As sociedades opacas e a liberdade de expressão.
1. Das sociedades abertas às sociedades opacas.
O pós-modernismo de Lyotard,
Lipovetsky e Vattimo apresentava um novo horizonte ontológico. Do panopticon de
Bentham e da previsibilidade gnoseológica inerente à noção de Física Social
assim como uma sociedade Orwelliana, transitou-se para a sociedade aberta. A
pulverização das personalidades, a glorificação dos projectos individuais,
lugares comuns da narrativa dos anos 80 e 90, promoveram uma sociedade permissiva
e uma adaptação das instituições ao indivíduo.
Como bem disse António Guerreiro,
Umberto Eco morreu e com ele parece ter terminado a terminologia pós-moderna.
Possivelmente que não passou disso mesmo, de uma terminologia. Apesar de marcas
predominantes de um estilo de vida, podemos designar o pós-modernismo como uma
mera tendência. Se a sua principal força residiu na projecção do individual, foi
nesta onde se encontrou a sua principal fraqueza, chegando-se a apelidar a época
como um espécie de neo-individualismo. O enfoque exclusivo na liberdade e
projecto pessoal promoveu o seu contrário, começando a surgir nas manifestações
culturais, preâmbulos de uma nova ordem. Com a sua característica
antecipatória, nos finais dos anos 90, começaram a surgir na 7ª arte tópicos
que promoviam uma ontologia diferente. Assistiu-se a uma recuperação do génio
maligno que Descartes: Matrix exemplificava bem essa matriz revolucionária
assim como ao EXistenZ de Cronenberg transparecia uma espécie de monismo
ôntico, sem se saber onde acaba a realidade e começa o jogo. É o preâmbulo da
sociedade da suspeita pelo óbvio ocultismo do poder.
A este propósito, Daniel Innerarity
em A Sociedade Invisíve[1]l,
promove a ideia de uma ocultação da realidade, atribuindo-lhe a designação de Sociedade Invisível. O núcleo central
das sociedades atuais está presente na falta de distinção entre ver e
compreender. Ver é compreender, compreender é ver. A casa do ser está por esse
motivo oculta pela própria superficialidade da imagem e do consequente
afastamento da complexidade. A globalização descoordenou a possibilidade lógica
da justificação, apresentando uma continuidade de desculpas. Diz Innerarity[2] que das
desculpas estão ausentes os instrumentos da justificação: não há relações
causais, deduções ou silogismos, mas apenas manejos oportunistas da atenção que
não exigem esforço intelectual. Os OVNIS foram substituídos pelos OPNIS[3]
(objectos políticos não identificados), organizações sem território, mecanismos
financeiros sem dono, corpos económicos que se manifestam sem se conseguir
vislumbrar causas e consequências, nem impor qualquer análise silogística.
Vivemos tempos pouco propícios para a aceitabilidade da hermenêutica filosófica
e, simultaneamente, nunca houve época tão interessante para o olhar
perscrutador da filosofia. Como afirmou Antero, a filosofia é uma acto limitado
e uma potência infinita.
Entendo a filosofia como forma de
suspeita que se torna protesto. Contudo, as formas de protesto ganharam
contornos muito próprios. A saída da filosofia da Ágora comportou um risco
enorme para o protesto porque, de um domínio da palavra tornou-se um domínio da
imagem, espaço físico e internáutico. Nas últimas décadas assistiu-se a uma
tentativa de simbiose entre o protesto de rua e as convocatórias facebookianas,
o que promoveu um protesto difuso e próprio do mainstream. O excessivo protesto
mata o protesto, por outras palavras, as excessivas manifestações tornam a
manifestação normal, a crítica cultural torna-se aceite pelo poder difuso. Se
antes o poder havia sido medido pela capacidade de ser visto e de não ver,
atualmente todos parecem ter essa oportunidade. As redes sociais potenciaram a
possibilidade de todos serem vistos mas também de não verem, dando uma
sensação, e não passa disso mesmo, de poder. Por tal motivo, a trivialidade
está na ausência de trivialidade, as provocações são vulgares deixando de o
ser. O que é o ortodoxo e o heterodoxo, atualmente? Mesmo as mais virtuosas
transgressões são acolhidas pela cultura dominante. Como diz Innerarity, O
underground foi introduzido no mainstream em virtude da ausência de blocos
explicativos. As sociedades atuais funcionam como uma rede que. por isso mesmo,
também é uma trama. Qual a saída, se é que a queremos?
2.
Do agir
comunicacional
À opacidade comunicativa da actual
sociedade, autorizada de forma não intencional pela democracia representativa
que promove uma certa apatia e desdém pela política por parte de um espectro
considerável da sociedade, Habermas propõe uma democracia deliberativa ou
discursiva. A democracia tradicional foi abalada pela agregação de preferências
e negociação de interesses individuais e a base deste acordo está no símile do
mercado que reduz o debate a uma panóplia que faz confluir na avaliação entre
as partes a congruência de interesses privados. Para Habermas, «a política é o
meio pelo qual os cidadãos se tornam simultaneamente conscientes da sua
dependência mútua e do estabelecimento de relações recíprocas, não se
orientando apenas para a competência mas para o diálogo e o entendimento.» Esta
noção, apesar de não ser nova – Péricles ou Locke já haviam formulado curiosas
incursões a esta forma política –
encaminha-se para territórios onde a linguagem ocupa uma posição decisória.
Substituindo o «eu transcendental» kantiano pelo «eu linguístico» das teorias
da ação, Habermas propõe uma racionalidade do agir comunicacional cujo telos
será uma crítica da razão para a formação do consenso numa comunidade real de
comunicação[4].
Os designados atos de fala de Searle que, por sua vez, são baseados nos atos
locutórios, ilocutórios e perlocutórios de Austin, são o leit motiv da teoria
da ação de Habermas. Não pretendemos aqui encetar qualquer estudo aprofundado
de uma teoria pragmática da linguagem, antes salientar o cuidado que devemos
ter na construção de qualquer teoria à volta da política. Só será possível
qualquer escopo se a considerarmos como um produto da linguagem e da
comunicação.
Habermas versa sobre as condições
de possibilidade da comunicação[5]. Para
tal classifica os atos ilocutórios de acordo com a sua força: constativos,
expressivos e regulativos. A cada um deles, faz corresponder a concepção dos
três mundos de Popper, mundo 1, mundo 2 e mundo 3, respectivamente. A cada um
desses mundos corresponde a ação teleológica, dramatúrgica e comunicativa. A
ação teleológica desenvolve a estratégia em consonância com o propósito que é a
verdade, a segunda desenvolve-se de acordo com a veracidade e a última com a
retidão. O que se pretende é um entendimento intersubjectivo para o qual é
fundamental o desenvolvimento da comunicação dialógica sem coacção nem
dominação da parte de um falante relativamente a um ouvinte.
3.
A política
como projecto inacabado.
Como já fora focado, a política é
essencialmente comunicação, procurando consensos. Por tal motivo, a democracia deliberativa
parece concorrer melhor para esta noção de política. Efetivamente, a democracia
deliberativa assenta sobre quatro pressupostos:
A) a justificação das propostas apresentadas;
B) estas razões devem ser
acessíveis a todos os cidadãos interessados (que possa ser entendível pelos
cidadãos);
C) é um processo dinâmico (o sua
justificação não é eterna);
D) visa tomar uma decisão que seja
vinculativa num certo período de tempo.
E os seus principais objectivos
são:
A) Visar a melhoria da qualidade
das decisões colectivas.
B) Almejar o escopo de uma
cidadania participativa.
C) Projectar-se na busca colectiva
da melhor proposta para todos.
O processe democrático enceta,
assim, uma rede de discursos a partir da ideia do que queremos ser
colectivamente, negociações, promessas e compromissos, estabelecendo critérios
de validade dos discursos.
4. O problema da liberdade de expressão
A democracia discursiva não só se
constrói a partir da livre expressão como a exige. Atualmente, por
variadíssimos factores têm surgido muitas posições, também elas livres, acerca
da liberdade de expressão. Se parece ser de uma existência indelével, também é
verdade que a sociedade opaca produz formas de censura subtis que, apesar de
não ser uma censura física como acontecia nas instituições existentes em países
totalitários, não deixa de ser censura, quer por ocultação quer, como
exemplificámos, por estratégias perfeitamente intencionais. Portanto, a
reflexão à volta do conceito é urgente não apenas quando surgem atentados à
livre opinião vindas de credos estranhos à cultura dominante mas também dentro
dessa mesma cultura, mais meandrosos.
Conhecemos as teses fundamentais de
Mill acerca da liberdade de expressão em Sobre
a Liberdade que se resumem da seguinte forma[6]:
a. O argumento da infalibilidade: Todas as
crenças são potenciais erros tal como podem ser potenciais verdades. O que é
certo é que a certeza não significa verdade. Até há pouco tempo havia a certeza
de que as mulheres não deviam possuir os mesmos direitos dos homens, o que não
corresponde à verdade. Foi a liberdade de expressão que alterou este estado de
coisas.
b. O argumento
do dogma morto: Quem possuir uma crença deve ser capaz de a tentar refutar,
descobrindo objecções Uma tese que considere a possibilidade de se tornar viva,
dignifica-se e justifica-se. Ganha valor. Afirma Mill: «O mal peculiar de silenciar a expressão de uma opinião é que isso
constitui um roubo à humanidade – aos que discordam da opinião, mais ainda aos
que a defendem.» Para Mill, há um ganho cognitivo indesmentível.
c. O argumento
da verdade parcial: Mesmo nas posições falsas pode haver elementos verdadeiros
Ressalvando a ideia de que Mill se
coloca numa posição em que o contexto argumentativo seria o ideal, onde houve
uma troca de ideias de um modo essencialmente racional, Mill apresenta
argumentos muito válidos relativamente à liberdade de expressão e à própria
ideia de democracia. Esta forma política tem o seu fundamento na constatação da
enorme possibilidade de qualquer um de nós estar errado, assim, como qualquer
instituição que exerça o poder, como é de fácil constatação. Contudo, o
desenvolvimento e o surgimento das redes sociais assim como a possibilidade de
todos, sem exceção, poderem dar a sua opinião noutras plataformas existentes,
configurou uma nova realidade. Se anteriormente todos se aborreciam pelo facto
do seu diário ter sido violado, actualmente todos querem partilhar esse diário,
o que motiva interrogações, dúvidas e perplexidades. Apesar de tudo, os tempos
são exigentes, o esforço intelectual é maior porque o escrutínio democrático está
mais presente e é constante; as formas de comunicação possuem cada vez mais
subtilezas e opacidades o que pode promover uma reflexão acerca dos limites que
por vezes somos tentados impor a este novo mundo. Quem é capaz de os impor?
Quem é capaz de delimitar as fronteiras da livre expressão? Convenhamos que a
internet não modifica a natureza humana, pode sim amplificá-la. Tal como Mill
afirmou, devemos ter a liberdade de errar, embora seja conveniente que as
pessoas possuam essa mesma consciência, caso contrário somos levados a dizer
que também devemos defender a liberdade de não se exprimirem.
Sejamos optimistas: Eis um tempo
propício para a intelectualidade.
António Daniel Fernandes Pereira da Costa
Mafra, 9 de abril de 2016
[1]
Innerarity, Daniel, A sociedade
Invisível, trad. Manuel Ruas, Teorema, Lisboa, 2009.
[2] Ibidem,
pág. 59 e ss.
[3] Ibidem,
pág 52.
[4] Acílio
Estanqueiro Rocha, «Democracia Deliberativa», in Manual de Filosofia Política, organizador João Cardoso Rosas,
Almedina, Coimbra, 2008
[5] Ibidem,
pág130 e ss.
[6] Nigel
Warburton, Sobre a Liberdade,
Filosofia Aberta, Gradiva, 2015.