessional, aquele contorno de devaneio, aquela intenção de evasão, a que o senso comum reduz injustamente todas as construções utópicas. Entre o romance de Morris e o livro de Étienne Cabet, o autor de Viagem à Icária, um dos mais celebrados da primeira metade do século dezanove, só encontramos diferenças : neste começa por falhar o estilo e o enredo, e prevalece o projecto de legislação, o desenho minucioso e aborrecido das instituições, a confiança na industrialização, conduzida, naturalmente, pelos próprios produtores sem amos e grilhões. Para mim, como digo, W. Morris, é precisamente aquele que simultaneamente abre para o futuro, religando a utopia com o seu passado; isto é, apela aos nossos sentimentos ambientalistas e ecologistas, e retoma as arcádias bucólicas, os mundos rurais, de muita utopia dos séculos precedentes.

Entremos, por fim, no século vinte, nas grandes antecipações contemporâneas, nos livros de Herbert George Wells, de Anatole France, de Jack London, de Bernard Shaw, Karel Capek, de Aldous Huxley, de Bradbury, e de uma plêiade de autores de ficção científica. Evoquemos apenas alguns títulos. Herbert Wells é o pai da ficção científica contemporânea, ombreando os seus livros em sucesso com um autor mais velho, Jules Verne. Ao mesmo tempo que é o mais moderno dos viajantes do espaço e do tempo, daqueles que ficcionaram o contacto com extraterrestres, as suas numerosas histórias continuam a encantar milhões de leitores, de todas as idades, por toda a parte. Conheceis com certeza ou os filmes ou o livro que se intitulam “A Máquina do Tempo”. Mas, para além destas enormes virtualidades inventivas e pioneiras do seu autor, há mais uma: foi seguramente o primeiro, contemporaneamente, que imaginou extraterrestes muitíssimo violentos, invasores implacáveis, e congeminou um futuro horrível para a humanidade, pelo menos a longuíssimo prazo. Com ele, inverte-se o rumo das utopias, embora não julgue que se anule a sua orientação intencional. No fundo, as utopias tanto servem para nos mobilizar para uma prática transformadora, em vista de um mundo melhor, como nos alertam para as consequências futuras dos caminhos que seguimos no presente. O romance extraordinário, em termos literários, que é “A Máquina do Tempo”, narra-nos o futuro da humanidade no ano 802.701, composta por duas raças : os Elóis, “graciosas criaturinhas desprovidas de todo o sentimento e cujo nível intelectual é o de uma criança de cinco anos, exclusivamente frugívoras, vivendo em grupos, ignorando o trabalho, brincando todo o dia” (R. Trousson,1975), e os Morlocks, longínquos descendentes dos proletários,  que habitam subterrâneos. A divisão da humanidade em duas classes evolui da ordem social à ordem orgânica, “o proletário tornou-se antropófago, e o aristocrata, comestível.” ( A France). Dotado para as ciências e devotado a estas, às biologias sobretudo, utiliza-as para construir especulações que viriam a conquistar enorme sucesso, como é o caso de a Guerra dos Mundos, ou de A Ilha do Doutor Moreau, ou ainda de Uma Utopia Moderna, onde nos faz imaginar um planeta gémeo da terra, no qual cada um de nós possui aí o seu gémeo.   

 Entrados plenamente no domínio da antecipação científica, indiquemos algumas sugestões: Karel Capek (1890-1938), os livros: A Fábrica do Absoluto; R.U.R.(Rossum’s Universal Robots), o inventor da palavra robot; Philip K. Dick, Blade Runner ( viram o filme?); Ray Bradbury, Fahrenheit 451, e Crónicas Marcianas; J. G. Ballard, Olá América!; Stnislaw Lem, Congresso Futurológico; Isaac Asimov, O Planeta dos Deuses; Iván Efrémov, A Nebulosa de Andrómeda...sobre este último queria dizer o seguinte, tanto mais que os outros são sobejamente conhecidos: Iván Efrémov foi um paleontólogo soviético, que enveredou com êxito estrondoso pela ficção científica, porque a considerava como o meio excelente de procura do novo; esta atitude esclarece-nos muito bem sobre o que é essencial na utopia a formulação do novo – e sobre os meios, diversos, recorrentes ou inovadores, de que nos servimos para essa busca.  Ora, a confusão estabelece-se, não tanto sobre a diversidade dos meios utilizados, pois podem ir desde a literatura à arquitectura, mas principalmente sobre o que é o “Novo”: para a maior parte dos escritores que vos citei, de ficção científica, o novo é pavoroso ou quase, para outros, como foi o caso De Efrémov, o novo é a sociedade comunista. Sejam eles diferentes, os escritores, o que há de comum entre estes que vos escolhi, numa larga panóplia, é o engenho e a vocação de escritores. Por outro lado, e para finalizarmos a nossa comunicação que já não é tão breve quanto desejaríamos, as diferentes configurações do Novo (termo que o Ernst Bloch gostava muito de usar...) conduziram o género literário utópico para uma profunda bifurcação: a utopia propriamente dita, o Princípio Esperança, como classifica tão bem o Ernst Bloch, e a distopia, isto é, a anti-utopia; neste caso não se trata de uma obra não utópica, como há muitas, mas de uma obra propositadamente anti – utópica, modelo que remonta ao comediógrafo Aristófanes e a Luciano de Samósata (séc. II D. C.), e que J. Swift  e Voltaire utilizaram brilhantemente;  nesse aspecto não há nada de absolutamente novo no fenómeno em que se tornaram os livros de A Huxley e G. Orwell, respectivamente “ Admirável Mundo Novo” e “ Mil Novecentos e oitenta e quatro”, onde cada a seu modo escalpelizam a engenharia genética e a engenharia política. Nem é completamente nova a atitude crítica das utopias, nem a demonstração figurada, ou antecipada, da sua perigosidade, ou pretensa perigosidade (Marx, por exemplo, fizera-o  em textos densos e célebres), nem a desocultação dos elementos ideológicos que lhe estarão subjacentes. Nenhum destes temas nos ocupou nesta palestra. O que existe de interessante nestas duas obras de antecipação, foi que, com muito engenho e arte, souberam, ou conseguiram, exprimir receios e inquietações de um vasto público do século vinte, preocupado com o confronto das grandes ideologias planetárias, com a subsequente guerra fria, ou com as utilizações políticas da ciência técnica. Atrevo-me a adivinhar que o livro de Huxley, The Brave New World, conservará a sua actualidade, ou sucesso, neste século no qual a genética, e a clonagem, promete vir a constituir uma verdadeira ponta-de-lança, que tanto espevita as esperanças como inquieta os espíritos.  

Termino com a interrogação inevitável : é o nosso tempo, um tempo para utopias? Tentarei evitar a sedução de alguns clichés com que costumam terminar as abordagens do fenómeno das utopias, escolhendo outra atitude : formular alguns problemas, pois que um problema razoavelmente formulado economiza tempo, aponta um caminho de pesquisa, e pode ser abdutivo.

Primeiro – Existe de facto Progresso? Tal conceito é realmente operatório, objectivo, ou radicalmente “cultural”, “valorativo”? Até que ponto depende da nossa vontade o Possível?

Segundo – Se a produção utópica interpreta a felicidade geral de tantas e variadas maneiras, oportuno, rico e variegado seria o debate hoje sobre aquilo que causa hoje mal-estar, sofrimento, infelicidade, quando, afinal, dispomos de tantos meios e tantos saberes.

Terceiro – É o princípio Esperança uma profunda e universal, e permanente, orientação do ser vivo, e do ser humano, nascido para o prazer, para as suas múltiplas e crescentes necessidades, vivamente interessado no desenvolvimento multilateral e harmonioso das suas capacidades, com direito igual à dignidade? Ou é, somente, uma artificiosa invenção de uns tantos espíritos eternamente insatisfeitos, negativistas, desejosos de poder e de glória? Ou sejamos mais brutais : é a Esperança um simples embuste, uma aposta cega no voluntarismo, um remédio opiáceo que nos poupa ao trabalho de lutar e de construir?

Quarto – No sentido lato, cabem tanto as utopias que rejeitam o presente e propõe uma alternativa global, como cabem as utopias “fracas” que o neo-capitalismo oferece, desde a ideologia da globalização e do “fim da história”, até ao reino presente e futuro da mercadoria. E cabem tanto os romances e os programas, como as artes arquitectónicas e urbanísticas, as artes plásticas e os monumentos, o Ambiente e a qualidade de vida. Se trabalharmos com este sentido amplo, teríamos de distinguir utopias conservadoras e utopias revolucionárias, no primeiro caso, e, no segundo, utopias criadoras, que rompem com o imediatamente utilitário e “consensual”, com as soluções tecnocráticas sem “alma”, mas que, pelo contrário, aumentam o reino dos afectos, da solidariedade, da beleza e da dignidade.

Venham então as vossas respostas e as vossas perguntas.

Pelo estilo que utilizei e pelos exemplos que escolhi, podereis conduzir a vossa reflexão  integrando os produtos utópicos no âmbito da Imaginação Social, que é o domínio dos símbolos, dos mitos, das ideologias. Sabemos hoje o suficiente para ficarmos alertados para a importância desse mundo; para o seu poder real e não quimérico; tratamos aqui de coisas bem reais e poderosas; tratamos de ideias que alcançam uma força real, de um capital simbólico que domina as nossas vidas, que nos deixa, aparentemente pelo menos, uma estreita margem de manobra, pois que é dotado de uma potência que lhe permite distribuir os indivíduos segundo os seus lugares e os seus papeis na organização social. Por isso, porque as utopias não se reduzem a ideologias religiosas ou políticas, por isso é que eu valorizo sobretudo as utopias de construção, do plano e do esboço, em suma nesta palavra algo equívoca mas económica : do projecto. E é assim que eu admito que as utopias sociais não constituem o modo e o género exclusivos das utopias, quero dizer que a orientação desejante que se dirige para o Ainda –Não, para o Novo, não existe somente na fórmula inventada por Tomás More, no romance político. Esta função antecipante da imaginação social, que se exprime nos conteúdos de determinadas ideologias, que se materializa nas obras de arte, exige uma atitude filosófica, exige que a filosofia se confronte com uma das suas mais potentes, fecundas, vocações, eu digo, para terminar, qual : a reflexão sobre o Ser, sobre o Ser Verdadeiro, sobre a vida, sobre o mundo, sobre o homem, ou seja, sobre o que é não-vida, sobre o que é indigno, sobre o que é inumano. Nenhuma utopia concreta, nenhuma boa filosofia, nenhuma boa obra de arte, nos afasta do exercício urgente da liberdade, porque não nos remetem para o impossível das calendas gregas, mas apelam aos nossos direitos, à necessidade mesma de um Presente que liberte o trabalho e a fruição.

Perguntareis como é possível esta tarefa neste tempo em que partidos e comentaristas decretaram a morte das ideologias, em que a própria esquerda europeia que governou vários países europeus andou ensinando a “conversão ao real”, as virtudes do pragmatismo, o carácter inelutável de uma eficiente gestão dos orçamentos, e que se desarmou perante os triunfos da ideologia ultra-liberal da globalização. Pois eu julgo agora que é não só possível como necessário.

 

Nozes Pires

 

Bibliografia referida:

 

Raymond Ruyer, L’utopie et les utopies, Gérard Monfort.

Raymond Trousson, Voyages aux pays de nulle part, éditions de l’Université de Bruxelles.

Bronislaw Baczko, Les imaginaires sociaux, Payot ; Enciclopédia Einaudi, vol. 5.

Ernst Bloch, Le Principe Espérance, Gallimard.

António Marques Bessa, Utopia, Publicações Europa-América.

Voyages Aux Pays de Nulle Part, Ed. Robert Lafont.

A Utopia, Tomás Morus, Guimarães Editores. Existem outras traduções.

Fernando de Mello Moser, Tomás More e os caminhos da perfeição humana, Veja.

Bacon, col. Os Pensadores, Nova Cultural.

J. Swift, As Viagens de Guliver, edição do jornal Público.

Luciano, Uma História Verídica, Inquérito.

Cyrano de Bergerac, Viagem à Lua, Guimarães ed.

Voltaire, Cândido, Guimarães ed.

Diderot, Supplément au voyage de bougainville, Flamarion.

William Morris, News from Nowhere and other writings, Penguin classics.

Iván Efrémov, A nebulosa de Andrómeda, Caminho, FC.

Isaac Asimov, O Planeta dos Deuses, Edição “Livros do Brasil”.

H.G. Wells, A máquina do tempo, Estúdios Cor.

Aldous Huxley, A Ilha; Admirável mundo novo, Livros do Brasil.

George Orwell, mil novecentos e oitenta e quatro, Antígona.

Alexandre Zinoviev, O Futuro Radioso, Publicações Dom Quixote.