KARL MARX- Há duzentos anos…
Há duzentos anos, em 5 de Maio de
1818 nasce Karl Marx na cidade de Tréves, na antiga Prússia, hoje Alemanha. A
Rua Brückenstrass, onde se situa a casa-museu- Karl Marx House- ao pé do Museu
Friedrich Ebert (líder do Partido Social-democrata alemão e primeiro presidente
da República) é muito visitada por ambas as razões. O pai era um importante
advogado. Na casa paterna Karl assistia às tertúlias culturais e políticas em
que se discutiam as ideias dos iluministas (Kant, Fichte…) e do liberalismo.
Marx entrou para a Universidade de Bona para tirar o curso de Direito, mas
depressa desistiu e transferiu-se para a Universidade de Berlim, para o curso
de Filosofia, no qual pontificavam e se confrontavam com vasto impacto público
as ideias do eminente filósofo e reitor F-W Hegel, falecido em 1831, e do seu
contraditor, L. Feuerbach. Marx estudou profundamente ambos, conservando de
Hegel o seu método dialético e de Feuerbach a simpatia precoce de um
materialismo filosófico. A sua tese de doutoramento, de resto, versaria os dois
filósofos da Grécia Clássica, fundadores da corrente materialista: Demócrito e
Epicuro, na qual sustenta uma interpretação tão inovadora que, obtendo embora a
mais alta classificação, suscitou a desconfiança das chefias académicas. Estudante
brilhante mas inconformista, não lhe permitiram ingressar na carreira
universitária. Torna-se jornalista, de início sem grande vontade, porém
depressa atrai a atenção do público em notáveis reportagens sobre, por exemplo,
o chamado “roubo” de madeiras mortas nas terras dos senhores feudais,
denunciando vigorosamente a lei que justificava a repressão sobre os pobres
aldeões, e a situação de miséria dos vinhateiros do Mosela (Reno), explorados
até à medula. A censura e a polícia caem sobre o jornal e encerram-no. Em 1843
Karl contrai matrimónio com Jenny von Westaphalen, filha de um aristocrata e
irmã do futuro ministro do Interior. É dessa altura a redação da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel,
cuja Introdução, as suas frases, são
conhecidas em todo o mundo, nelas se exprimindo a realidade da alienação nas esferas económica,
política e religiosa. Essa categoria filosófica fora herdada de Hegel, porém
sofreu uma profunda reviravolta nas mãos do muito jovem ainda Karl Marx. Com alienação queremos referir aquele
estado subjetivo em que os indivíduos não se reconhecem nas obras que eles
próprios produziram e abandonam a sua liberdade e autonomia a favor de uma
liberdade ilusória. Nessa obra juvenil encontra-se também em embrião a perspetiva
marxiana sobre a impossibilidade de qualquer Estado ser neutral nas sociedades
divididas em classes sociais.
Perseguido pela polícia do governo
e expulso, refugia-se com a sua família em Paris, onde, em contacto com as
ideias socialistas, “descobre” a existência de uma classe moderna, a classe operária,
para a qual destinará o papel histórico de executar até ao fim o programa libertário
da Grande Revolução Francesa de 1790 e ir mais longe na medida em que a
Revolução Industrial já equivalia ao cumprimento do programa da Burguesia. Esta
classe já governava em absoluto, ou caminhava para tal a passos largos. A
questão nova que se levantava era a emancipação das classes assalariadas, a
quem, na realidade, se devia a produção de todas as riquezas. Em estudos
posteriores (alguns apenas conhecidos no século vinte) – A Ideologia Alemã e o célebre Manifesto
do partido comunista (ambas em conjunto com F. Engels) - a ideia da força de trabalho como fonte do lucro
ia desbravando caminho. Nos anos quarenta Marx conhecera Frederico Engels,
filho de um rico empresário têxtil com fábricas na Inglaterra e Alemanha,
forjando-se entre os dois uma das mais lendárias amizades de qualquer tempo e
lugar.
Expulso de Paris por pressão do
governo alemão, muda-se para a Bélgica onde, com Engels, fazem vingar as novas
ideias numa associação operária semissecreta e convertem-na no embrião da
futura Associação Internacional dos
Trabalhadores, a qual só viria a ser fundada em 1864 (AIT- Primeira
Internacional) em muito devido à liderança intelectual de ambos. Expulso de
Bruxelas, Marx e a sua família cada vez mais numerosa encontram refúgio em
Londres. Daí não mais sairá até à sua morte. Os anos cinquenta serão anos de
uma extrema penúria. Marx redige artigos de política internacional (alguns dos
quais constituem peças exemplares na área do jornalismo) para jornais ligados
ao mundo do trabalho, mas os proventos são escassos. O seu amigo Engels terá de
intervir, depois de passar ele mesmo a administrador-proprietário de uma das
empresas da família.
Intercalando com intervenções na
AIT (combatendo, por exemplo, a doutrina influente do anarquismo, consideradas
por ele prejudiciais para as lutas operárias, pelo voluntarismo de minorias que
ela advogava) e com o jornalismo, entrega-se a fundo à investigação económica
da estrutura e funcionamento do modo de
produção capitalista (esta e muitas outras designações marxianas
tornar-se-ão depois vocabulário do cidadão comum). Acumulando materiais que hoje
se estão reunidos em dezenas de volumes nas Obras
Completas, Marx ainda veria em vida a edição do Primeiro Livro de O Capital, ao qual se seguem os
outros dois Livros (normalmente editados em vários tomos, como sucede na edição
portuguesa, com tradução criteriosa do especialista e filósofo José
Barata-Moura), estes sob supervisão de Engels.
De duas obras importa sublinhar a
sua importância nos planos político e científico: as Teses sobre Feuerbach (escritas em pouco mais de página e meia em
1845, tinha Marx 27 anos) e o Manifesto.
Nas Teses, Marx escreve, por exemplo:
«A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objetiva não é
uma questão da teoria, mas uma questão prática.
É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é a realidade e o
poder, o carácter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou
não-realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica.»; ou, esta outra, a décima
primeira e última, sobejamente célebre: «Os filósofos têm apenas interpretado o
mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.».
No Manifesto podemos ler: «A moderna sociedade burguesa, saída do
declínio da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classe. Limitou-se
a colocar novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta, no
lugar das anteriores.»; «E na mesma medida em que a burguesia, isto é, o
capital se desenvolve, desenvolve-se também o proletariado, a classe dos
operários modernos, os quais só vivem enquanto têm trabalho e só têm trabalho
enquanto o seu trabalho aumenta o capital. Estes operários, que têm de se
vender a retalho, são uma mercadoria como qualquer outro artigo de comércio, e
estão, por isso, igualmente expostos a todas as vicissitudes da concorrência, a
todas as flutuações do mercado.»
Boa parte das ideias
revolucionárias, nos planos político e das ciências sociais, já se encontram
vertidas genialmente nestas páginas escritas por um jovem que ainda não fizera
30 anos, sendo longa e profundamente desenvolvidas nos poucos mais de trinta
anos que Marx iria viver, nomeadamente a descoberta de que é na mais-valia
(nas horas da jornada não pagas ou valor
excedente) que o empresário vai buscar o lucro.
Sabe-se que a Bíblia e o
Manifesto são os livros mais vendidos, conhecidos e lidos do mundo, e não são,
na realidade, tão contrastantes assim. Muitos são os cristãos sinceros que se
revêm em ambas as escrituras. A religião, diz Marx, repetindo I. Kant, pode ser
em determinadas circunstâncias “um ópio” como, de resto, quase tudo que o homem
pensa e faz, porém, noutras, é “um fermento” (este acrescento já não é de
Kant).
Karl Marx, cuja importância para
a humanidade se costuma enfileirar ao lado de Galileu, Newton, Darwin e
Einstein, morreu em 1883, definitivamente abalado com a morte da esposa e, a
seguir, de sua filha querida Jenny, de 38 anos de idade.
A sua campa em Londres, no
cemitério de Highgate, é roteiro turístico. Paga-se, porque o cemitério é
privado, para visitar também as campas dos famosos Georges Elliot, Gabriel
Rossetti e Michael Faraday. Um busto de bronze e uma inscrição: «Trabalhadores
de todos os países, uni-vos!»
J. A. Nozes Pires
P.S. – É muito sugestivo o filme
«O Jovem Marx», de Raoul Peck, de 2017.
(Este artigo foi publicado no semanário regional «BADALADAS»)